"Continuidade, hoje, significa descontinuar" Bruno Latour
Para alguns pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre a chamada era Anthropocene1, uma era de Gaia2, a arte, com sua capacidade de desenvolvimento de novas ferramentas e estratégias, pode desestabilizar os pensamentos convencionais sobre nossa relação com e na natureza3.
No entanto, para que a arte possa efetivamente contribuir com uma desestabilização do pensamento hegemônico da relação do homem com e para a natureza e, sobretudo, das implicações desta relação, tem crescido a importância da investigação de procedimentos, teorias e metodologias inovadoras de criação advindas de relações transdisciplinares de pesquisa entre as artes, tecnologia, ciências e natureza. Assim como o é a ampliação dessas discussões para um público mais amplo, colaborando com a produção de mudanças paradigmáticas urgentes no mundo contemporâneo.
Muitos são os projetos, em diferentes áreas, que estão sendo desenvolvidos nesta direção, no entanto, a urgência dos fatos que estamos enfrentando diariamente, em nossas cidades e em nossas vidas, nos faz olhar para a arte como um campo de investigação que pode contribuir para a potencialização e ampliação dessas discussões.
Saskia Sassen, em seu livro Expulsion4, reconhece que nós, enquanto parte integrante da biosfera, temos que conhecê-la melhor e usar suas capacidades para começar a mudar nossa maneira de viver e construir.
Uma mudança que se faz urgente. Em setembro de 2009, a revista Nature publicou um número especial, com a participação de vários cientistas, identificando nove processos biofísicos do sistema Terra, e estabelecendo limites para esses processos, os quais, se ultrapassados, acarretariam alterações ambientais insuportáveis para diversas espécies, entre elas a espécie humana. Já alcançamos quase todos esses limites e acompanhamos diariamente as consequências em nosso cotidiano.
Pensadores de diversas áreas do conhecimento, com diferentes abordagens e opiniões, vêm discutindo as possibilidades, por um lado, de contenção dessas mudanças, e por outro, de adaptação das espécies, sobretudo da humana, a estas mudanças e seus impactos. Por outro lado, em torno das questões sobre a era Anthropocene encontra-se a necessidade de novas metodologias de educação e de criação, tomando a arte como o grande campo de colaboração com a ciência.
Contudo, para discutir essas mudanças, seus impactos e possibilidades de contenção e/ou adaptação, se faz necessário um diálogo transdisciplinar efetivo, entre as tecnociências, as sociociências e as artes.
Neste sentido, vários projetos de co-learning estão sendo financiados por grandes instituições, sobretudo europeias, convidando pensadores de todas as áreas para dialogarem em torno do tema, em busca de ações transdisciplinares inovadoras. No entanto, aqui também está o desafio desta época. Como trabalhar de forma efetivamente transdisciplinar?
Por mais que esse tema possa parecer estar resolvido, temos uma produção de conhecimento ainda bastante dual e com muita dificuldade de diálogo. Como exemplo, cito minha experiência pessoal no projeto campus Anthropocene5, organizado pela HKW (Haus der Kulturen der Welt) de Berlim em parceria com o Max Planck Institute.
O projeto de co-learning previa o encontro de 100 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e facilitadores convidados para pensar e formatar o projeto. Divido em nove seminários, com pesquisadores de diferentes áreas trabalhando durante dez dias em busca de propostas de inovação, discutíamos diariamente a dificuldade e a necessidade de entendimento e colaboração entre as áreas de pesquisa. Das discussões, ressalto duas questões relevantes que nortearam nossos trabalhos e proposições: 1. Que tipo de conhecimento precisamos produzir para viver nessa era?; 2. A importância da arte e seu potencial político na sensibilização e amplitude dessas discussões para e com a sociedade.
Como nos diz Bruno Latour, um dos expoentes desse campo de estudo:
É preciso criar instrumentos que nos sensibilizem e que nos levem a pensar, algo que ligue as "estatísticas da ciência" e formas de sensibilização ao que elas indicam. Não há muita gente trabalhando para que nos tornemos mais sensitivos ao que ocorre com Gaia. Temos de reconstruir a nossa sensibilidade. É preciso dramatizar, considerar o fim do mundo, e então desdramatizar, para analisar criticamente a questão. Na arte, você pode fazer os dois, dramatizar e desdramatizar.
Se você apenas analisa, não sensibiliza, se você apenas grita "fogo", todos saem correndo. É preciso gritar fogo, mas fazer com que as pessoas se mantenham na sala e pensem6.
Além disso, o autor aponta para a necessidade dessa sensibilização para que possamos interromper a continuidade das coisas, pois continuar, "hoje, tem uma relação profunda com descontinuar, interromper o que temos feito, o que é hábito. Continuidade, hoje, significa descontinuar e reconstruirmo- nos inteiramente."7
Para Ricardo Dal Farra, artista e pesquisador do Hexagram (Centre for Research-Creation in Media Arts and Technologies) da Concordia University (Canadá):
A arte pode desempenhar um papel importante em ajudar a sociedade global a entender a magnitude da crise que estamos enfrentando e em promover a conscientização em torno de questões ambientais (...) pode também ser um bom veículo para disseminar propostas que produzam mudanças em nossos comportamentos e decisões para o futuro (...) Artistas podem promover ações, inter e transdisciplinariamente, focando a crise ambiental global e nossa responsabilidade em relação ao ponto de mudança para o futuro de nossa vida na terra"8.
No entanto, é extremamente importante compreendermos qual o lugar da arte neste contexto pois, segundo Chantal Mouffe: "É preciso ampliar o campo da intervenção artística para interferir diretamente na multiplicidade dos espaços sociais e do capitalismo"9.
Territórios Sensíveis: uma investigação performativa em arte, ciência e natureza
"a arte aguça primeiramente nossa aptidão para criar, penetrar e explorar mundos imaginários, como se tivessem a mesma espessura de ser que os mundos reais, para elaborar hipóteses sobre o sentido dos mundos, antecipar seu futuro, inscrever-se em sua própria temporalidade e jogar com as formas do tempo..." Edmond Couchot10
Ao situar uma pesquisa/criação no contexto de discussão do Anthropocene/Era de Gaia, é extremamente importante levar em consideração os diferentes pontos de vista sobre as questões que fundamentam essas discussões. Este texto, no entanto, não aprofundará estas discussões, por não ser o foco principal, mas olha para as mudanças avassaladoras que estamos vivendo a partir das proposições dos cientistas chilenos Maturana e Varela11. Para estes, a sobrevivência de um organismo depende da recriação contínua dos modos de vida; assim, ao consideramos a evolução humana, compreendendo organismo e meio ambiente juntos, podemos constatar que qualquer alteração biológica em curso, está completamente dominada por transformações ambientais e culturais.
Seguimos ainda o pensamento do filósofo japonês Tetsuro Watsuji12, em sua proposição de que clima e paisagem são elementos estruturais da existência humana. Desse modo, geografia e história, paisagem e cultura, temporalidade e espacialidade, historicidade e ambientalidade são inseparáveis da vida cotidiana.
Assim, ao situarmos a pesquisa aqui apresentada no Brasil, levamos em consideração as dimensões territoriais, naturais e culturais amplas e diversas do país, o que implica a necessidade de estudos localizados. Pois temos no Brasil uma diversidade natural e cultural que brilha aos olhos, mas que é desrespeitada, cotidianamente, em suas especificidades.
A questão de como lidar com a crise climática que estamos enfrentando tendo a arte como campo de investigação surgiu como o ponto principal de interesse, em minha pesquisa, a partir de ações realizadas pelo laboratório de pesquisa B.R.I.S.A13, coordenador por mim e pela pesquisadora Patrícia Caetano.
Conhecer e experienciar as cidades do litoral cearense em sua cotidianidade fez com que nos aproximássemos de questões políticas, sociais, econômicas, geográficas e naturais que permeiam este cotidiano.
Como diz Chantal Mouffe14, o "espaço público" não é um campo de consenso, mas sim um campo de batalha onde se enfrentam diferentes projetos hegemônicos. Os espaços públicos são sempre plurais. Podemos também dizer que são territórios complexos, ou ainda, territórios sensíveis permeados por subjetividades e sensorialidades.
Da experiência com o cotidiano, surgiram as primeiras inquietações que nos despertaram para as possibilidades que uma "intervenção artística" poderia provocar nas cidades e vilas (e vice-versa). Como estas questões, do micro ao macro, poderiam contribuir ou provocar a nossa pesquisa artística? Como questões politicas, econômicas e sociais aliadas à localização e constituição geográfica, à composição de fauna e flora e, sobretudo, aos saberes populares, poderiam impulsionar uma pesquisa que se dava incialmente no âmbito da performance? Qual a potência de ações performativas nestes territórios? O que poderíamos desdobrar a partir de uma pesquisa performativa?
Metodologicamente, segundo Brad Haseman15, as pesquisas performativas propõem uma prática que leva às questões da pesquisa, e estas são intrinsicamente experienciais. As experiências, operações emocionais e cognitivas, levam-nos a novas formas artísticas tanto para a criação quanto para a exibição.
Somando-se a este pensamento, Territórios Sensíveis propõe, a partir de ações performativas balizadas nas relações entre corpo e meio ambiente, performance e percepção, sensorialidade e impulsos criativos, atuar junto a territórios específicos na discussão de questões emergentes desses mesmos territórios em relação a questões globais. Como exemplo, podemos citar o impacto das mudanças climáticas e a alteração das características naturais e dos modos de vida de pescadores, marisqueiras, pessoas que vivem do mar e em relação com o mar.
A partir de experiências performativas, questões políticas, poéticas, estéticas e cognitivas emergem como campo de possibilidades criativas, de construção de um pensamento crítico, e contribuem, por um lado, para as metodologias de pesquisa em artes e, por outro, para novos mecanismos de reconexão do homem com e para a natureza. Acreditando nisso, busca-se, em Territórios Sensíveis, uma reflexão sobre a própria metodologia, tornando-a um dispositivo de experiência e criação que visa inserir tanto artistas e moradores, quanto público, em ações e criações experienciais e performativas.
Este pensamento fundamenta-se num entendimento do corpo como sistema dinâmico e auto-organizativo, permeado incessantemente pelo fluxo de informações que se dá na relação entre corpo-ambiente-tempo. Assim, acredita-se que, a partir de atos performativos, ou seja, da inserção do corpo em um processo performativo de experiência/criação, o próprio corpo atua propondo possibilidades de ação, descobrindo caminhos e apontando soluções através de experiências que se dão no campo sensorial e cognitivo.
Assim, Territórios Sensíveis propõe uma aproximação entre o conceito de território geopolítico e territórios da arte. Territórios, no sentido geopolítico do termo, são sistemas dinâmicos envolvidos no tempo e no espaço, formados por um vasto conjunto de interações individuais, locais e contingenciais. Os territórios são constituídos por relações entre os humanos e destes com o meio ambiente. Assim, podemos denominar como território(s) uma cidade, um vilarejo, um bairro, uma praia, um local específico de uma cidade, de um estado, de um país, de uma região ou de um espaço geográfico delimitado. Já para os "territórios da arte", espacialidade, temporalidade, singularidade, sensorialidade, subjetividade e cognição, são entendimentos fundamentais para se lidar com sistemas dinâmicos e complexos.
Experiências em desenvolvimento no B.R.I.S.A
B.R.I.S.A - Bio Rizoma de Intervenção e Sensibilidade Artística é um laboratório de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) da Universidade Federal do Ceará. Certificado pelo CNPQ, o laboratório é constituído por uma rede transdisciplinar de pesquisa que envolve artistas de diferentes áreas - audiovisual, artes do corpo, arte e tecnologia, artes visuais e música, tecnólogos, geógrafos, urbanistas e moradores das regiões estudadas - e que propõe uma prática colaborativa de investigação e criação em artes no diálogo com e para a natureza.
Em 2014, realizamos o mapeamento do litoral cearense e iniciamos as ações do laboratório na região de Icapuí, litoral leste da costa cearense. Com cerca de vinte mil habitantes, Icapuí, tem como principal atividade econômica a pesca artesanal da lagosta e é composta por treze praias, com paisagens singulares entre si.
Na praia da Requenguela, o fenômeno das marés saltou aos olhos e ao corpo. Com até 6 km de recuo, o fenômeno das marés nos possibilitou uma imersão no ambiente Mar e no tempo Maré. O fenômeno da maré rasa nos propiciou uma experiência sensório-corporal que implica em uma outra relação espaço-temporal que impele a confrontar a todo momento o paradoxo entre a vida microscópica e a imensidão do mar, com o infinito e o finito, com o cheio e com o vazio, seco e úmido. O tempo da pesca e o tempo do atravessar, diariamente, do pescador. O tempo/fluxo da maré e o tempo do trabalho diário das marisqueiras na colheita do marisco.
A partir dessa experiência, eu a pesquisadora Patrícia Caetano produzimos a instalação sensorial Maré/Rasante16 e a performance Rasa, apresentada durante o período de instalação da obra. No projeto, em desenvolvimento, ainda está previsto a realização de residências artísticas com a presença de artistas convidados e da comunidade local.
A instalação Maré/Rasante visa a uma experiência sensorial do público participador. Com um piso artesanal, confeccionado em parceria com artesãs e marisqueiras da região de Icapuí, o espectador/performer pode, adentrando o espaço instalativo, experienciar em seu próprio corpo o movimento do solo na rasa, da liquidez na cheia, as estabilidades e instabilidades corpóreas proporcionadas pelo movimento das marés. Compondo a instalação, contamos com o som criado pelo músico e pesquisador Daniel Quaranta, que alia o movimento (dados) das marés ao controle da sonoridade.
Fundamentando a composição desta instalação, trabalhamos com os conceitos de performatividade e sensorialidade ao propor que o espectador/performer possa reconectar-se, a partir de instalações como esta, com aspectos naturais de ambientes específicos.
Em fevereiro de 2015, realizamos o LAB Paisagem/Emergência, uma experiência imersiva realizada na praia do Mucuripe, zona central da cidade de Fortaleza. Esta experiência impulsionou a instalação do segundo polo de pesquisa e intervenção do B.R.I.S.A.
Cartão postal de Fortaleza, a praia do Mucuripe e sua comunidade de pescadores guardam muitas histórias da cidade e de suas transformações, das lutas populares e da tecnologia de pesca, sobretudo, das jangadas, utilizada até hoje nos mares cearenses. Mas, apresenta também a contínua degradação social, humana e ecológica daquele pequena faixa de areia que, como descrita pela pesquisadora Lis Paim em seu texto "Esboços para a travessia de um lugar específico"17, está ocultada da cidade tanto por um cerco de árvores quanto pela invisibilidade que se estabelece nesses locais à margem.
Há uma clara ruptura entre praia e asfalto. (...) Não é preciso passar muito tempo ali para entender que a diferença daquela faixa de areia do restante de toda a praia é justamente a sobrevivência anacrônica daquela comunidade de pesca. (...) Uma comunidade que é também testemunha das transformações da cidade e da especulação imobiliária desenfreada, assim como da atividade da pesca e daquele mar18.
A praia do Mucuripe foi onde o cineasta americano Orson Welles realizou o episódio "Quatro homens em uma jangada" ("Four men on the raft", 1942) do filme É tudo verdade. No filme, é encenada a travessia verídica que quatro pescadores fizeram em uma jangada, em direção ao Rio de Janeiro, para pleitear, junto à presidência do Brasil, melhores condições trabalhistas para a pesca no Ceará.
Um filme de muito orgulho para a pequena comunidade de pesca que sobrevive nesta espremida faixa de areia em condições precárias de trabalho e vida.
Ações e intervenções artísticas como essas que estamos desenvolvendo no B.R.I.S.A lança-nos ainda numa discussão sobre visibilidade e a arte na esfera social. A crítica e curadora americana Rosalyn Deutsche20, ao citar o pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas, diz que o espaço público seria o lugar de visibilidades complexas, exposto à alteridade, em formas heterogêneas de relação com o outro e com outros, e principalmente, com o que desconhecemos de ambos. Ao chamar a atenção para algumas correntes da arte contemporânea que analisaram a visão como o sentido que se relaciona com o outro, ela pergunta: o que é visão pública? Como a arte pode ser pública, não somente por estar fora dos museus e galerias, mas também como um espaço de alteridade e visibilidade do outro?
Essas perguntas ecoam a cada ação que desenvolvemos nos territórios escolhidos e delimitados para esta pesquisa. A cada aproximação, a cada vínculo estabelecido com moradores desses territórios sensíveis. A cada experiência, voltamos para o nosso laboratório, discutimos, propomos novas ações e intervenções em busca de possíveis caminhos. Mas, como nos diz Edgar Morin, "a dificuldade do pensamento complexo é que devemos enfrentar a confusão, a bruma, a incerteza, a contradição"21. E assim, seguimos com nossas ações, com a única certeza de que para continuarmos hoje é preciso refletir, propor novos rumos e, sobretudo, agir.