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Poéticas da memória: invenção e descoberta no uso de metadados para a criação de memórias culturais em ambientes programáveis.

Poetic of memory: invention and discovery using metadata to the creation of cultural memories on programmable environments.

Resumos

A memória precisa de um lugar fixo para se estabelecer? A memória precisa de arquivos para existir? E que tipo de arquivos? Embora se possa dizer que a memória talvez nunca tenha se definido a partir de um lugar fixo, penso que o próprio estabelecimento do conceito enquanto tal é marcado pela ideia de um lugar, de um registro em que a memória possa ser encontrada. Mesmo quando ela é associada ao imaginário, ou ao que é instável, há uma tensão associada à busca de um local da/para a memória. O propósito desse capítulo é discutir como o uso de metadados, de maneira poética, pode configurar outras lógicas para a criação de memórias culturais em ambientes programáveis. Lógicas que sugerem outros operadores conceituais para delimitar as memórias, que misturam lugares fixos com lugares em rede, invenção e descoberta, políticas e poéticas, memórias culturais e memórias comunicativas. Os metadados são pensados aqui como elementos capazes de operar as passagens indicadas. Para investigar a potência dos metadados, foi feita uma análise do projeto The Whale Hunt, buscando entender de que maneira essa narrativa se apropria dos metadados de maneira poética, criando lugares imaginários de memória.

memória cultural; memória comunicativa; metadados; ambientes programáveis; arquivos


Does memory need a fixed place to exist? Does memory need archives to exist? And if it needs, what kind of files it needs? Although one can say that memory has never been defined from a fixed location, I think that the very definition of the concept is marked by idea of a place, a registry which is capable to show this memory. Even if it is related to the imaginary, or to instable elements, there is a tension associated with a search for a location to/for memory. The aim of this article is discuss how metadata can produce other logics to create cultural memories in programmable environment. These logics suggest other concepts to delimitate memories, which mixes fixed places with networked places, invention and discovery, politics and poetics, cultural memories and communicative memories. We consider metadata as elements capable to operate passages indicated above. We analyze “The Whale Hunt” project seeking to understand how such narrative appropriates the metadata in a poetic way, creating imaginary places of memory.

cultural memory; communicative memory; metadata; programmable environments; archives



Andreas Gursky. Kamiokande, impressão fotográfica, 2007.
De que maneira as memórias mediadas, em ambientes programáveis, se relacionam com os conceitos de arquivo, lugar e metadados? O que se deseja investigar é se tais memórias precisam de lugares fixos para existir, e caso precisem, que tipos de lugares são esses; verificar se eles se relacionam com as noções de arquivo e como se dá essa relação. Os metadados entram nessa equação como um elemento que teria o papel de organizar documentos, fotos, vídeos num formato que os autorize a ser vistos como arquivos de memória. Deseja-se justamente compreender como um uso poético dos metadados pode criar lugares de memória, ao mesmo tempo voláteis e duradouros, de modo a operar passagens entre invenção e descoberta, lugares fixos e lugares dinâmicos, quando se trata de criar memórias em ambientes digitais1 1 .Ambientes programáveis e ambientes digitais serão utilizados nesse artigo como similares, embora a noção de ambientes digitais, no nosso entendimento, esteja contida no conceito de ambientes programáveis. .

Paul Ricoeur2 2 .RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. propõe uma distinção entre memória (enquanto lembrança) e imaginação, a partir da noção de que a memória diria respeito a algo do passado, algo que efetivamente aconteceu, ainda que esteja ausente; a imaginação, por sua vez, produziria também algo que está ausente, mas que seria ficcional, o que a aproximaria mais da lógica da invenção. Nos dois casos, no entanto, há similaridades e diferenças, já que a memória teria o caráter do algo acontecido, de um dado-presente no passado. Uma das diferenças diz respeito à questão dos traços posicionais implicados na lembrança e na imaginação. Se do lado da lembrança esse traço temporal e espacial é mais forte e parece ser mais necessário em termos de demarcação, do lado da imaginação haveria uma maior liberdade em relação ao traço posicional dos acontecimentos. Deseja-se marcar aqui a relação entre memória e imaginação, seja pela diferença ou similaridade, pois entende-se que os lugares de memória atravessam tanto a construção da lembrança quanto a criação da imaginação.

Outro modo de pensar os lugares de memória diz respeito às maneiras de registro dos acontecimentos, que também auxiliam a tecer a narrativa dos fatos dentro de um tempo que faça a mediação entre o tempo vivido e o tempo universal. Ricoeur3 3 .RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo III. Campinas: Papirus, 1997. elenca alguns conectores capazes de fazer a mediação aludida acima, entre os quais interessam mais especificamente: o tempo do calendário e o recurso aos arquivos, documentos e rastros.

O tempo do calendário permite estabelecer a figura do tempo crônico, em que os acontecimentos são socializados, objetivados num tempo apreensível pelo homem. Para tanto, distinguem-se três elementos presentes no tempo do calendário: o acontecimento fundador, ou ponto zero do cômputo; a possibilidade de percorrer o eixo de referência nas duas direções (do passado para o presente e do presente para o passado); e as unidades de medida do tempo. O acontecimento fundador é uma medida de sua importância na narrativa, configura-se como um acontecimento original. Não se trata, portanto, de um fato singular por si só, ou pelo momento em que ocorreu, mas sim de uma enunciação da singularidade do acontecimento. Ora, tal enunciação já é uma ação narrativa, um modo de se situar “fora” do tempo para apreendê-lo, mesmo que indiretamente (porque o ato de singularizar um acontecimento não se faz sem recorrer contextualmente aos demais acontecimentos que lhe são próximos). Ao determinar um ponto zero, automaticamente surge um eixo de referência e marcações temporais associadas a um passado em relação ao acontecimento fundador, um presente e um futuro. O ponto zero propicia a denominação de unidades para o tempo, a partir da sua própria fixação temporal. Os acontecimentos passados podem, dessa maneira, ser caracterizados a partir da marcação de um lugar temporal em que eles ocorreram, considerando a sua distância ou proximidade de um agora particular. Uma consequência da fixação de um tempo zero e dos outros elementos do calendário é o fato de que tal marcação permite que a memória, doravante, ocupe lugares de inscrição físicos, delimitados pela maneira como ela é registrada em relação ao tempo.

Determinar o momento em que um fato passado ocorreu em relação a um ponto zero contribui para delimitar, consequentemente, os registros que podem funcionar como documentos, os quais testemunham que o fato efetivamente se passou. Um arquivo seria uma forma do testemunho que atestaria a existência passada de um acontecimento, mas já de maneira institucionalizada. Entender o arquivo ou o documento como uma inscrição de um testemunho (seja essa inscrição em signos escritos ou não escritos) significa conferir a ele o caráter de narrativa, pois um testemunho é uma organização particular, uma trama dos acontecimentos, que se situaria no meio do caminho entre a invenção e a descoberta. Colombo4 4 .COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991. trata o arquivo a partir de uma ação de arquivamento, associada à tradução dos fatos num sistema de memorização dos mesmos. Interessa, para o propósito dessa discussão, o fato do arquivo ser associado a um processo e não especificamente, ou somente, a um lugar fixo, a uma estrutura definitivamente determinada.

A abordagem de Colombo parece reforçar a característica de tessitura de um arquivo, também discutida por Ricoeur5 5 .RICOEUR, Paul. Op. cit., 1997. . Para Colombo, o arquivo teria três características principais: ele se relaciona com um corpo organizado de documentos; com uma instituição, com uma atividade institucional (e para esse artigo assume-se que a institucionalização é também um ato cultural, podendo ser associada à constituição da memória cultural); e, ainda, o arquivo é o que conserva ou preserva os documentos sobre um fato passado, o que faz com que tais documentos sejam investidos de certa “autoridade” sobre o acontecimento a que fazem alusão. Verifica-se aqui que o arquivo pode ser constituído de apenas um documento, confundindo-se com ele e sua narrativa, ou pode ser visto como uma tessitura entre documentos de uma determinada espécie, ou que portam uma similaridade de conteúdo, por exemplo. A visão de Ricoeur sobre os arquivos deve ser relacionada ao papel que os documentos e os rastros têm em relação a um fato acontecido num lugar do passado, para que se possa compreender proximidades e distâncias entre arquivos e rastros, através do modo como os documentos são organizados.

Os rastros seriam tanto as marcas de que algo se passou, ou de que algo passou por um lugar, bem como a ação que produziu aquela marca, aquele vestígio. A passagem que produz a marca confere ao rastro uma dinâmica, a possibilidade de resgatar a narrativa que criou tal marca da passagem; e ao mesmo tempo, essa marca tem uma permanência no aqui e agora, fundamentalmente ligada ao documento que contém o rastro. O rastro então é, ao mesmo tempo, móvel e estático, porque fala de um ato que aconteceu, e se faz visível naquele momento em que é reconhecido enquanto tal, numa inscrição mais duradoura.

O rastro, nesse sentido, é construído na própria busca de um lugar passado, e não somente como a confirmação de que esse lugar passado existiu. Por essa razão, entende-se que o rastro não pode ser dissociado da operação que produz o documento, nem da que cria o arquivo. No entanto, é como se intensidades diferentes operassem em cada um desses momentos: o rastro é ainda uma pré-figuração do acontecimento, conquanto tenha sugestões da narrativa que é capaz de produzir; o documento apresenta-se como a escolha de alguns rastros, e sua consequente autorização enquanto rastros; e o arquivo é a institucionalização daquilo que já estava contido no rastro, mas apenas como ranhura. Surge assim uma maneira de caracterizar o arquivo relacionando a sua “criação” a uma escolha arbitrária, uma vez que os acontecimentos passados são selecionados a partir de uma motivação, de uma pergunta ou questão que se deseja investigar, feita a documentos coletados e que se relacionam com um acontecimento anterior.

Os arquivos, ao serem investidos de tal condição, permitem que se criem, a partir da delimitação temporal que eles mesmos produzem, novas associações entre acontecimentos que tiveram lugar num tempo passado. Descobrem-se assim, tessituras ainda não reveladas, que provocam a memória a revolver sobre si mesma. Ao mesmo tempo, os arquivos podem ser invenção, uma vez que aquilo que se chama arquivo pode ser criado pela própria narrativa, na escolha de elementos antes não considerados como pertencentes aos acontecimentos passados. Em ambos os casos, olha-se para fatos passados e para os documentos que lhes servem de comprovação a partir de uma questão que irá torná-los (os documentos) uma evidência do acontecimento que se deseja lembrar, do qual se deseja produzir memória6 6 .Cf. Ibidem. .

O que surge, doravante, como memória de um fato passado, é um conjunto de elementos que, mais do que apresentar efetivamente o passado, apresenta a maneira como ele foi construído. Ou melhor, a maneira como essa memória passa a re(a)presentar algo que é da ordem do passado, mas que não tem lugar fixo e definitivo. Esse movimento (de fixação) é o que marca a relação entre os modos da memória se institucionalizar. Talvez se possa falar dos arquivos enquanto mais próximos do caráter institucional da memória cultural, e dos rastros como próximos da memória comunicativa. A questão é que os ambientes programáveis podem aproximar a constituição dessas duas temporalidades de maneira muito mais veloz e complexa. Para abordar essa questão de modo mais completo, porém, se faz necessária uma demarcação dos conceitos de memória cultural e memória comunicativa.

Os arquivos e documentos são uma forma de registrar externamente um testemunho, de permitir o compartilhamento comum desse fato. Constituem, assim, elementos institucionais, ou antes, institucionalizadores da memória. No entanto, a ação institucionalizadora depende, ainda, de lógicas específicas de registro, para que se possa caracterizar a memória assim narrada, temporal e espacialmente.

Em relação aos modos narrativos associados às memórias, é possível destacar dois tipos principais: a memória cultural e a memória comunicativa. Jan Assman7 7 .ASSMAN, Jan. Collective memory and cultural identity. New German Critique, n. 69. Chicago: Duke university Press, 1995, p. 125-133, define a memória cultural como todo conhecimento obtido através de práticas sociais repetidas ao longo do tempo, que funcionam como elemento que estrutura o comportamento e a experiência de vida de um grupo social. A memória cultural seria construída pela cristalização de ritos, eventos, acontecimentos, os quais poderiam ter seus significados transmitidos através do tempo. Para existir, esse tipo de memória solicitaria algum tipo de ordenamento e fixação temporal, o que comumente acontece quando essa memória se encontra registrada em suportes físicos, como a escrita em papel, a fotografia, as imagens em movimento etc. Leroi-Gourhan8 8 .LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra, vol. 1. Lisboa: Edições 70, 1990. afirma que, com o surgimento dos textos impressos, os leitores se depararam não só com um enorme conjunto de memória coletiva9, bem como foram confrontados com a impossibilidade de fixar completamente essa memória, uma vez que os suportes escritos permitiram a multiplicação incessante do registro dos fatos e acontecimentos de sua época. Featherstone10 10 .FEATHERSTONE, Mike. Archiving cultures. In: British Journal of Sociology. London: London School of Economics, 2000, p. 161-183. Disponível em: ‹http://chnm.gmu.edu/courses/rr/f01/cw/archiving.pdf ›. Acesso em: setembro de 2012. argumenta que os suportes de memória transformam não somente o modo de produção dessas memórias, mas as próprias condições que definem o que se denomina cultura e como os grupos sociais compartilham essa cultura. Nessa mesma linha, Brockmeier11 11 .BROCKMEIER, Jens. Remembering and forgetting: narrative as cultural memory. In: Culture & Psychology. New York: Sage Publications, v. 8, n. 1, p. 15-43, 2002. indica uma mobilidade maior da memória cultural, uma vez que esse tipo de memória está diretamente associado aos contextos discursivos que a produzem. A memória surge então como um conceito relacional, sujeito às modificações que afetam as instâncias narrativas nas quais ela se manifesta. Essa abordagem aproxima a memória cultural da memória comunicativa.

Segundo Assman12 12 .ASSMAN, Jan. Op. cit., 1995. , a memória comunicativa é baseada na comunicação cotidiana: ela seria caracterizada por um alto grau de não especialização, instabilidade temática e desorganização. Na visão do autor, ela seria demasiadamente instável para se configurar como uma cultura objetivada, e logo, como elemento capaz de identificar uma coletividade. É interessante notar, entretanto, que a institucionalização que caracteriza a memória cultural tem suas bases remontadas ao registro cotidiano, embora ela se distancie da mudança diária constante em função da sua lógica de objetivação cultural.

A partir da distinção proposta por Jan Assman, fica patente a importância do arquivo (enquanto uma tessitura) e da forma como ele é criado para que as diferenças e semelhanças entre memória cultural e memória comunicativa possam ser percebidas. Como um arquivo já tem contido em si a sua própria possibilidade de ultrapassamento, de mudança de ordem, as singularidades dos fatos guardados em arquivos também podem sofrer/partilhar tais modificações. Uma poética dos metadados pode criar arquivos capazes de aliar invenção e descoberta, e um trânsito mais intenso entre memória cultural e comunicativa.

Metadados podem ser considerados tanto uma descrição sobre um conjunto de dados quanto o seu modo de funcionamento num determinado contexto, se analisarmos a forma como foram criados13 13 .Cf. MANOVICH, Lev. Metadata, mon amour. 2002. Disponível em: ‹http://manovich.net ›. Acesso em: junho de 2013, e MATTHEWS, Paul; ASTON, Judith. Interactive multimedia ethnography: archiving workflow, interface aesthetics and metadata. In: ACM Journal on Computing and Cultural Heritage, vol. 5, n. 4, p. 1-13, 2012. . Por exemplo, quando uma tag é adicionada a fotos no Flickr, esse metadado descreve o dado em si, mas já sugere um comportamento desse dado, pois indica algo particular sobre o elemento marcado. Tal metadado faz com que o dado a ele associado seja incorporado a um conjunto similar, com a mesma tag, através da lógica de funcionamento da interface utilizada. Os metadados são o que permite que o computador recupere informações (em termos de ambientes programáveis), porque são o que permite que o computador “veja” os dados, além de realizar diversas outras tarefas, como mover os dados, comprimi-los etc.14 14 .Cf. Manovich, Lev. Op. cit. O computador estabelece uma relação de reconhecimento, mas também de apropriação dos dados, através dos metadados. A apropriação é como a institucionalização que o estabelecimento de um arquivo gera em relação a documentos específicos. No entanto, os metadados não são arquivos em si; podem, no máximo, serem conectados com rastros de uma ação. Dependendo da forma como o metadado é organizado e colocado para funcionar numa determinada interface, ele é capaz de gerar uma passagem entre a noção de rastro e arquivo, entre memória comunicativa e memória cultural.

Quando há uma apropriação de um conjunto de metadados numa organização arbitrária (ou seja, a partir de uma escolha, ou de uma interface), inicia-se a criação de um lugar praticado, de uma marca temporal. Essa localização se assemelha a um rastro, um vestígio de uma ação no tempo. Há uma peculiaridade nessa relação de similitude, no entanto. Há metadados que são construídos e disponibilizados para garantir uma maior estabilidade temporal da ação à qual se referem, enquanto outros talvez sejam mais fluidos. Sugere-se aqui pensar que quanto maior é a capacidade do metadado de produzir uma relação unívoca com o fato passado, mais esse elemento se aproxima do caráter institucional próprio do arquivo; inversamente, quanto menor essa capacidade, mais o metadado se configura como um rastro, como um vestígio. Trata-se de reforçar a continuidade entre um e outro tipo de apresentação da memória. Essas formas seriam os lugares imaginários de memória.

Os metadados são capazes de fazer a passagem entre as marcas dos acontecimentos passados e sua consequente entrada no seio de uma narrativa. O uso de metadados seria capaz de isolar o modo como um testemunho é criado, conferindo a este a potência de indicar uma prova documental, um lugar de memória. Os arquivos, como coleções de documentos, teriam também tal capacidade, conquanto pudessem ser analisados a partir de seus vários elementos mínimos constituintes (o ângulo em que uma foto foi realizada; quem fez a foto; o tipo de instrumento utilizado, a data e a hora em que a foto foi realizada, a relação com outras imagens etc.). Esse procedimento conferiria objetividade, ou um maior grau de objetividade ao arquivo e, consequentemente, ao fato. No entanto, a questão não é assim tão simples. Afinal, um arquivo, para garantir-se como evidência do lugar de um fato passado, de maneira inequívoca, deveria distanciar-se da trama que o criou? Deveria caminhar em direção a uma objetividade impossível? E seria essa direção capaz de diferenciar a lembrança da imaginação, a descoberta da invenção, a história da ficção? Afinal, não se trata mais acertadamente de pensar as relações entre esses termos?

O que produziria diferenças entre lembrança e imaginação seria o modo como essas narrativas se configuram e como se apresentam para aquele que as deseja acessar. No caso de memórias em ambientes digitais, as narrativas de memória são construídas tanto pelos modos de registro dos fatos, quanto pelo modo como esses fatos são dispostos em interfaces que os agrupam. José van Dijck15 15 .VAN DIJCK, José. Mediated memories in the digital age. Stanford: Stanford University Press, 2007. trabalha com o termo “memórias mediadas” para caracterizar as memórias em ambientes programáveis. Trata-se de uma qualidade das memórias relacionada ao modo de existência dos objetos de memória, criados pelas tecnologias da mídia, e ao modo de acessar tais conteúdos. Van Dijck introduz a questão a partir do conceito de “itens de memória”, que funcionariam não apenas como lembranças de coisas passadas, mas também capazes de realizar a mediação entre indivíduos e grupos. Pensar os objetos de memória como objetos dialógicos é entendê-los como móveis, como pontos que tensionam camadas temporais invisíveis e não definidas por si só como passado, presente ou futuro. Nesse sentido, a memória seria, então, um fenômeno que dura pouco tempo num só formato, porque ela é uma relação entre coisas. Ela é aparição. Pensando numa poética da memória em ambientes programáveis, os metadados que se relacionariam com esse conceito de memória são aqueles capturados no ambiente, e que conseguem dar conta justamente do modo como o ambiente se modifica em função dos objetos/elementos/relações que o compõem num determinado momento. Os metadados, em ambientes programáveis, ganhariam a característica de rastros, conquanto se portassem como uma marcação, no aqui e agora de que algo se passou. E ao serem trabalhados de maneira a poder indicar vários atos passados, a partir de pontos de vista distintos, tornar-se-iam maneiras de orientar a caça, a busca, típica dos rastros16 16 .Ricoeur, Paul. Op. cit., 2007. . Nesse momento aconteceria a passagem de rastros a arquivos, quando os metadados fossem capazes de criar um fluxo constante entre as memórias comunicativas e as memórias culturais17 17 .Cf. ASSMAN, Aleida. Transformations between history and memory. In: Social Research. New York: The New School for Social Research, v. 75, n.1, p. 49-72, 2008. , produzindo assim lugares imaginários de memória.

Para verificar como esse movimento pode acontecer, analise-se aqui um projeto que se situa no limite entre a invenção e a descoberta e que, portanto, cria um lugar praticado de memória.

O projeto The Whale Hunt18 18 .Dados extraídos do próprio site, disponível em: ‹http://thewhalehunt.org/statement.html ›. Acesso em: setembro de 2013). é um experimento de Jonathan Harris em torno de novas formas de contar histórias. A experiência consiste na documentação de uma viagem de nove dias que Harris faz para um assentamento esquimó no norte do Alasca, para acompanhar uma caça às baleias. Esse é um momento particularmente importante para a comunidade, pois a caçada às baleias Bowhead no período migratório desses animais é não só uma tradição centenária, mas também uma época fundamental para os esquimós. Durante a primavera, nesse local, o gelo se quebra e surgem canais de águas livres, chamados lead. É por esses canais que as baleias passam em direção ao norte do Círculo Ártico. Quando elas estão suficientemente próximas, os caçadores saem em botes e arpoam as baleias, depois conduzem os animais para a terra e passam a esquartejá-los para retirar deles tudo o que possa servir de suprimento para a comunidade.

Jonathan Harris documentou toda a experiência através de uma sequência de 3.214 fotos, compreendendo desde a corrida de táxi que o levou ao aeroporto de Newark até o término das ações de corte e estripação da segunda baleia, uma semana depois. As fotos foram organizadas na interface digital com intervalos de cinco minutos, e foram realizadas mesmo quando o autor do projeto estava dormindo, através de um cronômetro ligado à câmera. Nas palavras do próprio criador da narrativa, isso estabeleceu uma “batida do coração fotográfica”. O número de fotos realizadas dentro de cada intervalo de cinco minutos variava com a frequência cardíaca experimentada pelo criador do projeto, chegando a um máximo de 37 imagens feitas, quando a primeira baleia estava sendo massacrada.

A interface permite visualizar a sequência das imagens de maneiras distintas, com mais algumas subdivisões dentro dessas formas mais gerais (fig. 1).

Em cada um desses modos é possível perceber operações poéticas realizadas com uso de metadados, dando acesso a arquivos que são, concomitantemente, testemunhos de um acontecimento e que se comportam como relatos efêmeros desse mesmo fato. No tocante aos metadados, de maneira mais explícita, Harris delimita um conjunto deles, que são extraídos tanto do tipo de conteúdo em cada foto quanto do modo como cada imagem é compreendida pela câmera ou outros equipamentos de registro da experiência. Os metadados escolhidos são: a cadência da foto (o nível de excitação no momento em que a imagem foi feita), a cor média dos pixels na imagem, o contexto (onde a foto foi realizada), os conceitos (quais ideias estão representadas na imagem), e os personagens (quem está em cada foto) (fig. 2, na parte inferior da imagem).

Figura 1
Interface de visualização no modo Mosaico.

Cada um desses metadados tem subdivisões, e podem ser combinados entre si para mostrar um determinado conjunto de imagens relativas a todo o período em que o realizador esteve no projeto (os nove dias de viagem). Fazer esses cruzamentos é como delimitar um acontecimento inicial, a partir do qual estrutura-se um eixo temporal que indica fatos passados, fatos presentes e fatos futuros. Como é possível realizar diversos cruzamentos, os acontecimentos iniciais podem se multiplicar, bem como os arquivos que os documentam e os lugares (marcas temporais) aos quais esses arquivos se referem. Dessa maneira, cada lugar de memória é uma marcação temporária, associada a uma manipulação específica dos metadados para fazer surgir imagens da caçada. Se a memória precisa de arquivos para existir, talvez esse tipo de arquivo seja mais próprio das memórias digitais, uma vez que eles não esgotam a temporalidade dos acontecimentos, nem podem ser associados inequivocamente a um fato passado. A marcação temporal é profundamente influenciada pela poética dos metadados, uma vez que a interface permite que cada manipulação produza uma pergunta diferente para o conjunto de dados coletados. Assim, as imagens podem trazer à tona memórias muito distintas (o que sempre foi possível em termos de interpretação), e tal característica é exposta fisicamente, no formato de arquivos instáveis, equívocos, e, por isso mesmo, capazes de abrir as múltiplas temporalidades e memórias que uma mesma narrativa comporta.

O que fica patente no trabalho de Harris é a maneira como ele multiplica o uso dos metadados e problematiza, assim, o seu valor de testemunho diretamente associado a um fato específico da narrativa. De acordo com cada filtro escolhido, os metadados podem exibir imagens que não corresponderiam, por exemplo, a um estado de excitação esperado, dentro de uma lógica de altura da linha temporal e frequência cardíaca. É como se a interface provocasse cada metadado a exibir também sua potência de equivocação, seja em função do conteúdo ao qual estaria associado, seja em função dos cruzamentos que podem ser realizados entre os metadados. Momentos em que um personagem, ao vestir os equipamentos para a caçada, se mostra extremamente excitado (em função dos metadados indicados na linha temporal), podem ser similares a momentos de extrema excitação, quando da estripação de uma baleia, para outro personagem. Obviamente, se considerar-se o quadro inteiro da narrativa, essas constatações não são exatamente uma novidade. O que interessa é perceber de que maneira o uso dos metadados, numa mesma interface documental, confere a cada arquivo valores de testemunho diferenciados, ao mesmo tempo em que sugere comparações entre eles. Ao aplicar diferentes filtros à narrativa, usando então cruzamentos entre metadados, surgem similaridades em meio às diferenças, criando uma mistura entre invenção e descoberta, e entre memórias comunicativas e memórias culturais.

Figura 2
Tipos de metadados para criação das narrativas.

Por que esse projeto, bem como outros em ambientes programáveis, são capazes de produzir lugares imaginários, associados à noção de memória? A noção de lugar será relacionada, inicialmente, à descoberta; o imaginário, por sua vez, ocupará o lado da invenção. Projetos que utilizam elementos descritivos de outros dados para apresentar a memória como um fato passado, misturam esses dois conceitos porque os metadados tornam-se o elemento de criação da apresentação dessa memória. E, mais que isso, eles são elementos modificáveis, ou que são testados em termos de sua capacidade de organização pela própria lógica que os produziu. Assim, a sua gênese enquanto metadado é definida pelo uso que o programa ou a interface sugere; em conjunto com a manipulação pelo coletivo de pessoas que também usa/produz a obra, mesmo sem se ligar a ela diretamente. Aqui entra em cena tanto o funcionamento das redes sociotécnicas, quanto os processos de individuação técnica que explicitam as ligações e tensões entre coletivos de humanos e não-humanos19 19 .Cf. LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001. . Isso significa defender que os metadados trabalham, no modo poético, de maneira equívoca, porque a prova documental que criam é transformada constantemente pelo ambiente programável. Nesse sentido, os lugares de memória produzidos pelos metadados funcionariam enquanto lugares imaginários de memória.


Andreas Gursky. São Paulo, Sé, 2002.

  • 1
    .Ambientes programáveis e ambientes digitais serão utilizados nesse artigo como similares, embora a noção de ambientes digitais, no nosso entendimento, esteja contida no conceito de ambientes programáveis.
  • 2
    .RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
  • 3
    .RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo III. Campinas: Papirus, 1997.
  • 4
    .COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.
  • 5
    .RICOEUR, Paul. Op. cit., 1997.
  • 6
    .Cf. Ibidem.
  • 7
    .ASSMAN, Jan. Collective memory and cultural identity. New German Critique, n. 69. Chicago: Duke university Press, 1995, p. 125-133,
  • 8
    .LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra, vol. 1. Lisboa: Edições 70, 1990.
  • 9.
    . Cf. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
  • 10
    .FEATHERSTONE, Mike. Archiving cultures. In: British Journal of Sociology. London: London School of Economics, 2000, p. 161-183. Disponível em: ‹http://chnm.gmu.edu/courses/rr/f01/cw/archiving.pdf ›. Acesso em: setembro de 2012.
  • 11
    .BROCKMEIER, Jens. Remembering and forgetting: narrative as cultural memory. In: Culture & Psychology. New York: Sage Publications, v. 8, n. 1, p. 15-43, 2002.
  • 12
    .ASSMAN, Jan. Op. cit., 1995.
  • 13
    .Cf. MANOVICH, Lev. Metadata, mon amour. 2002. Disponível em: ‹http://manovich.net ›. Acesso em: junho de 2013, e MATTHEWS, Paul; ASTON, Judith. Interactive multimedia ethnography: archiving workflow, interface aesthetics and metadata. In: ACM Journal on Computing and Cultural Heritage, vol. 5, n. 4, p. 1-13, 2012.
  • 14
    .Cf. Manovich, Lev. Op. cit.
  • 15
    .VAN DIJCK, José. Mediated memories in the digital age. Stanford: Stanford University Press, 2007.
  • 16
    .Ricoeur, Paul. Op. cit., 2007.
  • 17
    .Cf. ASSMAN, Aleida. Transformations between history and memory. In: Social Research. New York: The New School for Social Research, v. 75, n.1, p. 49-72, 2008.
  • 18
    .Dados extraídos do próprio site, disponível em: ‹http://thewhalehunt.org/statement.html ›. Acesso em: setembro de 2013).
  • 19
    .Cf. LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2013
  • Aceito
    18 Nov 2013
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