Acessibilidade / Reportar erro

Porque as águas dobram?


Leonardo da Vinci. Virgem dos Rochedos 1483 - 1485, óleo sobre madeira transferido para tela, 1973 x 120 cm, Paris, Musée du Louvre.

Leonardo da Vinci, espelho profundo e sombrio,

Onde encantadores anjos, de sorriso suave

Cheios de mistério, surgem na sombra

De glaciares e pinhais que limitam o seu país.

Charles Baudelaire

Derivam as águas dos rios do mar, não apenas se originam, pois os sentidos seguem como em torrente e quando algum deles se expõe explícito, escorrem os outros por baixo, em subterrâneos. No Codex Leicester, os rios se afiguram como partes de um corpo, a terra, as suas veias ramificando-se, coligando-se e rompendo-se, que a visão em sobrevoo dá a ver, correndo para o mar, outro corpo, de onde partem aqueles, como sangue, para o seu nutrimento, e para onde retornarão. Não visível no texto, a profundidade marítima é potência, força que, ao se apresentar, revoluciona as águas nas fundas cavidades abissais, fontes das derivações, porquanto é o lugar de onde aquelas partem, sublevando a terra à medida que a lava. Delle derivationi del fiumi, expressão na qual o termo derivação vem do latim derivo, ou seja, desviar, afastar, provir, originar-se, mas também de ripa, margem, riba, assim como rivus, regato, ribeiro, torrente, compõe-se com o substantivo derivatio, que para Quintiliano, além dos sentidos supracitados, adquire também sentido figurado, pois refere emprego de uma expressão menos forte no lugar de outra de sentido muito próximo1 1 . Cf. Quintiliano, Institutio Oratoria, 3,7,25. .

Do alto da terra, derivam as águas, das altas roturas, timidamente no princípio, se avolumando depois, principalmente em julho e agosto, não devido ao derretimento das neves nos lugares mais altos – pois há lugares em que neve não há; mas, derivando, os regatos, expressões fracas dos rios fortes, têm origem no corpo da terra, simultaneamente ao corpo do mar que, aristotelicamente, o autógrafo faz derivar da origem do mundo, mar e mundo nascidos conjuntamente. Resultantes do encontro de dois rios num mesmo curso, ou no mar, devido às voragens, fluxos e refluxos intercambiam as forças das águas, dobrando as de um rio menor que se derrama nas águas de um rio maior, na direção das águas deste rio ou em direção oposta, caso o rio menor verta as suas águas na corrente do maior, próximo de sua foz. A massa líquida dobra, ora para um lado, ora para o outro, permitindo que as forças agora se tornem visíveis. O caso pode ser então demonstrado e figurado geometricamente à medida que os cursos dos rios deformam-se sob a ação destas forças em cheias ou em períodos de estiagem. O movimento das águas sobre o leito de um rio também pode variar, sendo a sua velocidade diversa, caso esteja seco este leito, ou largo, ou estreito, ou plano e profundo, diferindo também em virtude de tais condições o fluxo e o refluxo do mar para o qual avançam os rios, e do mar adentrando em outro mar, com cujas águas lutam as águas dos rios, alçando-se mais ou menos, conforme o caso. Toda a terra vibra consumida por correntes que correm a céu aberto ou que se escondem, escoando em cavernas como correntes subterrâneas, correndo em hipérboles no autógrafo, sendo que os cursos aprofundam continuamente os leitos, onde correm produzindo cavernas em sorvedouros, vestígios das águas que há tempos se precipitaram. O rio que flui das montanhas traz grandes pedras que se depositam nos leitos dos rios. O arrasto da pedra faz com que seus cantos se consumam e, dos desbastes e erosões, surgem pedras menores, e depois, menores ainda, sob a forma de cascalho grosso, depois, fino, depois, lita, areia, lama e folha apodrecida, que alcançam o mar, sedimentando e lubrificando o seu fundo, menos afetado às águas que sobre ele passam. As pedras não consumidas são devolvidas às montanhas pela inundação, desenhando o movimento do mar em avanços e recuos, o lance de pedras que percutem continuamente contra a ribanceira, facetada, com faces que vão gradativamente se arredondando. Recuando as águas do mar jusante, coliga-se o seu sal com o cascalho de rocha diminuída e a areia, sendo convertido em seixo o cascalho e em tufo a areia. Tese de que o avanço, poderoso, além de às vezes cobrir, consumindo, também produz, acumulando a montanha, dolomítica.

As voragens provocadas pelos recuos, fluxos e refluxos perfuram galerias de pedras ou cavernas, que para Leonardo tornam-se exempla em pintura da Virgem dos Rochedos pintada muito tempo antes destes comentários sobre hidrologia. Estas não servem apenas de cenário para as figuras da Virgem, do menino Jesus, de João Batista menino e de um anjo, porque a cena encena, alegoricamente, a pureza de Maria.

Na pintura, no que concerne à sua execução, com luzes e sombras as formas modelarão os corpos das figuras, esculpindo-os com luz geometricamente dirigida, assim como, referido nos escritos, a água do mar, alçando-se aos cumes das montanhas, as lapidam como glaciais sedimentados. O uso da maneira grega alla antica permite o nuançar dos contornos esfumados como pelo ar que contém água filtrando a luz e, assim, os reflexos sobre espelho d’água cujo fundo acastanhado enegrecido não se vê, pois refere outra alegoria, a da profundidade que é habitáculo e simultaneamente vereda perpassada pela Presença da Luz da Graça ou o Espírito.

A rocha, fortaleza da fé e castelo da pureza, porquanto advém Cristo de um ventre imaculado, é também borda escarpada sob as figuras, à margem de um veio de água, puríssima graça, retornando pelo mar cuja superfície imantada de verdes e azuis distantes se distende pelos altiplanos vistos ao fundo do retábulo. A circularidade da alegoria que se fecha sobre si é desenvolvida pela pintura que, por sua vez, é uma das derivadas dos escritos sobre as derivações dos rios e das águas que, por homologia com o corpo dos homens, com o seu sangue, flui de baixo para cima, ignorando a gravidade e perfazendo a maravilha. Eis o silogismo, ou metáfora: assim como o sangue alimenta o corpo e a água nutre o rio que deságua no mar, a Graça de Deus inunda o Espírito. Partindo da profundeza, estas águas, fluindo e refluindo, dobrando-se e redobrando-se até o mar que cobre os cumes das montanhas, produzem – como imitação dos efeitos naturais – os efeitos da Graça que estão presentes na natureza, como movimento em quiasma ou sindérese que indicia a presença do inteligível no sensível e vice-versa – a aspiração do sensível ao inteligível. A Graça remove montanhas, mas também as produz, pois da natureza é anima mater; e as águas pelo tecido do corpo metafórico se dirigem vencendo quaisquer obstáculos.

Das derivações dos rios

[Leic.33b]

O corpo da terra, à semelhança dos corpos dos animais, é tecido de ramificações de veias, as quais, estando todas juntas e coligadas, constituem o nutrimento e a vivificação dessa terra e de suas criaturas. Partem aquelas da profundidade do mar, e depois de muitas revoluções retornam pelos rios criados pelas altas roturas dessas veias; e se tu quiseres dizer as chuvas do inverno ou o derretimento da neve no verão serem a causa do nascimento dos rios, a ti poderia alegar sobre os rios que têm origem nos lugares ardentes da África, na qual não chove e muito menos neva, porque o calor excessivo sempre dissolve no ar todas as nuvens que pelos ventos de lá são empurradas. E se tu disseste que estes rios, que se tornam volumosos em julho e agosto são das neves que derretem em maio e junho, por aproximação do sol das neves das montanhas da Scitia, e que estas dissoluções se reconduzem em alguns vales produzindo lagos, donde depois entram pelas veias e cavernas subterrâneas, as quais ressurgem mais tarde como sendo a origem do Nilo, isto é falso, porque é mais baixa a Scitia que a origem do Nilo, uma vez que a Scitia está ao lado do mar de Poto, a 400 milhas, e a origem do Nilo é afastada a 3.000 milhas do mar do Egito, onde verte as suas águas.

[Leic. 5a]

Livro 9º dos encontros dos rios e de seus fluxos e refluxos, e a mesma causa cria no mar por causa do estreito de Gilbratar, e também ocorre pelas voragens; se dois rios juntos se encontram por uma mesma linha, sendo ela reta, e depois, abaixo, por dois ângulos retos peguem juntos o seu curso, sucederá o fluxo e o refluxo, ora a um rio, ora a outro, antes que sejam unidos e espessados, se a saída de sua união não for mais veloz do que quando estavam desunidos. Aqui ocorrem quatro casos.

Quando o rio menor verte suas águas no maior, o qual corre na margem oposta, então o curso do rio menor curvará o seu curso inverso à vinda do rio maior; e isto ocorre porque quando esse rio maior enche de água todo o seu leito, ele vem retraído sob a boca deste rio, e assim espreme consigo a água vertida pelo rio menor. Quando o rio menor verte as suas águas no rio maior, o qual tenha a corrente na foz do menor, então as suas águas se curvarão em relação inversa à fuga do rio maior.

[Leic. 16b]

Quando as cheias dos rios são diminuídas, então os ângulos agudos que são gerados nas conjunções de seus ramos tornam-se mais curtos em seus lados e mais largos na sua ponta, como é a corrente a n, e a corrente d n, as quais se coligam juntas em n quando o rio está em sua grande cheia; digo que, quando estava na referida disposição d n, antes da cheia, era mais baixo que a n; que no tempo da cheia, d n será cheio de areia e lama; que na queda das águas, d n levará embora a lama e permanecerá com fundo baixo, e o canal a n, encontrando-se alto, escorrerá suas águas no baixo d n, e consumirá toda a ponta do areal b c n, e assim permanecerá o ângulo a c d mais largo que o ângulo a n d, e os lados mais curtos, como disse antes.

[G. 48a]

Água

Do movimento, de súbito impulso, de um rio sobre o seu leito seco.

Tanto é mais tardo ou veloz o curso da água dada pelo lago drenado para o rio seco quanto for esse rio mais largo ou estreito ou mais plano e profundo em um lugar do que no outro, pelo que é proposto: o fluxo e refluxo do mar que, pelo oceano, entra no Mar Mediterrâneo e o dos rios que lutam com ele alçam um pouco mais ou um pouco menos as suas águas tanto quanto for o mar mais ou menos estreito.

[C.A. 36ab, II 34b]

Voragens, isto é, cavernas, isto é, resíduos de águas precipitadas.

[G. 49 b]

Da vibração da terra.

As correntes subterrâneas das águas, assim como aquelas que são feitas entre o ar e a terra, são as que continuamente consomem e aprofundam os leitos de seus cursos.

[Leic. 6 b]

O rio que flui das montanhas deposita uma grande quantidade de pedras grandes em seu leito, as quais estão ainda com parte de seus ângulos e lados, e, no processo do curso, conduz pedras menores, com ângulos mais consumidos, isto é, as pedras grandes vão se fazendo menores, e mais além, cascalho grosso, e depois, diminuído, e em seguida, areia grossa, e depois, diminuída; depois procede como lita grossa, e depois mais fina, e assim seguindo, alcança o mar a água turva de areia e lita; a areia descarrega sobre as ribas dos mares pelo regurgitamento das ondas salgadas e segue a lita tão fina que parece da natureza da água, a qual não se firma sobre as ribas dos mares, mas retorna de volta com a água pela sua leveza, porque é nascida de folhas podres e de outras coisas levíssimas; de tal modo que, sendo quase, como se disse, da natureza da água, depois, no tempo de calmaria, se descarrega e se firma sobre o fundo do mar, onde pela sua fineza se condensa e resiste às ondas que sobre ali passam, pela sua lubricidade, e ali estão as conchas; e é esta terra branca para se fazer bocais.

[Leic. 3 I b]

Todas as saídas das águas do monte para o mar carregam consigo as pedras do monte para este mar, e pela inundação das águas marinhas contra os montes, estas pedras são jogadas novamente contra o monte, e ao avançar e recuar das águas do mar, as pedras retornam para junto dele, e, ao retornar, os seus ângulos são percutidos juntos, e as partes menos resistentes à percussão se consomem, faceando as pedras, sem ângulos, em figura redonda, como se demonstra nas ribas de Elsa; aquelas que permanecerem mais grossas não serão removidas de seu lugar nativo. Assim, aquela que se fizer menor, mais se moverá do referido lugar, de modo que, ao proceder, ela se converte em cascalho diminuído, e depois em areia, e, por último, em lama; depois que o mar se afasta dos referidos montes, com a salinidade deixada pelo mar com outro humor da terra é feita uma coligação a esse cascalho e areia, e o cascalho em seixo e a areia em tufo serão convertidos. E disto se vê exemplo em Adda, ao sair dos montes de Como, e em Tesino, Adige, Oglio dos Alpes Germânicos e, semelhantemente, no Arno, no Monte Albano, em torno do Monte Lupo e Capraia, onde os seixos, grandíssimos, são todos de cascalho congelado de diversas pedras e cores.

  • 1
    . Cf. Quintiliano, Institutio Oratoria, 3,7,25.
  • Extraído e traduzido de texto escrito em vulgar em edição estabelecida por Jean Paul Richter com ortografia e paragrafatura modernas in: The Notebooks of Leonardo da Vinci: compiled and edited from the original manuscripts by Jean Paul Richter, 2 vols., Dover Publications, Inc., New York, 1970, vol. II, pp. 200-204.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2013
  • Aceito
    22 Jul 2013
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br