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Possibilidades de estruturação do processo artístico como imagem - no interior do tempo

Structuring possibilities of the artistic process as image - inside the time

RESUMO

É certo que meu processo de produção de arte envolve escolhas e cooptação de elementos ditadas pela subjetividade; das infinitas possibilidades de referências e encontros cotidianos, os mais carregados "eletricamente" são os selecionados para participar como produtores de sentidos no trabalho. Mas haverá algum tipo de negociação com o campo mais amplo da cultura que faz com que a carga energética desses elementos se dê também segundo sua "objetividade simbólica", sendo, portando, não apenas pura função da subjetividade. Pensamentos sobre a "artesania das escolhas" acompanharam minha produção mais recente, a instalação No interior do tempo, e aqui dialogam com pensadores que se relacionaram mais ou menos criticamente com o movimento surrealista.

palavras-chave:
imagem; processo; surrealismo; montagem

ABSTRACT

It is true that my process of producing art involves choices and cooptation of elements that are dictated by subjectivity; from the infinite possibilities of references and everyday encounters, those which are more "electrically" charged will be selected to participate as producers of meaning in my work. But there is also a kind of negotiation with a broader field of culture that makes the energetic charge of these elements arise according to their "symbolic objectivity", therefore being not a pure function of subjectivity. Reflections on the "artisanship of choices" accompany my recent production No interior do tempo [Within time], dialoguing with thinkers that relate more or less critically with the surrealist movement.

keywords:
image; process; Surrealism; assemblage

O termo imagem surgiu para mim como uma questão a ser observada teoricamente pela primeira vez quando me dispus a formular, em 2004, o projeto de pesquisa de doutorado, que assumiu o título Escultura como imagem e tinha como centro a relação entre meu processo de produção de artista e algo que vislumbrei existir sob o significante "imagem". Minhas referências para imagem eram, então, basicamente Reverdy, citado por Breton em Manifestos do Surrealismo; Octavio Paz, em Signos em rotação; e os raciocínios muito potentes sobre as relações entre palavra e imagem nos ensaios reunidos por Haroldo de Campos em Ideograma: lógica, poesia e linguagem1 1 . BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. CAMPOS, Haroldo. Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Edusp, 2000. . Entrevejo nessas referências, sobretudo, relações entre estrutura e processo de criação, que me são até hoje como que companheiras meio subliminares de ateliê.

Durante a pesquisa para a escritura da tese como um desdobramento do título - que eu, já em uma construção pessoal do conceito, sempre sustentei ter surgido como imagem - encontrei outras referências que me apresentaram aspectos mais ampliados, como Marie-José Mondzain, W. J. T. Mitchell e Didi-Huberman, considerando que não seriam perspectivas excludentes em relação às primeiras intuições que trouxeram Escultura como imagem. Neste momento são elas que parecem retornar quando me volto para leituras relacionadas a processos que lidam com o lado mais revertido para uma interioridade obscura: é notável a fala de André Breton sobre o equívoco de se acreditar que os modelos para a representação só seriam possíveis a partir do mundo exterior - mais do que isso, seriam aqueles do mundo exterior2 2 . BRETON, André. Surrealism and painting. Boston: MFA Publications, 2002, p. 4. . Esse comentário é sintético o suficiente para conter todo um partido de modo de ação ou de processo criador que sabe que as motivações são internas.

Como é minha prática, aproveito a experiência recente de mais um trabalho a instalação No interior do tempo, exposta entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016 no Paço Imperial do Rio de Janeiro como interlocutora, fundamento, justificativa, talvez prova de realidade, para este texto. Trago alguns aliados como referências teóricas - selecionados certamente porque ratificam meu modo de produção. Creio que os tempos e modos da captação dos elementos seriam já significantes no trabalho posto que carregados de uma percepção a partir de minha subjetividade - e, me parece, não poderia ser de outro modo. Creio porque creio. E também porque sou uma pessoa envolvida pelo mundo da psicanálise. Posso trazer Lacan e o papel do olhar na forma pela qual nossa percepção de mundo é constituída como um olhar que o mundo retribui ao nosso, bem como a noção de olho como um órgão em que se conjugam muitas funções - e funções em que a dimensão pulsional importa:

[Temos aqui] a profunda subjetivação do mundo exterior - alguma coisa tria, criva de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida. O homem lida com peças escolhidas da realidade3 3 . LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 63. .

Penso, porém, que sustentar aqui apenas essa "alguma coisa" como uma pura subjetividade agente de seleção não acrescenta legitimidade ao trabalho de construção de uma imagem vital e, assim, acredito que do crivo dos elementos a cooptar participa algum tipo de exigência de que possuam carga de referências simbolicamente densas, capazes de estabelecer conexões no campo da cultura e entre si, fortes o suficiente para abrir passagem a projeções e associações emitidas por mais observadores - talvez minha subjetividade seja comprometida com o desejo da comunicação. Marcel Duchamp acredita que não seria mesmo possível uma plena consciência dos elementos que entram em jogo na execução de uma obra e fala sobre o "coeficiente artístico" como uma espécie de índice dessa falta de controle pleno sobre os resultados de um trabalho (a sutil negociação entre eu e mim, como disse em entrevista a Pierre Cabanne).

Roger Caillois, teórico multidisciplinar francês, contemporâneo de André Breton - com quem estabeleceu um debate crítico basicamente sobre os limites do rigor e da ambiguidade na arte surrealista -, em ensaio sobre o louva-a-deus, aponta como em muitas culturas a imagem desse inseto é carregada simbolicamente e, por isso, uma imagem de grande "objetividade simbólica"4 4 . CAILLOIS, Roger. "The Praying Mantis: From Biology to Psychoanalisys". In: The edge of Surrealism. Durham; London: Duke University Press, 2003. . Sobre esse aspecto de que certas imagens são de fato objetivamente "carregadas", Michel Leiris, outro intelectual multidisciplinar também contemporâneo de Breton e, certamente não por acaso, como Caillois, próximo a Georges Bataille, no belo ensaio Espelho da Taouromaquia, observa que

alguns, lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por um brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem - acompanhando o ramo descendente da curva - à obscuridade lodacenta donde haviam surgido5 5 . LEIRIS, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac&Naify, 2001, p.11- 12. .

Ele pode referir-se a percepções e afetos individuais, como Roland Barthes se referiria ao punctum: cada um detecta seu punctum pessoal em uma imagem, como cada um seria afetado particularmente por determinada circunstância, objeto ou lugar; é inegável, porém, e em dimensão universal a força das imagens das touradas como a presença da morte, do humano e do animal no campo do sagrado, e é a essa imagem poderosa que ele chegará como uma daquelas imagens que objetivam nossa emoção - ao modo de cada um. Penso que a artesania na estruturação do trabalho envolve essa percepção de afetos e de algum modo lida também com as qualidades intrínsecas aos elementos escolhidos, no sentido de uma certa avaliação, em algum lugar em que o trabalho se elabora, de sua eficácia como potência de imagem.

Roger Caillois era muito próximo de André Breton até que, em determinado momento, passou a adotar uma postura ativamente crítica ao Surrealismo. Para ele, Breton veria "o universo inteiro demarcado por signos." O ponto seria saber como identificá-los, ou melhor, aprender como carregá-los, no sentido elétrico e até mágico do termo6 6 . CAILLOIS, Roger. "Surrealism as a World of Images". In: The edge of Surrealism, op. cit., p. 332. . O que ele argumenta é que nesse processo não haveria nada que não pudesse ser um signo persistente, apontando aí o perigo da intoxicação por uma subjetividade incontida.

Penso que os elementos escolhidos para ser reunidos na produção da imagem de meus recentes trabalhos "concretados" em No interior do tempo devem - ou deveriam - possuir essa qualidade de objetividade simbólica, considerando a obra instalativa inteira densa como uma imagem. A exposição montada na sala Academia dos Seletos do Paço Imperial se constituiu de um conjunto de trabalhos independentes, mas considero que haveria um núcleo mais denso de No interior do tempo, que se construiu a partir dos encontros não premeditados que antevi mentalmente se entrelaçando já no espaço em que o trabalho se estruturaria. Desse núcleo fazem parte a série Poemas visuais interiores e a videoinstalação Água e pedra. Da exposição como um todo participavam ainda a pequena videoescultura La mère em si (2015) - que eu chamaria agora de MiniVer para olhar, por me dar conta de que é uma reprodução em miniatura da grande instalação Ver para olhar, realizada em 2012 -, obras da série Humanoinumano (1995), Cabeça oval (2012) e Cadeira mãe e filha (2015).

Sob a imagem

Se compreendi bem a crítica de Caillois sobre o que poderia ser uma projeção subjetiva incontida de André Breton, parece-me que o crítico do Surrealismo deixa de lado a possibilidade das hierarquizações das escolhas, das percepções, do crivo dos "acasos objetivos". Talvez fosse um ruído quanto à noção de objetividade. Ele é, aliás, crítico em relação à expressão "acaso objetivo", como se nela houvesse uma redundância: "afinal, não é rigorosamente possível conceber-se um evento casual que não seja objetivo, isto é, que não seja a extraordinária e imprevisível (de todo modo inesperada, embora estritamente mecânica) colisão de duas sequências casuais independentes"7 7 . Idem, ibidem, p. 333. . Mas vejo também nesse comentário uma não observação do sentido atribuído aos encontros: a seleção de alguns entre os milhões de encontros fortuitos e inexpressivos - a outros olhos possivelmente insignificantes. Sua crítica sobre a pouca exigência, a facilidade, a mitificação na produção de imagens como metáforas vagas que muitas vezes se prestariam mais a satisfazer "sensibilidades disponíveis e almas perturbadas" e que também muitas vezes serviriam mais para denunciar as fantasias do artista é, de fato, mordaz, aguda, dolorosa para nós, artistas, mas é nosso risco ‒ e como não concordar que há derramamentos, excessos constrangedores? Caillois foi um crítico exigente do Surrealismo e é sobretudo em relação à elaboração da imagem visual que recai sua exigência de rigor: interessante como sua crítica é mais feroz quanto às "facilidades" que o meio pictórico oferece por sua "imediaticidade" para a recepção, que permitiria mais falta de rigor na elaboração da imagem. Sendo que o meio verbal, a poesia, teria o rigor quase como prática intrínseca a sua natureza - comentários que lembram, de certo modo, o pensamento de G. E. Lessing em seu Laocoonte - ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, e seria interessante saber o que o teórico da imagem W. J. T. Mitchell diria sobre algumas observações de Caillois relacionadas a essas especificidades8 8 . Ver MITCHELL, W. J. T. Iconology: Image, text, ideology. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, em que o autor disseca práticas de desvalorização da recepção visual por parte de alguns pensadores ilustres e sua insistência em marcar a diferença entre palavra e imagem. .

De todo modo, não deixa de ser interessante a fala de Caillois sobre a construção da imagem demandar mais do que a mera aplicação do famoso postulado de Reverdy, mencionada por Breton em Manifestos do Surrealismo: não se trata de justapor quaisquer elementos distantes para produzir uma imagem forte - a explosão luminosa e surpreendente se desfaz muito velozmente se a imagem é apenas absurda9 9 . CAILLOIS, Roger. "The image". In: The edge of Surrealism, op. cit. . Imagens apenas absurdas seriam infinitamente abertas e, portanto, vazias. Na artesania da produção do choque, a questão estaria além de simples diferenças ou similaridades, mas em um trabalho de construção da semelhança entre os termos reunidos; trabalho que envolveria a um só tempo a obviedade e o paradoxo, e do qual a imagem extrai sua força.

Penso naquilo que Georges Didi-Huberman aponta em Bataille, a construção da "'semelhança informe', semelhança desclassificante, culpada e mortífera"10 10 . DIDI -HUBERMAN, Georges. A semelhança do informe - ou o gaio saber visual Segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015, p. 37. : o modo como Bataille estabele na revista Documents as conexões entre as imagens, promovendo a justaposição de supostos semelhantes em termos perturbadores, pelo excesso, pela polarização, e que desconstroem "conveniências hierárquicas, mitologias consoladoras", sendo que, segundo Didi-Huberman, o que o grande "inimigo íntimo do Surrealismo" propõe com o termo "documento", em sua reunião de imagens e textos, estaria relacionado a uma visão de real - diversa da visão de sonho ou de representação. Sinto esse aspecto do pensamento batailliano, no que tange à materialidade e à incorporação do sentido, como uma prática de algum modo já assimilada e interferindo verdadeiramente no processo produção de No interior do tempo e em sua concretude final. Assim como sinto que não seja excludente em relação ao papel da subjetividade e de uma dimensão de objetividade simbólica atribuída aos elementos escolhidos como participantes na construção da imagem.

Para Caillois, produção de imagens absurdas poderia ter como primeira finalidade causar surpresa ao observador ou leitor, mas a imagem seria mais fascinante se a esse observador fosse permitida uma espécie de transparência, de modo a que ele tivesse a impressão de que acessa algum tipo de ordem a ser decifrada - assumo, por minha conta e risco, esse pensamento de Caillois como equivalente para procedimentos na produção visual e na produção verbal - e devo dizer que a leitura de Caillois foi simultânea à produção de meus Poemas visuais interiores. O que dotaria algumas imagens de maior poder de atração, segundo ele, seria a impressão de que haveria alguma ordem subjacente a sua primeira aparência visível, absurda e incompreensível. Referindo-se a Nerval e seus sonetos Les Chimères, Caillois observa:

é improvável que ele tenha composto os sonetos ao acaso, só para tentar evitar a desgraça de que fossem compreendidos. Suspeito, por outro lado, que ele não tinha totalmente claro o que desejava comunicar; que recorreu a um labirinto de alegorias, convencendo-se de que os leitores iriam encontrar o que quer que procurassem desde que fossem suficientemente seduzidos pela coerência subterrânea de uma rede de imagens desconcertantes11 11 . CAILLOIS, Roger. "Fruitful ambuiguity". In: The edge of Surrealism, op. cit. p. 323- 324. .

Penso, portanto, que há escolhas; e o trabalho mora na escolha. Há um crivo ainda que inconsciente nos encontros objetivos, e aí está a objetividade defendida por Breton: seria a objetividade do desejo. Mas dele faz parte a artesania do artista, como defende Caillois. Nem tudo é absorvido no oferecimento do mundo. Alguns signos devem ser mais persistentes e mais carregados do que outros - como ele próprio havia adiantado com o uso da expressão "eletricamente carregado" e também em seu conceito de "objetividade simbólica". Esse pensamento me conduz ao sistema de conexões formais elaborado por Aby Warburg e às reflexões que Didi-Huberman formula ao operar esse transporte espaçotemporal em conexão com o pensamento aurático de Walter Benjamim12 12 . DIDI -HUBERMAN, Georges. Imagem sobrevivente: a história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. , para supor que determinados signos possuem cargas ampliadas pelo fato de ser capazes de estabelecer múltiplas relações espaçotemporais, o que os torna mais pulsantes, mobilizantes para o sujeito, que os vai selecionar entre muitos outros. Nesse caso, as relações seriam menos individualizadas e mais legitimadas como linguagem envolvida pela cultura mais ampla, o que poderia ser potente o suficiente para capturar - como na ironia sutil de Caillois, mas por que não? - outras sensibilidades disponíveis. Talvez seja essa mesma a ordem subjacente que o próprio Caillois propõe como qualidade de liga na produção das imagens construídas como montagem; talvez tenha algo a ver com o mundo abissal de que fala Leiris, que, mesmo particular, diverso em cada um, pode enviar seus tentáculos e se conectar a certo tipo de receptores.

O método crítico-paranoico

Sugiram também divergências metodológicas - e ideológicas - entre André Breton e outro companheiro de percurso, que foi Salvador Dalí. Breton, como o grande poderoso do movimento, expulsou Dalí devido a suas relações com Franco em meio à Guerra Civil Espanhola e ao que isso significava de desacordo com o engajamento marxista-leninista do movimento surrealista sob a égide bretoniana.

No entanto, há elementos preciosos no método crítico-paranoico de Dalí, naquilo que também, como objetos escolhidos, extraio como referências13 13 . DALÍ, Salvador. Sim ou a paranóia. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. . Mesmo o crítico ativo Caillois reconhece em Dalí um rigor conceitual que nega à maioria dos artistas do movimento.

O que decanto na leitura do método crítico-paranoico do histriônico catalão é a captura dos fenômenos e das imagens que participam do processo como possuidores de significado em si mesmos. E, mais do que isso, o que ele mesmo afirma ser claramente um conjunto coerente de relações sistemáticas e significativas - já desde os primeiros esboços para produção de um trabalho. Isso não se diferenciaria, até certo ponto, da narrativa diurna bretoniana, de sua apropriação dos encontros como encontros objetivos, das percepções dos objetos como uma constelação de signos.

No interior do tempo começou a surgir a partir da sala a ser ocupada, a Academia dos Seletos. Será por acaso que o verbo "selecionar" aparece com tanto destaque aqui, quando venho focalizar a produção de uma obra destinada a ocupar um espaço intitulado Academia dos Seletos? Um espaço retangular, com piso de tábuas corridas, e apenas uma porta para entrada e saída dos observadores, escolhido e selecionado (tive esse privilégio) mais de um ano antes, para construir uma situação instalativa - outra.

Adiamentos para a realização da exposição permitiram que encontros não premeditados fossem acontecendo, e o projeto original perdendo força. O principal encontro talvez tenha sido um contato de inesperado impacto com um livro de anatomia seccional humana. As imagens do livro me levavam diretamente a meus próprios trabalhos - Rostos (2006), Vista (2010), Escultura como imagem (2008), para mencionar alguns -, e também a máscaras africanas, à melhor arte moderna, a fantasmas já imaginados ou imaginados que imaginados. Os corpos reais seccionados, ao encontro dos quais fui levada em seguida pelo professor de anatomia que me havia apresentado o livro, possivelmente foram contactados de modo um tanto amortecido por sistemas de defesa. Ou pelo forte tratamento de formol. Ou ainda porque neles não encontrei o que mais procurava: as cabeças abertas vistas pouco antes no livro. Fiz fotos, que descarreguei rapidamente da câmera para o computador e dele para um CD. Ainda não sinto desejo de olhar para elas.

Por outro lado, agarrei-me de modo um tanto obsessivo às visões do livro: os cortes frontais, transversais e longitudinais de cabeça; mobilização visual potencializada pelas legendas no alto das páginas, que identificavam os cortes como Gênero Masculino ou Gênero Feminino. Vi ali um ato falho editorial sublime, síntese de todo o entendimento que o senso comum possui da construção dos gêneros como algo que se dá de dentro para fora. E havia mais: em cada página, três ou quatro colunas de legendas numeradas, com fartas indicações sobre cada pequeno pedaço das imagens expostas. Os textos eram extremamente ricos ao rapidíssimo olhar que me foi possível naquele primeiro encontro: lobo insular , seio temporal, pia-máter... os sentidos das palavras e de suas frações pareciam multiplicar-se exponencialmente.

Coloquei mãos à obra de um modo meio tateante e ofegante, e surgiram os dois trabalhos que apresentei na exposição coletiva que havia motivado a visita ao Departamento de Anatomia: Poema visual interior masculino e Poema visual interior feminino - scan de duas páginas, impressão fine arts e recobrimento com guache preto de partes das legendas, para "compor poemas". Depois dessas duas primeiras experiências, veio toda a série dos 21 Poemas visuais interiores, que entraram na instalação No interior do tempo, na qual as intervenções em guache se estenderam também sobre as imagens dos cortes.

No mesmo período, ainda em meio à produção dos poemas, mas, já visualizando as duas linhas de "desenhos-poemas" nas duas paredes longas da Seletos, aconteceu um segundo encontro imprevisto: fui chamada a visitar pela última vez a fábrica em que realizei muitas peças em ferro nos anos 90, lugar de grande importância afetiva e na minha história como artista. A Cia. Federal de Fundição, na Pavuna, Baixada Fluminense, estava sendo vendida, e o local passaria a ter outra atividade, de todo diferente, o que significaria literalmente sua extinção como lugar da minha história. O chamado envolvia alguma urgência, pois a fábrica seria entregue ao novo dono em alguns dias - com tudo o que ainda estava dentro, incluídas algumas peças minhas, que lá ficaram meio abandonadas desde a exposição Humanoinumano (1995).

Voltei, portanto, à fábrica, já prevendo um cenário melancólico de despedida, que de fato encontrei; um cenário de desolação: os imensos galpões, antes repletos de máquinas, barulhos ensurdecedores e muita gente trabalhando, estavam desérticos e só não inteiramente silenciosos porque um ou outro velho operário se mantinha, quase como em ato de resistência, fazendo um pequeno trabalho em alguma máquina remanescente.

No centro de um dos galpões, uma estranha cadeira construída por um soldador, alta demais, desproporcional, restava estranhamente solitária. Um canto escuro, um banquinho de madeira muito sujo, um carrinho de mão, um velho armário de vidro - em meio a outros elementos de potencial um tanto sedutor, essas peças piscavam o olho para mim como restos que pareciam fazer parte de meu vocabulário desde sempre. Entre elas, sobre uma bancada, um objeto quase inominável: um carrinho de ferro, ou seria um banquinho com rodas?, forrado por camadas de camurça imunda, presas por fitas adesivas encardidas, já meio soltas. Era provavelmente um apoio para polir peças recém usinadas de inox. Um objeto que, na Seletos, eu já antevia, estaria só, no chão, desamparado - um resto. Quanto trabalho aquele objeto já teria suportado... Pedi. "Leva!" O trabalhador que respondeu estava ali, bem amargurado com o fim da fábrica. Fui imaginando esses elementos na sala da exposição e que relação teriam com as imagens do livro de anatomia: cabeças abertas. Pedi autorização para me apropriar dos escolhidos, para mim especiais, já que tudo certamente seria dispensado como sucata. Voltei dias depois com transporte para levar as peças para o ateliê. Imagino se Boiffard tivesse interesse em fotografar a cadeira de soldador, solta no espaço do galpão abandonado, e a imagem fosse publicada em uma edição da Documents...

Houve ainda um terceiro encontro, também dentro desses dias tão densos: fui convidada para uma viagem de puro encantamento, uma ida a Búzios, com meu filho, para conhecer sua namorada. A mais elogiada namorada de que tenho notícias da boca de meu filho único. Portanto, a circunstância era de enlevo emocional.

O belo casal levou-me a praias deslumbrantes, paisagens oníricas. Com certeza, meu olhar estava contaminado pela emoção de estar em tão doce companhia, que me inspirava os mais emotivos pensamentos - de toda ordem, devo dizer, pois minha máquina de produção de fantasias tem funcionamento autônomo e ritmo irregular. Levaram-me, por fim a uma paisagem muito estranha, não propriamente uma praia, mas um encontro de pedras e mar. Pedras escarpadas, fendas, cenário dramático. A proposta era subir para ver as ondas batendo do outro lado. Um vento terrível. Alturas. Consegui estacionar em um certo degrau de pedra de onde podia ver águas furiosas chocando-se loucamente em um canto de rochas. O jovem casal continuou, com leveza, a escalada e lá fiquei meio atordoada pelos fantasmas misturados à felicidade - e aqui vem novamente Leiris e sua fala sobre o poder de certos objetos ou circunstâncias de trazer à superfície elementos da nossa vida abissal. Ali, tive a chance de fazer o que sempre anseio imensamente fazer em momentos desse tipo: sublimar. Gravei com meu celular, me entortando como pude - o que já sentia torto - aquela imagem das águas espumantes recobrindo as pedras escuras. Uma cena grega, uma pintura alemã, um filme de Antonioni, um lugar atemporal, o sabor de um perigo iminente, o vento, o equilíbrio delicado e a transcendente violência da imagem. E um tipo de euforia por ter tido a oportunidade de capturar aquela joia - e em tão valiosa companhia. E mais não digo.

The master's bedroom

O desenrolar dos trabalhos foi toda uma experiência da estranheza. Na produção dos Poemas visuais isso foi bem literal, por trabalhar sobre imagens cadavéricas: olhava-as fixamente até perceber o que fazer com elas. Foi estranho também ser uma "fazedora de poemas", como uma estranha em um território estrangeiro e falsa poeta. Em território estrangeiro, porque em toda a minha vida pouco li poesia e tive uma relação problemática com esse meio. Falsa poeta porque não me atirei no abismo infinito das palavras e sim caminhei dentro dos estreitos limites dados pelo conjunto de letras e palavras disponíveis nas legendas, no modo organizado por alguém, em consonância científica com a imagem. Além disso, roubando aqui e ali, cometi absurdos ortográficos, construí letras (recobrindo parte da letra), dividi e inventei palavras com sonoridades que poderiam sugerir outras que eu desejava e não dispunha (uma oportunista, digamos).

Da mesma forma que o texto subjacente foi o que me permitiu ser essa poeta esquisita, como se fornecesse a trilha a ser percorrida pela divagação - ou uma espécie de caderno de desenho liga-pontos - a imagem interior também seria o suporte e estímulo para a intervenção.

Foi esse registro que trouxe a lembrança do clássico The masters's bedroom, de Max Ernest (1920), tanto pelo método de produção de sua "colagem" quanto pela descrição que faz de suas sensações ao encontrar o catálogo ilustrado:

Reunidos ali, encontrei elementos de figuração tão distantes que o próprio absurdo dessa reunião provocou em mim uma súbita intensificação das faculdades visionárias e fez nascer uma sucessão de imagens contraditórias, imagens duplas, triplas e múltiplas que se sobrepunham umas às outras com a persistência e a rapidez próprias das recordações amorosas e das visões do meio-sono.

(...) Bastava então embelezar essas páginas de catálogo, pintando ou desenhando, e para isso era suficiente reproduzir docilmente aquilo que se via a si mesmo em mim, uma cor, um esboço a lápis, uma paisagem estranha aos objetos representados, o deserto, um céu, um corte geológico, um soalho, uma linha reta significando o horizonte, para obter uma imagem fiel e fixa da minha alucinação; para transformar em dramas reveladores dos meus mais secretos desejos o que antes não passava de vulgares páginas de publicidade14 14 . ERNEST, Max. "Au delà de la peinture". Cahier d'art, Paris, 1936, apud CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 433. .

Se a visão das imagens no livro de anatomia e a leitura das legendas me proporcionaram essas sensações de reencontro, de pressentir ali o inesgotável potencial de criação, como um acolhimento em um lugar já conhecido ou aguardado, posso dizer que o mesmo se deu no encontro com as estranhas peças de mobiliário feitas pelos operários da Cia. Federal de Fundição - lá deixadas como restos do que já havia sido levado, certamente como mais valioso para alguém, mas exatamente o que eu desejaria. O sentimento taquicárdico na paisagem emblemática das águas e pedras talvez também envolva um sentimento de encontro livre de dúvidas. Ali, a captura do modo precário que o inesperado permitiu determinou a linguagem com que o objeto foi "presentado", presentificado: a grande projeção apresenta os limites da resolução de uma câmera de celular e de mão insegura; e o som, nos limites que o vento e a captura mono impuseram.

A rede dinâmica da produção de sentidos

Talvez a percepção da oportunidade do encontro seja o que dá a esses objetos algo de muito real. Há uma força de presença capaz de coincidir com a objetividade simbólica que reivindico para minhas escolhas. A materialidade incorporada por Bataille à noção de imagem - literalmente incorporada, o que propõe um entendimento de imagem que vai na direção contrária à da norma cristã da encarnação de sentido de modo independente da matéria - traz a mim, mais uma vez, sua operação do informe, desclassificante, bem como, sobretudo, o trabalho das relações, da rede de contatos, das semelhanças e dessemelhanças, verdadeiras e falsas, que faz o sentido ser dinâmico e impermanente. Isso resgata para o núcleo de No interior do tempo, em especial, as peças da série Humanoinumano (1995). Essas peças são cortes anatômicos, estão inteiramente contidas nos Poemas visuais interiores - e foram feitas na fábrica. Todo o processo da produção da série Humanoinumano - mais de vinte peças - envolveu uma experiência riquíssima de convivência com a fábrica nos anos 90, sob perspectivas múltiplas. Rendeu minha dissertação de mestrado e memórias de um investimento que até hoje me faz refletir, e que não caberia aprofundar aqui. Finalmente, puxo todos os demais trabalhos, Cabeça oval, La mére em si (ou MiniVer para olhar) e Cadeira mãe e filha, para esse núcleo, como capazes de estabelecer conexões: todos propõem uma dinâmica de desconstrução do antropomorfismo e das relações entre o dentro e o fora; foram trabalhos realizados em momentos diferentes, mas tiveram também seu processo em que encontros foram significantes, como penso que é meu modo de trabalho.

Ainda que em alguns momentos considere que a constelação de um sentido mais unificado para No interior do tempo, mesmo instável, seja bastante evidente para mim, sinto o "conforto" de uma razoável opacidade, aquela de que fala Caillois: suficiente para que o observador possa considerar que há uma camada subjacente de conexões lógicas e que a ele é dada a possibilidade de encontrar alguma chave para seu deciframento.

Para mim a expressão "no interior do tempo" é repleta de sentidos, como um significante sintético, mas também na relação com o poema, assim como várias outras expressões surgidas nas formulações a partir das legendas. Marcelo Campos - curador que fez intervenções delicadas e acolhidas no formato final da ocupação do espaço - chegou com visões suas para o trabalho, incorporando leituras de Virilio, e que considerei contribuição extremamente afinada com a coisa toda15 15 . VIRILIO, Paul. Estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. . Isso porque trouxe a ideia de uma outra economia do tempo, sobre a impossibilidade de uma vigília a ser de fato compartilhada, posto que para cada um a realidade do mundo que passa obedece a temporalidades distintas, admitindo que o tempo consciente de cada um seja "ressoldado", de modo particularmente elaborado, tanto quanto o sonho é também um trabalho de montagem com sua tecnologia própria. Essa poderia ser uma fala bastante aproximada do que Breton reivindicaria para as escolhas que faz ao enumerar seus encontros diurnos - e na forma poética em que o faz. Ou do que Salvador Dalí propõe como método de trabalho crítico-paranoico: a atitude ativa, sistemática, organizadora, cognoscitiva dos fenômenos considerados associativos, parciais e significativos na nossa experiência imediata e prática da vida.

Parece-me, enfim, um modo de afirmação das relações entre os campos de elaboração consciente e inconsciente, como vasos comunicantes.



  • 1
    . BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. CAMPOS, Haroldo. Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Edusp, 2000.
  • 2
    . BRETON, André. Surrealism and painting. Boston: MFA Publications, 2002, p. 4.
  • 3
    . LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 63.
  • 4
    . CAILLOIS, Roger. "The Praying Mantis: From Biology to Psychoanalisys". In: The edge of Surrealism. Durham; London: Duke University Press, 2003.
  • 5
    . LEIRIS, Michel. Espelho da Tauromaquia. São Paulo: Cosac&Naify, 2001, p.11- 12.
  • 6
    . CAILLOIS, Roger. "Surrealism as a World of Images". In: The edge of Surrealism, op. cit., p. 332.
  • 7
    . Idem, ibidem, p. 333.
  • 8
    . Ver MITCHELL, W. J. T. Iconology: Image, text, ideology. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, em que o autor disseca práticas de desvalorização da recepção visual por parte de alguns pensadores ilustres e sua insistência em marcar a diferença entre palavra e imagem.
  • 9
    . CAILLOIS, Roger. "The image". In: The edge of Surrealism, op. cit.
  • 10
    . DIDI -HUBERMAN, Georges. A semelhança do informe - ou o gaio saber visual Segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015, p. 37.
  • 11
    . CAILLOIS, Roger. "Fruitful ambuiguity". In: The edge of Surrealism, op. cit. p. 323- 324.
  • 12
    . DIDI -HUBERMAN, Georges. Imagem sobrevivente: a história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
  • 13
    . DALÍ, Salvador. Sim ou a paranóia. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
  • 14
    . ERNEST, Max. "Au delà de la peinture". Cahier d'art, Paris, 1936, apud CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 433.
  • 15
    . VIRILIO, Paul. Estética da desaparição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2016
  • Aceito
    18 Maio 2016
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