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Desaparecimento no mar: imagem e tempo na obra de Tacita Dean

Disappearance at the sea: image and time in Tacita Dean's work.

Resumo

O presente texto investiga a relação entre tempo e imagem com base em alguns trabalhos de Tacita Dean. Ao recuperar a trágica história do navegador inglês Donald Crowhurst, que tentou dar a volta ao mundo e acabou enredado em sua própria narrativa, a artista sinaliza as intermitências da imagem, cuja temporalidade é marcada por desaparecimentos e sobrevivências. As fotografias e os vídeos de Dean nos apresentam um presente mantido em suspensão e povoado de múltiplos passados. Entretanto, o que se vislumbra são projeções sobre as lacunas e os restos da história, assinalando que a própria imagem se funda sob o signo da ausência. A partir dessa premissa, Dean investiga a nossa cultura da obsolescência explorando temas como as ruínas arquitetônicas, os resquícios do passado e da história e também a própria memória. Ao fazer uso de tecnologias obsoletas em seu processo de trabalho, a artista indaga sobre a natureza da imagem e sua relação intrínseca com o tempo.

palavras-chave:
Tacita Dean; tempo; imagem

Abstract

This article investigates the relation between time and image based on some works of Tacita Dean. When the artist recovers the tragic story of the English navigator Donald Crowhurst, who tried to go around the world and became entangled in his own narrative, she points out the intermittency of the image, whose temporality is marked by disappearances and returns. Dean's photographs and videos present us with a present that has been kept in suspension and populated by multiple pasts. However, what is glimpsed are the projections about the gaps and the remains of history, noting that the image itself is founded under the sign of absence. From this premise, Dean investigates our culture of obsolescence exploring themes such as architectural ruins, remnants of the past and history and memory itself. By making use of obsolete technologies in her work process, the artist inquiries about the nature of image itself and its intrinsic relationship with time.

keywords:
Tacita Dean; time; image

Era uma vez, em outro tempo, a história de um homem que navegou para além do horizonte, rumo ao desaparecimento. Donald Crowhurst, ao contrário de Ulisses, não se amarrou ao mastro de seu trimarã, mas criou, ele mesmo, seu próprio canto das sereias e, enredado em uma narrativa sem fim e sem retorno, transformou sua vida na orla exígua de uma imagem.

No verão de 1968, o jornal inglês Sunday Times promoveu uma competição marítima, que premiaria o primeiro homem a circunavegar, sozinho e sem escalas, o globo terrestre. Cada participante poderia escolher o lugar de partida e zarpar entre 1 de junho e 31 de outubro daquele ano, concorrendo a dois prêmios: um para o primeiro a completar a odisseia e outro para quem fizesse a viagem mais rápida. Entre os oito navegadores profissionais, inscreveu-se, também, um velejador amador e desconhecido. Em relação a esse navegante solitário, sabemos, apenas, que era casado, pai de quatro filhos e que enfrentava uma crise em seu pequeno negócio, estabelecido em Teignmouth, uma pequena cidade costeira junto às falésias de Devon, no sul da Inglaterra.

A jornada de ilusão, na qual Crowhurst embarcou, foi o ponto de partida para outra viagem, mas realizada em outro mar e em outro tempo, pois ela se faz no imaginário. A partir da história desse aventureiro inglês, a artista Tacita Dean elaborou uma série de trabalhos relacionados ao mar e às viagens épicas, como em Teignmouth Electron e Disappearance at the sea1 1 . Teignmouth Electron. Fotografia colorida, 68 x 89 cm e filme em 16 mm, colorido, anamórfico, som óptico, 7 min., 2000. Disappearance at the sea, 1996. Filme em 16 mm, colorido, anamórfico, som óptico, 14 min . Como no jogo de espelhos de um caleidoscópio, fotografia, filme e escrita se atravessam, criando novas imagens fractais da saga daquele homem que naufragou em sua própria narrativa. Dean nos relata, enquanto procurava naquela cidadezinha provinciana um cartão-postal comemorativo do evento, a história desse destemido velejador, cuja vaga experiência não era o bastante para dissuadi-lo de se lançar ao mar em um barco inadequado e sem saber o que enfrentaria.

Durante os meses que antecederam à sua partida, Crowhurst tornou-se o orgulho de Teignmouth. Graças à Comissão de Relações Públicas, conseguiu financiar a construção de seu trimarã, o qual foi batizado com o nome de Teignmouth Electron em homenagem à cidade. Mas o frenesi em torno dele foi aos poucos se convertendo em um fardo angustiante, na medida em que o dia de sua partida se aproximava. Em meio aos festejos e comemorações, Crowhurst deve ter percebido o quanto estava embrenhado na armadilha de suas próprias bravatas e do ardor cívico daquela gente2 2 . Cf. DEAN, Tacita. Tacita Dean: a medida das coisas. São Paulo: IMS, 2013, p. 30. .

Na tarde de 31 de outubro, Crowhurst partiu levando consigo filmes de 16 mm, fitas para gravações e diários de bordo. Havia apostado tudo naquela aventura capaz de lhe dar notoriedade, salvar seu negócio e projetar o futuro da família; desistir, portanto, não era uma opção. Atravessou meio Atlântico até perceber que não tinha condições de durar um dia sequer nos vendavais da latitude 40, entre os paralelos 40º S e 50º S - conhecidos pelos navegantes como “The roaring forties” (Os quarenta rugidores) - quanto mais dar a volta ao mundo. Entretanto, na impossibilidade de dar a volta ao mundo em oitenta dias, Crowhurst inventa, também, uma forma de dar a volta ao dia em oitenta mundos. Para essa ode marítima, ele escolhe outro mar: o da ficção, da narrativa. Um mar mais sereno, talvez tenha pensado, porém igualmente sedutor e traiçoeiro. O imaginário é o lugar onde nada acontece de verdade; confiando nisso, Crowhurst forja sua viagem pela escrita. De um lugar recôndito no Atlântico Sul, por onde ele ficou navegando, estimava matematicamente a posição em que deveria estar, caso tivesse mantido o curso previsto na competição, e registrava aquela informação falsa em seus diários de bordo, criando uma viagem imaginária a lugares desconhecidos. Para não dar pistas de sua verdadeira localização, tomou o cuidado de cortar o sinal de rádio e de evitar as rotas dos navios.

Por meio da narrativa, ele singrava os mares avançando bravamente pelas intempéries e pelas tormentas que ameaçavam seu frágil trimarã. Navegava na ficção, inventando laboriosamente as coordenadas falsas, as descrições atmosféricas detalhadas e alguns pormenores anedóticos, que, como em toda boa narrativa, oferece uma preciosa aparência de credibilidade. Depois de um tempo, os registros lançados em seus diários de bordo eram cada vez mais insólitos, incluindo especulações a respeito das teorias de Einstein sobre a relatividade e seu discurso pessoal com Deus e com o universo. Enquanto Crowhurst se debatia contra as ondas do imaginário, o mundo acreditava que o inexperiente velejador avançava prodigiosamente sobre as águas e, devido ao silêncio do rádio, o assessor de imprensa em Teignmouth exagerava o progresso dele pelos mares, criando uma dupla narrativa fantástica.

Quando em junho de 1969, as coordenadas de sua viagem ficcional coincidiram com sua posição real no Atlântico, ele pôde reestabelecer contato com a estação de Portishead, quando, oficialmente descobriu que liderava a competição. Haveria uma equipe de reportagem enviada pela BBC à sua espera nas proximidades da costa britânica. A Inglaterra o esperava, como Ítaca outrora havia esperado pelo seu herói. Porém, Crowhurst estava, inteiramente, absorvido pela narrativa que criara, não sabia mais onde exatamente se encontrava e tinha perdido por completo a noção do tempo. Os marinheiros, como se sabe, são observadores do tempo, mas há entre eles um problema recorrente, denominado “loucura de tempo”. Esse transtorno acontece quando não se sabe precisamente que horas são e, consequentemente, não se pode determinar a posição no mar, pois a longitude só poderia ser deduzida calculando a diferença entre o horário local e o marco zero, Greenwich. Para obter essa informação precisa, os navegantes utilizavam o cronômetro de navegação e faziam do ato de dar corda a esse instrumento, o ritual mais importante do dia. O atraso de apenas alguns minutos poderia resultar em um desvio de centenas de milhas para fora da rota traçada.

A distorção na percepção temporal desorientou Crowhurst na imensa massa de águas encrespadas do oceano. Ele escreve em seu diário: “o relógio de Deus não é o mesmo que o nosso. Ele tem uma quantidade infinita do ‘nosso’ tempo”3 3 . CROWHURST, Donald apud DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 40. . Esmagado pela enormidade da ficção que criou, entregou-se à escrita e ao delírio até que sucumbiu aos encantos de uma voz vinda de outro lugar, oriunda das profundezas do oceano, deixando as últimas palavras: “Acabou - Acabou. É a misericórdia”4 4 . Idem, p. 40. . Ao encontro desse canto, ele submerge na calmaria do mar dos Sargaços, apenas a algumas centenas de milhas da costa inglesa, levando consigo o cronômetro de navegação.

Quando localizaram o trimarã no Atlântico, acreditaram em acidente e sua mulher ainda tecia esperança. Entretanto, o exame dos diários de bordo revelou a agonia daquela navegação - “feliz, infeliz, que é a da narrativa”5 5 . BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 6. - na qual Crowhurst destemidamente embarcou. Suas anotações foram publicadas em folhetim pelos jornais britânicos, e assim, o atraiu irremediavelmente para as profundezas de um outro mar, não mais de águas crispadas, mas o da escrita.

Se o navegador trapaceou, entretanto, não foi com ceras nem correntes para gozar “aquele gozo covarde, medíocre, tranquilo e comedido, como convém a um grego da decadência, que nunca mereceu ser o herói da Ilíada6 6 . Idem, p. 5. . A trapaça de Crowhurst não lhe salvou a vida, nem o livrou do encantamento fatal daquela outra navegação, pelo contrário, inscreveu-o no movimento sem volta em direção ao canto de sua própria ficção. Direção essa que, desenraizada, está aquém ou além de qualquer centro e tem no desaparecimento a sua única possibilidade. Ele precisou sucumbir nas águas para que sua narrativa pudesse finalmente emergir anadiômena, tremulante como a crista das ondas. Sua obra consistiu em “fazer do tempo humano um jogo e, do jogo, uma ocupação livre, destituída de todo interesse imediato e de toda utilidade, essencialmente superficial e capaz, por esse movimento de superfície, de absorver, entretanto, todo o ser”7 7 . Idem, p. 7. , narrando-se a si mesma. Porque a narrativa - e em sentido ampliado a imagem - não é o relato de um acontecimento, mas o próprio acontecimento, já que a ação que ela presentifica é, segundo Blanchot, a da metamorfose. Podemos pensá-la então como o desejo de dar a palavra ao tempo, uma vez que é o tempo cotidiano que faz avançar o romance. A narrativa em si, se desdobra em outro tempo, naquela outra navegação que é a passagem do canto real ao canto imaginário, como nos diria Blanchot. Nesse encontro reside toda ambiguidade da imagem, que vem, portanto, da ambiguidade do tempo. É ela que possibilita a fascinante experiência de algo que está presente enquanto imagem, embora essa experiência não pertença a nenhum presente, e até mesmo destrua o presente no qual se insere. Assim, se desdobra o tempo na imagem, ao fazer do acontecimento memória e da memória, imagem, a partir da montagem.

O que Crowhurst nos conta por meio de seus diários e aquilo que Tacita Dean nos apresenta em imagens é, duplamente, a abertura de um movimento infinito em direção ao encontro do acontecimento que toca o presente e anuncia um conto ainda por vir. Entretanto, esse encontro inapreensível não pode ser tornado presente, pois está sempre afastado do tempo e do espaço nos quais se afirma. Além disso, se distancia, também, do real ao qual a narrativa tenta se aproximar, como escreve Blanchot:

Esse acontecimento transtorna as relações do tempo, porém afirma o tempo, um modo particular de realização do tempo, tempo próprio da narrativa que se introduz na duração do narrador de uma maneira que a transforma, tempo das metamorfoses em que coincidem, numa simultaneidade imaginária e sob a forma do espaço que a arte busca realizar, as diferentes estases temporais.8 8 . BLANCHOT, Maurice. Op. cit., p. 13.

Na odisseia de Donald Crowhurst, contemplamos a aparição da imagem em sua inapreensível presença e nos deparamos com o “tempo da ausência de tempo”, como propõe Blanchot. Talvez tenha sido a radicalidade dessa narrativa que seduziu Tacita Dean à realização de Desaparecimento no mar e Teignmouth Electron. O trabalho da artista é marcado por um olhar atento e absorto sobre objetos e acontecimentos aparentemente simples, mas cuja efemeridade os torna intangíveis e preciosos. Interessa-lhe registrar pessoas, histórias e lugares antes que estes se apaguem definitivamente da memória. Sua prática artística consiste em um elaborado processo de observação, a partir do qual os objetos de seu interesse são deslocados de seus contornos familiares, para que, pacientemente, emerjam como imagem. A obra de Dean se ocupa, precisamente, do limiar entre acontecimento e narração, do encontro entre o acontecimento e a sua imagem. O que resulta desse trabalho intenso e silencioso é um presente em suspensão, mas atravessado por múltiplos passados.

As imagens de Dean não são nada simples, pois elas estabelecem uma complexa rede de conexões incomuns a partir de um processo associativo entre coincidência e contingência, que criam novos estratos de significado. Nesse processo de construção da imagem, o acaso, sempre, se manifesta como um instante decisivo, irrompendo como kairós na linearidade cronológica. Para que esse acontecimento se torne parte da obra, é preciso estar aberto a ele, como nos revela a artista: “a ideia do acaso sempre me interessou, mas acho que é algo que depende mais da facilidade para notar - de estar em um estado de graça - do que de qualquer outra coisa”9 9 . DEAN, Tacita apud WARNER, Marina. Interview: Marina Warner in Conversation with Tacita Dean. In: ROYOUX, Jean-Christophe. Tacita Dean. Londres e Nova Iorque: Phaidon, 2006, p. 13. .

Em seu processo de trabalho, Tacita Dean parte da montagem como método e prática de pensamento e de criação da imagem. Sua paixão por pesquisar e por coletar materiais variados se revela no intrincado jogo que entrelaça diversos lugares, objetos e histórias na ampla constelação de suas narrativas. Todo processo de montagem pressupõe antes a desmontagem, ou seja, retirar determinado objeto ou imagem de seu contexto usual e fraturar-lhe o sentido, para que se abra ao diálogo com outros objetos e imagens. Nesses desdobramentos em diferentes direções, revelam-se as ambiguidades e a condição intermitente da imagem, que impossibilita a fixação de um único significado, enquanto faz surgir infinitos outros, adiando sempre qualquer conclusão.

Se a montagem constitui seu método de trabalho, os meios pelos quais ela o emprega são bastante variados, incluindo desenho, fotografia, impressões, livros de artista, instalações sonoras, escritos e objets trouvés. Entretanto, o filme de celulose em 16 milímetros tem um papel de destaque na obra da artista, técnica que ela considera preciosa “tanto pelo imediatismo físico e artesanal quanto por permitir registrar momentos aleatórios e fixar o efêmero”10 10 . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 10. . Além disso, devemos considerar, também, o fato de que esse meio demanda um estado de latência, uma espera que engendra a própria imagem na materialidade por meio da qual ela se revela.

A preocupação com o tempo perpassa toda a sua obra, revelando-se por meio da imagem, o entrecruzamento de passado e futuro no presente suspenso da narrativa, cuja estrutura discreta e condensada confere um ritmo próprio ao fluxo temporal de aparições e repetições da imagem. Suas tomadas longas com a câmera fixa intensificam o esgarçamento do tempo pela imagem, conferindo um ritmo lento e prolongado às cenas filmadas. “Essa duração estendida da tomada, por sua vez, é ecoada e expandida pela reação do expectador à experiência temporal, tal como estruturada por sua própria subjetividade”11 11 . Ibidem, p. 10. . Além disso, a projeção em loop inscreve o presente sem fim na circularidade que rompe definitivamente com a progressão linear do tempo cronológico.

Nos trabalhos de Dean, as narrativas não são, apenas, imagéticas, mas também escritas. Em paralelo aos filmes, a artista escreve textos que funcionam como uma história adjacente, lado a lado com o filme, criando atravessamentos múltiplos, sem, contudo, se tornarem descritivos. Esses textos apontam detalhes de seu processo de criação, suas impressões pessoais - coisas que não são ditas no filme - criando um sistema aberto de correspondências. Palavra e imagem se entrecruzam, mutuamente, e adensam o complexo fluxo de sua obra. A escrita avança por diferentes trabalhos, permitindo que se complementem entre si. Esse procedimento inscreve a obra como um todo no movimento constante de novas apresentações, na medida em que outras conexões são criadas.

Desaparecimento no mar é o primeiro trabalho de uma sequência inspirada pela tragédia de Donald Crowhurst. Foi filmado em formato grande-angular anamórfico, no farol de St. Abb’s Head, em Berwickshire, na Escócia. O filme consiste em apresentar o próprio desaparecimento enquanto acontecimento, mostrado por meio do movimento do sol que se põe no horizonte do oceano, até se tornar escuridão completa. Gravado com som ambiente, esse trabalho marca o início de um processo em que palavra e imagem se dissociam e se constituem em manifestações autônomas, conforme nos revela a artista:

Nos primeiros quatro filmes que fiz, o texto aparecia sobre a imagem. Depois, em Disappearance at sea, entendi que o material era autônomo e não precisava de uma narrativa. Quando abandonei a voz over e usei só o som ambiente foi um ponto de inflexão. A partir daí, texto e imagem passaram a ser duas partes da mesma coisa, outro ponto de vista, não uma explicação.12 12 . DEAN, Tacita apud PIGEOT, Anaël. Tacita Dean: time and ties. In: Artpress, n. 391, jul.-ago. 2012, p. 40.

O filme é composto por várias tomadas longas com base na torre do farol de Berwick, mostrando tanto o seu dentro - no qual vemos em close o prisma de vidro giratório e as lâmpadas do farol - quanto o fora, com o mar e seu horizonte ilimitado até o âmago da escuridão, que vai a qualquer lugar, pois não se vê. Na imagem, os limites entre interior e exterior são apagados, estabelecendo um espaço neutro, que é dentro e fora ao mesmo tempo, como nas duas projeções paralelas. De um lado, vemos o movimento rotativo das lentes do farol criar texturas visuais a partir do jogo de luz e sombra. De outro, olhamos para além da janela circular do farol, a paisagem marítima, vasta como a noite, que entrecortada pelos longos e persistentes raios de luz, aos poucos encobre tudo no desaparecimento. “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino das águas”13 13 . BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 14. . Essas palavras de Bachelard descrevem com precisão a densidade e a sutileza que caracterizam os trabalhos de Tacita Dean.

Na sala de exposição, a presença escultural do projetor, com seus carretéis giratórios, estabelece uma relação especular com o farol, repetindo na parede seu facho, sua paisagem imaginária. O que se apresenta nessas imagens é a frágil relação entre o homem e o incomensurável: o espaço e o tempo, o mar e o farol, cujo raio de luz, longo e firme, reacende na memória a tragédia de Crowhurst. Em diálogo com esse filme, há o seguinte texto da artista:

O farol de Berwick fica no final do cais. O cais estende-se mar adentro, bem além da cidade e bem além do porto. À medida que o trem serpenteia ao longo da costa na chegada a Berwick-upon-Tweed, você consegue divisar o farol de Berwick como um ponto no final do cais e imaginar a pequenez desse espaço fechado em relação à vasta imensidão do espaço além dele: o espaço que é o mar.

O farol é o último sinal humano entre a terra e o oceano, e foi construído em escala humana. No entanto, sua presença indica outro aspecto mundano no mar: uma outra noção de espaço, daquilo que nunca será domesticado pela humanidade, que mais parece a distorcida percepção final das coisas de Crowhurst.

À noite, você espera na escuridão pelas rotações do farol e tenta decifrar o tempo nos intervalos dos flashes. Sem essa cifra, não há tempo. A “loucura de tempo” de Crowhurst, que o fazia acreditar estar flutuando pela pré-história, completamente sozinho numa implacável paisagem marinha muito distante do contato humano, só é possível de ser imaginada quando se está no último sinal de civilização, onde o oceano começa e a terra acaba num solitário ponto de orientação.

Da janela do farol, onde normalmente estaria a luz, é possível apenas vislumbrar o rosto angustiado de Donald Crowhurst. Como o rosto humano na cara da lua, ele se torna a luz do farol, com seu olhar eternamente fixo no horizonte, enquanto contempla o mar.14 14 . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 23.

A obra de Tacita Dean ocupa-se de histórias e de procedimentos que estão na iminência do desaparecimento. Seu ofício consiste em trançar, no tecido já esgarçado de uma narrativa, a trama da memória, desenhando, com as linhas de uma escrita lavada pelo tempo, os traços de uma nova imagem e as palavras de uma nova escritura. A imagem e aquilo do qual nos lembramos, não são jamais o acontecimento em si, mas o tecido, o texto, de sua rememoração, trançado a partir da urdidura do esquecimento. Assim, ao revés dos gestos de Penélope, a artista constrói imagens a partir de um substrato que se apaga, a partir daquilo que o esquecimento havia tecido durante a noite e que, a cada manhã, o dia insiste em desfazer ao rememorar e tramar os farrapos da existência vivida com os fios retirados do olvido15 15 . Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012 , p. 38. . O trabalho do dia consiste, pois, em desfiar os ornamentos do esquecimento para lançar as teias de uma outra história, um outro tempo, um outro lugar. Talvez por isso as imagens diurnas e densas de Tacita Dean pertençam ao limite em que dentro e fora se tocam, em que o tempo e a sua ausência são presentes simultaneamente, abrindo a medida das coisas para uma outra duração, mais próxima dos sonhos, afinal, “somos feitos da mesma matéria dos sonhos”16 16 . SHAKESPEARE, William. A tempestade. Ato IV, cena I. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/tempestade.html>. Acesso em: 06 jul. 2014. .

A potência desses trabalhos consiste na visibilidade que coisas ilusórias e invisíveis adquirem pela imagem. O processo de elaboração de uma obra com base no tecido lacunar do tempo, ou seja, nos resíduos e, também, naquilo que falta e que, por isso mesmo, passa a significar, instaura uma relação com a imagem que não é mediada pela semelhança, mas pelo gesto. Em busca desses resquícios de tempo, Dean empreendeu uma pesquisa de quatro anos e desenvolveu trabalhos baseados na história de Donald Crowhurst. Ela viajou à Teignmouth e, posteriormente, à ilha de Cayman Brac, no mar do Caribe, para fotografar e filmar o trimarã em seu lugar de descanso final.

Depois de encontrado à deriva, o Teignmouth Electron foi levado ao Caribe e vendido por uma ninharia para um homem, que o usaria em seus passeios turísticos em Montego Bay. Ele fez algumas modificações no barco para melhorar sua navegação e comportar até dez pessoas. Com esses ajustes, o barco se tornou um potente veleiro e teria sido o mais veloz daquela competição, caso Donald Crowhurst tivesse empreendido essas melhorias. Em um período de crise do turismo na Jamaica, o barco foi novamente vendido e seu novo dono o levou para a ilha de Cayman Brac, em que seria usado nos negócios de mergulho.

Durante uma noite de furacão, o barco foi, severamente, danificado. Enquanto estava sendo reparado, descobriram-se quatro compartimentos secretos, que Crowhurst abastecera com suprimentos de emergência, para o caso de o barco emborcar. Também foram encontrados alguns mapas, a bússola de bronze, panelas e vasilhas. Entretanto, os reparos, nunca, se efetivaram e, ao longo dos anos, o barco foi sendo desmantelado aos poucos. O que resta dele é, apenas, o casco vazio e, no chão, pedaços abandonados da pia e do lavatório. Em meio à vegetação selvagem de uma praia deserta, está o barco entregue à ruína do tempo e afastado da fluidez que o completava.

Mesmo antes de encontrar o Teignmouth Electron encalhado no matagal em Cayman Brac, eu já o imaginara nos escritos de J.G. Ballard. Agora, quando caminhava pela estrada, que corria paralela à pista, e avistei o trimarã no mato, mais que nunca coloquei-o em seu mundo ficcional, um mundo em que o mar havia recuado e deixado nossos barcos encalhados, ou subido e carregado nossos portos para lugares estranhos e impróprios. De qualquer forma, o Teignmouth Electron não estava mais no lugar certo. (...) De outros ângulos, ele também parece um tanque ou a carcaça de um animal ou um exoesqueleto deixado ali por alguma criatura errante hoje extinta. Seja o que for, está em desacordo com sua função, esquecido por sua geração e abandonado por seu tempo.17 17 . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 39.

O trabalho Teignmouth Electron consiste em um vídeo e fotografias que foram reunidos em um livro com alguns textos da artista. As imagens silenciosas do barco devastado e abandonado à fixidez de arbustos e coqueiros criam um retrato contemplativo de algo fora do tempo e na paisagem sem rosto. Mais do que uma narrativa sobre a história do naufrágio, o filme e as fotografias se ocupam do tempo, que, em um eterno devir, modifica tudo, mas reconhece no presente os lastros de um passado. A câmera examina cada detalhe da estrutura deteriorada do barco e oscila entre quadros imóveis e demorados travellings. Vemos, então, que a vegetação verde ocupa o lugar das ondas, cresce sob o casco, inunda cada fenda. Em outra sequência, a câmera passeia pelo exterior do barco e mostra os efeitos do sol, que apaga as palavras e desbota as cores, rebaixando tudo a um tom gris, quase indistinto, sobre a carcaça quarada do veleiro. Sua pintura craquelada revela, como um palimpsesto, outras camadas tremulantes e a potência do encarnado latente. Com um close, a câmera nos conduz para dentro de um de seus compartimentos. Pelas superfícies de um branco perdido, a chuva cuidou de pintar aguadas em tons de roxo e ocre; oxidou algumas partes, corroeu outras, criou texturas e linhas que desenham o espaço e se adensam em planos e manchas de cor. Nessas imagens construídas com plasticidade pictórica, o branco maculado da embarcação se torna sintoma: é ao mesmo tempo o encarnado da pintura e a branca potência do subjétil. Fora da água, entre coqueiros e ervas resistentes ao solo arenoso, aquele veleiro abandonado surge com a mesma brancura ancestral e anacrônica de uma ossada pré-histórica, como o esqueleto de algum animal extinto, escavado das profundezas de mundos imaginários, e que ainda nos assombra no presente. Diante dessa aparição intempestiva, somos invadidos pelo passado, que se projeta sobre o nosso futuro, eis aí a fonte de nosso temor e do nosso tremor diante da imagem.

O tempo se impõe às cores, bem como aos seres e às coisas. Para reconhecer seu poder soberano, a grisalha, antiga prática pictórica de rebaixamento tonal, pode nos abrir a outras imagens através de sua cor, perdida na distância e no tempo. Ampliando o sentido desse “coloris de descoloração”, Didi-Huberman, vê a grisalha como uma forma de dizer do poder do tempo que age sobre as coisas, passa sobre tudo como um sopro e tudo esmaece.

Uma imagem em grisalha não nos apresenta nada de “neutro”, nada de estável, nada de estritamente definido. Parece antes resultar de um momento e de um movimento: trata-se do tempo que passou, como uma rajada de vento, e que ao passar, pulverizou (nos dois sentidos do verbo: depositar poeira e destruir) a cor das coisas.18 18 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Grisalha: poeira e poder do tempo. Lisboa: KKYM+IHA, 2014. (Livro digital)

Essa descoloração que se interpõe entre a visibilidade e a invisibilidade é tanto a matéria quanto o tempo, ou melhor, é a matéria agitada pelo vento do tempo, que desbota e apaga tudo. Assim, aquele branco acinzentado, que pulveriza a ordem das cores, é a potência encarnada da imagem, a qual “reúne em si a essência do chrôma (a cor) e do chronos (o tempo)”19 19 . Ibidem. . É, então, como uma grisalha, que o Teignmouth Electron habita a paisagem aberta.

Na obra de Dean, a imagem não procura salvar as aparências, não se diz pela semelhança, mas antes pela diferença. Seus trabalhos não descrevem, literalmente, a história de Crowhurst, mas ampliam seu gesto em outro tempo e outro espaço. Sua poética consiste em revelar a vida oculta e misteriosa dos restos, dando voz e olhos a esses fragmentos, que pela imagem nos olham e se pronunciam. O sentido de tais trabalhos se edifica sobre as lacunas e os restos da história. É porque falta que imaginamos e criamos imagens. É sob o signo da ausência que se fundam tanto a imagem quanto a escrita, a partir da contradição de limites inseparáveis.

Palavra e imagem se misturam na obra de Dean e nos recordam de outros poetas-pintores, que embora inscritos em outro tempo, nos são contemporâneos, na medida em que suas imagens nos chegam do passado com o fulgor de um presente. Assim é a imagem dialética para Benjamin, como também o contemporâneo, no sentido proposto por Agamben, tempo anacrônico de imbricações múltiplas, no qual a imagem exerce seu fascínio e retorna em aparições inesperadas. Nesse fluxo e refluxo do tempo, movimento anadiômeno de desaparecimento e aparição, há sempre algo que fica, que permanece, que sobrevive. É a partir dessa presença, desse algo que fica, que o poeta-pintor Vitor Hugo pensa a imanência, em acordo com a raiz latina do verbo immanere, que significa ficar, permanecer. A respeito dessa escolha etimológica, Didi-Huberman nos esclarece:

Mas o poeta considera também o adjetivo latino que se encontra ao lado: a palavra immanis, que significa imenso, o demasiado vasto, o monstruoso, o prodigioso, o áspero e o selvagem, em suma, tudo o que Hugo empresta justamente às ‘forças obscuras’, daphysis como da psyché, da soberana tormenta natural como dos perpétuos tormentos da alma.20 20 . DIDI-HUBERMAN, Georges. A imanência estética. In: Alea: Estudos Neolatinos, v. 5, n. 1, jan.-jul., 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2003000100009>. Acesso em: 06 jul. 2014.

O que faz desse poeta francês, de meados do século XIX, contemporâneo de Dean é o gesto, através do qual a imagem flui como um turbilhão de “fluidos e de dobras”, dilacera a semelhança e faz da metamorfose sua potência. A imanência está ligada à fluidez, às dobras de cada coisa sobre si mesma, ao fluxo generalizado que cria um drapeado poroso e turbulento, o qual coloca em crise a representação ao dissolver os aspectos nos meios.

Vitor Hugo realizou diversas versões de uma mesma pintura - que, entretanto, é sempre outra - intitulada A onda. Sobre essa série de imagens, Didi-Huberman escreve: “é porque ele pensava em primeiro lugar não em definir o que via (aspectos), mas em afogar-se no que olhava (meios)”21 21 . Ibidem. . Hugo leu Ovídio e Lucrécio e aprendeu com eles a desenvolver seu “método do sonhador”, característico da antiga poesia filosófica. No poeta francês, a potência da metamorfose se manifesta sobre tudo, pois “todos os corpos irradiam sua substância e sua imagem”22 22 . HUGO, Victor apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., 2003. . Em outro texto, ele fala da “onda inumerável”, em que tudo bate e respira, no ritmo da imanência, o mundo se faz onda. Pelo seu bater e sua respiração engendra a vida, faz tudo nascer e se desenvolver. O mar, com sua imensidão profunda, seus movimentos intermitentes de fluxo e refluxo, sua mutabilidade, se torna o paradigma da imanência para Vitor Hugo. Tudo retorna poeticamente para o mar, “porque o tempo e o ser são um oceano vivo” e o mar, escreve Vitor Hugo, “é patente e secreto; ele se esquiva, não se preocupa em divulgar suas ações. Faz um naufrágio e o recobre; a engolição é seu pudor”23 23 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit. , 2003. . A imanência é fluida como o oceano e permite que tudo se interpenetre e se modifique constantemente. Esse movimento engendra um ciclo de criação e destruição. Se a imanência pode ser análoga ao mar em toda a sua potência metamórfica, a onda, que nas palavras de Didi-Huberman é um “redemoinho de tempo físico”, seria então a forma elementar da imanência, como nos descreve este autor, a partir de um desenho realizado por Vitor Hugo em 1867:

É uma onda imensa: apenas um meandro ocupa todo o campo da imagem. A pena traçou e retraçou tantas vezes quanto necessário o grande movimento imperioso. O meandro - quase uma boca - é tão aberto que cria, na noite ambiente, um apelo de luminosidade. Ao que, ali onde ele se fecha, a aguada afoga tudo na indistinção do meio. Uma massa de guache branco se agarra à crista e flutua sobre ela: é a espuma arrancada ao próprio movimento. No meio de tudo isso, o navio - o tema submetido ao tempo, segundo a alegoria indicada com todas as letras por Hugo - está literalmente curvado pela força soberana. “Não há visão como as ondas”, escreve magistralmente Hugo em O homem que ri.24 24 . Ibidem.

Diante do oceano contemplamos o informe, por isso sua existência ininteligível. Ele é o próprio movimento de avanço e resistência, conforme o ritmo das águas. Diante disso, como pintar tal abismo? Como fazer da tinta seca a fluidez úmida das espumas? Quais as cores para seu movimento? E para aquilo que está submerso? Seria também a grisalha? Aí está ele, o indescritível, o mar, em toda parte, em cada rasgo, na desmesura que inunda os limites e mistura alto e baixo, dentro e fora. Não há onda sem o sopro do vento, como não há redemoinho na superfície sem que haja também nas profundezas. A própria duração da onda, que se eleva esculturalmente para depois se dissolver, repete esse indefinível. O que faz então o artista diante do indescritível? Ele faz mais do que descrever, ele imagina apesar de tudo, nos responde Didi-Huberman, acrescentando que o verdadeiro poeta será a própria onda e fará também ondas.

Ser vago, fazer ondas: outro modo de dizer a poética da imanência que caracteriza toda essa obra. Quando Hugo diz “eu trabalho”, explica que põe “papel sobre [sua] mesa, uma pena”, e que com tinta “sonha” - “Faço o que posso para me tirar da mentira” - a fim de que surja “o abismo obscuro das palavras flutuantes”. Como se trabalhar equivalesse, estritamente, a fazer elevar em si (por meio do pensamento flutuante, da tinta marinha, na pena aérea e até mesmo sobre o próprio papel) o trabalho do mar. E, quando apreende o futuro de sua tarefa, o poeta escreve: “O trabalho que me resta a fazer aparece em minha mente como um mar, [um] acúmulo de obras flutuantes em que meu pensamento se embrenha”, acúmulo que termina por tomar Oceano como título genérico.25 25 . Ibidem.

Se o trabalho do poeta consiste em restituir a liquidez às palavras, fazendo-as flutuar sobre o abismo escuro da poesia, no que consiste o ofício do artista? O que fazer frente ao movimento inapreensível das ondas?

Faz primeiro como o poeta que é: trabalha. Põe papel sobre sua mesa, uma pena e tinta (e outros ingredientes para toda uma cozinha, se necessário). Ele não descreverá essa onda que não consegue imaginar exatamente. Mas a fará nascer, o que é bem melhor. Ele a fará jorrar, quase às cegas, abandonando-se ao material e no próprio meio que é o seu: uma mesa como crosta terrestre, uma folha como superfície de flutuação, tinta extravagante como “dobra misteriosa e negra do turbilhão”, o sopro do próprio artista como vento largo. Isso significa representar uma onda ou uma tempestade? Não exatamente, não simplesmente, uma vez que se tratou de produzi-la, isto é, de provocar seu real surgimento, de apresentá-la em ato... mas em miniatura, naturalmente. Tempestade real - fluida, acidentada, fazendo estragos - sobre uma mesa de trabalho.26 26 . Ibidem.

É pelo gesto de recriar, na imagem, a onda, que o artista fará seu outro mar no papel. Nesse mar, a água evapora e deixa, em pigmentos, a memória de movimentos extintos, preservados no traço do artista que repete o fluxo das ondas, mas que também apaga a semelhança da imagem. É nesse gesto que, de acordo com Didi-Huberman, reside o sentido radical da imanência estética, aquela que não deseja a representação e encena, no suporte da imagem, o “mistério da vida”.

Compreendemos, agora, como as imagens de Vitor Hugo estabelecem um diálogo bastante próximo com os procedimentos de trabalho escolhidos por Tacita Dean para criar suas imagens. Desaparecimento no mar e Teignmouth Electron, longe de qualquer representação no sentido literal, reencenam, em outro meio, a tragédia de Crowhurst. A escala humana do farol frente ao incomensurável do mar; os raios de luz emitidos ritmicamente para orientar os navegantes; o sol que se põe no horizonte; o barco abandonado, como um fóssil, em um lugar que lhe é estranho. Tudo isso passa a significar, não como semelhança, mas como vestígios de uma outra narrativa. A força desses trabalhos reside na capacidade de apresentarem imagens a partir dos farrapos da história, a partir daquilo que falta. Entretanto, esse procedimento artístico não pretende fixar nada, nem o presente e sequer o passado. Ele reconhece o movimento que o origina e faz desse mesmo movimento, do gesto, a sua imagem.

Fazer do movimento imagem implica, ainda, uma dimensão temporal que a inscreve naquilo que Blanchot chama de “tempo da ausência de tempo”, pois no espaço sem lugar da narrativa os leitores se encontram na temporalidade sem engendramento da escrita, da imagem. “Para lidar com os fatos - constata Tacita Dean - o melhor é recorrer à ficção. E isto foi uma descoberta radical para mim”27 27 . DEAN, apud WARNER, Marina. Op. cit., p. 13. . Essa declaração da artista, que faz da narração o meio privilegiado de construir e organizar sua obra, coloca em evidência o encontro da imagem com o real. Além disso, a imagem cinematográfica demonstra a incerteza temporal de sua matriz, pois se encontra entre o passado da cena registrada e o presente da projeção, que simultaneamente se constitui como futuro daquele passado. Pela montagem, o tempo se manifesta no movimento das imagens e transtorna a relação encadeada entre presente e passado. “Para mim - declara a artista - fazer um filme se conecta com a ideia de perda e desaparecimento”28 28 . Ibidem, p. 17. . Diante dessa falta essencial, podemos enfim constatar que a imagem não habita o nosso presente, pois ela é um elemento anacrônico, temporalmente impuro e resultante de múltiplas relações temporais, das quais conhecemos apenas o presente. Na oscilação entre o desaparecimento e sua aparição, a imagem congrega em si mais memória e futuro do que o ser que a contempla e, justamente por isso, ela tem a capacidade de tornar visíveis as complexidades da história e de fazer emergir os estratos irredutíveis ao nosso tempo.

No encontro das imagens com o real há sem dúvida um incêndio, que também não pode ser desconsiderado, porque “não se pode falar de imagens sem falar de cinzas”29 29 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Pós: revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFMG, v. 2, n. 4, nov. 2012, p. 210. , assim como não há memória que não seja ameaçada pelo esquecimento. Da mesma forma, os trabalhos realizados em película, técnica de produção cinematográfica extinta pelos dispositivos digitais, encontram-se também no limiar do desaparecimento. Coisas que no passado representaram algo futurístico, mas que, agora, se tornaram completamente obsoletas, atraem a atenção da artista pela possibilidade de se indagar sobre a natureza da imagem e sua relação intrínseca com o tempo. “A obsolescência diz respeito ao tempo do mesmo modo como o filme é sobre o tempo: tempo histórico; tempo alegórico; tempo analógico. Eu não consigo ser seduzida pelo não alinhavado [seamlessness] do tempo digital; como o silêncio digital, ele tem um componente de morte”30 30 . DEAN Tacita. Artist questionnaire: 21 responses. In: October Magazine, n. 100, primavera 2002, p. 26. . A esse tempo morto e silencioso do mundo digital, a artista opõe o tempo dos antigos meios de produção e exibição de imagens, um tempo que pode ser ouvido, como ela declara: “Eu gosto do tempo que se pode ouvir passando: o silêncio pungente de uma fita magnética ou o estático do gravador”31 31 . Ibidem. .

Os filmes de Dean realizados em película estão fadados a desaparecer juntamente com essa técnica, já em desuso. Com base na escolha estética, que incorpora a perda como um elemento do próprio trabalho, destinado a sucumbir nas águas do progresso tecnológico, pode-se estabelecer uma relação mais estreita com a tese benjaminiana sobre a história, na qual o filósofo alemão afirma que uma estrela brilha com maior intensidade no momento imediatamente anterior ao seu desaparecimento.

A verdadeira imagem do passado passa voando. O passado só se deixa capturar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua cognoscibilidade. (...) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “tal como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de fixar uma imagem do passado da maneira como ela se apresenta inesperadamente ao sujeito histórico, no momento do perigo.32 32 . BENJAMIN, Walter. Op. cit., 2012, p. 243.

Já em 1930, Benjamin se mostrou consciente de que a emergência de uma nova tecnologia traz, sempre, um componente de esperança, tanto artística quanto política, o qual, entretanto, tende a desaparecer rapidamente. Talvez seja algo muito próximo dessa constatação que as obras de Dean nos apresentam. Quando ela se serve de um dispositivo tecnológico eclipsado pela obsolescência para a elaboração de um trabalho artístico, o primeiro elemento a ser considerado é o colapso da promessa original inerente a esse mecanismo, que sendo símbolo de um futuro, agora está fora de moda.

A complexidade da obra de Tacita Dean decorre, fundamentalmente, das entrelinhas criadas entre as narrativas e os liames temporais que perpassam cada um de seus trabalhos, visto que o interesse destes recai sempre sobre as coisas sobreviventes, aquelas que irrompem no presente como indício de outro tempo, de outro espaço. “Acho que me interesso pelas estruturas, pelo extraordinário, pelas formas anacrônicas, por aquilo que nunca se consegue datar, que está em desacordo com o contexto”33 33 . DEAN, Tacita. Entrevistada por Hans Ulrich Obrist. In: OBRIST, Hans-Ulrich. Entrevistas: volume 3. Rio de Janeiro: Cobogó; Belo Horizonte: Instituto Cultural Inhotim, 2010, p. 167. .

Enquanto a artista estava no Caribe para fotografar o trimarã de Donald Crowhurst, ela encontra, em uma de suas incursões pela ilha de Cayman Brac, o esqueleto de uma casa futurista, a "Bubble house"34 34 . Bubble house, 1999. Filme em 16 mm, colorido, som óptico, 7 min. , como era conhecida pela população local. O que se sabe a respeito daquela construção é que pertencia a um francês, condenado a 35 anos de prisão por desviar verbas do governo americano. A casa fora abandonada antes mesmo de ter sido terminada e a forma elíptica de sua arquitetura incomum surge no meio da vegetação como a ruína de uma promessa fracassada de futuro.

Deserta e inacabada, ela surgia como uma visão futurística; como um regime de outra era, um templo de uma seita, ou algum tipo de igreja com a tênue marca de uma cruz sobre a entrada. Sabíamos que tínhamos topado com algo de outro mundo; o par perfeito para o Teignmouth Electron.35 35 . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 42.

A casa bolha e o barco, modelos de um futuro utópico se tornaram ruínas, antes mesmo de terem realizado o propósito a que se destinavam. Abandonados em uma ilha do Caribe o trimarã se desfaz sob o sol e as tormentas, enquanto a casa se vê invadida pela vegetação e pelos ventos. O que lhes concerne nessa existência anacrônica é o próprio tempo, impregnando-se silenciosamente na matéria mesma de que são feitos. E, aos poucos, desbota as cores, apaga as escritas, corrói as superfícies. A casa, extravagante e ousada em sua conformação oval, teria sido pensada para resistir aos furacões que varrem aquelas praias, mas à mercê dos ventos, os vãos das janelas se abrem para o mar como uma imensa tela de cinema, na qual as ondas criam um espetáculo interminável, em constante repetição. As águas alagam os interiores e nutrem as sementes que encontram brecha no cimento puído. O pó se acumula no vão da porta e nas escadas não terminadas. Entre as folhas, sob o teto, aranhas tecem obstinadamente e se multiplicam. Desse lugar improvável, edificado na ilha paradisíaca, a artista realiza uma série de longas tomadas cinematográficas registrando o estado de ruína da casa. Filmando em tempo real, a artista subverte o conceito de tempo fílmico e coloca o espectador em posição de espera, o que provoca a consciência da duração temporal e faz dessas imagens testemunhas inegáveis da passagem do tempo, que consome a matéria e a modifica constantemente, como uma onda que retorna à massa enorme do mar.

Bubble house é um trabalho realizado com base na imagem de uma casa que funciona como um marcador temporal, como o vértice no qual tempo e espaço se encontram. Não se trata, de forma alguma, de uma espacialização do tempo, mas de uma atenção à sua passagem, que ao deixar marcas na matéria, sempre em devir, faz dessa visibilidade indícios de uma duração. Da mesma forma, como as coisas podem ser percebidas no espaço, elas também podem ser lembradas em sua passagem pelo tempo. A casa como um paradigma temporal, como um espaço que dura, também foi objeto de interesse da escritora inglesa Virginia Woolf. Em O tempo passa, a autora descreve a ruína de uma casa de praia abandonada ao movimento do tempo. Esse relato dá voz às existências inumanas, às coisas e aos objetos inanimados, que, contudo, sentem e perscrutam a passagem temporal. No interior imóvel da casa abandonada, apenas certos ares, apartados do corpo do vento, insinuavam-se pela dobradiça enferrujada e pelo madeirame inchado de tanta água, para se aventurarem casa adentro, tateando os objetos encontrados como se indagassem o quanto ainda durariam.

Depois, suavemente varrendo as paredes, passavam adiante, meditativamente, como se perguntando às flores rubras e amarelas do papel de parede se elas iriam desbotar, e interrogando (calmamente - tinham tempo de sobra) as cartas rasgadas na cesta de lixo de papéis, as flores, os livros, todos os quais estavam agora abertos para eles, em comunhão com eles, e suavemente iluminados, de quando em quando, por um raio vindo do farol. Vagando assim pelos quartos e atingindo a cozinha, eles pararam para fazer à mesa e às caçarolas de cabo de prata ordenadamente enfileiradas na prateleira, a mesma pergunta; por quanto tempo elas aguentariam, de que natureza eram elas? Eram elas feitas de vento e chuva, aliadas, com as quais, na escuridão, vento e chuva podiam comungar? Resistiriam elas? O tempo mostraria.36 36 . WOOLF, Virginia. O tempo passa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 13.

Em O tempo passa, os objetos inertes têm uma existência própria, inscrita no movimento do tempo que os consome. Nesse texto, os elementos naturais: as ondas, a sebe, as flores, os ventos, os raios do farol, o papel de parede, os livros na estante, tudo se encharca de espera e revela a consciência interna da duração vivida. Os filetes de vento, tendo dedos infatigáveis, corroem a fechadura e as frestas da janela, invadem a casa testando a duração das coisas; eles meditam sobre as maçãs na mesa para lhes descorar o vermelho e lhes mordiscar a firmeza. Nada resiste que não seja tocado por essa força etérea. Enquanto os ares, com seus espiões, fazem incursões diárias ao interior da casa para averiguar a inteireza das coisas, do lado de fora, a grama alta ondula com a brisa e as ervas daninhas batem na vidraça insistentemente. As árvores se prostram e se curvam pelo ritmo das estações e pelos braços dos ventos. A casa foi abandonada, foi deixada sozinha. “Foi abandonada como uma concha numa duna, à espera de ser enchida com grão de sal seco, agora que a vida a deixara”37 37 . Ibidem, p. 41. . À mercê das intempéries, a alma das coisas canta sua própria duração e a sua existência incerta por meio dos vestígios deixados pelo tempo que passa. As línguas latinas não diferenciam os dois tempos que a língua inglesa, por exemplo, distingue: o time do cronômetro e o weather do barômetro. Sobre esses dois sentidos diversos para uma mesma palavra, Michel Serres faz uma observação bastante precisa:

Alinhadas aleatoriamente sobre um deles, as intempéries das latitudes temperadas, as chuvas, as brisas e a neve aceleram - pelo ritmo dos invernos e das primaveras, dos meses e das semanas, dos clarões amarelos do farol que varrem com sua luz as janelas e as paredes - o trabalho da temporalidade contada sobre o outro.38 38 . SERRES, Michel. Tempo, erosão: faróis e sinais de bruma. In: WOOLF, Virginia. Op. cit., p. 63.

De acordo com o autor, as línguas juntam três tempos que as ciências e a consciência íntima diferenciam: o primeiro, reversível e regular, gira como um farol e como os planetas; o segundo, negativo, irregular e irreversível, tempo da erosão, do desgaste, da fadiga, da doença e da morte; o terceiro, igualmente irregular e irreversível, mas novo e positivo, tempo do florescimento, do crescimento, das brincadeiras de criança no jardim.

As ciências e a experiência conhecem, enfim, um tempo que as línguas em questão fingem, tanto quanto sei, ignorar: aquele que se acumula lentamente por detrás de uma barragem ou de uma comporta e as leva de roldão num instante. A erosão se dá lentamente, mas leve como uma pluma, de repente faz desabar todas as proteções.39 39 . Ibidem, p. 64.

A casa de Woolf, situada perto de um porto entre as Ilhas Hébridas, na costa escocesa e a Bubble house, localizada na ilha Cayman Brac, no Caribe, ambas à beira-mar, expostas ao rumor das ondas, ao sabor marítimo dos ventos e às chuvas constantes, essas casas-relógios narram, pela precisão intimista da palavra e pelo silêncio poético da imagem, a multiplicidade de tempos que as atravessam em suas durações. As duas casas colocam, sobretudo, questões ardentes, pois nos deixam diante da própria devastação e da erosão que tudo devora. Resistir é uma questão de tempo, como escreve Woolf, até chegar aquele momento “quando uma pena, se posta na balança, fará descê-la. Uma única pena, e a casa, afundando, caindo, teria virado e se precipitado em direção às profundezas da escuridão”40 40 . WOOLF, Virginia. Op. cit., p. 45. . A iminência do desaparecimento que paira sobre essas duas casas parece repetir o mesmo tremor da imagem, sobretudo daquela fotográfica, que por um breve instante, parece fixar o transitório e o efêmero daquilo que está diante da lente. Vazias de gente, as casas estão entregues à degradação, ao desabamento, estão sujeitas à entropia. Essa palavra, bastante utilizada no final da revolução industrial, era o grande temor dos últimos anos do século XIX, pois o rumor social encontrou na apropriação vulgarizada desse termo da física, uma autenticação para a crença de que corremos em direção à entropia crescente41 41 . Cf. SERRES, Michel. Op. cit., p. 71. . De acordo com essa lei natural, a termodinâmica, um corpo quente, se deixado à própria sorte, esfria. Da mesma forma, o caos se sobrepõe à ordem harmônica, não importa o que se faça, tudo tende a perecer.

Ao pânico entrópico, descoberto nas máquinas térmicas e difundido por toda parte, opõem-se outras concepções mais orgânicas de tempo, como a de Darwin, pela qual as espécies se metamorfoseiam e as formas naturais são constantemente modificadas e selecionadas, visando uma maior complexidade orgânica. Além dessa evolução criadora, a forma como Bergson intuiu o tempo enquanto élan vital, inscrito na duração que transforma com seu jorro ininterrupto de novidades, também se contrapõe à entropia fatalista. Os dois tempos irreversíveis e opostos, sugeridos por Michel Serres, mais uma vez se apresentam. Eles se manifestam no mundo e coabitam a matéria inerte e os seres vivos. “Enérgicos e duros, entrópicos, portanto, trabalhamos e morremos; mas também pensamos e percebemos; macios, trocamos sinais”42 42 . Ibidem, p. 72. . São esses, também, os tempos que perpassam a obra de Woolf e Dean, que nos mostram a ruína de duas casas com a sutileza singular de imagens atentas aos mínimos sinais deixados na matéria pelo tempo que passa, pelo vento que sopra e pela natureza que cuida de integrar, em sua transformação criadora, os restos humanos. Na imagem poética das casas, assim como em Teignmouth Electron, o passado se encontra com o presente ao colher na historicidade e nas marcas da decadência, um desejo irrealizado de futuro. A casa bolha, de formas arrojadas e inovadoras, sucumbiu pela fraude de seu idealizador, da mesma forma que o trimarã de Crowhurst, desmantelado em uma praia esquecida. Já a casa das ilhas Hébridas não sofreu as consequências de um fracasso, mas da própria guerra, que pôs fim a um período de crença irrestrita no progresso e na técnica. O que é comum às ruínas modernas é o fato de materializarem o desejo de um passado perdido.

De acordo com Andreas Huyssen, a obsessão moderna pela ruína esconde uma nostalgia pelo período inicial da modernidade, quando, ainda, não havia desvanecido a possibilidade de se imaginar outros futuros. “O que está em jogo é uma nostalgia da modernidade que não se atreve a dizer seu nome, depois de reconhecer as catástrofes do século XX e os danos remanescentes da colonização interna e externa”43 43 . HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio, 2014, p. 91. . A própria etimologia da palavra nostalgia, derivada do grego e composta por nostos (que significa lar) e algos (que significa dor), revela a irreversibilidade do tempo, expressa pelo desejo de um passado perdido. Dessa forma, a nostalgia se opõe às noções lineares de progresso e pode ser entendida como uma utopia inversa, na qual o desejo pelo passado é, também, o desejo de outro lugar, visto que tempo e espaço convergem na ruína arquitetônica. Presença e ausência se combinam na imagem desses restos de tempo, que pela incompletude passam a significar, da mesma forma que o presente imaginado de um passado só pode ser acessado pela condição mesma de sua decomposição.

Nesse contexto, a nostalgia deve ser entendida enquanto possibilidade de criar leituras reflexivas sobre as ruínas, valorizando os fragmentos da memória e do tempo como palimpsestos de múltiplos acontecimentos. Por esse viés, a ruína arquitetônica desestabiliza a linearidade histórica, visto que as marcas do passado incrustadas em sua própria sobrevivência são capazes de criar constelações significativas entre as diversas temporalidades que a atravessam. Assim, a alegoria da ruína corresponde também à necessidade de se elaborar um pensamento a respeito do estado de não permanência das coisas, da incompletude, do ruinoso. Como nas obras em questão, os tremores provocados pela ruína são acolhidos pelo pensamento estético que prioriza o fragmento, os andrajos, os restos materiais, a colagem e a montagem, como ferramentas e métodos de construção de um saber, no qual se colocam em jogo as relações entre tempo e história. A recorrência da ruína no contexto da arte contemporânea se justifica como parte de um discurso ampliado sobre a memória, o trauma, o genocídio e a guerra, pois não se pode falar sobre as casas arruinadas em ilhas afastadas sem que se recorde, também, das cidades bombardeadas e destruídas, tanto nas guerras do século XX quanto nos conflitos mais recentes. Da mesma forma, não se pode esquecer que as consequências daquele futuro prometido não são apenas as ruínas, mas também os escombros.

No atual domínio capitalista, as coisas se tornam obsoletas de forma extremamente rápida e têm pouca ou nenhuma possibilidade de envelhecer e se converter em ruínas autênticas, como por exemplo, aquelas que exerciam fascínio no século XVIII. Na cultura mercantil e memorialista do século XXI, as coisas transformadas em mercadorias envelhecem mal, graças à obsolescência programada, que impulsiona o consumo do novo e gera o descarte daquilo que já se tornou inútil e improdutivo. A ruína desse século é o escombro e o detrito, como a casa bolha e o barco, abandonados no Caribe. Se as obras de Dean nos dão acesso à nostalgia reflexiva, como convém a uma imagem dialética, elas o fazem projetando no passado um futuro para além das falsas promessas do neoliberalismo e do consumismo global, ao resgatar do esquecimento a velha tecnologia de criação de imagem com sua materialidade inconfundível e a sua sutileza característica.


  • 45
    Jack Goldstein, Glass of Milk (fotograma), 1972
  • 1
    . Teignmouth Electron. Fotografia colorida, 68 x 89 cm e filme em 16 mm, colorido, anamórfico, som óptico, 7 min., 2000. Disappearance at the sea, 1996. Filme em 16 mm, colorido, anamórfico, som óptico, 14 min
  • 2
    . Cf. DEAN, Tacita. Tacita Dean: a medida das coisas. São Paulo: IMS, 2013, p. 30.
  • 3
    . CROWHURST, Donald apud DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 40.
  • 4
    . Idem, p. 40.
  • 5
    . BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 6.
  • 6
    . Idem, p. 5.
  • 7
    . Idem, p. 7.
  • 8
    . BLANCHOT, Maurice. Op. cit., p. 13.
  • 9
    . DEAN, Tacita apud WARNER, Marina. Interview: Marina Warner in Conversation with Tacita Dean. In: ROYOUX, Jean-Christophe. Tacita Dean. Londres e Nova Iorque: Phaidon, 2006, p. 13.
  • 10
    . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 10.
  • 11
    . Ibidem, p. 10.
  • 12
    . DEAN, Tacita apud PIGEOT, Anaël. Tacita Dean: time and ties. In: Artpress, n. 391, jul.-ago. 2012, p. 40.
  • 13
    . BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 14.
  • 14
    . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 23.
  • 15
    . Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012 , p. 38.
  • 16
    . SHAKESPEARE, William. A tempestade. Ato IV, cena I. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/tempestade.html>. Acesso em: 06 jul. 2014.
  • 17
    . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 39.
  • 18
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Grisalha: poeira e poder do tempo. Lisboa: KKYM+IHA, 2014. (Livro digital)
  • 19
    . Ibidem.
  • 20
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. A imanência estética. In: Alea: Estudos Neolatinos, v. 5, n. 1, jan.-jul., 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2003000100009>. Acesso em: 06 jul. 2014.
  • 21
    . Ibidem.
  • 22
    . HUGO, Victor apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., 2003.
  • 23
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit. , 2003.
  • 24
    . Ibidem.
  • 25
    . Ibidem.
  • 26
    . Ibidem.
  • 27
    . DEAN, apud WARNER, Marina. Op. cit., p. 13.
  • 28
    . Ibidem, p. 17.
  • 29
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Pós: revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFMG, v. 2, n. 4, nov. 2012, p. 210.
  • 30
    . DEAN Tacita. Artist questionnaire: 21 responses. In: October Magazine, n. 100, primavera 2002, p. 26.
  • 31
    . Ibidem.
  • 32
    . BENJAMIN, Walter. Op. cit., 2012, p. 243.
  • 33
    . DEAN, Tacita. Entrevistada por Hans Ulrich Obrist. In: OBRIST, Hans-Ulrich. Entrevistas: volume 3. Rio de Janeiro: Cobogó; Belo Horizonte: Instituto Cultural Inhotim, 2010, p. 167.
  • 34
    . Bubble house, 1999. Filme em 16 mm, colorido, som óptico, 7 min.
  • 35
    . DEAN, Tacita. Op. cit., 2013, p. 42.
  • 36
    . WOOLF, Virginia. O tempo passa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 13.
  • 37
    . Ibidem, p. 41.
  • 38
    . SERRES, Michel. Tempo, erosão: faróis e sinais de bruma. In: WOOLF, Virginia. Op. cit., p. 63.
  • 39
    . Ibidem, p. 64.
  • 40
    . WOOLF, Virginia. Op. cit., p. 45.
  • 41
    . Cf. SERRES, Michel. Op. cit., p. 71.
  • 42
    . Ibidem, p. 72.
  • 43
    . HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio, 2014, p. 91.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2016
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