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Vibrações possíveis: Arte/Educação e Saúde Mental na Contemporaneidade.

Resumos

O artigo pretende desenvolver a ideia que a Arte/Educação, campo do universo artístico que se dedica aos fundamentos históricos, filosóficos e metodológicos do ensino das artes, pode ser um recurso importante para articular arte e Saúde Mental na contemporaneidade, ao oferecer o contato rico e substancioso com as artes, favorece a experiência estética e as condições de enlace social; alinhando-se, desta forma, às propostas da Reforma Psiquiátrica brasileira.

palavras-chave:
artes visuais; ensino e aprendizagem da arte; loucura; saúde mental; reforma psiquiátrica


This article aims to develop the idea that Art /Education field of artistic universe that is dedicated to the historical, philosophical and methodological school of the arts, can be an important resource for articulating art and Mental Health in contemporary, while offering rich and substantial contact with the arts, promotes the aesthetic experience and the conditions of social link; aligning thus proposed to the Brazilian Psychiatric Reform.

keywords:
visual arts; teaching and learning of art; madness; mental health; psychiatric reform



Em seu texto "A arte não revela a verdade da loucura, a loucura não detém a verdade da arte", Teixeira Coelho mostra que o encontro entre arte e loucura foi um acontecimento datado historicamente, cujos frutos terminaram com o fim da modernidade1 1 . Para um melhor entendimento do artigo, vale esclarecer a relação entre moderno e modernidade. Didaticamente, em termos cronológicos, podemos delimitar a modernidade ou moderno como o período histórico ocorrido entre os séculos XIX e XX. Porém, no campo das artes, há uma distinção entre esses dois termos. De acordo com Briony Fer, a "experiência consciente de modernidade só se desenvolveu em meados do século XIX, quando, ao aplicá-la à arte, Baudelaire pôde defini-la do seguinte modo: 'Por modernidade entendo o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterno e o imutável' (...). Afirmava que o moderno na arte estava relacionado a uma experiência de modernidade - ou seja, a uma experiência que está sempre mudando, que não permanece estática, e que é sentida com maior clareza no centro metropolitano da cidade" (Introdução. In: FRASCINA, Francis et al. (orgs.). Modernidade e modernismo: a pintura francesa do século XIX. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 1998, p. 9-10). Ou seja, nem tudo que era produzido artisticamente na modernidade podia ser considerado moderno. A arte considerada moderna deveria identificar-se deliberadamente com o transitório, o novo e o efêmero (experiência que o período histórico da modernidade trazia consigo) associados a certas características formais (basicamente, a questão da planaridade, evidenciando a superfície da tela sobre as quais a obra era realizada, entre outros aspectos que definem os vários "ismos", que em conjunto formam o que se entende por arte moderna). Ou ainda, conforme Teixeira Coelho "O moderno, no limite, é o novo - e o novo é a consciência neurotizada da modernidade" (In: Moderno, pós moderno: modos e versões. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 18). . Em suas palavras: "Arte & Loucura foi uma questão do século XIX cuja vida útil já se encerrou. Ou, uma vez que século é um dos conceitos mais vazios em cultura, Arte & Loucura foi uma questão da Modernidade que com ela se findou"2 2 . TEIXEIRA COELHO, Jose. A arte não revela a verdade da loucura, a loucura não detém a verdade da arte. In: ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L. H. S.; PEREIRA, L. M. F. (orgs.). Psiquiatria, loucura e artefragmentos da história brasileira. . Para problematizar essa afirmação é necessário contextualizarmos as concepções de loucura e de arte que circulavam no referido período e pensarmos que outras relações entre loucura, clínica e arte a contemporaneidade é capaz de produzir. Como apontam Lima e Pélbart, "pensar que não é em qualquer configuração histórica que o universo da arte se compõe com o da clínica ou o da loucura nos faz desnaturalizar essa relação, que pode muitas vezes nos parecer familiar e até corriqueira, e nos leva a pensar que marca essa relação ganha em nosso tempo"3 3 . LIMA, Elizabeth M. F. A. & PELBART, Peter Pál. Arte, clínica e loucura: um território em mutação. In: Hist. cienc. saude-anguinhos, 2007, vol.14, n. 3, p. 710. . Desnaturalizando as relações entre arte, clínica e loucura, que articulações são possíveis entre essas instâncias na atualidade?

Em sua História da Loucura, Foucault assinala as sucessivas transformações sofridas pela loucura ao longo dos tempos. Na Antiguidade, a loucura era valorizada como um saber divino, manifestação dos deuses e demônios; a partir do século XVII, com os golpes de força da razão, progressivamente foi se deslocando para a ideia de doença mental, objeto de investigação e tratamento de um tipo especial de medicina - a psiquiatria - uma invenção da modernidade. Sendo uma doença mental, a loucura passou a ser passível de cura através do isolamento e de métodos disciplinares, que tinham por finalidade devolver a razão ao insano. A psiquiatria, dessa forma, passa a exercer um controle social, tanto dentro quanto fora das instituições asilares, manipulando e condicionando normas de comportamento, condutas e desejos. É nesse novo solo epistêmico característico da Modernidade que a arte - que em torno do século XVIII era considerada perigosa dentro dos hospitais gerais, porque estimulava as paixões desgovernadas - entra nas instituições de tratamento asilares como recurso diagnóstico e como forma de terapêutica, ou seja, a arte assume a função de uma atividade para ocupar os desocupados, para controlar aqueles que não se submetiam às exigências da produção capitalista4 4 . Cf. FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2004. .

Porém, no jogo de forças da modernidade, de um lado temos o trabalho como principal norma social e, de outro, a retomada e o acirramento do ideário romântico no campo da arte, como âmbito da experiência humana irredutível ao capital. Os movimentos de vanguarda artística tinham como norte o ataque aos valores burgueses, contestando a forma reducionista de conduzir a vida para a acumulação de capital que empobrecia a experiência humana, definindo normas de conduta rígidas e moralizantes. Assim, tanto a arte como a loucura passam a ocupar um lugar à margem da sociedade, fora de certo modo de pensar moralista e hegemônico, expressando a subjetividade humana indisciplinável e incorrigível. O manifesto dadaísta de 1918, um dos movimentos artísticos da modernidade, representa bem essa resistência às tendências normatizantes:

A arte serve então para amontoar dinheiro e acariciar os gentis burgueses? (...) Todos os grupos de artistas acabaram neste banco, mesmo cavalgando cometas diferentes (...). Transbordamos de maldições sobre a abundância tropical e de vegetação vertiginosas (...) Eu sou contra os sistemas. O único sistema ainda aceitável é o de não ter sistemas. A lógica é sempre falsa. A moral atrofia (...). Todo homem deve gritar. Há um grande trabalho destrutivo, negativo, a ser executado.5 5 . TZARA, Tristan. Manifeste Dada. apud MICHELI, Mário de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.136.

Os artistas modernos, ao se lançarem romanticamente àquilo que era considerado exótico, estrangeiro e primitivo em relação aos valores burgueses, começaram a se influenciar pelas manifestações dos loucos nas instituições asilares. Essas manifestações plásticas não eram abordadas pelos artistas como sinais de desordem interna, doença psíquica ou como esvaziada de sentido, mas sim como manifestações prenhes de forças expressivas e criadoras, absolutamente em sintonia com os ideais dos artistas modernos. Dirigindo-lhe outro olhar e se abrindo para outras formas de se relacionar com a loucura, os artistas incluíram novamente a expressão daqueles que foram historicamente excluídos da vida social e relativizavam as fronteiras entre o normal e o patológico.

O interesse pelo primitivo realiza uma inflexão importante no Expressionismo, pois os artistas deste movimento pretendiam ir além da busca por estados de vida mais puros e simples, livres das regras sociais, dos valores e da moral burguesa. O Expressionismo preconizava uma arte arrebatadora, febril, visceral, expressão da vida interior, tornando a busca do primitivo como a descoberta daquilo que é primordial, daquela primeira substância da vida, do impulso originário. Dentro do expressionismo, o grupo Der Blaue Reiter, fundado em 1911 e formado por Wassily Kandinsky, Franz Marc, Paul Klee (entre outros), não se interessava tanto pelo mundo selvagem e exótico, mas principalmente pelo "espiritual" da natureza. O contato com o primitivo vinha a serviço de apreender a sua essência, sendo que a base da arte (para este grupo de artistas) era uma necessidade interior e não mais o equivalente de um conteúdo preexistente, não era mais representação da realidade externa. A arte passa a ter vida própria, "uma nova forma de ser, a qual age sobre nós, através dos olhos, despertando em nosso íntimo, vastas e profundas 'ressonâncias' espirituais"6 6 . KANDINSKY, Wassily apud idem, p. 92.; ou ainda, conforme Klee, "a arte não traduz o visível; ela torna visível"7.

Justamente era esse acesso às "forças criadoras" que interessavam os artistas modernos quando estes se voltaram para a produção plástica dos loucos internados. O primitivo que os artistas procuravam estava na maneira espontânea, desordenada, arcaica, fruto de forças inconscientes ou espirituais que atravessava as produções dos loucos. Vale relembrar, entretanto, que essas mesmas produções também foram objetos de muitas pesquisas psiquiátricas, psicanalíticas e psicológicas, que ofereciam um grande leque de enfoques interpretativos dos artistas e suas obras. Esse entrelaçamento entre os saberes "psis" e a arte moderna serviam ora para desqualificar o que estava sendo produzido no campo artístico, ora para exaltar a loucura e sua produção. Porém, de qualquer forma, há o reaparecimento da loucura no domínio da linguagem. A loucura, através da arte, começa a escapar do silenciamento que lhe foi imposto outrora.

Desta forma, podemos dizer que o expressionismo - assim como outros movimentos artísticos do início do século passado - influenciava propostas alternativas e inovadoras no tratamento da loucura para os parâmetros da época, colaborando para a sustentação da atividade artística nos asilos como recurso diagnóstico e expressivo. No Brasil, duas experiências importantes ilustram essa articulação da arte como recurso terapêutico: a experiência no Hospital Psiquiátrico do Juqueri (SP), conduzida pelo Dr. Osório Cesar na década de 1920 e, posteriormente, duas décadas depois, no Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro com a Dra. Nise da Silveira.

A concepção de ensino da arte, alinhado com os movimentos de vanguarda modernistas era o da "livre expressão" que, desconstruindo o ensino tradicional peculiar da Academia de Belas-Artes e as exigências de um desenho utilitário (geométrico) para uma indústria em franca expansão na época, incentivava o traço livre, o gesto espontâneo, sem censuras racionalistas, lidando com o acaso, o imprevisto e o improviso. É nesse contexto histórico que a arte e seu ensino começam a ser pensados como recurso para a educação e para o desenvolvimento humano (não apenas para a formação de artistas profissionais); ou seja, o contato da arte e seu ensino passam a ter pretensões de cunho terapêutico (aqui não mais entendido nos moldes pinelianos, mas como recurso para a expressão e elaboração de sofrimentos psíquicos). A arte/educadora brasileira Ana Mae Barbosa salienta que, baseada nos estudos e nas propostas de Franz Cizek, Herbert Read e Victor Lowelfeld, a livre expressão

(...) levou à ideia de que a arte na educação tem como finalidade principal permitir que a criança [o aprendiz] expresse seus sentimentos (...). Esses novos conceitos, mais do que aos educadores, entusiasmaram artistas e psicólogos, que foram os grandes divulgadores dessa corrente e, talvez por isso, promover experiências terapêuticas passou a ser considerada a maior missão da arte na educação.8 8 . BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da educação artística. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 45.

O legado dos doutores Osório Cesar e Nise da Silveira que fizeram uso do método da livre expressão, além de serem trabalhos sintonizados com os movimentos artísticos modernistas, também ampliaram a sensibilidade ocidental para a questão da loucura, na medida em que estavam na contramão da psiquiatria organicista predominante nesse período.

A arte moderna alimentava-se do contato com a loucura ao mesmo tempo em que ajudava a proporcionar condições para a emergência de outra forma de entender e abordar a loucura, não mais como uma doença, mas como uma existência-sofrimento; ou seja, como uma maneira singular de se relacionar consigo mesmo, com o mundo e com a vida que, por vezes, destoa da forma hegemônica e, por isso mesmo, causa sofrimento porque não encontra ressonância no campo social, nem encontra territórios de existência. Na contemporaneidade, dessa maneira, o tratamento da loucura desloca-se da ideia de curar para a ideia de cuidar, sobretudo a partir de intervenções que buscam o enlace e a sustentação da loucura no campo social. Esses são os princípios que norteiam a Reforma Psiquiátrica brasileira, que em nosso país teve influências principais dos modelos francês e italiano9. A concepção de loucura enquanto existência-sofrimento foi fruto de jogos de força ocorridos durante e após a Segunda Guerra Mundial, nos quais se fortaleceu vertentes de políticas de saúde mais humanizadoras e que tiveram, no campo específico da saúde mental, práticas clínicas que inclinavam seus interesses cada vez mais para o campo artístico e às contribuições que as esferas sociais e culturais podiam oferecer à saúde. Essas experiências, como outras de cunho antipsiquiátrico ocorridas mais ou menos no mesmo período, denunciavam as ações desumanas e humilhantes que sofriam os internos das instituições fechadas e propunham a desconstrução dos manicômios, isto é, suas ações visavam à abertura para o mundo, entendendo que grande parte do sofrimento e da cronificação da loucura estavam em seu isolamento.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil, uma forma de concretização dos ideais da Luta Antimanicomial (movimento político formado por trabalhadores da saúde mental, usuários dos serviços de saúde e seus familiares e que no Brasil teve um maior impulso a partir dos anos 1980, com a redemocratização do país), configura-se numa proposta de tratamento na qual cidadania e expressão da loucura estejam garantidas no campo social. Motivada por denúncias de mortes, superlotações, abandono e maus tratos, a Lei 10.216 de 6 de abril de 2001 (Lei Paulo Delgado), que estabeleceu a Reforma Psiquiátrica no Brasil, atesta a proibição da construção de novos manicômios, a regulação da internação involuntária e o estabelecimento de um novo modelo substituto de atenção psicossocial.

As propostas da Reforma estão orientadas por outro paradigma de saúde mental, no qual a subjetividade - classicamente identificada com a interioridade - começa a ser compreendida como uma processualidade, sempre inacabada, em profunda conexão com o "fora", resultado de fatores múltiplos (sociais, econômicos, culturais, urbanos, midiáticos, familiares, entre outros) que se relacionam rizomaticamente. Assim, as práticas em saúde mental procuram o social, a cultura, as diversas linguagens artísticas, para juntos compor territórios de existência, não mais a partir de uma perspectiva científica, mas sim estético-artística. Atualmente, essas práticas buscam configurar uma maneira de resistência às formas de embrutecimento da vida, de padronização ou de homogeneização de modos de existência, na qual podemos entrever uma concepção de saúde que não busca a conservação ou a anestesia para viver de maneira saudável - controlada e disciplinada, apoiada em valores morais - mas uma saúde que afirma a vida com toda a sua intensidade, com suas alegrias, prazeres; mas também com suas dores, com sua finitude.

Desse modo, as propostas da Reforma Psiquiátrica procuram voltar-se para as atividades extraclínicas, justamente por considerarem que não há o que ser curado, mas se deve cuidar para que a cidadania e a expressão da loucura tenham seu espaço sustentado na esfera social. É nesse contexto que as atividades artísticas encontram-se incluídas nos dispositivos de Saúde Mental substitutos das instituições asilares, no caso da realidade brasileira: os CAPSs e, mais especificamente na cidade de São Paulo, também os CECCOs10.

A partir da perspectiva arqueológica do saber de Foucault, não haveria hierarquias entre as várias instâncias humanas; ou seja, os jogos de força entre os diversos campos do conhecimento humano "não tem primeiro motor (a economia não é a causa suprema que comandaria todo o resto; nem a sociedade); tudo age sobre tudo, tudo reage contra tudo"11, podemos compreender que o campo da arte e de seu ensino (Arte/Educação12 12 . Neste artigo, as diversas concepções de ensino da arte serão abarcadas dentro do campo da Arte/Educação: ramo do conhecimento humano que reflete sobre os fundamentos históricos, filosóficos e metodológicos do ensino das artes e que não se restringe à educação formal (ou escolar). A Arte/Educação atua nas várias linguagens do universo artístico (artes visuais, cênicas, dança e música), ainda que o presente trabalho foque suas considerações no campo das artes visuais e também frisar que a Arte/Educação não é um "bloco" homogêneo. Dentro desta generalização que estamos chamando de Arte/Educação há várias tendências e metodologias do ensino da arte, sem contar com as singularidades de cada arte/educador. ) também receberam vibrações e reagiram a essas outras instâncias, transformando-se. Diferentemente da arte moderna que buscava o primitivo e valorizava a expressão para romper com o academismo burguês (e, nesse sentido, encontrou nas manifestações do louco um campo fértil), a arte e a arte/educação contemporânea estão balizadas por outro registro: não mais norteadas pelo primitivo, mas procuram ampliar para a vida as conquistas modernistas, a ponto de ficar absolutamente tênue estabelecer o limite entre arte e vida.

No início dos anos 60 ainda era possível pensar nas obras de arte como pertencentes a uma de duas amplas categorias: a pintura e a escultura. As colagens cubistas e outras, a performance futurista e os eventos dadaístas já haviam começado a desafiar este singelo 'duopólio', e a fotografia reivindicava, cada vez mais, seu reconhecimento como expressão artística. No entanto, ainda persistia a noção de que a arte compreende essencialmente aqueles produtos do esforço criativo humano que gostaríamos de chamar de pintura e escultura. Depois de 1960 houve uma decomposição das certezas quanto a este sistema de classificação. Sem dúvida, alguns artistas ainda pintam e outros fazem aquilo a que a tradição se referiria como escultura, mas estas práticas agora ocorrem num espectro muito mais amplo de atividades.13 13 . ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 1.

De acordo com Archer, na contemporaneidade não parece haver mais nenhum material ou forma específica que desfrute do privilégio de ser identificado rapidamente como arte. Uma profusão de estilos, práticas, formas e programas caracterizam a arte contemporânea, que reinterpretou muitos dos gestos e ideias dos movimentos vanguardistas, passando a utilizar, além de tintas, metal, argila e pedras, também "ar, luz, som, palavras, pessoas, comidas e muitas outras coisas"14.Esta dificuldade, hoje em dia, de identificarmos claramente um objeto como obra de arte, nos traz - ainda, segundo Archer - "a noção de que o que nós, observadores, deveríamos fazer é decidir olhar os fenômenos do mundo de um modo 'artístico'. Assim, estaríamos fazendo a nós mesmos a pergunta: 'Suponhamos que eu olhe para isto como se fosse arte. O que, então, isto poderia significar para mim'"15 15 . Idem, p. 94-95

Da valorização da expressão do artista - característico da concepção de arte modernista - agora, na contemporaneidade, a arte deslocou para estetizar a vida, o cotidiano, as relações a partir das conquistas ideológicas e estilísticas dos modernistas. Mas para se chegar a este ponto de entrelaçamento entre vida e arte, há uma necessidade de formação no campo das artes. Uma formação, um processo de ensino e aprendizagem que não visa necessariamente formar artistas profissionais, mas para produzir e fruir a arte, atualmente, é importante o conhecimento desse campo do saber. Se na modernidade havia a procura pelo gesto espontâneo, pelo visceral ou pelas forças criadoras da natureza; na contemporaneidade, esta postura sozinha não é suficiente. É nesse ponto que resgato a afirmação de Teixeira Coelho com a qual iniciei a apresentação deste artigo: a expressão dos loucos, tão cara para os artistas do início do século XX, apesar de continuar a ser extremamente importante, não é suficiente para configurar ou compreender o acontecimento artístico atualmente. A loucura, apesar dos pesares (no sentido, que ainda há muito que se avançar na abordagem da loucura), não se encontra mais enclausurada ou silenciada como viveu entre os séculos XVI e XX, e a arte também já se libertou dos grilhões do academicismo tacanho.

Há a necessidade de se alcançar outro patamar para os diálogos entre a loucura e a arte. Assim, a seguinte pergunta é formulada: que perspectiva se abre, na contemporaneidade, para pensarmos uma articulação possível entre arte, clínica e loucura?

Podem ser inúmeras as conexões entre arte e loucura, mas a hipótese que este artigo gostaria de explorar é que a arte/educação pode estabelecer ou potencializar essa articulação, na medida em que, esta pode vir a ser uma ferramenta cultural importante que pode desmistificar a arte, tornando mais acessível às conexões entre a arte e a vida, além de proporcionar condições para a elaboração/criação dos produtos artísticos em si e de enlace social.

Já que as manifestações artísticas atuais fazem clara referência e alargam os ideais modernistas, para produzir ou fruir estas manifestações é necessário o conhecimento da história da arte, dos artistas e de seus processos criativos, das técnicas, dos materiais e de outros repertórios concernentes às artes visuais, formando o tripé ou os pilares que vem norteando os trabalhos dos arte/educadores: além da expressão, o fazer (contato com as técnicas e materiais) e a reflexão (ou leitura da obra de arte, alimentada por dados históricos, estéticos e/ou filosóficos), proporcionando aquilo que se chama "experiência estética"16 16 . DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010 ou seja, a vivência ou amarração desses três pilares no contato com a arte. Ao articular o fazer, a reflexão e a expressão dos trabalhos artísticos, a arte/educação sugere caminhos, propostas alternativas sobre as possibilidades de levar a vida com mais habilidade ou com mais criação. Conhecer arte, tal como a arte/educação contemporânea propõe, amplifica a experiência com os objetos artísticos e com a própria vida.

A arte-educação contemporânea (campo do universo artístico que estuda os fundamentos do ensino das artes e que procura articular o fazer, o expressar e o refletir nas práticas artísticas) entende a arte e seu ensino como um campo de conhecimento específico. Ou seja, diferente da tendência modernista de ensino da arte, que se preocupava com o desenvolvimento integral dos sujeitos, aproximando-se de práticas terapêuticas (como meio de expressão e elaboração de angústias e conflitos). Atualmente, a tônica incide em devolver à arte-educação aquilo que é próprio do universo da arte. Vincent Lanier nos chama atenção:

O ponto sobre o qual queremos insistir é que todos esses outros aspectos do crescimento individual [referindo-se às concepções modernistas de ensino da arte] não são ou não deveriam ser o principal foco para o professor de artes plásticas: (...) sua principal referência deveria ser o progresso no domínio dos procedimentos estético-visuais. Se outros benefícios colaterais resultam das atividades de arte, tanto melhor. Se, no entanto, eles não ocorrem, o papel educacional da arte não terá sido traído - contanto que o crescimento das capacidades estético-visuais tenha se efetuado (...). Em resumo, estou propondo que, de fato, devolvamos a arte à arte-educação17.

Assim, a partir da proposta de Lanier, podemos pensar que, mesmo levando em consideração o contexto das instituições de saúde mental, o contato com a arte pode ter um efeito terapêutico que, apesar de importante, não deve ser o objetivo do arte-educador nas instituições nestas referidas instituições. Nesse sentido, podemos dizer que a arte-educação contemporânea entra em sintonia com as propostas antimanicomiais interessadas justamente naquilo que é extraclínico, para além do estritamente terapêutico (entendido aqui, mais uma vez, como possibilidade de expressar e elaborar conflitos, aumentar a concentração ou a socialização), entendendo que a potência do encontro com a arte se dá justamente porque ela não é terapia.

A Reforma Psiquiátrica aponta justamente para os excessos dos espaços terapêuticos, procurando enfatizar que se olhe para os usuários não como doentes, nem como limitados; mas como pessoas ou como singularidades - que, como todos, passam por momentos difíceis ou dolorosos e que, como todos, precisam de ajuda de diversas instâncias ou especialidades para poder viver suas vidas - capazes de se apropriarem daquilo que desejam, dos conhecimentos que os interessam, de exercerem sua cidadania (com todos os seus direitos e deveres); capazes de ter uma vida para além dos espaços de tratamento. Para atender a esse anseio, a Reforma Psiquiátrica convida outros profissionais além dos "especialistas" na saúde (psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, entre outros) para trabalharem com a loucura.

Assim, o presente texto procurou estabelecer as vibrações possíveis entre arte, clínica e loucura que a contemporaneidade nos permite pensar, buscando indicar o quanto os arte-educadores (com todas as suas variadas formações, interesses e singularidades) podem ser importantes aliados nesse processo que a Reforma Psiquiátrica vem construindo nas últimas décadas, na medida em que, ensinar arte àqueles que, até poucos anos atrás, eram excluídos das relações sociais, é uma forma de devolver-lhes cidadania e condições de enlace social, oferecendo o campo da arte como território de existência, de experiência estética e como dispositivo de produção de subjetividade; já que a arte, na lógica da Reforma Psiquiátrica, é considerada como uma atividade que é humana e cultural antes de ser estritamente terapêutica.

  • 1
    . Para um melhor entendimento do artigo, vale esclarecer a relação entre moderno e modernidade. Didaticamente, em termos cronológicos, podemos delimitar a modernidade ou moderno como o período histórico ocorrido entre os séculos XIX e XX. Porém, no campo das artes, há uma distinção entre esses dois termos. De acordo com Briony Fer, a "experiência consciente de modernidade só se desenvolveu em meados do século XIX, quando, ao aplicá-la à arte, Baudelaire pôde defini-la do seguinte modo: 'Por modernidade entendo o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterno e o imutável' (...). Afirmava que o moderno na arte estava relacionado a uma experiência de modernidade - ou seja, a uma experiência que está sempre mudando, que não permanece estática, e que é sentida com maior clareza no centro metropolitano da cidade" (Introdução. In: FRASCINA, Francis et al. (orgs.). Modernidade e modernismo: a pintura francesa do século XIX. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 1998, p. 9-10). Ou seja, nem tudo que era produzido artisticamente na modernidade podia ser considerado moderno. A arte considerada moderna deveria identificar-se deliberadamente com o transitório, o novo e o efêmero (experiência que o período histórico da modernidade trazia consigo) associados a certas características formais (basicamente, a questão da planaridade, evidenciando a superfície da tela sobre as quais a obra era realizada, entre outros aspectos que definem os vários "ismos", que em conjunto formam o que se entende por arte moderna). Ou ainda, conforme Teixeira Coelho "O moderno, no limite, é o novo - e o novo é a consciência neurotizada da modernidade" (In: Moderno, pós moderno: modos e versões. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 18).
  • 2
    . TEIXEIRA COELHO, Jose. A arte não revela a verdade da loucura, a loucura não detém a verdade da arte. In: ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L. H. S.; PEREIRA, L. M. F. (orgs.). Psiquiatria, loucura e artefragmentos da história brasileira.
  • 3
    . LIMA, Elizabeth M. F. A. & PELBART, Peter Pál. Arte, clínica e loucura: um território em mutação. In: Hist. cienc. saude-anguinhos, 2007, vol.14, n. 3, p. 710.
  • 4
    . Cf. FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
  • 5
    . TZARA, Tristan. Manifeste Dada. apud MICHELI, Mário de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.136.
  • 6
    . KANDINSKY, Wassily apud idem, p. 92.;
  • 7
    . KLEE, Paul apud CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 183..
  • 8
    . BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da educação artística. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 45.
  • 9
    . AMARANTE, Paulo D. de C. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FioCruz, 1995 e PASSOS, Izabel C. F. Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: FioCruz, 2009..
  • 10
    . CAPS: Centros de Atenção Psicossocial. CECCO: Centro de Convivência e Cooperativa. Os CAPSs e os CECCOs são unidades de saúde municipalizadas, ligadas ao SUS (Sistema Único de Saúde).
  • 11
    . VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 98.
  • 12
    . Neste artigo, as diversas concepções de ensino da arte serão abarcadas dentro do campo da Arte/Educação: ramo do conhecimento humano que reflete sobre os fundamentos históricos, filosóficos e metodológicos do ensino das artes e que não se restringe à educação formal (ou escolar). A Arte/Educação atua nas várias linguagens do universo artístico (artes visuais, cênicas, dança e música), ainda que o presente trabalho foque suas considerações no campo das artes visuais e também frisar que a Arte/Educação não é um "bloco" homogêneo. Dentro desta generalização que estamos chamando de Arte/Educação há várias tendências e metodologias do ensino da arte, sem contar com as singularidades de cada arte/educador.
  • 13
    . ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 1.
  • 14
    . Idem, p. IX.
  • 15
    . Idem, p. 94-95
  • 16
    . DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010
  • 17
    . LANIER, Vincent. Devolvendo a arte à arte-educação. In: BARBOSA, Ana Mae (org). Arte/Educação: leituras no subsolo. São Paulo, 1989, p. 45.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2013
  • Aceito
    10 Mar 2014
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