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O Movimento de Arte Pornô: a Aventura de uma Vanguarda nos Anos 80.

The Porn Art Movement: a 80’s avant-garde adventure

Resumos

O Movimento de Arte Pornô foi um movimento de arte experimental que iniciei no Rio de Janeiro e que durou, como um intervencionismo programático, por dois anos, de fevereiro de 1980 a fevereiro de 1982. Foi o último movimento de vanguarda organizado na arte e na poesia brasileiras. Também ficou conhecido como Poesia Pornô, Pornismo, ou Movimento Pornô ; neste artigo, usarei alternadamente os vários nomes desse movimento. O movimento realizou diversas intervenções públicas, editou três zines, duas antologias, diversos opúsculos e variadas publicações, e dirigiu-se a um público amplo1. O Pornismo começou como um movimento poético e rapidamente expandiu-se para outras áreas, subvertendo as normas estéticas em diferentes meios, desestabilizando as convenções que regem a experiência cotidiana e dando forma a novos modos de ser e estar no mundo.

Movimento de Arte; Pornô, vanguardas


The Porn Art Movement (Movimento de Arte Pornô) was an experimental art movement I launched in Rio de Janeiro that lasted, as a sustained interventionist effort, for two years, from February 1980 to February 1982. It was the last organized avant-garde movement in Brazilian art and poetry. It was also known as Pornpoetry (Poesia Pornô) or Pornism and in what follows I will alternately use any of the movement’s three names. The movement carried out numerous public interventions, published three zines, two anthologies, several opuscules and varied publications, and developed a broad audience1. Pornism began as a poetry movement and quickly expanded into many other areas, upending aesthetic norms across many different media, upsetting the accepted parameters of everyday experience, and modeling new modes of being.

Porn Art Movement; avant-garde



Edward Weston Pepper, impressão fotográfica de 1930.

O Movimento

A narrativa histórica padrão sobre a arte e a poesia brasileiras do século XX começa com a Semana de Arte Moderna de 22, cujo objetivo era libertar as artes visuais da perspectiva e do classicismo, e o verso da rima e da métrica. Ela continua com os movimentos dos anos 1950 e 1960, que adotaram diretrizes construtivistas, incluindo o concretismo, neo-concretismo e poema/processo (embora este último delas se afastasse). Esses movimentos inicialmente produziram obras auto-referenciais nas artes visuais e, em poesia, privilegiaram a dimensão visual do signo verbal e não-verbal. Posteriormente, incluíram a interação e a participação do público, tanto na arte quanto na poesia. Seguiram-se a eles os movimentos contraculturais e conceituais.

Lançado em 1980 – quando essas batalhas estéticas já haviam sido travadas e vencidas – o Movimento Pornô começou pela identificação de um novo meio e material para a criação poética: o corpo. Não o corpo enquanto tema, mas toda a gama de práxis corporais, de seus impulsos verbais a seus prazeres textuais, de seus sons a seus movimentos, de sua forma à sua função, de seus comportamentos comuns a suas transgressões, do corpo individual ao social, de sua carnalidade a sua carnavalização, de sua superfície a seus órgãos. Os Poemas Pornôs ativavam, no nível da linguagem (ou seja, através do poder que têm as palavras para organizar o mundo sensível), transformações poéticas e políticas por meio do desejo e do gozo. Através da linguagem poética, o movimento buscou estabelecer uma conexão direta entre um estado consciente do desejo e uma prática libertadora. Ao empregar uma gramática libidinosa e buscar a fusão do corpo e do discurso, o movimento prática sígnica irrestrita por meio da pulsão da linguagem.

Naquela época, como jovem e líder do Movimento Pornô, eu via o meu papel como o de um artista insurgente. Eu buscava injetar um sopro de vitalidade herética no mundo complacente das belles lettres e no conceitualismo sombrio que dominara a arte contemporânea na década anterior. Com as ramificações transmídia em meu trabalho daquele tempo, eu também procurava resistir e me afastar da factícia transavanguardia2 2 . “Transavanguardia” foi o termo dado pelo crítico de arte Achille Bonito Oliva a um movimento que ocorreu na Itália e outros países europeus no final dos anos 1970 e início dos 1980. “Transavanguardia” significa “além da vanguarda”. O movimento privilegiava o figurativismo policromático e depreciava o conceitualismo. Era fundamentalmente uma forma de neo-expressionismo com elementos simbólicos. Alguns dos artistas mais notáveis da Transavanguardia foram Mimmo Paladino, Enzo Cucchi, Francesco Clemente e Sandro Chia. O movimento era conhecido na Alemanha como “Neuen Wilden” (Os novos selvagens, ou Jovens artistas selvagens), nos EUA como “New image painting” (Nova imagem, ou Pintura da imagem nova) e na França como “Figuration Libre” (Figurativismo livre). Ver: OLIVA, Achille Bonito. Transavantgarde International. Milan: Giancarlo Politi, 1982. No Brasil, uma nova geração de artistas surgiu na década de 1980. Enquanto um segmento importante dessa geração fazia experimentações com novas mídias, o mercado e a imprensa conservadores celebravam o segmento que trabalhava com o meio mais tradicional da pintura, imitando seus colegas europeus da Transavanguardia. Ver: COSTA, Marcus de Lontra; LEAL, Paulo Roberto; MAGGER, Sandra (eds.). Como vai você, Geração 80?. In: revista Módulo (edição especial). Rio de Janeiro, 1984. local. Arregimentei a licença sexual e poética para orquestrar uma crítica vigorosa e escarninha do status quo.

Mesmo hoje, essas obras irreverentes ainda constrangem os críticos mais escrupulosos, que tentam denegri-las, suprimi-las, trivializá-las explicando-as como criações juvenis ou relegando-as aos recessos da memória coletiva. A Biblioteca Nacional ainda classifica uma antologia publicada pelo movimento, e presente em sua coleção, como “imoral”. Após três décadas de esquecimento (ou descaso?) nos estudos literários e na história da arte no Brasil, o movimento foi exposto pela primeira vez em um grande museu em 2012 — na Europa3 3 . O Museu Reina Sofia, Madri, realizou a exposição “Perder la forma humana. Una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina”, de 26 de outubro de 2012 a 11 de março de 2013. A exposição foi organizada por uma rede de pesquisadores e curadores chamada Red Conceptualismos del Sur. Nessa exposição, uma sala foi dedicada ao meu trabalho produzido no contexto do Movimento de Arte Pornô. Ela incluía um pornograma, diversas fotografias, um vídeo-documentário e uma vitrine com publicações do período. Uma exposição menor, chamada “Excitación permanente. La Gang del Movimento de Arte Pornô en los años 80”, com curadoria de Fernanda Nogueira, foi realizada no centro cultural Lugar a Dudas, em Cali, na Colômbia, de 31 de agosto a 31 de setembro de 2012. A primeiríssima exposição de minha arte pornô em uma galeria foi “Pornogramas: 1980-1982”, que ocorreu na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, de 28 de janeiro a 13 de março de 2010. O Museu de Arte do Rio (MAR) possui algumas de minhas obras deste período em sua coleção permanente. . O Pornismo ainda é considerado demasiadamente indecente para ser acatado como parte integral da história cultural nacional e mostrado em um grande museu brasileiro. Dentre as razões para essa muralha de silêncio estão a apropriação deliberada e explícita, por parte do movimento, da pornografia (em oposição ao erotismo), o conteúdo radical do material e a dimensão excessivamente pública de suas atividades.

Contra a tradição

A Poesia Pornô distinguia-se claramente de seus antecessores históricos pelo fato de que seu objetivo não era escrever poemas que descrevessem o ato sexual, dirigissem invectivas a destinatários incautos ou excitassem o leitor. Para causar impacto, a poesia obscena tradicional dependia das convenções sociais que discriminavam entre uma linguagem publicamente aceitável e uma proibida. A poesia fescenina não desafiava a noção de obsceno; em vez disso, originou-se nela e reforçava sua dissociação do discurso cortês. Na época do Movimento de Arte Pornô, críticos pudicos e detratores apressaram-se em sugerir que a poesia pornográfica vinha de uma longa tradição; em última análise, o que esse amplo gesto de desdém revelava de fato era sua incapacidade de apreender a especificidade do novo Movimento. O que precisa ser dito é que essa estratégia retórica (isto é, a busca por precedentes históricos na tentativa de invalidar a radicalidade da obra contemporânea) está longe de ser, ela mesma, nova. Ela já fora denunciada por Nietzsche, que escreveu em O Crepúsculo dos ídolos (1895): “O historiador olha para o passado; no fim crê também no passado”.

Figura 1
Eduardo Kac, Nabunada Não Vaidinha? primeiro livro de poesia do autor, 1981, Capa de Hudinilson Jr.

Ao longo do século XX, o impacto sucessivo dos múltiplos movimentos de vanguarda sempre encontrou uma resposta crítica similarmente desdenhosa. Diante da novidade dos caligramas de Apollinaire, do parolibrismo de Marinetti e das vanguardas visuais dos anos 1950 e 1960, os críticos literários que eram contrários a esses autores e movimentos nunca deixaram de relembrar formas registradas pela história como as technopaegnia e as carmina figurata, o poema combinatório ou permutativo e o labirinto, dentre outros, para sugerir que não havia nada de novo nos movimentos do século XX. Todavia, como demonstrado pelos estudos subsequentes, esses autores e movimentos do século XX revolucionaram de fato a poesia no conteúdo e na forma. Nenhum poeta medieval ou barroco jamais criou nada como o Il pleut de Apollinaire ou a espasmódica tipografia de Marinetti vista em Zang Tumb Tumb. Da mesma maneira, a sugestão de que o movimento da Poesia Pornô simplesmente restabelecia a forma e o conteúdo pornográficos do passado pode facilmente ser rejeitada por leituras atentas das próprias obras e um exame cuidadoso da história literária. A confusão resulta da pressuposição de uma semelhança baseada na palavra pornô e de um desejo a priori de ignorar, ou uma verdadeira incapacidade de se envolver com, o novo contexto e a especificidade formal do movimento.

A antiguidade ocidental traz muitos exemplos de abordagens poéticas do obsceno, da poesia iâmbica de Arquíloco ao neotérico Catulo — para não falar de Marcial, da Priapeia, e da Musa Puerilis de Estratão. Todavia, a própria noção de obsceno mudou com o tempo. Seria uma grave limitação ler esses poemas sem um entendimento do contexto histórico e social em que eles foram escritos e do contrato implícito entre poeta e público que estruturava sua recepção contemporânea. Para dar um exemplo: se considerarmos a Roma antiga, é importante entender que a noção de homossexualidade, como a conhecemos hoje, não existia. O intercurso masculino-masculino na sociedade romana era entendido dentro do eixo conceitual penetrador/penetrado: o penetrador sempre pertencia a uma posição social mais alta que o penetrado. Para ser claro: o penetrador era um cidadão de pleno direito, ao passo que o penetrado tinha um status social inferior (mulheres ou escravos de qualquer sexo, por exemplo). A Roma antiga considerava que era feminizante, para um homem, ser penetrado ou praticar uma felação (por qualquer razão); em outras palavras, era extremamente ofensivo sugerir que uma pessoa era aquilo que os romanos entendiam como passivo. Esse único exemplo deixa claro que uma compreensão mais ampla das sociedades grega e romana é necessária para enquadrar devidamente a obra de Arquíloco, Catulo ou Marcial. Ao mesmo tempo, a violência com a qual esses poetas infundiam suas obscenidades (como as acusações de homossexualidade passiva e traição conjugal) e as imagens de estupro, bestialidade e mutilação que recheiam a Priapeia evidenciam o quanto essas obras são drasticamente diferentes do Movimento Pornô, no qual o léxico obsceno é conscientemente investido com um programa progressivo de política do corpo. O uso da carnalidade ou obscenidade como sátira ou vitupério aplica-se igualmente a toda a tradição fescenina. Bastaria considerar Rustico Filippi (c. 1230- c. 1300) e sua poesia giocosa, as cantigas d’escarnho e de mal dizer galego-portuguesas, que datam dos séculos XIII e XIV, e os poemas transgressivos de François Villon (c. 1431- c. 1463) escritos en jobelin (jargão que se originou entre os criminosos, que o utilizavam para enganar suas vítimas; os poetas e dramaturgos medievais lançavam mão dele para comunicar conteúdo obsceno sem usar palavras obscenas, de modo a enganar os censores da Igreja). Com Pietro Aretino (1492-1556), inicia-se uma nova fase cultural e nasce a figura do escritor libertino: o poeta canta principalmente os prazeres da carne que ele experimenta ou imagina. Muitos poetas seguiram os passos de Aretino e, no século XVIII — quando La Mettrie escreveu em L’Art de jouir [A Arte de gozar]: “Le voluptueux aime la vie, parce qu’il a le corps sain, l’esprit libre et sans préjugés” (O voluptuoso ama a vida, porque tem o corpo são, o espírito livre e sem preconceitos) — a lista se torna longa demais para uma enumeração individual. Nesse contexto, destaca-se Giorgio Baffo (1694-1768), admirado por Apollinaire como “le plus grand poète priapique qui ait jamais existé” (o maior poeta priápico que já existiu). No século XX, a poesia fescenina celebrou a carnalidade material das experiências corporais, na nova tradição de Aretino e Baffo, como visto nos versos obscenos de poetas tão diferentes quanto Verlaine, Benjamin Péret, Louis Aragon, Allen Ginsberg, Charles Bukowski e o próprio Apollinaire, dentre outros. Essa poesia obscena é tratada mais como um divertissement ou erotismo elevado, e não como um engajamento consciente por uma mudança política, como ativação do vínculo entre corpo e poesia, ou como experimentação com ideias e processos além do corpóreo, que eram aspectos essenciais do movimento Poesia Pornô.

A poesia fescenina do século XX representou uma voz heterossexual convencional (sendo Verlaine e Ginsberg exceções dignas de nota), circulava de maneira clandestina, isolava a sexualidade do humor e da escatologia e não fazia da linguagem e da sintaxe o objeto de uma experimentação integrada. Em contrapartida, o movimento Poesia Pornô explorava múltiplas vozes sexuais e posições de sujeito, realizava seu trabalho de maneira extremamente pública, misturava a pornografia com excreções e a alegria orgiástica, e desafiava as convenções da linguagem poética explorando novas possibilidades inter, multi e transmídia. Muitos críticos que desdenharam prematuramente a Poesia Pornô fizeram isso sem de fato ter lido os poemas ou explorado os limites permeáveis entre a performance ao vivo e a obra impressa. Os críticos banalizantes podem ter suposto, automática e erroneamente, que as obras produzidas pelo movimento eram essencialmente relatos autobiográficos ingênuos através dos quais escritores espontâneos transcreviam suas experiências pessoais. Nada disso. Embora possam existir algumas conexões autobiográficas dentro do conjunto de obra, os poemas são artefatos literários que resultam de um trabalho programático e exploratório no nível da linguagem poética (entendida na acepção expandida defendida pelo movimento).

Figura 02
Eduardo Kac, poema-grafite Overgoze, composto de letras vermelhas sobre muro branco, Avenida Copacabana, Rio de Janeiro, 1981.

Figura 03 e 04
Eduardo Kac, performance Interversão, praia de Ipanema, 1982.

A Poesia Pornô considerava essa segregação uma manifestação do conservadorismo ideológico vigente e o desafiou com a produção de um corpus que pretendia transformar disfemismos em eufonismos (por meio da subversão de expressões transgressivas e de uma linguagem poética experimental). Um dos objetivos do movimento era abolir o mecanismo distanciador e, portanto, a fetichização da linguagem e da realidade engendrada pela obscenidade tradicional. É por isso que a ação pública era essencial para o sucesso do projeto: para inserir na prática social a nova pornografia iniciada pelo movimento.

O Movimento de Arte Pornô considerava exaurido o paradigma modernista e buscava desmoronar as hierarquias de valor, abrindo ao mesmo tempo as comportas para um pluralismo democrático na arte e na política. Como resultado, adotamos uma posição coletiva e pública. Denunciamos a supressão geral da corporeidade na arte e na poesia, ignoramos os abismos entre a baixa e a alta culturas e rejeitamos a supremacia da mídia impressa em favor de uma hibridização entre a oralidade e a mixed media. Criticamos publicamente a noção de uma posição universal do sujeito e cultivamos multiplicidades ontológicas que estendiam-se além dos papéis teatrais para extinguir os limites entre as posições estéticas transgressivas e a vida real. Definimos o pornô como forma.

Figura 05
Eduardo Kac, Pornograma 5, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 49 x 73 cm, 1982.

Apropriação e subversão da palavra “pornô”

Escolhi a palavra “pornô” de maneira consciente e séria, como emblema de transformação do proibido em uma plataforma socialmente aberta e criativa. Ao mesclar o que era tradicionalmente considerado sublime (arte) com o que socialmente era tratado como abjeto (pornografia), produzi uma nova síntese. A pornografia convencional instrumentaliza a sexualidade para induzir a excitação; a arte pornô instrumentalizou a própria pornografia, subvertendo-a por dentro e transformando-a em ferramenta imaginativa a serviço da expressão poética experimental e da invenção de novas realidades.

O preconceito cultural contra os pequenos prazeres tem raízes no ethos capitalista de produção e acumulação constantes; assim, a reafirmação da liberdade corporal feita pelo movimento tornou-se ao mesmo tempo uma forma de transgressão poética e uma política do corpo. O pornismo promoveu uma pornoestética do gênero “faça-você-mesmo”, desenvolvendo arte e poesia autênticas (sem deuses e deusas corpóreos, com físicos extraordinários, mas pessoas como elas realmente são), espontâneas (em vez de roteiros, improviso e humor) e diversificadas (a típica visão masculina e heterocêntrica foi substituída por vozes subculturais e um enfoque plurissexual). A despeito da ditadura militar4 4 . A ditadura militar durou de 1964 a 1985, mas a eleição de 1985 ainda foi realizada, sem voto democrático, por um Colégio Eleitoral nomeado pelos militares. Apenas em 1989 ocorreriam novamente eleições presidenciais verdadeiramente democráticas. Após 1968, quando o presidente Artur da Costa e Silva decretou o Ato Institucional Número Cinco, o governo militar comandou com absoluta impunidade e deu início a uma repressão sistemática sobre a população. Entre 1974 e 1979, durante o governo do general Ernesto Geisel, a censura era implacável, a tortura de prisioneiros políticos era desenfreada, a dívida externa explodiu, o desemprego aumentou e a situação econômica do país deteriorou-se consideravelmente. Em 1977, Geisel dissolveu o Congresso. Outro general, João Baptista de Figueiredo, governou o país de 1979 a 1985. Nesse período, a dívida externa e a inflação do país atingiram níveis sem precedentes: em 1980 a hiperinflação estava em 110%. No início dos anos 1980, grupos militares executaram ataques a bomba e incêndios criminosos contra jornais da oposição, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e bancas de jornal que vendiam publicações alternativas e liberais, dentre outros alvos. Em 1980, um grupo de mulheres conservadoras de São Paulo, conhecidas na mídia como “Senhoras de Santana”, estavam na linha de frente do conservadorismo civil. Elas foram entusiasticamente acolhidas pelo Ministro da Justiça e pediram uma censura ainda mais estrita, chegando às manchetes nacionais e mobilizando setores tradicionalistas da sociedade. , encabeçada por um general-presidente que gerou manchetes clamando por uma “cruzada contra a pornografia”5 5 . No mês que se seguiu à intervenção na praia do Movimento Pornô em 1982, o general-presidente João Baptista de Figueiredo conclamou uma cruzada nacional contra a pornografia em um discurso transmitido em rede nacional no rádio e na televisão. Apesar dos sinais de recrudescência política, a determinação do governo em controlar o comportamento pessoal e social era tamanha que a censura oficial só terminaria em 1988, quando a nova constituição foi promulgada sob o governo do presidente José Sarney. Durante o governo militar, a censura foi implementada sob a supervisão de Solange Maria Chaves Teixeira (que assinava seus decretos como Solange Hernandes), diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), controlada pelo Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça. Em particular, os artigos 233 e 234 do código penal em voga, escrito nos anos 1940, traziam regras estritas contra “atos públicos obscenos”. Ver: RODRIGUES, Marly. A década de 80. São Paulo: Editora Ática, 1992; LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Brazil since 1980. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; BADEN, Nancy T. The muffled cries: the writer and literature in authoritarian Brazil, 1964-1985. Lanham: University Press of America, 1999; BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro: Record, 2004. Sobre o discurso do presidente Figueiredo, ver: Figueiredo convoca a nação para combater a pornografia. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 16 de mar. de 1982, p. 4; e Uma lição de moral. In: revista Veja, n. 707. São Paulo, 24 de mar. de 1982, p. 20-21. , o movimento não era clandestino. Muito pelo contrário, seu perfil extremamente público o ajudou a ganhar seguidores, expandir sua audiência e atrair a atenção — succès de scandale — da grande mídia, incluindo as grandes revistas e jornais do país.

Vivendo em um momento de incerteza política, brutalidade policial crescente e inflação desenfreada, eu considerava obsceno e imoral o governo autoritário e a desigualdade social que ele produzia — e não o corpo humano em seu estado natural, com seus eflúvios e inclinações. Com sua irreverência inabalável, a Poesia Pornô podia ser, a um só tempo, politicamente engajada, hilariante e comovente.

Dentre os intuitos do movimento, desde o início, estava o de subverter o significado da palavra pornografia. O objetivo da Poesia Pornô era tríplice: 1) desconstruir a sintaxe e a lógica conservadora da pornografia convencional; 2) desenvolver um novo idioma poético baseado na invenção de uma nova sintaxe — em outras palavras, criar princípios lógicos corpocêntricos e regras de organização que dirigissem a produção de significado à construção de posições novas, saudáveis e liberais do sujeito social; 3) realizar intervenções públicas regulares na forma de performances, publicações, grafite, adesivos, ações corporais, e transformação da vida individual. Como a linguagem e a visão do mundo são inextricáveis, a Weltanschauung dionisíaca do movimento procurava usar a linguagem e a práxis para elaborar estruturas sintático-semânticas transgressivas com base em elementos que, naquele tempo, não eram aceitos como sendo capazes de transmitir um significado sério e digno, como a pornografia, o humor negro e a escatologia. O Pornismo cultivava uma exploração extremamente aberta da mídia e dos gêneros, defendendo a ideia de que a seriedade e o riso são absolutamente compatíveis.

Em resposta à hiperinflação que assolava o país naquela época, a Poesia Pornô operou uma hiperinflação do profano e do blasfemo, do obsceno e dos tabus escatológicos e funções corporais, abrangendo (arreganhando) todo o leque de indecências. A Poesia Pornô ousou imaginar um futuro no qual os palavrões não mais seriam obscenos. Ela tentou desencadeá-lo por meio de uma explicitude generalizada e do uso preciso da ambiguidade, modulando tanto o vocabulário quanto a sintaxe. Essa estratégia chama a atenção para a própria linguagem, para o material literal dos poemas, e ativa uma rede de conotações contextuais e intertextuais. Um escrutínio cuidadoso das melhores produções do movimento e a compreensão da dimensão ativista do Pornismo desmentiriam qualquer concepção do mesmo como sendo um projeto impulsionado por um único leitmotif e revelariam seu firme compromisso com a experimentação poética e artística.

A Gang: orquestrando a orgia

Em 1980 formei um grupo chamado Gang para realizar intervenções públicas programáticas em praças, praias, parques, teatros e muitos outros locais. A Gang era o braço performático e a força organizadora do movimento em nível nacional, coordenando atividades, publicando revistas e panfletos, recebendo e respondendo à correspondência, fazendo grafite, distribuindo publicações, solicitando contribuições, dialogando com a imprensa — em suma, realizando as tarefas necessárias para garantir a continuidade do movimento.

Figura 06
Eduardo Kac, Pornograma 1, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 49 x 73 cm, 1980.

Por toda a duração do Movimento de Arte Pornô, na companhia de meu grupo realizei performances públicas todas as noites de sexta-feira na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Embora seja rodeada pelo Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e o Museu Nacional de Belas Artes, após a meia-noite a Cinelândia se tornava um antro, sujo e perigoso, onde intelectuais e moradores de bairros chiques se misturavam a strippers, drogados, travestis, prostitutos e prostitutas, burgueses atraídos pela decadência, homo e heterossexuais (muitos atrás de encontros), pivetes, turistas, mendigos, vagabundos, antissociais, malandros e loucos — tudo isso entrelaçado a garçons experientes servindo uma torrente incessante de chopes e cachaça. Esse ambiente cultural único era parte integrante do público central do movimento, diante do qual li em voz alta, na companhia de meu grupo, o “Manifesto Pornô” em 9 de setembro de 19806 6 . O “Manifesto Pornô” foi publicado pela primeira vez na revista do movimento Gang (nº 1, maio de 1980). Dentre as subsequentes publicações estão: Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso (folha solta, 1980) e, na versão publicada pela editora Iluminuras, em 2001 (p. 49); e também no citado volume Antolorgia, organizado por mim e Cairo Trindade (p. 7). .

Com trajes criados a partir do que estava disponível no momento, todos os membros da trupe apareciam de maneira descontraída, alegre e improvisada. Meus dois trajes usuais eram o uniforme de “Bufão do Escracho” — composto de botas de mergulho de borracha vermelha, calças de pijama feitas em casa, um cinto no estilo peruano e uma camiseta com meu poema pornô “Filosofia” — ou uma minissaia rosa normalmente combinada a uma camiseta em que estava escrito meu poema-grafite “Overgoze”, mais um cinto de metal artesanal no qual pendurava meus piróculos (óculos com nariz em forma de pênis).

Poemas-para-gritar e Pornogramas

Minha prática poética nesse período pode ser entendida de duas maneiras distintas e complementares. Para intervir nos ambientes públicos, criei poemas-para-gritar (ou poemas orais), com frequência epigramas galhofentos compostos com um humor libidinoso e escatológico. Por outro lado, os poemas visual-materiais (adesivos, grafites, camisetas, fotos, objetos-poemas, arte postal etc.) expandiram minha pesquisa formal — culminando com minha série intitulada Pornogramas, que considero meu trabalho mais radical e original do período. Pornogramas são obras em que eu escrevia com o corpo mas que, sobretudo, escreviam o próprio corpo. Essas obras formam um conjunto de sete fotoperformances.

Em meus poemas pornô versificados integrei uma linguagem não-convencional e coloquialismos, palavras obscenas, dialetismos de tribos urbanas, zombarias linguísticas, paródias e modificações, invenções verbais e experimentação visual, além de performatividade, enfatizando ao mesmo tempo as complexidades semânticas muito além da linguagem aparentemente direta dos poemas. O uso de palavras estigmatizadas nos poemas pornôs transformava o aspecto injurioso dessas palavras em força expressiva, através de crítica e provocação política. Produzi uma nova lógica compositiva ao fundir grosserias e palavrões existentes com outras palavras, fragmentos léxicos, neologismos, piadas lascivas, rabiscos antinormativos de portas de banheiros, lugares-comuns, blasfêmia, xingamentos, agramatismos, ortografia incorreta, gírias, exorbitância lexical, obscenidades em geral, o nojento e o grotesco. Ao fazê-lo, eu procurava comunicar uma massa de linguagem concentrada, lúdica e subversiva, capaz de exprimir significados inesperados. A Gang distribuía essas obras por meio de sua própria editora, que empregava estratégias alternativas de produção/publicação7 7 . Apesar dos circuitos alternativos de circulação destas publicações, fui informado de que leitores e não leitores mantiveram meu dístico “Filosofia”, por exemplo, em circulação, e que ele se tornou uma citação frequente na cultura brasileira contemporânea. Não sei o quanto o poema foi efetivamente disseminado, mas sei que foi citado por um personagem de filme nos anos 1980 e que, na época, ele circulou em antologias nacionais, incluindo uma bastante acessível, distribuída em bancas de todo o país. Ver: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder e HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs.). Poesia jovem / Anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982, p. 8 e 99. Sei também que desde então ele circulou em agendas e mesmo em camisetas piratas, sem mencionar sua reprodução na internet. Em 2011, um conhecido meu inesperadamente o citou para mim, durante uma conversa informal, sem saber que eu era o autor. “Filosofia,” como muitos de meus outros poemas gritados, contém um acontecimento imaginado da vida cotidiana; os elementos principais da situação desenrolam-se rapidamente, levando a uma conclusão frequentemente cômica, às vezes lírica ou mesmo — como manifesta o título já mencionado — filosófica. .

Em um plano puramente linguístico, o princípio operativo primordial era a desconstrução da sintaxe da pornografia visual e sua transposição ao nível da criação poética; todavia, em vez de reforçar os valores tradicionais do pornô dominante, explorei essa transposição sob um ponto de vista politicamente progressivo. No caso dos poemas-para-gritar, ou orais — escritos para performance nas ruas, nos quais a prosódia tinha um papel central — isso implicava em diversos procedimentos concomitantes, incluindo o uso de um léxico sexualmente explícito, o foco em determinadas partes do corpo e seu acoplamento, uma interação entre gênero sexual e gênero artístico, a desfiguração jocosa do uso padrão do vocabulário corpóreo (por exemplo, “fálico” se torna o quase-homófono “fale cu”), a fusão de opostos convencionais, o realinhamento de uma lógica de permutação, o entrelaçamento da pornografia e da escatologia, o uso da surpresa e a transposição dos padrões da linguagem pornográfica para temas inesperados, como a natureza. Com um efeito muitas vezes agudamente sardônico, virei a pornografia formulaica e consumista de cabeça para baixo e sujeitei palavras a operações — recombinação, recontextualização, excisão — que desconstruíam seu significado e subvertiam sua mensagem. A redução lexical deliberada e o ato de gritar palavras ilícitas em ambiente público, de maneira programática, produzia um ritmo linguístico proibido, feito para instilar no leitor/ouvinte um senso de revolta e regozijo.

Figura 07
Eduardo Kac, Pornograma 2, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 49 x 73 cm, 1981.

Como afirmado anteriormente, foi em minha série Pornogramas que realizei meu mais extremo programa de experimentação no contexto do Movimento de Arte Pornô. Os Pornogramas deram origem a uma nova forma que mistura body art, design, resistência política, performance, ativismo, fotografia e poesia. A série desenvolve, até os limites mais amplos, a identificação que o Pornismo fazia do corpo como um novo meio e material para a criação poética. Cada um dos sete Pornogramas conduz a premissa básica para uma direção distinta.

Pornograma I mostra meu próprio corpo nu reclinado, com uma alteração: no lugar de um pênis, o espectador vê uma vulva. A imagem apresenta um homem que muda de sexo, mas não de gênero: um homem sem seios femininos, mas com uma vagina. Embora seja de conhecimento comum que as primeiras cirurgias de mudança de sexo foram realizadas nos anos 1950, esse tema continuava a ser um tabu e imagens desse tipo não estavam em circulação pública na década de 1980. A imagem, uma montagem, tornava presente em 1980 aquilo que só ganharia existência social pública mais de uma década depois — precipitando assim a invenção de novas corporificações e subjetividades. Hoje, existe uma pequena comunidade de homens com vaginas (constituídas tanto por homens que se submeteram a cirurgia para inverter o pênis quanto por transexuais masculinos que mantiveram a vagina e removeram os seios).

No Pornograma II, o espectador me vê nu, em posição vertical como a letra “I”, no parapeito de um terraço a 35 metros de altura em um prédio de apartamentos de frente para o 19º Batalhão de Polícia Militar (não visível) e com a Igreja de Copacabana ao fundo (uma pequena estrutura curva, embaixo, ao centro). O corpo natural, despido e desarmado, confronta os aparelhos repressivos e ideológicos de Estado, que executam ou influenciam a lei através da violência e da religião. O corpo individual é iluminado pela luz tropical, ao passo que a imensa construção do plano de fundo está à sombra. O corpo pessoal enfrenta o corpo urbano e essa oposição física enfatiza a dissensão ideológica. A fragilidade do ato desafiador é intensificada pela evidente altura e pelo fato de que eu estava no parapeito sem nenhuma forma de proteção. Uma versão desse pornograma foi apresentada em forma de pôster em meu livro de artista Escracho, publicado em 1983.

Dois corpos flutuam no ar em Pornograma III (um deles o meu próprio) e formam a letra “U”, encarnando visualmente o som da vaia. Em Pornograma III o corpo vaia o espectador enquanto os rostos explodem de rir, também do espectador. O que sempre é revelado (o rosto) está aqui inutilmente mascarado, ao passo que aquilo que costuma estar coberto (o corpo) está inteiramente exposto. Se em Pornograma I eu escrevi um corpo e em Pornograma II inscrevi um corpo no espaço, em Pornograma III escrevo com o próprio corpo. Uma versão deste pornograma foi apresentada na capa de meu livro de artista Escracho, publicado em 1983.

Pornograma IV é um díptico; contra um fundo neutro, ele apresenta dois homens nus (um deles eu próprio), absurdamente adornados e segurando objetos comuns que adquirem um significado enigmático neste contexto. No primeiro painel, vemos os homens em posição de sentido (como uma postura militar). O segundo painel mostra os dois rindo, como se reagissem a um acontecimento ocorrido entre os dois painéis. Este pornograma foi parcialmente motivado pelo fato de que, naquele tempo, o general-presidente fazia discursos públicos defendendo uma “cruzada contra a pornografia”. Explorando a natureza paralinguística daquilo que comumente conhecemos como “linguagem corporal”, é como se, no primeiro painel, ouvíssemos atentamente e, no segundo, respondêssemos com a única reação possível.

Figura 08
Eduardo Kac, Pornograma 3, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 49 x 73 cm, 1981.

Em Pornograma V, uma sequência de oito imagens progride horizontalmente da claridade à escuridão, e ao fazê-lo funde dois corpos masculinos (um deles o meu) em um só — produzindo formas inesperadas ao longo do processo. Enquanto em Pornograma II a sombra está firmemente à esquerda e a luz claramente à direita, aqui inverto essa orientação e exploro os efeitos dos degradês, suscitando novos signos corporais através da interação luminosa.

Em Pornograma VI, escrevo com as dobras de pele do corpo feminino, mais precisamente os vincos da virilha e a linha central criada pelos lábios. Pornograma VI combina a estilização das dobras da pele visíveis na fotografia de maneira a produzir as letras “V” e “I”. Essas duas letras, quando sobrepostas e invertidas, criam a letra M. Uma sequência de fotografias, combinadas com seus signos estilizados correspondentes, resulta em “VI, VIM, VIVI”.

A obra de conclusão da série, Pornograma VII, é composta de quatro painéis arranjados verticalmente. Em cada painel, uma figura masculina (eu próprio) aparece com o pênis ereto penetrando uma letra diferente: P, O, E, M. O espectador vê o poeta no ato de fazer amor com o poema, um caso extremo de verbofilia. As formas tipográficas, que criei especificamente para este trabalho, evocam não somente o tom da minha pele como também diferentes partes do corpo.

Figura 09
Eduardo Kac, Pornograma 4, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 17 x 77.5 cm, 1982.

Figura 10
Eduardo Kac, Escracho, capa do livro de artista criado e publicado pelo autor, 1983. Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

Interversão: o paroxismo do êxtase em 1982

Em fevereiro de 1982, apresentei em colaboração um evento de várias horas no Posto 9 da Praia de Ipanema — o conhecidíssimo e sempre lotado epicentro da praia. Esse local tinha um significado específico para o movimento, pois era ali que ele fora iniciado dois anos antes8 8 . Já em fevereiro de 1980, a salva inaugural do Movimento Pornô foi uma invasão da praia para promover o “topless literário” — uma mistura de protesto, performance de poesia e manifestação de solidariedade com feministas que lutavam pelo direito de fazer topless na praia. Dominada por quase duas décadas de um terrível governo militar e vivendo em um estado policial, a sociedade brasileira era tão conservadora que esse esforço foi infrutífero. Essa situação só seria revertida com um decreto da Secretaria de Segurança vinte anos depois; o topless agora é legalmente permitido em locais remotos específicos, mas não em praias muito frequentadas como Copacabana e Ipanema. . O evento de 1982 mobilizou nove artistas, explorou todo o repertório dos dois anos anteriores, incluiu uma ampla seleção de acessórios e publicações, teve seu clímax com uma passeata nudista ao longo da praia (o que era e ainda é proibida por lei), estimulou a participação do público e culminou com um mergulho coletivo no oceano — um ato simbólico que representava a auto-renovação, o início de um futuro melhor. Misturando em igual proporção a desvirtuação da tradição católica brasileira de processões ritualísticas públicas e o eco das manifestações trabalhistas, quase guerrilheiras em suas ações públicas não autorizadas (como as lideradas nos anos anteriores pelo jovem Lula, que fundara o Partido dos Trabalhadores exatamente no mesmo ano em que o Movimento Pornô foi iniciado), a insurreição na praia foi a um tempo a epítome e o ponto final do movimento. Intitulada de Interversão (um neologismo, uma contração das palavras intervenção e subversão, e que também sugere ‘uma versão no meio’), o evento sobrepunha diretrizes poéticas, performáticas, sociais, políticas e pessoais em uma manifestação radical e exuberante. O impacto foi tal que ela apareceu na mídia nacional, incluindo a televisão9 9 . Em seguida à intervenção na praia de 1982, a Gang participou do programa de fim de noite “Etc.” Ele era transmitido pela TV Bandeirantes e apresentado pelo celebrado cartunista e escritor Ziraldo. O diretor do programa era Maurício Sherman. . Comme il faut, o movimento culminou nesta explosão de êxtase.

Conclusão: pré-pós-Pornô

O Movimento de Arte Pornô começou em 1980 e terminou em 1982. Em uma sociedade mais preocupada com o DOPS que com a AIDS10 10 . DOPS era o acrônimo do Departamento de Ordem Social e Política brasileiro, um ramo policial dedicado à implementação da repressão política durante o regime militar. Foi em 1982 que o mundo tomou conhecimento da AIDS pela primeira vez. Em 8 de agosto de 1982, o New York Times publicou o artigo “A Disease’s Spread Provokes Anxiety” (A disseminação de uma doença causa apreensão), mas ele recebeu pouca atenção. No final de 1982, a doença que muitos chamavam originalmente de “peste gay” começou a ser designada comumente como AIDS e a população como um todo entendeu que outras pessoas também corriam o mesmo risco, gerando uma apreensão global e mesmo um pânico. “Para oferecer orientação para a proteção de clínicos e empregados de laboratório que lidam com pacientes com AIDS e seus espécimes biológicos, o CDC (Centro de Controle de Doenças, dos Estados Unidos) publicou diretrizes, em novembro de 1982, baseadas nas que haviam sido anteriormente recomendadas para proteger contra a infecção pelo vírus da hepatite B”. CURRAN, James W. e JAFFE, Harold W. AIDS: the early years and CDC’s response. In: Morbidity and mortality weekly report/supplement, vol. 60, 7 de out. de 2011, p. 65-66. , contrastando inevitavelmente a distante Guerra Fria com o calor tropical local, em que a televisão dominava mas os jornais tinham seu papel, esmagada pela inflação em vez de florescer em uma democracia, presa ao FMI em vez da MTV, testemunhando o começo de Reagan e o fim de Lennon, tendo supostamente vivido a era da revolução sexual mas, na realidade, rodeada por uma acachapante normatividade e pelo conservadorismo — em tal ambiente, era imperativo transformar uma desvantagem (ser desconhecido) em vantagem (a notável força da surpresa). Ao apresentar nós mesmos as obras, ao sermos nós mesmos os veículos das performances, usando nossos próprios nomes, e abertamente nos apropriando e subvertendo a pornografia não como um produto industrial mas como um meio criativo pessoal, demos ao movimento uma extrema visibilidade pública.

O movimento queria fazer tábula rasa. Ele defendia pontos de vista heterodoxos conflitantes com as correntes estéticas/poéticas da época, que oscilavam principalmente em torno de quatro eixos: primeiro, obras epigônicas influenciadas pela geração que adotara os preceitos do Estruturalismo nos anos 1950; segundo, a ênfase nas ideias e a austeridade promovida pelo conceitualismo; terceiro, uma ampla faixa de práticas contraculturais que, em 1980, pareciam ser um beco sem saída; quarto, uma onda internacional de pintura neoexpressionista que privilegiava os grandes formatos. Insatisfeito com as condições vigentes, o movimento reafirmava o princípio do prazer sobre o princípio da realidade. Enquanto os hábitos sociais e a tradição literária haviam transformado a pansexualidade aberta em algo inadmissível e invisível, a arte pornô que praticávamos não consistia em superdescrever a sexualidade normativa, mas em contrainscrever uma prática revolucionária ligada ao corpo por meio da ação poética carnal e ostensiva. Ao conceber o corpo não apenas como um substantivo mas como um verbo, o poema pornô se posicionava como uma curta explosão orgásmica de texto-prazer, em um estado liminar entre a objetividade e a subjetividade, o político e o pessoal, o experimental e o experiencial, a corporeidade da obra de arte e a corporeidade do artista — dotando assim palavras, imagens e ações de novos significados articulados através dos excessos da alegria e da vitalidade.

Escrevi este ensaio em 2012, em Chicago, trinta anos após o fim do movimento, no Rio. Nessa segunda década do século XXI, quando reflito sobre os objetivos políticos e estéticos do passado, vejo um mundo muito diferente. Google, Facebook, Twitter, Onverse, Second Life e muitas outras plataformas de relacionamento social esbateram as fronteiras entre o privado e o público. Um sintoma dessa mudança é que o uso do termo “pornô” expandiu-se para outras áreas da sociedade. As expressões food porn (pornografia gastronômica) ou architecture porn (pornografia arquitetônica), por exemplo, tornaram-se lugar-comum; elas não designam uma associação da sexualidade aberta com a gastronomia ou o ambiente construído, mas descrevem um certo estilo de apresentação visual, especialmente atraente, da culinária e dos espaços projetados. Outrora relegados a cantos escuros, os vibradores estão em toda parte: são anunciados na TV e vendidos em grandes cadeias de supermercados americanas como Wal-Mart, 7-Eleven, Duane Reade, Walgreens, CVS, Kroger, Safeway e Target. Comerciais de Viagra vão ao ar no horário nobre da TV. As casas noturnas oferecem “pornô e pipoca” (porn and popcorn) — pipoca gratuita e projeções de pornografia — a seus jovens frequentadores, além de música e bebidas. Há tantos indivíduos que assistem pornografia enquanto dirigem que diversos estados americanos aprovaram leis para evitar aquilo que atualmente é descrito como drive-by porn. O pornô comercial dominante, do convencional ao bizarro, além de filmes pornô-chiques e outros arcanos retrô que deleitam o pornosseur, são onipresentes e estão acessíveis na internet.

O que o Movimento de Arte Pornô realizou coletivamente entre 1980 e 1982 alinha-se com aquilo que se tornou conhecido, muitos anos depois, como “pós-pornô”. O termo, originalmente cunhado por Annie Sprinkle em 198811 11 . Em uma entrevista, Annie M. Sprinkle esclareceu desta forma a origem do termo: “O termo “Modernismo Pornô” foi criado originalmente pelo artista holandês Wink van Kempen para uma exposição de suas fotografias. Seu título mexeu comigo, por isso perguntei se poderia reformulá-lo para o título de meu primeiro espetáculo solo. Chamei meu espetáculo de Post Porn Modernist (Modernista Pós-Pornô). Mais tarde, passei a chamar o pornô que eu produzia e dirigia de Pós-Pornô, com a intenção de descrever uma pornografia que não era a dominante; era mais política, experimental, feminista, bem-humorada, conceitual... e não necessariamente preocupada em ser erótica. Nos anos 1970 e 1980 eu só queria mesmo era excitar as pessoas. Mas por volta de 1988 parei de me preocupar com esse estímulo sexual e comecei a fazer o que me vinha na telha”. STÜTTGEN, Tim. Elizabeth Stephens, Annie Sprinkle e Cosey Fanni Tutti. Post Porn Brunch. In: STÜTTGEN, Tim (ed.). Post Porn politics. Berlim: b_books, 2010, p. 102. , designa geralmente obras sexualmente explícitas que oferecem uma crítica do sexo normativo e das representações de gênero e produzem um campo cultural politizado composto de textos e imagens alternativos, lúdicos e subversivos. Antecipando uma nova onda de pornografia imaginativa, Veronica Vera, Candida Royalle, Annie Sprinkle e Frank Moore assinaram o “Post Porn Modernist Manifesto” (Manifesto Modernista Pós-Pornô) em 1989, defendendo coletivamente os mesmos ideais inicialmente articulados por Sprinkle. O mundo da arte internacional vem explorando regularmente o pornô soft e hardcore desde os anos 1990, com artistas como Jeff Koons ou Santiago Sierra, Sue Williams e Orly Cogan, dentre outros. Foi em 2000 que a artista Shu Lea Cheang lançou I.K.U. (baseado na palavra japonesa iku, uma gíria para o orgasmo), um filme ciberpornográfico independente estrelado por um robô que adquire experiência sexual e baixa dados sexuais. I.K.U. tornou-se o primeiro filme pornográfico a ser exibido no Sundance Film Festival. Em 2006, o lançamento da compilação em DVD Destricted, organizada por Neville Wakefield, membro do conselho curatorial do P.S.1 Contemporary Art Center, Nova York, e apresentando nomes como Marina Abramovic, Larry Clark e Matthew Barney, manifestava claramente a aceitação da pornografia como forma pelo mundo artístico.

Textos pornográficos criativos, obscuros e clássicos, foram recentemente publicados por grandes editoras, a exemplo das magistrais traduções de Catulo (?84-54 a.C.) lançadas por Peter Green em 2007, intituladas The poems of Catullus: a bilingual edition e publicadas pela University of California Press. A compilação de Michael A. Hemmingson, What the fuck: the avant-porn anthology, publicada em 2000, orgulha-se de ser “uma nova forma de ficção sexualizada pós-pornô”. Em 2006, Alan Moore declarou publicamente que seu romance gráfico Lost girls, produzido em colaboração com a artista Melinda Gebbie, não era erótico, mas pornográfico. O livro mostra as aventuras sexuais de três adolescentes fictícias: Alice de Alice no país das maravilhas, Dorothy Gale de O Mágico de Oz e Wendy Darling de Peter Pan. Novos títulos parodiam a literatura infantil com livros de cabeceira profanos dirigidos aos pais, como atesta o sucesso de 2011 Go the fuck to sleep, de Adam Mansbach (publicado no Brasil como Vai dormir, porra). O termo mommy porn (pornô para mamães) ganhou ampla circulação na mídia em 2012 com relação ao romance Cinquenta tons de cinza de E. L. James, não porque aparecem mães em cenas pornográficas, mas devido à suposta popularidade do livro junto a esse nicho demográfico em particular.

Figura 11
Eduardo Kac, Pornograma 7, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 73.5 x 18.5 cm, 1982.

Na transição do século XX para o XXI, a espetacularização da performance corporal assumiu aspectos jamais vistos. O australiano Simon Morley concebeu um espetáculo de sucesso, Puppetry of the penis (Fantoches de pênis, 1998), no qual o artista divertia o público produzindo estruturas semelhantes a origamis, como Hamburger, Torre Eiffel e Monstro do Lago Ness, com seu pênis. A empresária Cindy Gallop criou um website chamado MakeLoveNotPorn (2009), dedicado a promover atos sexuais reais em vez da pornografia de alta performance. Três anos depois ela anunciou o MakeLoveNotPorn.tv, um site no qual os amadores são convidados a publicar vídeos mostrando como fazem sexo na vida real. No site, Gallop admite: “MakeLoveNotPorn não é antipornô. Eu gosto de pornografia e a assisto regularmente.” Fundamentalmente, ela busca “ajudar a inspirar e estimular relações sexuais mais abertas, saudáveis e profundamente satisfatórias.” Os analistas de tendências da cultura pop indicam que os palavrões já são comuns nos títulos de músicas, na Broadway e em livros. Em fevereiro de 2010, a tabela Hot 100 da Billboard incluía três músicas dentre as dez mais vendidas com a palavra fuck (em português, foder ou foda) no título — sendo assim o top 10 mais obsceno da história. Mal se haviam passado seis meses dessa Hot 100 da Billboard quando o mundo ouviu falar pela primeira vez de uma mulher que teve uma tatuagem anal feita em público durante a 17a South Florida Tattoo Expo, em Fort Lauderdale. Pouco tempo depois, um vídeo documentando o evento, Girl gets butt hole tattoo (Garota faz tatuagem no cu), tornou-se viral no YouTube.

Pornografia e ativismo combinaram-se de maneiras únicas nas últimas décadas. Na China, onde a pornografia é proibida, um movimento militante jovem em favor do pornô espontâneo e improvisado surgiu como forma de provocação pessoal e política. Esse movimento de resistência chinês usa a internet como o principal meio de disseminação do pornô. O feminismo ativista assistiu ao surgimento de diretores de frauenporno como Petra Joy, Erika Lust e Anna Span, e à ascensão de estrelas do pornô como a escritora e atriz francesa Ovidie, autora, em 2002, de um livro intitulado Porno Manifesto, em que defende um feminismo pró-sexo. Em 1997, uma produtora cinematográfica dinamarquesa chamada Puzzy Power começou a produzir filmes pornográficos hardcore para mulheres e, em 2006, Alison Lee criou o prêmio Feminist Porn Awards. À luz desse crescente interesse no fem porn independente, era apenas natural que, em 2007, o canal pornô holandês Dusk! tenha começado a transmitir esse material 24/7. O autointitulado “movimento sextremista” Femen originou-se na Ucrânia em 2009; a premissa básica desse grupo feminista, agora internacional, é realizar protestos com o torso descoberto, exibindo mensagens políticas pintadas no corpo das participantes. Muitos performers, frequentemente com motivações ativistas explicitamente declaradas, montaram peças, monólogos ou espetáculos neoburlescos pós-pornográficos, incluindo Nina Arsenault, Lazlo Pearlman e o grupo sem nome apresentado no docudrama Too much pussy! Feminist sluts in the queer X show (Xoxota demais! Vadias feministas em espetáculo queer), dirigido por Émilie Jouvet em 2010. A pornografia é tema de cursos universitários e assistida em sala de aula nos Estados Unidos. Linda Williams pode ter definido esse campo acadêmico com a publicação de sua antologia Porn Studies, lançada em 2004, mesmo ano em que os noruegueses Leona Johansson e Tommy Hol Ellingsen fundaram a organização ambiental sem fins lucrativos Fuck For Forest. Em suma, uma coisa está clara: a relação entre a pornografia, a estética e a política mudaram dramaticamente desde o final do Movimento de Arte Pornô, em 1982.

Em 13 de maio de 2011, o maior e mais importante jornal brasileiro, a Folha de S. Paulo, publicou a manchete “Porno Arte”, encabeçando um artigo escrito por Silas Martí (que também escreve para a revista Artforum International), que se propunha explorar aquilo que o autor acreditava ser um novo fenômeno cultural. O artigo não mencionava outro artigo publicado pelo mesmo jornal em 1981, intitulado “Arte Pornô, a última dos novos poetas”, escrito por Maria C. Cunha12 12 . CUNHA, Maria C. Arte Pornô, a última dos novos poetas. In: Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 10 de fev. de 1981. , que documentava o surgimento do Movimento de Arte Pornô#. Há trinta anos, em uma terra que hoje parece distante, em uma época em que atrizes e aspirantes a celebridades não podiam vazar “acidentalmente” seus vídeos de sexo online para o consumo das massas na esperança de um estrelato instantâneo, antes da época em que as estrelas pornôs constroem sua marca pessoal diretamente no Twitter e em que as jovens fazem cirurgias plásticas inspiradas pela pornografia, um jovem poeta rebelde e seu grupo se propuseram escrever um novo tipo de poesia e provocar o nascimento de um novo tipo de arte — para, com ela, dar origem a uma era de maior liberdade social e pessoal.

Figura 12
Eduardo Kac, Poema Flatográfico para três cus submersos em memória de Joseph Pujol, tinta sobre papel, 21.5 x 31 cm, 1982.

Figura 13
Eduardo Kac, Pornograma 5, imagem fotográfica sobre papel de algodão, 49 x 73 cm, 1982.


  • 1
    . Além de mim, os membros principais eram Glauco Mattoso, Teresa Jardim, Braulio Tavares, Leila Míccolis, Hudinilson Jr., Cynthia Dorneles e Cairo Trindade. Dentre os colaboradores próximos estavam o fotógrafo e videomaker Belisario Franca, que fez a maior parte das fotografias documentais, e o cartunista Ota, que ilustrou pôsteres e convites, criou cartuns, e produziu uma memorável revista em quadrinhos, Pornô Comics, criada especialmente em 1982 para o evento colaborativo “Interversão,” realizado na praia de Ipanema. Sérgio Péo produziu um documentário de curta-metragem distribuído pela organização Le peuple qui manque, de Paris. Foram lançadas três edições da revista Gang, todas impressas com técnicas acessíveis em papel barato. Uma lista parcial das publicações pode ser encontrada no livro que organizei com Cairo Trindade, intitulado Antolorgia: Arte Pornô (Rio de Janeiro: Codecri, 1984, p. 178). Uma lista expandida deverá incluir também as folhas soltas, livros e revistas publicados por Glauco Mattoso; o livro Suruba, publicado em 1980 por Tadeu Junges em São Paulo; as edições limitadas da xerografia corporal de Hudinilson Jr.; os poemas publicados por Leila Míccolis durante esse período; Escracho, o livro de artista em forma de revista que publiquei no Rio de Janeiro em 1983; e, finalmente, o livro Pornex: textos teóricos e documentais de pornografia experimental portuguesa, organizado por Leonor Areal e Rui Zink e lançado pela editora portuguesa & etc, Lisboa, 1984. O movimento produziu igualmente camisetas, adesivos, cartões-postais, objetos-poemas, pôsteres e obras em edição limitada disseminadas através da rede de arte postal.
  • 2
    . “Transavanguardia” foi o termo dado pelo crítico de arte Achille Bonito Oliva a um movimento que ocorreu na Itália e outros países europeus no final dos anos 1970 e início dos 1980. “Transavanguardia” significa “além da vanguarda”. O movimento privilegiava o figurativismo policromático e depreciava o conceitualismo. Era fundamentalmente uma forma de neo-expressionismo com elementos simbólicos. Alguns dos artistas mais notáveis da Transavanguardia foram Mimmo Paladino, Enzo Cucchi, Francesco Clemente e Sandro Chia. O movimento era conhecido na Alemanha como “Neuen Wilden” (Os novos selvagens, ou Jovens artistas selvagens), nos EUA como “New image painting” (Nova imagem, ou Pintura da imagem nova) e na França como “Figuration Libre” (Figurativismo livre). Ver: OLIVA, Achille Bonito. Transavantgarde International. Milan: Giancarlo Politi, 1982. No Brasil, uma nova geração de artistas surgiu na década de 1980. Enquanto um segmento importante dessa geração fazia experimentações com novas mídias, o mercado e a imprensa conservadores celebravam o segmento que trabalhava com o meio mais tradicional da pintura, imitando seus colegas europeus da Transavanguardia. Ver: COSTA, Marcus de Lontra; LEAL, Paulo Roberto; MAGGER, Sandra (eds.). Como vai você, Geração 80?. In: revista Módulo (edição especial). Rio de Janeiro, 1984.
  • 3
    . O Museu Reina Sofia, Madri, realizou a exposição “Perder la forma humana. Una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina”, de 26 de outubro de 2012 a 11 de março de 2013. A exposição foi organizada por uma rede de pesquisadores e curadores chamada Red Conceptualismos del Sur. Nessa exposição, uma sala foi dedicada ao meu trabalho produzido no contexto do Movimento de Arte Pornô. Ela incluía um pornograma, diversas fotografias, um vídeo-documentário e uma vitrine com publicações do período. Uma exposição menor, chamada “Excitación permanente. La Gang del Movimento de Arte Pornô en los años 80”, com curadoria de Fernanda Nogueira, foi realizada no centro cultural Lugar a Dudas, em Cali, na Colômbia, de 31 de agosto a 31 de setembro de 2012. A primeiríssima exposição de minha arte pornô em uma galeria foi “Pornogramas: 1980-1982”, que ocorreu na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, de 28 de janeiro a 13 de março de 2010. O Museu de Arte do Rio (MAR) possui algumas de minhas obras deste período em sua coleção permanente.
  • 4
    . A ditadura militar durou de 1964 a 1985, mas a eleição de 1985 ainda foi realizada, sem voto democrático, por um Colégio Eleitoral nomeado pelos militares. Apenas em 1989 ocorreriam novamente eleições presidenciais verdadeiramente democráticas. Após 1968, quando o presidente Artur da Costa e Silva decretou o Ato Institucional Número Cinco, o governo militar comandou com absoluta impunidade e deu início a uma repressão sistemática sobre a população. Entre 1974 e 1979, durante o governo do general Ernesto Geisel, a censura era implacável, a tortura de prisioneiros políticos era desenfreada, a dívida externa explodiu, o desemprego aumentou e a situação econômica do país deteriorou-se consideravelmente. Em 1977, Geisel dissolveu o Congresso. Outro general, João Baptista de Figueiredo, governou o país de 1979 a 1985. Nesse período, a dívida externa e a inflação do país atingiram níveis sem precedentes: em 1980 a hiperinflação estava em 110%. No início dos anos 1980, grupos militares executaram ataques a bomba e incêndios criminosos contra jornais da oposição, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e bancas de jornal que vendiam publicações alternativas e liberais, dentre outros alvos. Em 1980, um grupo de mulheres conservadoras de São Paulo, conhecidas na mídia como “Senhoras de Santana”, estavam na linha de frente do conservadorismo civil. Elas foram entusiasticamente acolhidas pelo Ministro da Justiça e pediram uma censura ainda mais estrita, chegando às manchetes nacionais e mobilizando setores tradicionalistas da sociedade.
  • 5
    . No mês que se seguiu à intervenção na praia do Movimento Pornô em 1982, o general-presidente João Baptista de Figueiredo conclamou uma cruzada nacional contra a pornografia em um discurso transmitido em rede nacional no rádio e na televisão. Apesar dos sinais de recrudescência política, a determinação do governo em controlar o comportamento pessoal e social era tamanha que a censura oficial só terminaria em 1988, quando a nova constituição foi promulgada sob o governo do presidente José Sarney. Durante o governo militar, a censura foi implementada sob a supervisão de Solange Maria Chaves Teixeira (que assinava seus decretos como Solange Hernandes), diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), controlada pelo Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça. Em particular, os artigos 233 e 234 do código penal em voga, escrito nos anos 1940, traziam regras estritas contra “atos públicos obscenos”. Ver: RODRIGUES, Marly. A década de 80. São Paulo: Editora Ática, 1992; LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Brazil since 1980. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; BADEN, Nancy T. The muffled cries: the writer and literature in authoritarian Brazil, 1964-1985. Lanham: University Press of America, 1999; BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro: Record, 2004. Sobre o discurso do presidente Figueiredo, ver: Figueiredo convoca a nação para combater a pornografia. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 16 de mar. de 1982, p. 4; e Uma lição de moral. In: revista Veja, n. 707. São Paulo, 24 de mar. de 1982, p. 20-21.
  • 6
    . O “Manifesto Pornô” foi publicado pela primeira vez na revista do movimento Gang (nº 1, maio de 1980). Dentre as subsequentes publicações estão: Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso (folha solta, 1980) e, na versão publicada pela editora Iluminuras, em 2001 (p. 49); e também no citado volume Antolorgia, organizado por mim e Cairo Trindade (p. 7).
  • 7
    . Apesar dos circuitos alternativos de circulação destas publicações, fui informado de que leitores e não leitores mantiveram meu dístico “Filosofia”, por exemplo, em circulação, e que ele se tornou uma citação frequente na cultura brasileira contemporânea. Não sei o quanto o poema foi efetivamente disseminado, mas sei que foi citado por um personagem de filme nos anos 1980 e que, na época, ele circulou em antologias nacionais, incluindo uma bastante acessível, distribuída em bancas de todo o país. Ver: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder e HOLLANDA, Heloísa Buarque de (orgs.). Poesia jovem / Anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982, p. 8 e 99. Sei também que desde então ele circulou em agendas e mesmo em camisetas piratas, sem mencionar sua reprodução na internet. Em 2011, um conhecido meu inesperadamente o citou para mim, durante uma conversa informal, sem saber que eu era o autor. “Filosofia,” como muitos de meus outros poemas gritados, contém um acontecimento imaginado da vida cotidiana; os elementos principais da situação desenrolam-se rapidamente, levando a uma conclusão frequentemente cômica, às vezes lírica ou mesmo — como manifesta o título já mencionado — filosófica.
  • 8
    . Já em fevereiro de 1980, a salva inaugural do Movimento Pornô foi uma invasão da praia para promover o “topless literário” — uma mistura de protesto, performance de poesia e manifestação de solidariedade com feministas que lutavam pelo direito de fazer topless na praia. Dominada por quase duas décadas de um terrível governo militar e vivendo em um estado policial, a sociedade brasileira era tão conservadora que esse esforço foi infrutífero. Essa situação só seria revertida com um decreto da Secretaria de Segurança vinte anos depois; o topless agora é legalmente permitido em locais remotos específicos, mas não em praias muito frequentadas como Copacabana e Ipanema.
  • 9
    . Em seguida à intervenção na praia de 1982, a Gang participou do programa de fim de noite “Etc.” Ele era transmitido pela TV Bandeirantes e apresentado pelo celebrado cartunista e escritor Ziraldo. O diretor do programa era Maurício Sherman.
  • 10
    . DOPS era o acrônimo do Departamento de Ordem Social e Política brasileiro, um ramo policial dedicado à implementação da repressão política durante o regime militar. Foi em 1982 que o mundo tomou conhecimento da AIDS pela primeira vez. Em 8 de agosto de 1982, o New York Times publicou o artigo “A Disease’s Spread Provokes Anxiety” (A disseminação de uma doença causa apreensão), mas ele recebeu pouca atenção. No final de 1982, a doença que muitos chamavam originalmente de “peste gay” começou a ser designada comumente como AIDS e a população como um todo entendeu que outras pessoas também corriam o mesmo risco, gerando uma apreensão global e mesmo um pânico. “Para oferecer orientação para a proteção de clínicos e empregados de laboratório que lidam com pacientes com AIDS e seus espécimes biológicos, o CDC (Centro de Controle de Doenças, dos Estados Unidos) publicou diretrizes, em novembro de 1982, baseadas nas que haviam sido anteriormente recomendadas para proteger contra a infecção pelo vírus da hepatite B”. CURRAN, James W. e JAFFE, Harold W. AIDS: the early years and CDC’s response. In: Morbidity and mortality weekly report/supplement, vol. 60, 7 de out. de 2011, p. 65-66.
  • 11
    . Em uma entrevista, Annie M. Sprinkle esclareceu desta forma a origem do termo: “O termo “Modernismo Pornô” foi criado originalmente pelo artista holandês Wink van Kempen para uma exposição de suas fotografias. Seu título mexeu comigo, por isso perguntei se poderia reformulá-lo para o título de meu primeiro espetáculo solo. Chamei meu espetáculo de Post Porn Modernist (Modernista Pós-Pornô). Mais tarde, passei a chamar o pornô que eu produzia e dirigia de Pós-Pornô, com a intenção de descrever uma pornografia que não era a dominante; era mais política, experimental, feminista, bem-humorada, conceitual... e não necessariamente preocupada em ser erótica. Nos anos 1970 e 1980 eu só queria mesmo era excitar as pessoas. Mas por volta de 1988 parei de me preocupar com esse estímulo sexual e comecei a fazer o que me vinha na telha”. STÜTTGEN, Tim. Elizabeth Stephens, Annie Sprinkle e Cosey Fanni Tutti. Post Porn Brunch. In: STÜTTGEN, Tim (ed.). Post Porn politics. Berlim: b_books, 2010, p. 102.
  • 12
    . CUNHA, Maria C. Arte Pornô, a última dos novos poetas. In: Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 10 de fev. de 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2013
  • Aceito
    03 Ago 2013
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