Acessibilidade / Reportar erro

Nas asas da mariposa: a ciência e a fotografia de José Oiticica Filho1 1 . Este trabalho foi desenvolvido a partir de pesquisa pós-doutoral realizada em 2014 e 2015 no Instituto de História da Arte, Freie Universität, Berlin, com bolsa outorgada pela CAPES.

On the wings of moths: José Oiticica Filho's science and photography

Resumo

A partir da segunda metade dos anos 1940 e, principalmente, na década de 1950, a fotografia brasileira modernizou-se, inicialmente a partir dos circuitos fotoclubistas, destacando-se o Foto Cine Clube Bandeirantes em São Paulo e, em seguida, inserindo-se no contexto dos movimentos de vanguardas construtivistas brasileiros. Nesse cenário, sobressai-se a obra do entomólogo e fotógrafo José Oiticica Filho (1906-1964). Aqui é analisada sua produção fotográfica, contemplando a relação com suas pesquisas e métodos científicos e a aproximação com os movimentos concreto e neoconcreto. É apontada, também, a aproximação de sua obra com a fotografia alemã após a Segunda Guerra Mundial, em particular os grupos fotoform e subjektive fotografie.

palavras-chave:
fotografia moderna brasileira; vanguardas modernas brasileiras; José Oiticica Filho; JOF; fotografia alemã; Fotoform; Subjektive fotografie

Abstract

From the second half of the 1940s and more so in the 1950s, Brazilian photography renewed itself, initially within the photoclub circuits, in particular the Foto Cine Clube Bandeirantes in São Paulo, and later in the context of Brazilian constructivist movements. In this scenario, stands out the work of entomologist and photographer José Oiticica Filho (1906-1964). Analyzed here is his photographic production, its close relationship to his scientific research and methods as well as his encounter with the Brazilian Concrete and Neoconcrete Movements. Addressed also is the proximity of his work to the post-second World War German photography, particularly the fotoform and subjektive fotografie groups.

keywords:
Brazilian modern photography; José Oiticica Filho; JOF; Brazilian modern avant-gardes; German photography; Fotoform; Subjektive fotografie


1. Ciência, arte e fotografia

Ars sine scientia nihil est.

Jean Mignot, arquiteto francês, século XIV

Desde a antiguidade, a ciência e a arte ocidentais se relacionam de formas diversas. A investigação científica propiciou inúmeros avanços em processos, técnicas, materiais, no fazer e no pensar artísticos. As catedrais góticas, por exemplo, foram erguidas a partir do aprofundamento no conhecimento da matemática e da física. Da química dos pigmentos e das misturas de líquidos, surgiu a tinta à base de óleo, inventada em Flandres no século XV e que, aliada à geometria da perspectiva na Itália, ampliou os horizontes da pintura e abriu janelas ilusórias para o mundo. A partir daí, a arte incorporou a compreensão de processos óticos e o próprio sentido da visão, levando à criação de dispositivos, como a câmera escura desenvolvida no século XVI e que, no século XIX, apropriou-se da química para se transformar no aparelho capaz de produzir imagens técnicas e reprodutíveis2 2 . Cf. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. . No final daquele século, a eletricidade possibilitou a invenção de máquinas que pudessem projetar imagens em movimento.

A relação entre ciência e arte consolidou-se nos movimentos das vanguardas modernas do início do século XX. A arte incorporou as novas invenções e descobertas científicas, bem como os inúmeros desdobramentos e alargamentos do conhecimento. Enquanto, por exemplo, os futuristas idealizavam as máquinas e a tecnologia, os dadaístas experimentavam com o cinema e com os novos processos e técnicas fotográficas. Suprematistas e construtivistas aprofundaram-se em questões mais amplas, buscando, entre outras, a integração funcional da arte na sociedade3 3 . Cf. PEDROSA, Mario. Ciência e Arte, vasos comunicantes (1960). In: FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006, p. 51, referindo-se às novas teorias do conhecimento que surgiram no século XX para explicar a complexidade crescente da realidade exterior, essas "estranhas concepções objetivadas da visão científica atualizada": "Cubistas e futuristas, expressionistas e pós-impressionistas, Klee, Mondrian, Kandinsky, Malevitch, Moholy-Nagy, Doesburg, Arp, Pevsner, suprematistas, vorticistas, raionistas, neoplasticistas, construtivistas, abstracionistas, expressionistas, todos recorrem com maior ou menor propriedade a essas noções para explicar as concepções que os movem". . A arte do novo século não deveria mais voltar-se para a objetividade do mundo, mas para uma representação que Kasimir Malevich propôs como aquela que "pudesse propiciar a mais completa expressão possível de sentimento e que ignorasse a aparência familiar dos objetos"4 4 . MALEVICH, Kasimir. Suprematism (1927) In: HERBERT, Robert L. Modern Artists On Art. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1964, p. 94. . Os avanços científicos e as transformações políticas, econômicas e sociais daquele período levaram o construtivista Naum Gabo a refletir sobre a relação entre arte e ciência, sugerindo que

os processos criativos no âmbito da Arte [fossem] tão soberanos quanto os processos criativos na Ciência. Muitos teóricos da Arte não percebem que o mesmo estado espiritual impulsiona a atividade artística e a científica, ao mesmo tempo e na mesma direção5 5 . GABO, Naum. The Constructive Idea in Art (1937). In: HERBERT, Robert L. Op. cit., p. 105. .

Ciência, arte e as rápidas transformações do mundo moderno influenciaram sobremaneira a fotografia, expandindo suas possibilidades como meio de registro e de expressão artística. O americano Alvin Langdon Coburn foi um dos primeiros artistas a refletir sobre o estatuto da fotografia e inseri-la no contexto das vanguardas abstratas6 6 . Em 1916, Coburn criou um instrumento ótico semelhante a um caleidoscópio para ser acoplado à frente da lente de uma câmera. Na apresentação de sua obra numa exposição em Londres, o poeta Ezra Pound denominou o aparelho Vortoscope e as imagens resultantes Vortograph. Tanto o nome do aparelho, como das imagens são referências ao Vorticismo, movimento britânico de vanguarda entre 1914 e 1918. . Referindo-se a contemporâneos seus como Henri Matisse, Igor Stravinsky e Gertrude Stein, em um artigo publicado na revista inglesa "Photograms of the year", Coburn clamava por um "espírito de nosso tempo" também na fotografia:

[...] eles estão se empenhando em se aproximar do futuro, analisando a estrutura bolorenta do passado, reconstruindo em cores, sons e estrutura gramatical a cintilante visão de suas mentes. E, como a fotografia me interessa, pergunto-me por que não poderia a câmera também descartar os grilhões da representação convencional e buscar algo novo e ainda não experimentado? [...] Pense na alegria de realizar algo impossível de ser classificado, ou de não distinguir o que é acima do que é abaixo!7 7 . COBURN, Alvin Langdon. The future of pictorial photography. In: MORTIMER, F. J. (ed.). Photograms of the year. London: Hazell, Watson & Viney, 1916, p. 23.

O manuseio do equipamento fotográfico e a prática de seus processos já haviam se tornado relativamente simples e baratos, possibilitando sua massificação paralelamente à evolução técnica. Câmeras melhores e menores eram acessíveis a um grande número de pessoas, tanto amadores como profissionais e artistas. Acrescenta-se, ainda, sua inclusão nos currículos de universidades técnicas e escolas de artes, destacando-se aqui a Bauhaus em Weimar e em Dessau. Em 1929, o fotógrafo e historiador da arte Franz Roh, escreveu no texto de apresentação de seu livro "Foto-Auge: 76 fotos der Zeit"8, intitulado "Mecanismo e expressão: a essência e o valor da fotografia" que, "somente quando os meios técnicos forem tão simples que todos poderão aprender a utiliza-los, eles serão como um teclado que possibilitará a expressão de muitos". Afirmava, ainda, que, muito mais do que uma mera cópia da natureza, uma boa fotografia, como qualquer outra obra de arte, deveria basear-se nos "princípios de organização e de individualidade"9.

Classificadas em cinco categorias, Roh exalta aquelas imagens que fazem uso de procedimentos inovadores e radicais, como as fotomontagens e os fotogramas: "O fotograma paira de forma empolgante entre o traçado geométrico e o eco de objetos. Nessa tensão há, por vezes, um charme peculiar"10. Inúmeros artistas vislumbraram novas possibilidades de expressão no fotograma cuja prática evoluiu para uma produção sofisticada, incorporando métodos empíricos bem como a tentativa e o erro. Ressalta-se que nessa época evoluiu ainda a fotografia a serviço da ciência, desenvolvendo-se técnicas como radiografia, fotografia astronômica e microfotografia, tornando visíveis objetos e estruturas que, sem o auxílio de aparatos, não poderiam ser observadas. Essas imagens, essencialmente científicas e funcionais, acabam proporcionando também abstrações do mundo real criando, assim, novas e autônomas configurações visuais11.

Foi registrando através de uma câmera acoplada ao microscópio "as formas maravilhosas do microcosmo"12, que o entomólogo José Oiticica Filho13, especialista na ordem Lepidoptera de insetos (borboletas e mariposas), tornou-se também fotógrafo. A fotografia de um detalhe anatômico de um inseto realizada no laboratório de biologia desdobra-se da objetividade do conhecimento científico à subjetividade da expressão artística. Por outro lado, o registro microscópico, retrabalhado no laboratório fotográfico, transcende a ciência e resulta em novas configurações imagéticas, abstratas e desconectadas de seus referentes iniciais. Em ambas as instâncias, evidenciam-se o rigor do método científico e a invenção, características marcantes da obra de JOF [fig. 1 e 2].

Figura 1:
José Oiticica Filho, Genitália de Citheronia mogya, s.d. Microfotografia premiada em 1952 com a Medalha de Ouro do Foto Cine Clube Bandeirante. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 2:
José Oiticica Filho, Derivação 2A-5, 1958. Impressão Fine Art a jato de tinta, 41,70 x 34,30 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

2. JOF: cientista sistemata, fotógrafo inventor

Em 1949, quando Oiticica foi para Washington trabalhar no United States National Museum-Smithsonian Institution, com uma bolsa da Fundação Guggenheim, já acumulara larga experiência científica e fotográfica: era pesquisador do Museu Nacional; publicara inúmeros artigos sobre entomologia e matemática; participava ativamente das associações fotográficas no Brasil e no exterior; e dominava com maestria as técnicas e os processos da fotografia14. Ao solicitar a renovação da bolsa, em seu relatório de 24/3/1949 destacou a importância de dispositivos óticos e da microfotografia para sua pesquisa:

Foi extremamente importante para mim e para o meu trabalho ter a possibilidade de registrar meus preparos e os insetos estudados. Para os preparos, comecei fazendo desenhos com uma câmera lucida15 que trouxe comigo do Brasil. Foram realizados 104 desenhos. Depois de um certo tempo, no entanto, me dei conta de que não estava progredindo com a rapidez desejada e que não poderia estudar todo o material que planejara para o primeiro ano de vigência da bolsa. Havia, ainda, o problema do cansaço do olho, decorrente de um trabalho demorado e extenuante. Adaptei para microfotografia uma câmera de médio formato que havia comprado aqui em Washington e estou usando três lentes micro que trouxe comigo do Brasil. Após esse período de adaptação, comecei fazendo fotografias de meus preparos, com o auxílio do bom conhecimento que tenho do processo fotográfico.

Todos os negativos foram revelados por mim, à noite, após meu trabalho no Museu. Algumas ampliações foram feitas, com dois objetivos: como apoio para futuros desenhos e para serem incluídas como ilustrações em meus próximos artigos.

Todos os negativos e ampliações precisaram ser classificados e numerados. Cada negativo tem um número diferente e todos são mantidos em envelopes distintos numerados e com todos os dados necessários. Foram realizados até agora 481 negativos.

Destacam-se aqui alguns dos métodos e das características do trabalho de Oiticica, tanto na biologia como na fotografia: sua obstinação em obter resultados com a melhor qualidade possível, a busca por novos processos e a classificação de tudo que produzia, como um sistemata ou taxonomista, cujo trabalho é descrever detalhadamente as características que distinguem os indivíduos e, assim, nomear as espécies. Esses atributos foram desenvolvidos no Museu Nacional e no Smithsonian Institution em Washington.

Foi no circuito fotoclubista, no entanto, que desenvolveu sua arte fotográfica. Durante a década de 1940 e no início dos anos 1950, participou ativamente das associações de amadores no Brasil16 e no exterior, trocando informações sobre a técnica e a estética, além de fazer circular e dar visibilidade à sua obra fotográfica. Foi ali que aprimorou o olhar, inicialmente aliando-se a um pictorialismo tardio ainda vigente e que, mais tarde, seria por ele revisto. Dialogava com a produção de inúmeros outros fotógrafos, tanto amadores como profissionais, que se utilizavam de recursos formais e técnicos como superposição de texturas, contraluzes, linhas geométricas, solarizações, fotomontagens, entre outros. Essa abordagem estava em sintonia com a produção internacional que valorizava a técnica fotográfica e "reivindicava ao extremo a especificidade mecânica da fotografia com a construção de novas visibilidades"17. Acrescenta-se, ainda, que Oiticica mantinha-se atualizado em relação à produção brasileira e internacional, tendo estabelecido uma sólida rede de informações através de extensa troca de cartas. Adquiria, também, muitos livros e revistas para sua biblioteca e visitava exposições de arte no Rio de Janeiro e em São Paulo, sempre levando consigo seus três filhos.

Sua produção pictorialista é marcada por fotografias que tiveram grande visibilidade e aceitação nos circuitos foto-clubistas brasileiro e internacional. A fotografia "O Kioske" (1945), por exemplo, foi exibida em 145 salões e publicada em inúmeras revistas e boletins. Aqui, a luz domina de forma dramática a paisagem bucólica, reconfigurada no laboratório por processos químicos. Em carta de 6/2/1947 à revista Iris, após detalhada descrição dos procedimentos técnicos utilizados para realiza-la, ele acrescentou suas preocupações estéticas: "O kiosque foi tirado logo após a neblina matinal ter sido desfeita. Notando a bela iluminação dos raios solares rasantes procurei uma boa composição e assim nasceu a fotografia mencionada" [fig. 3].

Figura 3:
José Oiticica Filho, O Kiosque, 1945. Impressão Fine Art a jato de tinta, 38,4 x 39,4 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Já "O Túnel" (1951) foi pensada para ser construída e se materializar no laboratório a partir da superposição e manipulação de dois negativos. Em carta de 16/12/1952 à revista holandesa Focus, relatou que, quando voltava de uma viagem de trem de São Paulo, sentado no último vagão, como sempre o fazia, à procura de boas imagens, viu "(...) os reflexos nos trilhos e (teve) a ideia de que uma fotografia original e artística poderia sair dali (...)". Deu-se conta, no entanto, de que a entrada do túnel ou o fundo não tinham a "qualidade pictórica de uma obra criativa". Buscou no seu arquivo a imagem que completaria a fotografia: um detalhe de uma outra foto sua, "Manhã Mística", realizada em 1945, na mesma ocasião de "O Kiosque", sobre a qual realçou a lápis branco o sol encoberto pela neblina [fig. 4].

Figura 4, 5 e 6
José Oiticica Filho, O Túnel, 1951. Impressão Fine Art a jato de tinta, 36,6 x 30,1 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.José Oiticica Filho, O Negativo, 1951. Impressão Fine Art a jato de tinta, 39,7 x 31,1 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica. José Oiticica Filho, Borboleta, 1954. Impressão Fine Art a jato de tinta, 40 x 31,7 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

"O Negativo" (1951) e "Borboleta" (1954) referenciam suas múltiplas atividades como artista/fotógrafo e cientista/entomólogo. Aqui, são tematizados os objetos de suas pesquisas e práticas - o negativo fotográfico e o inseto - dialogando metalinguisticamente entre si, entre eles próprios e seu criador. A borboleta e a pupa repousam sobre um galho, enquanto que o negativo foi pendurado numa corda. Ambos se destacam sobre um fundo iluminado ressaltando-lhes as formas e a transparência. Borboletas e mariposas são holometábolas, ou seja, passam por um processo completo de metamorfose. A fotografia também é metamórfica: da luz que incide sobre a película fotossensível, surge um negativo que, por sua vez, no laboratório, transforma-se numa imagem positiva impressa sobre o papel [fig. 5 e 6].

Em 1954, Oiticica realizou as primeiras experiências que o levariam mais adiante a se distanciar da fotografia pictórica em direção a obras abstratas, pensadas e construídas no laboratório, muitas das quais sem câmera. Sua "Composição Óbvia", daquele ano, exemplifica essa transição. A ampliação da fotografia original - seu filho César apoiado no corrimão de uma escada - foi retocada com tinta para eliminar os meios-tons e todas as referências ao espaço físico. A nova imagem realizada através dessa intervenção pictórica foi então reproduzida e ampliada, resultando na fotografia imaginada pelo artista. Frágeis referentes do real, ainda permanecem a figura humana planificada e as linhas brancas que contratam com o fundo preto e avançam geometricamente para as margens da fotografia. [fig. 10 e 11].

Figura 7:
José Oiticica Filho, Composição óbvia, 1954. Impressão gelatina com retoque a tinta, 40 x 29,9 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 8:
Oiticica Filho, Composição óbvia, 1954. Impressão Fine Art a jato de tinta, 40 x 29,9 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 9:
José Oiticica Filho, Forma 18B, 1956. Impressão Fine Art a jato de tinta, 41,6 x 32,7 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 10:
José Oiticica Filho, Forma D11, 1958. Impressão Fine Art a jato de tinta, 42,9 x 35,6 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 11:
Geraldo de Barros, Fotoforma, c. 1950. Impressão gelatina de prata (fotograma), 30,5 x 31,0 cm. Acervo Geraldo de Barros/Coleção Instituto Moreira Salles.

Na série Formas (1954-1958), a abstração ainda se apresenta a partir do objeto fotografado. Nessas imagens o fotógrafo trabalha a partir de suas próprias criações, como pinturas, colagens, transparências em papel celofane e intervenções com vidro corrugado. Forma 18B (1956), por exemplo, iniciou-se com uma composição de papel celofane que, colocada sobre o papel fotográfico à maneira de um fotograma, delineou as formas geométricas em preto e branco. O fundo cinza se dá pela passagem de luz pelo celofane de cor alaranjada. Sobre essa estrutura foi colocada uma chapa de vidro corrugado; a exposição de toda essa estrutura à luz, filtrada e refratada pelo vidro, produz uma impressão em positivo onde as rigorosas formas geométricas são diluídas, texturizadas, perdem seus contornos e desmancham-se no fundo que, propositalmente, confunde-se com a superfície [fig. 12].

Figura 12:
Hélio Oiticica, Metaesquema, 1958. Gouache sobre cartão, 56 x 67 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Uma pintura em tinta preta sobre cartão foi o objeto de Forma D11 (1958). Fotografada com a câmera, gerou um negativo que, por sua vez, foi refotografado com filme de alto contraste Kodalith18. A superposição de três desses novos negativos, com um preciso afastamento entre eles, projetados sobre o papel fotográfico (também de alto contraste) produziu novas formas geométricas. Aqui, já não se distingue mais fundo de superfície, nem positivo de negativo: muitas das fotografias dessa série foram reproduzidas em inúmeras variantes, ora com fundo preto, ora com fundo branco19 [fig. 13].

Figura 13:
José Oiticica Filho, s.t, 1958?. Óleo sobre cartão, 45,8 x 36 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica. (foto Andreas Valentin 2014)

Oiticica incorporou na fotografia a abstração, em particular a geométrica, a partir de seu próprio ambiente familiar. No início de 1954, seus filhos Hélio e César foram matriculados no curso de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna. Ao longo daquele ano, os dois irmãos traziam para casa sua produção das aulas e passaram a frequentar os encontros do Grupo Frente, criado em 1953 por Serpa e formado por seus alunos e ex-alunos, ao qual se juntaram ainda Franz Weissman e Lygia Clark. César Oiticica relata que JOF

foi pouco a pouco se aproximando da arte que nós estávamos fazendo, que o pessoal do Grupo Frente estava fazendo. Era uma arte moderna. Os mais avançados tendiam para uma arte geométrica. Meu pai foi influenciado pelo grupo que seus dois filhos, Hélio e eu, estávamos frequentando nessa época e com os quais também expúnhamos nossas obras. A influência foi sofrida por ele e não ao contrário. [...] Foi o contato com o Grupo Frente que fez com que ele mudasse sua fotografia para algo mais original e muito criativo20.

Após seu retorno de Washington, em julho de 1950, interessou-se cada vez mais pela arte e fotografia modernas. Em 1953, visitou com os filhos a II Bienal de São Paulo, organizada por Mario Pedrosa e que apresentou, entre outras, obras de Klee, Calder, Mondrian e Picasso, além de uma sala de fotografia com trabalhos de membros do Foto Cine Clube Bandeirante. Mesmo não tendo-o frequentado, Oiticica relacionou-se com o Clube de diversas maneiras. Em 1954, realizou ali uma exposição individual e proferiu a palestra "Análise harmônica de um retângulo", na qual explicitou seu conhecimento e interesse pela geometria aplicada ao enquadramento e à composição de pinturas e fotografias. Publicou, ainda, vários artigos no Boletim Foto Cine, incluindo uma resenha do 9o Salão Internacional de Arte Fotográfica, realizado em 1950. Ressalta-se, também, a Medalha de Ouro obtida em 1952 com sua microfotografia "Genitália de Citheronia mogya" [fig. 1].

Desde o final da década de 1940, fotógrafos associados ao Foto Cine Clube Bandeirante, como Thomas Farkas, Germán Lorca, Gertrudes Altschul, Marcel Giró e Geraldo de Barros, já vinham aproximando-se da fotografia moderna. Barros, em particular, teve um papel preponderante nesse processo. Atuante no recém-inaugurado Museu de Arte Moderna de São Paulo, lá se encontrava regularmente com artistas que alguns anos depois formariam o grupo Ruptura, inaugurando o movimento concreto brasileiro. No Museu de Arte de São Paulo, montou junto com Thomas Farkas o laboratório de fotografia e em 1951 realizou sua exposição Fotoformas, com imagens que exploravam as possibilidades da linguagem e da técnica fotográficas. Em pouco mais de dois anos21, produziu uma grande quantidade de fotografias, utilizando recursos diversos, tais como: múltiplas exposições; intervenções sobre negativos e cópias; desfocagens, longos tempos de exposição bem como fotogramas à maneira das "composições de luz"22 de Moholy-Nagy, uma de suas referências ao lado de Man Ray e Brassaï [fig. 11].

A I Exposição Nacional de Arte Concretam foi realizada em dezembro de 1956 no Museu de Arte Moderna de São Paulo e em fevereiro de 1957 no Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Ali evidenciaram-se as duas tendências do concretismo brasileiro, ampliando-se as divergências entre os cariocas e os paulistas, obrigando o grupo do Rio de Janeiro a "tomar uma posição mais definida em face das ideias veiculadas pelo grupo paulista"23. Essa posição foi estabelecida com a publicação em 22 de março de 1959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil do "Manifesto Neoconcreto" por Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissman, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis.

JOF já vinha se relacionando com artistas que, a partir do final da década de 1950, se firmariam como a vanguarda neoconcreta. Como vimos, esse contato iniciou-se em sua casa, onde frequentemente se reuniam24 e Hélio Oiticica avançava nas suas experiências com forma e cor. Entre 1957 e 1958, realizou a série de pinturas a guache sobre cartão, os Metaesquemas. Na mesma época, seu pai produziu desenhos geométricos em óleo sobre cartão, todos em formatos proporcionais ao retângulo fotográfico25 e, portanto, matrizes para fotografias que seriam retrabalhadas no laboratório. As séries se assemelham em sua divisão/desconstrução matemática para se reconfigurar/reconstruir em formas monocromáticas que se movimentam sobre a superfície plana dos papeis - tanto o fotográfico como o cartão. Em muitos dos trabalhos de JOF há cálculos às margens do quadro, indicando como o espaço foi dividido ou, talvez, dissecado, como o entomólogo o fazia para entender a estrutura dos insetos. Nota-se, ainda, que em texto de 1972, Hélio refere-se aos Metaesquemas como uma "obsessiva dissecção do espaço [...] no limite-esvaziamento da representação : não fundam novarte: moldam transformações"26.

Esse rico diálogo entre pai e filho resultou em experiências inovadoras para ambos27. Para Hélio, marcou a transição da ruptura com a superfície plana do quadro para a realização da obra no espaço. Em novembro de 1959, possivelmente ainda refletindo sobre os Metaesquemas, anotou em seu diário que "as formas originárias vêm do incomensurável infinito e geram todas as outras. São estáticas, pois as estáticas possuem mais força. São simétricas e transcendem a tudo que se pode imaginar"28. Nesse período, quando já havia realizado os Monocromáticos da série Invenções e os , em 4 setembro de 1960, escreveu que

091;...] a quebra do retângulo do quadro ou de qualquer forma regular (triângulo, círculo etc.) é a vontade de dar uma dimensão ilimitada à obra, dimensão infinita. A quebra, longe de ser algo superficial, quebra da forma geométrica em si, é uma transformação estrutural, a obra passa a se fazer no espaço, mantendo a coerência interna dos seus elementos, organímicos em sua relação, sinais para si29.

Mesmo JOF não tendo rompido com o retângulo fotográfico, como Geraldo de Barros o fez em algumas de suas fotografias, há em suas obras desse período também uma vontade de infinidade do espaço, nas linhas e retângulos pretos e brancos que se multiplicam e se desdobram. Um "avesso em vez de resultado", como Hélio concluiu no referido texto sobre sobre os Metaesquemas [fig. 12, 13 e 14].

Figura 14:
José Oiticica Filho, Forma D1, 1958. Impressão Fine Art a jato de tinta, 42,9 x 35,6 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

3. A objetiva subjetiva

JOF era incansável na sua vontade de experimentar, reinventar e interferir no processo fotográfico. Manifestando-se de maneiras diferentes nos diversos momentos de sua trajetória, sua experimentação aproximava-se das práticas neoconcretas30 e, assim, pode ser entendida também como experiência. Já em 1955, em texto publicado no Informativo da Associação Brasileira de Arte Fotográfica, clamava pela liberdade de experimentar: "Não se prendam ao 'não pode'. Tudo pode ser feito, porém com gosto. Libertem-se um pouco da máquina fotográfica, procurando dominá-la com o cérebro, este instrumento maravilhoso que Deus nos deu". Considerava-se prisioneiro da câmera que, dizia ele, teimava em copiar ao invés de criar. Dessa forma, procurou não apenas dominar a "caixa preta", como também superar os programas do aparelho, de forma que este não mais exercesse poder sobre o fotógrafo31.

Subvertendo a vocação da fotografia como referente do real, negando a lógica do aparelho e do momento decisivo32, aproximava-se daquilo que denominou de "tempo fundamental" da imagem fotográfica. Esse tempo não é medido pela fração de segundo de funcionamento do obturador. Dissipa-se na concreção de uma ideia abstrata que se realiza no laboratório através de processos fotográficos e se expande à recepção e contemplação do observador. Para JOF, "fotografia se faz no laboratório", conforme declarou em entrevista concedida a Ferreira Gullar33. Em meio à sua produção geométrica, realizou ainda a série Derivações (1955-1962) onde imagens capturadas do real, muitas das quais existentes em seu volumoso arquivo de negativos, foram retrabalhadas no laboratório fotográfico resultando em uma nova imagem que pouco ou nada se assemelha à original. Em seu texto "Recriação Fotográfica", escreveu que

091;...] ao tirar uma fotografia o negativo obtido tem potencialmente a propriedade de me dar inúmeras imagens. Depende agora do artista pesquisador o resultado final a atingir.

Ao fazer uma pesquisa visual como acima esquematizei há dois casos a considerar:

1 - A coisa fotografada não é uma criação minha, isto é, é uma coisa já existente, criada por outrem. Exemplos: fotografia de paisagens, de barcos, de naturezas mortas, etc. Neste caso as imagens obtidas por combinações de positivos ou negativos, como esquematizei, acima, são chamadas por mim de derivações fotográficas. Claro que obtenho novas imagens, novas criações, mas partindo de algo que não foi minha criação. Tenho várias derivações fotográficas que me deram interessantes resultados pictóricos. Eis alguns exemplos: derivação da paisagens; a série das paredes de Ouro Preto, série de derivações baseadas em fotomacrografias34.

Fotografias de borboletas, retratos de seus filhos e detalhes de paisagens recebem novos tratamentos laboratoriais - solarização, viragem azul, viragem selênio, alto contraste, entre outros - e, como um lepidóptero, se metamorfoseiam. Já as fotografias de detalhes das paredes descascadas e envelhecidas de Ouro Preto, as Ouropretenses, realizadas em 1955, mostram a ação transformadora do tempo sobre a matéria. O objeto original captado pela câmera foi abstraído e desconstruído, por vezes também através de intervenções químicas no negativo, na revelação do filme ou do papel fotográfico35 [fig. 17].

Figura 15:
José Oiticica Filho, Recriação 38A-64, 1964. Impressão Fine Art a jato de tinta, 42,4 x 35,2 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Figura 16:
José Oiticica Filho, acetato pintado, matriz (negativo) para Recriação, 1958-1964. (foto Andreas Valentin, 2014)

Figura 17:
José Oiticica Filho, Recriação 77/62, 1962. Negativo, positivo e anotações técnicas. (foto Andreas Valentin, 2005)

Com a série Recriações (1958-1964) JOF aprofundou-se nas práticas experimentais e, por isso, talvez seja a mais instigante de sua produção fotográfica. Foi nesse período que manteve contato com os neoconcretos, expôs sua obra em São Paulo e no Rio de Janeiro e dedicou-se também à pintura. Além dos já citados desenhos como matrizes pictóricas para fotografias, realizou em 1963 a série de quadros Pinturas Relevo que utilizavam como suporte placas de madeira sobre as quais foram aplicadas camadas de tinta, massa corrida e tiras.

As fotografias dessa série, todas abstratas, foram elaboradas a partir de formas recortadas e da intervenção através da pintura, colagem e outros procedimentos diretamente no filme, sobre chapas de vidro no formato de negativos e em outros suportes transparentes ou translúcidos, como acetato, papel de desenho e malhas reticuladas36. No texto publicado no Jornal do Brasil, JOF prossegue descrevendo os métodos e motivações de sua obra, contrapondo as Recriações às Derivações:

2 - A coisa fotografada é uma criação minha. É, em geral, uma composição em preto e branco. Neste caso as imagens obtidas por combinações de positivos e negativos transparentes são chamadas por mim de recriações. Torno, então, a criar baseado em criação original e de minha autoria.

Note-se a diferença, bem nítida, entre os dois conceitos de derivação e de recriação. Com ambos posso obter imagens fotográficas em preto e branco, sem cinzas intermediários ou imagens em preto e branco com uma certa escala de cinzas (em geral bem curta) intermediários.

A recriação fotográfica é, ao meu ver, um método interessantíssimo para estudos e pesquisas em artes visuais, sob um ponto de vista geral, e não apenas fotográfico. Com os exemplos que ilustraram a presente reportagem é fácil ver até que ponto um negativo fotográfico contém em si, em estado potencial, um mundo de novas combinações, de novos problemas, não apenas visuais, mas estéticos visuais.

Poder-se-ia dizer, usando uma imagem mecânica, que a coleção original de positivos e negativos transparentes contém energia estética sob forma potencial, energia capaz de ser liberada e assim produzir novas formas e novos aspectos estéticos, mediante as múltiplas e inúmeras combinações das referidas transparências.

Nessa reflexão sobre sua própria produção, Oiticica enfatiza um aspecto fundamental de sua obra: o domínio e o manuseio do processo fotográfico. Coerente com sua trajetória de cientista e artista, ele aproxima a física ("energia potencial") e a matemática ("múltiplas e inúmeras combinações) da arte ("problemas estéticos visuais"). E, apesar de não explicitá-lo, posiciona-se como um artista/fotógrafo concreto37. Num sentido mais amplo, o fotógrafo e pesquisador alemão Gottfried Jäger define a fotografia concreta como "a concretização da fotografia, uma forma de introspecção e autorreflexão artística fundamental que visa valorizar suas próprias condições. Os recursos fotográficos tornam-se, assim, o propósito da fotografia e o meio em si, seu objeto"38. Explorando os processos, valorizando o acaso como princípio criativo, trabalhando e retrabalhando procedimentos, o cientista e fotógrafo JOF aproximava-se de outros artistas que, na Europa, em particular na Alemanha no período pós-Segunda Guerra Mundial, também renovaram, ou melhor, reconfiguraram a fotografia [fig. 15-18].

Figura 18:
José Oiticica Filho, Recriação 77/62, 1962. Impressão Fine Art a jato de tinta, 40,70 x 35,50 cm. Acervo Projeto Hélio Oiticica.

Em 1949, Peter Keetman, Ludwig Windstosser, Wolfgang Reisewitz, Siegfried Lauterwasser, Toni Schneiders e Otto Steinert fundaram o grupo fotoform.

Dispensando procedimentos burocráticos e manifestos escritos, uniram-se pelo interesse comum em uma nova linguagem fotográfica que, tendo como referência as vanguardas dos anos 1920 e 1930, traduzisse as formas e o espírito de seu tempo, qual seja, o de reconstrução no sentindo mais amplo da palavra. O nome do grupo, sugerido por Steinert, apontava para a experimentação fotográfica formal, por meio de: enquadramentos e ângulos não-convencionais; subvertendo aspectos técnicos, como foco e exposição; ou através da manipulação dos processos laboratoriais. Os trabalhos do grupo foram publicados em revistas alemãs e internacionais, bem como exibidos em salões por todo o mundo, inclusive no Brasil39.

Dois anos depois, Steinert, um médico por formação e professor de fotografia na Escola de Arte e Artesanato de Saarbrücken40, organizou a primeira de uma série de três exposições internacionais subjektive fotografie. Com 725 imagens de fotógrafos europeus e norte-americanos, Steinert pretendia mostrar que a fotografia estava em sintonia com a modernidade em sua forma e seu conteúdo. Aproximando as vanguardas modernas da produção contemporânea, incluiu obras de Moholy-Nagy, Raoul Haussman, Herbert Bayer e Man Ray, contemplando vários movimentos artísticos, do construtivismo da Bauhaus ao surrealismo. A exposição foi realizada no prédio inacabado da Escola e interagia com o inusitado espaço arquitetônico. Na introdução do catálogo, com textos em alemão, inglês e francês, Steinert afirmou que ali estavam as "forças criativas da fotografia atual". O título, ele escreveu, referia-se ao "momento criativo pessoal do artista (em oposição à fotografia "aplicada") e, assim, a "exposição concentra-se essencialmente na fotografia que foi moldada em forma e conteúdo" e, como tal, também "molda a consciência visual de nossa época"41.

Steinert publicou ainda o livro subjektive fotografie42, com as fotografias ocupando páginas duplas sem legendas e organizadas não por autoria, mas por afinidades visuais ou técnicas. Nos textos, em alemão e inglês, os autores43 solidificaram as bases teóricas da fotografia subjetiva. Contrapondo objetividade e subjetividade na fotografia, sustentavam que, na verdade, nenhuma fotografia poderia ser inteiramente objetiva, uma vez que por trás do visor da câmera havia um sujeito marcado por características individuais. A essência da fotografia subjetiva residia, portanto, no fato de que "a câmera é direcionada ao objeto pelo sujeito, isto é, pelo ser humano com seu poder de visão; sua objetiva é justo uma lente através da qual pode examinar melhor o que acredita valer a pena retratar"44. Ademais, "somente a força de tensão e a interação criativa entre o sujeito (fotógrafo) e o objeto (coisa) conduzindo à objetivação é que determinam o valor e o conteúdo do produto fotográfico"45. A visão subjetiva de Steinert destacava a construção fotográfica individual e absoluta, visando imagens autônomas e autossuficientes que, semelhantes à pintura ou a outras formas de expressão, refletissem a arte de seu tempo.

Nossa pesquisa inicial sobre a fotografia brasileira e alemã dos anos 1950 aponta para a construção de uma nova linguagem fotográfica transnacional que, ao mesmo tempo em que dialogava com os vários movimentos de renovação nas artes, buscava também a afirmação de estatuto artístico próprio e autônomo. Na Alemanha, as exposições e publicações fotoform e subjketive fotografie tiveram um papel importante nesse processo. Buscando visibilidade e intercâmbio no cenário internacional, os livros eram multilíngues e as mostras (ou partes delas) viajaram para vários países, inclusive o Brasil. Em 1955, o Museu de Arte Moderna de São Paulo realizou a exposição "Otto Steinert e seus alunos". Quatro anos antes Steinert havia participado do 10o Salão Internacional de Arte Fotográfica do Foto Cine Clube Bandeirante e uma foto sua foi publicada na capa de uma edição da revista Iris, com um artigo de Franz Roh46.

Steinert e seus colaboradores investigaram as estruturas da fotografia, procurando, primeiro, entender mecanismos e processos para, em seguida, neles interferir. Procedimento semelhante foi realizado por Oiticica tanto em suas séries Formas e Derivações como, principalmente, nas Recriações. Nessas, obras geométricas se superpõem a outras, informais e expressivas onde se sobressaem a gestualidade e a materialidade das formas orgânicas oriundas de pinceladas ou dobras de materiais transparentes e translúcidos. Como é de se esperar, muitas das fotografias dessa série foram idealizadas e concretizadas na mesma época em que realizava suas pinturas. Em entrevista a Ferreira Gullar e publicada na já referida página do Suplemento Dominical do Jornal Brasil, JOF afirmou que não encontrava qualquer diferença nas Recriações feitas como fotografia ou como pintura: "são fotografia porque nascem de um processo fotográfico legítimo como qualquer um outro", resguardando-se as "diferenças do meio empregado que influem sobre o resultado".

Quando JOF, como também Geraldo de Barros, ultrapassaram as fronteiras entre a pintura e a fotografia, aproximaram-se de práticas semelhantes de alguns dos fotógrafos subjektive. As imagens sem câmera de Chargesheimer, por exemplo, eram feitas com interferência direta sobre o filme ou negativo de vidro usando produtos químicos, calor ou tinta. Essas, por sua vez, assemelham-se aos Luminogramas de Steinert, obtidos movendo-se a câmera, com o obturador aberto, à frente de fontes de luz brilhantes, tais como lâmpadas de iluminação pública. Inegável também é a proximidade desses trabalhos com a pintura contemporânea, especificamente as obras de Karl-Otto Götz na Alemanha e Jackson Pollock nos EUA.

As Recriações suscitaram questionamentos, entre eles o de Annateresa Fabris47 sustentando que essas fotografias reatualizaram o fotopictorialismo, uma vez que ainda se utilizaram da intermediação do aparelho. Pesquisa recente realizada pelo autor no acervo do artista48 mostrou, no entanto, que muitas dessas imagens foram, na verdade, obtidas sem a utilização da câmera. Intervenções eram realizadas sobre folhas de acetato, papel de desenho, vidro e outros materiais transparentes ou translúcidos que, submetidos à ação da luz e da química em procedimentos controlados no laboratório, metamorfoseavam-se no fotográfico. Para Oiticica, como para Barros e os alemães, o processo e a experiência da criação - em si um procedimento artístico - importava tanto ou mais do que o resultado final, pictórico ou não [fig. 19 e 20].

Figura 19:
Chargesheimer, Pathetische Komposition, 1950. Impressão gelatina de prata, 39,1 x 29,9 cm. Folkwang Museum, Essen (número de inventário 573/79).

Figura 20:
Otto Steinert, Lumminogramm 1, 1949/1950. Impressão gelatina de prata, 36,4 x 29 cm. Saarlandmuseum Saarbrücken, Stiftung Saarländischer Kulturbesitz (reprodução: Tom Gundelwein)

Após a segunda exposição subjektive, Steinert publicou outro livro, onde explicitou seu programa criativo. Vislumbrou "estágios de perfeição na criação fotográfica" que, considerando "fatores técnicos e subjetivos", seriam classificados como:

  • 1) ilustração fotográfica reprodutiva;

  • 2) ilustração fotográfica representativa;

  • 3) criação fotográfica representativa;

  • 4) criação fotográfica absoluta.

As Recriações de Oiticica seguramente estariam no último estágio e dialogavam diretamente com o desejo de Steinert e dos fotógrafos subjektive de criar imagens que resultassem de "experiências de visão e forma valiosas e criativas, bem como de transposições produtivas"49. Nesse sentido, JOF não "postulou uma fotografia que negasse a fotografia"50; pelo contrário, com o perfeito domínio da ciência e da técnica fotográficas, pode realizar uma fotografia que, no seu tempo, possivelmente, tenha explorado todas as potencialidades desse meio.

Pictorialista, construtivo, abstrato, inventor, nas asas da mariposa e da experimentação, José Oiticica Filho voou alto, do micro ao macro, construindo uma trajetória artística coerente. Em sua obra fotográfica realizada paralelamente à entomologia - sua atividade profissional até o fim da vida - transparece o olhar de quem aprendeu a examinar e desvendar o mundo através de lentes de aproximação. E aqui também se manifesta sua herança anarquista paterna: "apreciadores de insetos são anarquistas. Eles odeiam atender às ordens de outras pessoas. Eles veem o mundo a partir do lugar do inseto, de dentro da vida do animal, de dentro de seu micromundo. Eles se intrometem na vida e não na morte", escreveu Okumoto Daizaburo, professor de literatura, colecionador de insetos e fundador do Museu Fabre em Tóquio, dedicado a Jean-Henri Fabre, naturalista, entomólogo e, como JOF, "poeta dos insetos"51.

José Oiticica Filho morreu em 26 de julho de 1964, no mesmo dia em que Hélio Oiticica celebrava seu vigésimo sétimo aniversário. Três anos depois, escreveu sobre seu pai:

suas pesquisas científicas nunca foram interrompidas no decorrer do tempo. Eram como que a inspiração objetiva, como que a necessidade interior de descobrir novos mundos, novas realidades no mundo maravilhoso dos insetos. [...] O que dá a JOF sua justa medida é a qualidade que tinha de estar sempre, a par de sua inteligência e de sua vitalidade, dons que lhe eram inatos, predisposto à descoberta e à pesquisa, e não se contentando nunca com o que já havia concluído. Este valor é o que faz com que sua obra permaneça e viva52.

Lâmina / microscópio / laboratório; negativo / ampliador / câmara escura: eis o modus operandi do cientista e artista da luz, José Oiticica Filho.

Epílogo

Em outubro de 2009, um incêndio consumiu parte do acervo na reserva técnica do Projeto Hélio Oiticica, onde estavam abrigadas obras dos Oiticica (José, Hélio e César), além das pinturas que realizei quando fui aluno de Hélio entre 1959 e 1965. Algumas das pinturas, originais em vidro, bem como tiragens realizadas por José Oiticica Filho foram perdidas ou seriamente danificadas pelo fogo e pela água. Permanecem, no entanto, 150 reproduções digitais em alta resolução de fotos originais que foram produzidas para a retrospectiva "José Oiticica Filho - Fotografia e Invenção", realizada de setembro de 2007 a março de 2008 no Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro53. Sobreviveram, ainda, negativos, desenhos e alguns originais das Derivações e Recriações em vidro e papel, cadernos de anotações, cartas, documentos e separatas de seus artigos científicos.

Bibliografia complementar

  • ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
  • AUGUSTIN, Roland. Gebanntes Licht: die Fotografie im Saarlandmuseum von 1844 bis 1995. Saarbrücken: Saarland Museum, 2009.
  • BAZIN, André. A ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
  • BOTAR, Oliver A. I. Sensing the future: Moholy Nagy, media and the arts. Zürich: Lars Müller Publishers, 2014.
  • BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999.
  • COHN, Sergio (Org.). Ensaios Fundamentais: artes plásticas. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.
  • COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues da. Fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify Edições , 2004.
  • DERENTHAL, Ludger. Bilder der Trümmer- und Aufbaujahre: Fotografie im sich teilenden Deutschland. Marburg: Jonas Verlag, 1999.
  • FÖRSTER, Carolin. Subjective photography: form and imagination. In: Subjective fotografie 2: More Adventures in the Visual Field. Berlin: Kicken , 2014.
  • FATORELLI, Antonio. Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
  • FRIZOT, Michel. Nouvelle histoire de la photographie. Paris: Larousse, 2001.
  • GERNSHEIM, Helmut and Alison. A concise history of photography. London: Thames and Hudson, 1965.
  • GULLAR, Ferreira. Recriação - ou a fotografia concreta. In: Jornal do Brasil, Suplemento Dominical, 24/8/1958.
  • HOLSING, Henrike; JÄGER, Gottfried. Lichtbild und Datenbild: spuren konkreter Fotografie. Berlin: Kehrer Verlag, 2015.
  • KEMP, Martin. The science of art. New Haven: Yale University Press, 1990.
  • MAGALHÃES, Angela; PEREGRINO, Nadja F. Fotografia no Brasil: um olhar das origens ao contemporâneo. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
  • MARTINS, Sérgio. Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979. Cambridge: MIT Press, 2013.
  • NEWHALL, Beaumont. History of Photography. New York: Museum of Modern Art, 1982.
  • OITICICA FILHO, José. Fotografia se faz no laboratório (entrevista a Ferreira Gullar). In: Jornal do Brasil , Suplemento Dominical, 24/8/1958.
  • ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville Press, 1999.
  • ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Ed. SENAC, 2009.
  • SCHMOLL, J. Adolf. Subjektive Fotografie: der deutsche Beitrag, 1948-1963. Eisenwerth: Institut für Auslandsbeziehungen, 1989.
  • VALENTIN, Andreas. Nas asas da mariposa: exibindo a obra de José Oiticica Filho. In: Revista STUDIUM, n 32. Campinas: UNICAMP, 2011.
  • 1
    . Este trabalho foi desenvolvido a partir de pesquisa pós-doutoral realizada em 2014 e 2015 no Instituto de História da Arte, Freie Universität, Berlin, com bolsa outorgada pela CAPES.
  • 2
    . Cf. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
  • 3
    . Cf. PEDROSA, Mario. Ciência e Arte, vasos comunicantes (1960). In: FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006, p. 51, referindo-se às novas teorias do conhecimento que surgiram no século XX para explicar a complexidade crescente da realidade exterior, essas "estranhas concepções objetivadas da visão científica atualizada": "Cubistas e futuristas, expressionistas e pós-impressionistas, Klee, Mondrian, Kandinsky, Malevitch, Moholy-Nagy, Doesburg, Arp, Pevsner, suprematistas, vorticistas, raionistas, neoplasticistas, construtivistas, abstracionistas, expressionistas, todos recorrem com maior ou menor propriedade a essas noções para explicar as concepções que os movem".
  • 4
    . MALEVICH, Kasimir. Suprematism (1927) In: HERBERT, Robert L. Modern Artists On Art. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1964, p. 94.
  • 5
    . GABO, Naum. The Constructive Idea in Art (1937). In: HERBERT, Robert L. Op. cit., p. 105.
  • 6
    . Em 1916, Coburn criou um instrumento ótico semelhante a um caleidoscópio para ser acoplado à frente da lente de uma câmera. Na apresentação de sua obra numa exposição em Londres, o poeta Ezra Pound denominou o aparelho Vortoscope e as imagens resultantes Vortograph. Tanto o nome do aparelho, como das imagens são referências ao Vorticismo, movimento britânico de vanguarda entre 1914 e 1918.
  • 7
    . COBURN, Alvin Langdon. The future of pictorial photography. In: MORTIMER, F. J. (ed.). Photograms of the year. London: Hazell, Watson & Viney, 1916, p. 23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2015
  • Aceito
    14 Maio 2015
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br