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Falsa interface como recurso poético na obra interativa

False interface as poetic resort in interactive artwork

Resumo

O conceito de "falsa interface" nasce da observação e produção de instalações interativas mediadas pela tecnologia digital. A "falsa interface" não é uma interface tecnológica que permite ao público a interação com um sistema digital, mas é um recurso poético, geralmente um aparato ou objeto artesanal com o qual o público interage com a obra de arte, que é um sistema. A "falsa interface" apresenta uma relação física, uma conexão com uma interface tecnológica. O público se relaciona ludicamente com a falsa interface e a interface tecnológica passa despercebida, em segundo plano, embora seja ela que capte e envie para o sistema a atuação do público.

palavras-chave:
interface; poética; interatividade

Abstract

The concept of "false interface" is born of the observation and production of interactive installations mediated by digital technology. The "false interface" is not a technological interface that allows the public to interact with a digital system, but it is a poetic resource, generally an apparatus or craft object with which the public interacts with the artwork, which is a system. The "false interface" presents a physical relationship, a connection with the technological interface. The playfull audience relates with the false interface and technological interface goes unnoticed in the background, although it captures and send it to the system the public performance.

keywords:
interface; poetics; interactivity


Introdução

No contexto artístico as instalações interativas e objetos interativos presenciais solicitam a participação do público através de sua presença física e de alguma ação frente a uma dada situação colocada pelo artista, que é o autor da obra, o propositor intelectual da experiência.

A tecnologia digital permitiu um tipo de interatividade na qual a obra se atualiza e modifica sua estrutura (imagética, sonora ou outra qualquer) de acordo com algum tipo de interação com o público. A obra não existe sem a presença do público, que faz parte do sistema-obra e cuja presença e forma de participação é pensada no processo de criação da obra pelo artista.

As interações e interfaces mais comerciais que já fazem parte do nosso cotidiano, tal como apertar um teclado ou clicar o mouse enviando uma tarefa para o computador, são exploradas, no campo artístico, nos seus limites de seu potencial. Essas possibilidades limítrofes são investigadas pelos artistas no contexto da arte-tecnologia, em conjunto com outros conceitos que a arte interativa abrange, dentro de uma visão sistêmica, como busca de materialização de uma idéia poética. Ao mesmo tempo, as interfaces vão se tornando cada vez mais invisíveis, no sentido do usuário não precisar de um conhecimento prévio para utilizá-la, podendo apenas usar os movimentos corporais, a voz ou o olhar.

Com a tecnologia digital existente, podemos captar informações do meio ambiente, do corpo humano e de outros elementos através de diversos tipos de "sensores" que de certa maneira materializam as manifestações físicas desses elementos. Podemos captar do meio ambiente a temperatura, a umidade, a direção e velocidade do vento, a luminosidade, os sons, as ondas eletromagnéticas etc. Assim como podemos captar do ser humano, o peso, a altura, os batimentos cardíacos, as ondas alfa do cérebro etc. As plantas podem "dizer" se precisam de água ou luz, através de sensores conectados à terra ou às raízes. Essas situações permitem uma ampliação para outras dimensões de diálogo com a natureza. Nesse diálogo com o meio ambiente, vamos construindo um sistema de comunicação, onde tudo está interligado e se manifestando. A computação pervasiva ou "computação ubíqua" (termo definido por Mark Weiser, em 1988), a "internet das coisas" (termo cunhado por Kevin Ashton, em 1999) e outros termos dizem respeito a esse fenômeno. A tecnologia está "sumindo", tornando-se "invisível" e penetrando nas coisas, e certamente com o desenvolvimento da nanotecnologia isso acontecerá com grande velocidade e impacto.

A arte interativa está dentro do contexto de uma visão sistêmica, é manifestação dessa visão. Ela relaciona eventos, ações, ambientes e corpos como um sistema formado por vários subsistemas, que são utilizados pelos artistas como fonte para pensar suas poéticas. A arte interativa precisa ser vista e pensada nesse contexto dos processos e sistemas.

O mundo animal, vegetal, mineral e tecnológico estão conectados e dialogando através de uma linguagem traduzida pela tecnologia digital para a compreensão do ser humano.

Embora todos esses aparatos tecnológicos permitam construir uma nova realidade, os artistas, como sempre, subvertem as funções primárias para que os aparatos foram construídos, utilizando outras possibilidades existentes neles.

Vilém Flusser declara a necessidade do artista explorar a caixa preta que é o aparato tecnológico:

O fotógrafo manipula o aparelho, o apalpa, olha para dentro e através dele, afim de descobrir sempre novas potencialidades. Seu interesse está concentrado no aparelho e o mundo lá fora só interessa em função do programa. Não está empenhado em modificar o mundo, mas em obrigar o aparelho a revelar suas potencialidades. O fotógrafo não trabalha com o aparelho, mas brinca com ele1

Gilbert Simondon aponta que o objeto técnico possui outras funções para além do que ele foi produzido:

O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que se pode dizer que eleva o grau de tecnicidade, não corresponde a um aumento de automatismo, mas ao fato de que o funcionamento de uma máquina contém certa margem de indeterminação. É esta margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior2

I. Conceito de Falsa Interface

As instalações artísticas interativas têm utilizado os mais variados tipos de interfaces tecnológicas, das mais variadas formas, explorando maneiras do público interagir com o sistema. A interface é apenas um elemento do sistema que, em conjunto com outros elementos, além do público, define a obra. As interfaces tecnológicas são utilizadas diretamente em contato com o público ou intermediadas através de algum elemento, que denominamos aqui de "falsa interface". Esta não é um elemento decorativo ou supérfluo, sendo utilizada das mais variadas formas, sempre adaptada ou até criando a poética da obra. Nesse caso o público se relaciona diretamente com a "falsa interface" e não intencionalmente com a interface tecnológica. A "falsa interface" é a construção de algum elemento físico que se torna o centro de atenção, deixando a interface tecnológica em segundo plano e muitas vezes despercebida (invisível).

Figura 1
Esquema de sistema interativo utilizando uma "falsa interface"

A "falsa interface" atua mapeando as áreas sensíveis no ambiente ou no objeto através de algum recurso, geralmente artesanal com o qual o corpo do público pode atuar ou afetar algum sensor estimulando-o. Ela pode mudar a forma de atuação corporal solicitada pela interface tecnológica, pois as características da "falsa interface" podem ser diferentes, embora estejam relacionadas fisicamente. Podemos ter um sensor que capte o movimento das pessoas e ao mesmo tempo utilizar uma "falsa interface" que estimule a produção de um som com um objeto, porém será o movimento do objeto com a mão do público e não o som que enviará uma informação ao sistema. Mas a produção de som participará da construção poética, embora não seja o definidor da interação tecnológica. Este aspecto é essencial para a o processo criativo do artista.

Abaixo apresentamos um esquema da estrutura de um sistema interativo utilizando uma "falsa interface".

Nessa estrutura a pessoa interage com a "falsa interface" construída pelo artista para criar um centro de atenção, como um convite à interação, embora o input para o sistema não seja enviado por ela e sim pela interface tecnológica que capta a atuação do público. O sistema retorna uma nova situação para a pessoa, que de alguma forma vai ser entendida como consequência da relação dela com a "falsa interface", construindo um significado e uma poética.

II. Exemplos de Falsas Interfaces

Para podermos entender melhor o conceito de "falsa interface" trazemos aqui alguns exemplos.

A instalação de David Rokeby denominada Very Nervous System (http://www.davidrokeby.com/vns.html) participante de mostra realizada no MAC-USP em São Paulo, como parte do evento "Arte no Século XXI" (1995), consistia em uma sala vazia com duas linhas de barbantes esticados de um ponto no meio da sala para os outros dois pontos na parede oposta, na altura do teto, com vários pedaços de barbantes pendurados neles. Para uma obra no contexto da arte-tecnologia ela parecia muito artesanal, por apenas usar barbantes amarrados. Porém, quando o público ultrapassava o espaço delimitado pelo barbante, alguns sons aconteciam. As pessoas ultrapassavam com as mãos, com o pé e entravam no espaço delimitado pelos barbantes, percebendo que seus movimentos produziam sons diferenciados. Aquele espaço delimitado por barbantes ganhava um novo aspecto e significado para a interação do público. Porém, os barbantes não tinham nenhuma função tecnológica, mas sim poética. O que de fato aqueles barbantes estavam fazendo era materializar, delimitar o campo de visão de uma câmera, que formava aquele ângulo, saindo de um ponto da parede onde estava localizada e captando tudo o que acontecia no seu ângulo de visão.

De fato quem enviava a informação para o programa no computador era a câmera e não o barbante, porém a maneira como o barbante estava estruturado no espaço, criando um espaço delimitado, construía uma conexão direta com campo visual e o funcionamento da câmera, que era a interface tecnológica que captava o movimento do público e enviava a informação para um programa, que acionava os diversos sons, relacionados às diversas áreas no campo de visão da câmera.

Outra obra é de André Damião, denominada Crack op-$2.

Encontramos uma clavinova em um canto de uma sala, com nove quadrados brancos, que contém alguns códigos organizados em três linhas de três quadrados no piso, em frente à clavinova.

Quando pisamos em um dos quadrados um som acontece e, à medida que vamos pisando em outros quadrados, outros sons constituem uma composição. Como se fosse um jogo de amarelinhas, o público começa a se movimentar e a produzir uma música. Da mesma forma que a câmera em Rokeby, há uma pequena câmera localizada discretamente, quase imperceptível, no meio da clavinova, que enquadra os nove quadrados na sua área de visão. Mesmo que o público visualize a câmera, ela fica em segundo plano e os quadrados com códigos é que se tornam o elemento com o qual vão "brincar" e interagir com a obra.

Estas são apenas duas obras que tomamos como exemplos para entendermos melhor como a "falsa interface" está presente na obra, mas podemos encontrar várias obras interativas que fazem uso de recursos semelhantes.

Figura 2
Obra Crack_op-$2, 2012, de André Damião.

Considerações Finais

Embora tenhamos ressaltado a importância da "falsa interface" como recurso poético, isso não desmerece ou invalida a utilização direta das interfaces tecnológicas - muito pelo contrário, ela só enriquece a diversidade de formas de pensamento que a arte provoca. Talvez a maioria da obras interativas faça mais o uso direto das interfaces na interação com o público do que intermediado através de algum outro recurso, mas nesses casos também o vazio do espaço entre o público e a interface tem um significado.

A utilização de diversos tipos de interfaces das mais variadas formas e nos mais diferenciados contextos, é que possibilita a existência do universo da arte interativa, em busca da concretização de novas possibilidades de interações num mundo onde a visão sistêmica se concretiza cada vez mais.

O que a arte-tecnologia tem feito é explorar ao máximo as possibilidades criativas no uso das tecnologias, extraindo o existente nelas, e nesse sentido não há normas e nem verdades, apenas há uma diversidade de visões que enriquecem a capacidade criativa humana.

Bibliografia complementar

  • 4
    Tiago Mestre, detalhe de From your window (original a cores), 2011.
  • 1
    . FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985, p. 15..
  • 2
    . SIMONDON, Gilbert. Du mode d'existence des objets techniques. Paris: Aubier-Montaigne, 1969, p. 11..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2014
  • Aceito
    04 Dez 2014
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