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Bom dia, Varsóvia1 1 . Este texto foi concebido em conjunto com a exposição Amor e ódio a Lygia Clark / Love and Hate to Lygia Clark, na Zacheta Gallery, Varsóvia, mas permanecia inédito até o momento.

Good Morning, Warsaw

Resumo

Este texto foi concebido em conjunto com a exposição Amor e ódio a Lygia Clark / Love and Hate to Lygia Clark, na Zachęta Gallery, Varsóvia (13/12/2013 - 23/02/2014), mas permanecia inédito até o momento. Nerefuh e Maier refletem sobre a explosão de exposições de arte contemporânea com tema brasileiro no mundo todo durante as primeiras duas décadas do século XXI.

palavras-chave:
exposições de arte contemporânea com tema brasileiro no mundo todo; arte brasileira como produto de exportação e como marca; crítica institucional; relações culturais entre Polônia e Brasil

Abstract

This short text was originally prepared for the exhibition "Amor e ódio á Lygia Clark / Love and Hate to Lygia Clark", at Zachęta National gallery of Art, Warsaw (13/12/2013 - 23/2/2014), yet remained unpublished to date. Nerefuh and Maier reflect upon the surge of Brazil themed exhibitions of contemporary art worldwide during the first two decades of the 21st century.

keywords:
Brazil themed exhibitions of contemporary art worldwide; Brazilian art as export product and branding; institutional critique; cultural relations between Poland and Brazil


I

Estamos pensando no Brasil (e na Polônia) enquanto um violonista toca uma música escrita em 1991 pelos Scorpions, The wind of change [Os ventos da mudança], na Praça do Patriarca, uma praça pública em pleno centro de São Paulo. Para mim (Tobi Maier, imigrante alemão no Brasil), é surreal ouvir uma música que, de algum modo, conecta-se à queda do Muro de Berlim e evoca imagens dos cidadãos da RDA vestidos com jaquetas jeans estonadas, ébrios de alegria. As lembranças se confundem.

Ao contrário das regiões mais abastadas da cidade, nas quais a própria noção de espaço público foi completamente sequestrada pelo ideal da comunidade murada, o centro de São Paulo ainda ostenta algumas áreas e praças públicas sobreviventes, como a Praça do Patriarca, onde estamos no momento. Um grupo peruano de sopros toca ao lado de um palhaço que dança e acompanha nas castanholas uma canção de Elvis Presley; um desabrigado louva a Jesus diante de uma igreja; e alguém defende aos brados os direitos dos negros no Brasil. Nos últimos tempos, a prefeitura, adjacente à praça, tem enfrentado protestos quase todos os dias. Dentre as numerosas reivindicações, os vendedores ambulantes de cachorro-quente recentemente manifestaram em prol de seus direitos comerciais em uma van que distribuía hot-dog grátis . A esfera pública é transformada diariamente em palco dramático.

Ressoam com The wind of change os protestos dos professores nas ruas do Rio de Janeiro; os protestos contra o aumento de preço do transporte público em São Paulo; os protestos contra a venda dos campos petrolíferos brasileiros; contra a violência rural, urbana e suburbana; contra os gastos com campeonatos mundiais de futebol e as Olimpíadas e o deslocamento de comunidades indígenas devido a projetos de construção; contra a corrupção e a enorme burocracia que tanto entravou a vida pública; a falência dos projetos de mineração e construção imobiliária do homem outrora detentor da maior fortuna do Brasil, Eike Batista. Os ventos da mudança e o desejo por um novo projeto nacional são palpáveis.

II

Nos anos 1920, novos imigrantes oriundos da Europa Ocidental e Oriental chegavam ao Brasil, estimulados pela nova riqueza gerada pela comercialização e industrialização do café. Em São Paulo, automóveis e charutos suscitaram novos hábitos modernos em uma sociedade fundada no agronegócio. A Semana de Arte Moderna de 1922, organizada por Emiliano di Cavalcanti e Mário de Andrade, trouxe exposições, concertos e poesia ao Teatro Municipal e estabeleceu a cidade como sede do novo movimento modernista nas artes. Em 1926, Gregori Warchavchik, arquiteto imigrante de Odessa, construiu a primeira casa modernista em São Paulo. Em 1928, o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade convidava a "devorar nosso colonizador de maneira a nos apropriar de suas virtudes e poderes e transformar o tabu em totem". Embora a própria noção de identidade nacional tenha como base, historicamente, a hibridização - europeus brancos, africanos negros e americanos indígenas, designados como as três matrizes da cultura brasileira - o discurso sociocultural hegemônico desenvolveu-se na direção de um Brasil Euro-Brasileiro (como o denomina a artista Maria Alves), no qual a maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria, continua a ser excluída, e os direitos dos povos indígenas e outras "minorias" silenciados.

Atualmente, nativos de países vizinhos da América Latina, como a Bolívia e o Peru, bem como espanhóis e outros europeus (que sofrem os efeitos da crise global) e africanos subsaarianos estão desembarcando no país, sobretudo em São Paulo, em busca de seu quinhão na nova opulência do Brasil, de modo que, mais uma vez, a face pública da cidade está se tornando mais multicultural.

III

Diante desse pano de fundo e concomitantemente a uma economia que parece estar em pleno crescimento, uma série de exposições de arte contemporânea com tema brasileiro vem pululando em diferentes partes do mundo. A história recente das exposições internacionais com tema inspirado no Brasil inclui Brazil: body and soul no Guggenheim de Nova York, que ocorreu em 2001/2002 e apresentou "Obras-primas barrocas dos séculos XVII e XVIII, junto com obras excepcionais da arte moderna e contemporânea" e incluía uma "justaposição de trabalhos importantes de artistas indígenas, afro-brasileiros e europeus estabelecidos no Brasil". Dois anos depois veio Entre Pindorama no Künstlerhaus de Stuttgart. Ao passo que Entre "nos convida a entrar - a conhecer e discutir a arte brasileira", Pindorama define "a terra das palmeiras - lar da população nativa do Brasil". Inspirada nas ideias de uma corrente da arte moderna brasileira - a Antropofagia , uma visão de renovação cultural - a exposição "defendia uma forma de contato positiva e empática com o Outro". Dois anos mais tarde tivemos Tropicália , que foi levada ao Museu de Arte Contemporânea de Chicago, ao Museu de Artes do Bronx em Nova York e ao Barbican de Londres (2006), tendo como base um movimento cultural multidisciplinar que surgira durante a era da ditadura militar. De acordo com a assessoria de imprensa, "O movimento da Tropicália foi uma resposta apaixonada e inteligentemente articulada à ditadura militar, a declaração contracultural definitiva - uma verdadeira revolução que redefiniu as artes no Brasil e remodelou a identidade brasileira. Ela representaria uma breve explosão de transformação e agitação cultural, estendendo-se por um período de menos de cinco anos, de 1967 a 1972".

E atualmente podemos visitar diversas outras exposições (coletivas) com tema brasileiro durante a apresentação brasileira na Feira do Livro de Frankfurt; além de: Conversation pieces (Neuer Berliner Kunstverein, Berlim), Imagine Brazil (Museu de Arte Moderna Astrup Fearnley, Oslo), Cruzamentos: contemporary art in Brazil (Wexner Center for the Arts, Columbus, Ohio) e, é claro, Amor e ódio a Lygia Clark / Love and hate to Lygia Clark (Zachęta, Varsóvia).

É notável que todas essas exposições estejam ocorrendo durante este segundo semestre de 2013 e primeiro semestre de 2014. Parece haver um repentino aumento de interesse internacional na produção de arte contemporânea no Brasil, especialmente pelos jovens artistas. Esse fenômeno diz muito sobre o discurso atual que vem sendo promovido no país - uma ênfase na florescente produção artística brasileira que anda de mãos dadas com a especulação de um novo mercado de colecionadores, galerias, museus, artistas, leilões e feiras. Os mecanismos que operam na produção de arte com tema brasileiro (no Brasil como no exterior) parecem criar e promover a ideia de uma arte nacional. Ao mesmo tempo, o capital global que se embrenha no país segue a lógica neoliberal da especulação: explorar as novas fontes de riqueza enquanto elas durarem, passando em seguida a outra coisa (Índia, México, Brasil, China, Rússia). E em certa medida sentimos que essas exposições funcionam como um espelho para a situação conservadora do mundo da arte nas principais capitais do Brasil. Todas essas exposições apresentam poucas artistas mulheres, pouquíssimos negros e quase nenhum indígena, raríssimos ou nenhum artista brasileiro que viva fora do Brasil ou que trabalhe em contextos externos às principais capitais artísticas do país.

Nessa trajetória de especulação, a estética do modernismo brasileiro emerge como uma moeda internacional que conecta o país a um discurso e uma história da arte globais.

O atual interesse em apresentar e representar o "Brasil Moderno" internacionalmente vem atraindo jovens artistas brasileiros, bem como dezenas de artistas e curadores internacionais: enquanto alguns negociam seu trabalho com esse legado, outros sentem que devem fazê-lo porque o caminho já está traçado. Nesse sentido, o grande projeto moderno de delinear um novo futuro para o país pode ser rapidamente transformado em uma dupla apreensão neocolonial do país - tanto pela elite nacional quanto pelo capital internacional. Assim, paradoxalmente, os horizontes utópicos de uma civilização alternativa (ou seja, um Brasil Moderno híbrido e complexo) retraem-se enormemente diante desse novo ímpeto de um "Brasil Moderno" para exportação.

IV

Na Zachęta, o público terá a chance de se envolver com uma cuidadosa seleção de obras de arte, projetos especialmente encomendados e performances ao vivo que buscam refletir de forma crítica sobre esse paradoxo do "Brasil Moderno" contemporâneo, além de apresentar novas narrativas alternativas - de releituras do legado colonial à música funk contemporânea.

A Polônia e o Brasil estão culturalmente conectados através de uma história de imigração polonesa para o Brasil (no século XIX), um intenso intercâmbio de arte conceitual e redes de arte postal durante o socialismo e a ditadura militar (no século XX) e as analogias que existem dentro da tradição construtivista entre artistas de ambos os países. Esperamos que esta exposição possa contribuir para a renovação do diálogo entre os dois países e que o público da Zachęta seja capaz de traçar novos paralelos, levando em conta as deficiências, mas também as novas possibilidades inerentes ao projeto moderno e contemporâneo, tanto na vida sociocultural brasileira quanto na polonesa.


  • 4
    Leandro Nerefuh, Caverna de Umbelina, 2015.
  • 5
    Daniel Steegmann Mangrané, Axolotlism na NoguerasBlanchard em Madrid, 2015.
  • 1
    . Este texto foi concebido em conjunto com a exposição Amor e ódio a Lygia Clark / Love and Hate to Lygia Clark, na Zacheta Gallery, Varsóvia, mas permanecia inédito até o momento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2014
  • Aceito
    26 Jan 2015
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