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A farmácia performática: corpo e anticorpo no ato performativo

The performable pharmacy: body and antibody in the performative act

Resumo

Este artigo discorre sobre o ato performativo como desconstrução permanente de si, como relação conflituosa produtora de alteridades, entre elas, a alteridade radical, o todo outro, que é a cisão do corpo em íntimo e êxtimo, tão estranhos um para o outro que não podem se comunicar e passam a surgir como corpo e anticorpo. Assim, o espectador só pode experienciar a performance se também performar, desconstruir-se, experimentar-se como infinito no infinito do outro. A atuação de Jean Desailly e Françoise Dorléac em cenas do filme La peau douce, de François Truffaut, são imagens deflagradoras do pensamento aqui desenvolvido sobre performance.

palavras-chave:
corpo-imagem; relação; performance; hospitalidade; alteridade radical

Abstract

This article discusses the performative act as permanent self-deconstruction, a conflituous relation that produces alterities. Among those is the radical alterity, the whole other, which is the body’s schism between intimate and extimate, so alien to each other that they can’t communicate, becoming body and anti-body. Therefore, the spectator can only experience the performance if they also perform, deconstructing and experiencing themselves as the infinite inside the infinite of the other. The performances of Jean Desailly and Françoise Dorléac in scenes from François Truffaut’s film La peau douce are deflagrating examples of the thought hereby discussed.

keywords:
body-image; relationship; performance; hospitality; radical alterity

Todo desperto, cujo meio Dorme, enquanto inúmeras se tocam As carícias quietas desse coração cheio Que terminam na extrema boca. Rainer Maria Rilke1 1 . RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 19.

Cena: O casal, Pierre e Nicole, chega a um quarto de hotel no campo, depois de viajar a noite toda. A jovem mulher, muito cansada, deita-se na cama ainda vestida e adormece. O homem tenta acordá-la, em vão. Então, ele lhe tira os sapatos, acariciando os pés sob as meias de nylon transparentes. Suas mãos sobem lentamente pelas pernas da mulher, ele empurra sua saia, revelando a cinta-liga que prende as meias. Desejosamente, ele abre os fechos e começa a tirar uma das meias, com delicadeza, acariciando a perna nua. Seu rosto, sua boca, estão muito perto da perna, quase a tocá-la. Mas tocam, sem tocar. Ela dorme e ele é só desejo. Corta.

Essa cena é do filme La peau douce2 2 . La peau douce. Dir. François Truffaut. Prod. Les films du carrousel, 1964, DVD. , de François Truffaut, que conta a história de um homem que é arrebatado de desejo por uma aeromoça ao vê-la trocar os sapatos - ela está atrás da cortina que separa a cabine dos assentos e só se pode ver o movimento de seus pés. O filme é sobre essa relação “à flor da pele”.

Corpo tocado, tocante, frágil, vulnerável, sempre mudando, fugindo, inapreensível, evanescente sob carícia ou sob golpe, corpo sem casca, pobre pele tensionada sobre uma caverna onde flutua nossa sombra...3 3 . NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Trad. Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 99.

A pele é esse invólucro do corpo, sobre a qual se dão as relações. Tudo que se passa no/com o corpo, acontece sobre a pele. É ela que separa o dentro do fora. No filme de Truffaut, a pele é o protagonista da história, daí o título do filme. As meias de nylon, pele sobre pele, são fundamentais na trama, não somente na cena descrita acima. O filme mostra que a pele é a forma do corpo vivo, é nela que se dá a vibração, a pulsão, o desejo. Ela é casca, como diz Jean-Luc Nancy, mas é pura sensibilidade. É o lugar da relação.

Fig. 1
Fotogramas do filme La peau douce, de François Truffaut.

E a relação, aqui, é o assunto: relação e performance. Toda performance artística só acontece na relação entre corpos - na qual todos são corpo-imagem: seja o corpo orgânico e/ou uma imagem de corpo, isto é, imagem como corpo e, ainda, corpo sonoro ou tátil. Para o estabelecimento dessa relação, é preciso envolvimento e disponibilidade dos corpos envolvidos: disponibilidade para o outro, para o acolhimento do outro. É na experiência performativa mesma que a relação se estabelece; nem antes, nem depois, mas no aqui-agora da experiência. Se o corpo performativo abre-se à relação, então ele é um corpo político - aqui entendido como estabelecimento de relações, corpo na polis, e também em si próprio, como sua própria polis, e ainda considerando a cidade como corpo, corpo orgânico único formado de muitos corpos e variadas subjetividades.

Ora, relações, na polis ou entre corpos (corpo e imagem-corpo), estabelecem fronteiras/bordas móveis, orgânicas, que aparecem e desaparecem, que se formam de maneira insidiosa, onde o tempo é “presente” em eterno devir, fronteiras aqui e lá, para a frente, para trás e para um lado e outro. Desses deslocamentos permanentes emergem interstícios, invaginações, entre-lugares: domínios da diferença, onde se formam novas subjetividades, minorias híbridas que negociam para adquirir autoridade, poder se reinscrever na ordem social.

Em seu livro O local da cultura, o filósofo Hommi K. Bhabbha abre a introdução com uma epígrafe de Heidegger: “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”4 4 . HEIDEGGER, Martin apud BHABBHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 19. . O acontecimento, o encontro surpreendente, a possibilidade de intervenção no aqui e agora, vem desse espaço intermédio. É no roçar das diferenças que a diferença se dá.

No final do século XX, a Guerra dos Balcãs apresenta todos os roçares como diferenças, a ponto de o exército sérvio ter empreendido uma estratégia de conquista até hoje muito pouco comentada. Quando da invasão do território bósnio, para sua consolidação, todas as mulheres, de crianças a velhas, sem exceção, foram estupradas. O estupro sempre foi, ao longo da história, prêmio para os conquistadores juntamente com os saques. No entanto, a violação de todas as mulheres bósnias pelos sérvios na década de 1990, mais saque configurou-se como uma ação de conquista para além do território imediato: a mulher é capaz de gerar, seu corpo, portanto, é território ou, ainda, seu corpo é nação. Nas palavras de Gayatri Spivak: “O estupro grupal perpetrado pelos conquistadores é uma celebração metonímica de aquisição territorial”5 5 . SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 145. .

Nesse sentido, os ventres conspurcados já são ruína desde sempre, mas são também fronteiras, território híbrido, lugar da diferença. Os corpos híbridos gerados a partir daí buscarão sua reinscrição, sua sobrevivência na ordem social, mas a partir de nova perspectiva de território e de nação.

Do corpo e do corpo nu

Na experiência da relação o corpo apresenta-se, propõe-se, chega como um fora, aproximando-se, confrontando mas também confrontado e se confrontando, rejeitando e se juntando. Um jogo que propõe conflito: nessa relação é que o conflito se instaura e se desconstrói.

Voltando ao filme de Truffaut, Pierre e Nicole claramente se lançam num jogo: juntam-se, penetram-se, rejeitam-se, confrontam-se. Na relação, ou sua performance, seus corpos abrem-se e dão a ver que não são somente dois na relação. Como se sua intimidade se expusesse em alteridades. Como se seus corpos gerassem, na relação, suplências, alteridades, duplos.

Nessa experiência, o corpo apresenta-se, propõe-se como um fora, como alteridade ou, como extimidade. Essa noção criada por Jacques Lacan, fala do ponto de nossa intimidade exterior, ou melhor da relação de nossa intimidade com o exterior, e sua definição está pulverizada em sua obra. O psicanalista dedica o Seminário 10, sobre a angústia, às questões do Outro e ao texto “O estranho”, de Freud, aprofundando, assim, a pesquisa sobre extimidade. O termo êxtimo aparece pela primeira vez no Seminário 7, A ética da psicanálise. No capítulo “O amor cortês em anamorfose”, ele diz:

Da última vez, fiz-lhes um resumo sobre o sentido ou o objetivo da arte (...). Pode ser que aquilo que descrevemos como esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade que é a Coisa, esclareça para nós o que resta ainda como questão, ou até mesmo como mistério, para aqueles que se interessam pela arte pré-histórica - ou seja, ela é precisamente o seu sítio.6 6 . LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 169.

No Seminário 16, “De um Outro ao outro”, mais uma vez ele fala de extimidade:

Aqui, ele está num lugar que podemos designar pelo termo êxtimo, conjugando o íntimo com a exterioridade radical. Ou seja, (...) puramente na relação instaurada pela instituição do sujeito como efeito significante, e como determinando por si só, no campo do Outro, uma estrutura de Borda.7 7 . Idem. Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 241.

A alteridade, o outro, o duplo acontece neste ponto, onde os espaços - o interno, da intimidade, e o externo - se interseccionam e também são visíveis um para o outro, independe do tamanho que esses espaços possam tomar.

Sendo assim, um corpo, o corpo performativo ou qualquer corpo não “é”, a não ser no “fazendo e se fazendo - sempre fora de tudo que poderia contê-lo”8 8 . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8. . Nancy defende que o corpo é sempre um fora, o invólucro de uma intimidade que se lança, com ele, cada vez mais longe e mais para o fora. Para o filósofo, mesmo o corpo nu é um fora. A pele cobre, envolve a intimidade, é o que se vê ou o que se dá a ver do corpo.

No entanto, o homem não anda nu, ele acrescenta ao seu invólucro natural a roupa, diferentemente dos outros animais. Corpos vestidos são marcas significantes do que se chama sociedade. A roupa indica, informa, comunica. Cada povo, grupo, família existe enquanto vestido e assim relaciona-se de acordo com seus códigos, símbolos, mitos - enquanto “com”.

Por isso, o humano conhece a nudez, sem roupa ele está nu, ao contrário dos outros animais que são sempre nus. Todavia, o corpo humano nu, só experimenta a nudez quando é visto por olhos videntes. Apesar de o corpo ser sempre um fora - mesmo nu - é a nudez humana que corresponde à intimidade. O corpo nu mostra-se íntimo, na medida em que a nudez desnuda ou coloca ao vivo os termos da relação (Pierre enche-se de desejo com os pés nus atrás da cortina; em momentos como esse, a cada um deles, traçam-se os termos de sua relação com Nicole, que é sempre diferente a cada lance).9 9 . Para uma contextualização do nu na história da arte ocidental ver MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. Nesse livro Viviane Matesco contextualiza a ideia de corpo como imagem na sociedade ocidental, desde a Grécia antiga: “o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização”, até a nudez culpada e a vergonha da nudez na sociedade cristã/católica.

A nudez e o sentir-se nu são temas abordados por Jacques Derrida em seu livro O animal que logo sou (a seguir)10 10 . DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002. . O filósofo descreve uma cena cotidiana: depois de tomar banho, ele está nu frente ao espelho e se percebe observado por sua gata. Ele sente vergonha de sua nudez frente ao animal e se pergunta porque sentir vergonha. Afinal, os gatos e os animais não sentem vergonha da nudez, porque eles existem na nudez. “Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu”11 11 . Ibidem, p. 17. . Diferentemente, o homem sente vergonha da nudez, na medida em que despido, ele está nu, ele sabe de sua nudez. Mesmo que aquela cena tenha se passado em sua casa, e que o gato vidente não fosse qualquer gato, mas a sua gata, transido de pudor, ele apressou-se por cobrir-se, cobrir a obscenidade do evento, resguardar sua intimidade. E ainda perguntou-se: mas pode o gato ver sua nudez?

Fig. 2
Fotogramas do filme La peau douce, de François Truffaut.

A intimidade é o lugar onde as diferenças entre os sujeitos da relação se apresentam, e sem a diferença entre os sujeitos, a relação não é possível. A troca entre os sujeitos não é um jogo simples, mas se dá por uma ruptura, um arrombamento no íntimo de modo que ele dê a ver as diferenças. Pierre tira as meias de nylon de Nicole, passando a mão na perna nua, acaricia sua cabeça por debaixo do cabelo, como se tentasse com essas ações consumar um coito, penetrá-la, descobrir-lhe o íntimo.

No entanto, todo corpo, inclusive o que é invaginado, é envolvido por uma pele. Mesmo no ato sexual, no qual há a penetração de fato, ainda assim, não se chega ao íntimo, está-se sempre no/com o fora na relação. A aproximação do olhar do outro desnuda o corpo vestido ou nu. Como o olhar do outro é sempre sem fundo, a intimidade se desvela velando sua identidade, dissimulando sua verdade para nunca se fazer presente inteiramente, completamente, de modo a nunca ser capturada no abismo do olhar do outro. Ela se mostra e se esconde por desejo da experiência da diferença, da heterogeneidade. Está sempre em fuga, de modo que a nudez nunca é definitiva, final, mas desdobra-se sempre em novos desnudamentos.

Um corpo, nu ou não, olhado por olhos videntes abre-se a esse olhar, abre-se ao seu acolhimento, desvela-se, desnuda-se para também recolhê-lo. Nessa efração dos corpos se desnudando, cada um se apresenta em suas diferenças, apresentam-se como alteridades. Estão sujeitos “à implacável lei da hospitalidade”:

O hospedeiro que recebe (host), aquele que acolhe o hóspede, convidado ou recebido (guest), o hospedeiro, que se acredita proprietário do lugar, é na verdade um hóspede em sua própria casa. Ele recebe a hospitalidade que ele oferece na sua própria casa, ele a recebe de sua própria casa - que no fundo não lhe pertence. O hospedeiro como host é um guest. A habitação se abre a ela mesma, a sua “essência” sem essência, como “terra de asilo”. O que acolhe é sobretudo acolhido em-si.12 12 . DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. Trad. Fábio Landa com colaboração de Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 57-58.

A experiência performativa é a experiência por excelência da relação do olho vidente e do visto. O corpo que performa, sendo visto e sendo vidente, abre-se a alteridades que chegam como estranhos familiares. Essa abertura desdobra-se em efração, numa ruptura violenta do corpo performático. Os campos íntimo e êxtimo estão visíveis um para o outro, é o corpo se fazendo no fora. A relação entre os campos gera uma alteridade tão radical que, embora visíveis um para o outro, não se reconhecem na diferença.

Um corpo é uma pro-posição, uma chegada que se adianta e se põe adiante, no fora, como um fora. Pro-posto é que o corpo não se confunda com nenhum outro, que não recubra nenhum outro e nem seja por nenhum outro recoberto - nunca, a não ser quando estiver em jogo uma descoberta, o por-se a descoberto de cada corpo.13 13 . Ibidem, p. 9.

Corpo e anticorpo na experiência performativa

O corpo se põe, dá a ver sua extimidade que se apresenta como alteridade radical, como o todo outro. Surge como um anticorpo, uma suplência curativa e venenosa do corpo, um phármakon, capaz de curar e matar. Tomo emprestado a ideia de phármakon de Jacques Derrida14 14 . Sobre esse assunto, ver DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. . Fazendo uma releitura do “Fedro”, de Platão, na passagem em que Sócrates fala do anúncio que Theut faz da escrita para Thamous, como um phármakon para a memória, o filósofo francês discute o caráter de suplência de ambos - escrita e phármakon -, ou melhor, ele diz que ambos carregam sua suplência. Nesse texto, Derrida mantém a palavra em sua transliteração do grego, em vez de utilizar traduções comuns como remédio, veneno e droga, com o intuito de “preservar o que ele considera um dos objetivos de Platão ao apresentar a escrita como phármakon: mostrar que não há remédio inofensivo e que o phármakon não poderia ser simplesmente maléfico ou benéfico”15 15 . RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade: sobre ética e política em Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 35. . A escritura, como é discutida em “Fedro”, é veneno e é remédio para a memória, é “aparência” e não a verdadeira sabedoria. A sabedoria estaria junto daquele que fala e seria legitimada por ela. Para Platão, há uma ligação natural entre o pensamento e a voz, e essa naturalidade é perdida na escrita. Como se a escritura como suplência do pensamento falado viesse de fora e, por isso, estivesse aquém da verdade, pois a verdade está na fala, que é pensamento vivo e não na escrita, e daí a comparação com o phármakon. Derrida sugere ainda uma relação filial entre a escrita e a fala. Ele diz: fala é o pai e escrita é o filho. O filho depende da referência do pai para manter-se vivo como fala. Sem seu referente - a fala é viva, a escrita é morta - “a inscrição é, pois, a produção do filho, ao mesmo tempo que a construção de uma estruturalidade16 16 . RODRIGUES, Carla. Op. cit., p. 116. - é, de certa forma, metáfora do referente vivo. A escrita separada do sujeito-falante mostra-se como parricídio. A inscrição da fala condena-a à morte, à permanência, ou à condição horizontal do morto. A escrita, portanto, é remédio, pois inscreve o falado, mas é veneno para a memória. É jogo de presença e ausência. Trata-se de um movimento infinito de construção e desconstrução. Trata-se de um jogo. Sim, um jogo ético-estético-político.

Trazendo o pensamento derridiano sobre escritura e fala para a performance, na experiência performativa o corpo que performa desnuda-se “diante de”, abre-se, mostra-se em sua diferença, apresenta-se também como alteridades, assim, plural. Daí surge o anticorpo, ou o phármakon que ele próprio carrega: sua alteridade radical. A alteridade radical é aquela com a qual não há troca, não há comunicação, é o todo outro, o “sem fundo”, é rastro: “a marca de ausência da presença”17 17 . SPIVAK, Gayatri. Translators Preface. In: DERRIDA, Jacques. Of Gramatology apud RODRIGUES, Carla. Op. cit., p. 30. . Ou é a différance, movimento do qual a coisa mesma sempre escapa, só há différance na impossibilidade. O performer é corpo e anticorpo, corpo que gera seu próprio phármakon.

O ato performativo se dá na relação, no “diante de”. A experiência do ato é o locus do conflito onde o corpo se abre a alteridades. A discussão ou o logos, é a farmácia performática. O phármakon não preexiste na farmácia, ali ele não é nada, porque a farmácia não é propriamente um lugar. Ele surge no e do conflito, na ação performativa. O que preexiste, o que está dado antes da relação é o mundo, e nele a farmácia é, funda-se com, confunde-se. No mundo há algo, que só surge e age como phármakon, veneno ou remédio, na ação performativa. Assim, o corpo performativo é aquele em permanente estado de busca. Ou, para usar uma expressão de Nancy, em permanente “afazer”18 18 . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 35: “O corpo não se representa a si mesmo. Ele apresenta que se apresenta para fora, como ele se volta para fora, como ele é esse fora de “mim” que não possui um “dentro” a não ser para fazê-lo vir à imagem, no como, de que maneira, em que tom, em que nuança, esse é o afazer da pintura”. .

Se o corpo performativo só se dá “diante de”, ele se dá ou ele se propõe na sua exposição. O corpo e suas alteridades se apresentam ou se expõem no vazio entre os corpos da relação performativa. O vazio é um dos quatro incorporais, na teoria estoicista - os outros são o tempo, o lugar e o lekton, o dizível, o exprimível. Nancy afirma que o espaçamento entre os corpos combina os quatro incorporais.

O espaçamento a que me refiro combina o vazio e o lugar, o primeiro permitindo a distinção dos lugares, e o tempo não é outra coisa que o espaçamento de sentido, a distensão pela qual ele tende para si mesmo (ou se quisermos, o significante em direção ao significado).19 19 . NANCY, Jean-Luc.Op. cit., p. 79.

Ora, a exposição, em qualquer relação, é fundamental, na medida em que é preciso se reconhecer na diferença do outro, ou pela essência de cada um. Mais: “é condição da co-presença”20 20 . Ibidem, p. 79. . Todavia, só haverá exposição, ou o fazer-se de cada corpo, se cada um fizer-se na relação do seu interior com seu exterior, dele com suas alteridades, apresentando os exprimíveis que não encontram sua expressão na linguagem, são acontecimentos, eventos. Nesse sentido os corpos, vêm à presença, fazendo-se, propondo-se. Eles estão na exposição por aproximação e distanciamento.

Assim, o corpo performativo é corpo e corpo-imagem: sua [a]presentação é presença e ausência, ao mesmo tempo. Porque aquilo que se [a]presenta é sempre mais de um, é a apresentação do corpo e seus rastros, seus espectros, alteridades. Seu vir à presença é sempre um jogo de desvelamento e velamento. Revela, ao mesmo tempo que esconde, deixando que apenas se vislumbre seu íntimo no evento ou na presentação21 21 . Não poderia deixar de mencionar aqui a leitura de Jacques Derrida sobre Antonin Artaud. No entanto, como o presente artigo, não comporta espaço para isso, remeto a dois ensaios de Derrida: “A palavra soprada” e “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, ambos em DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005; bem como a um outro ensaio, de HADDOCK-LOBO, Rafael. Representação e crueldade: Derrida encena Artaud. In: Revista AISTHE, nº 6, 2010, p. 127-139. .

A expectação performativa

Nesse jogo entre o que se mostra e o que se apresenta como ausência, rastro, há outro corpo - o espectador. Aquele que experiencia uma performance, só o faz sendo ele também um corpo performativo - só há performance na relação, no estar/ser “com” -, que se abre ao jogo com suas alteridades e se faz presente na exposição. Na experiência é preciso abrir-se, deixar-se abrir, correr o risco de perverter-se.

É preciso isso, é preciso esta possível hospitalidade ao pior para que a boa hospitalidade tenha sua chance, a chance de deixar vir o outro, o sim do outro não menos que o sim ao outro.22 22 . DERRIDA, Jacques. Op. cit., 2004, p. 52.

O espaço performativo é área de conflito justamente porque o acolhimento só se dá no reconhecimento do outro, na clivagem de cada corpo no corpo êxtimo. E o espaço agônico neutraliza-se quando o “com” é substituído por “e”, transformando momentaneamente aquele espaço em híbrido; que desdobra-se em novo conflito, na medida em que o “corpo só é fazendo e se fazendo - sempre fora de tudo que poderia contê-lo”23 23 . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8. .

Assim, o corpo performativo que se propõe, que se faz na relação pode vir à presença - dar-se a ver - em qualquer suporte, corpo como imagem e também imagem como corpo. A relação performativa com o espectador não se dá necessariamente na presença física dos corpos - do(s) espectador(es) com o(s) performer(s). O corpo que se apresenta é sempre imagem, ele se faz no fora. E a imagem que se apresenta como corpo, na relação, é corpo. Assim o corpo performativo pode ser pro-posto em fotografia, vídeo, holografia, realidade ampliada, não importa o suporte (o suporte importa para a obra, não para a experiência que chega como evento). A relação, de quem observa, com a experiência artística só é possível se o observador abrir-se à experiência, experimentar-se como corpo fora, experienciar e experienciar-se como evento, heterogeneidade ou suplemento, fora de qualquer possibilidade de linguagem; desconstruir-se ou preparar-se para a vinda do outro, abrir-se à hospitalidade incondicional; dado o visto, além das alteridades, no êxtimo surge a alteridade radical, o todo outro, esse algo fora da linguagem ou, para usar uma categoria dos estoicos, o exprimível: “À frase ‘Este corpo tem uma extensão’ poderíamos responder: ‘Absurdo!’ - mas estamos inclinados a responder: ‘Claro!’ - Por quê?”24 24 . WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012, p. 126.



  • 1
    . RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 19.
  • 2
    . La peau douce. Dir. François Truffaut. Prod. Les films du carrousel, 1964, DVD.
  • 3
    . NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Trad. Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 99.
  • 4
    . HEIDEGGER, Martin apud BHABBHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 19.
  • 6
    . LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 169.
  • 5
    . SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 145.
  • 7
    . Idem. Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 241.
  • 8
    . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8.
  • 9
    . Para uma contextualização do nu na história da arte ocidental ver MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. Nesse livro Viviane Matesco contextualiza a ideia de corpo como imagem na sociedade ocidental, desde a Grécia antiga: “o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização”, até a nudez culpada e a vergonha da nudez na sociedade cristã/católica.
  • 10
    . DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
  • 11
    . Ibidem, p. 17.
  • 12
    . DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. Trad. Fábio Landa com colaboração de Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 57-58.
  • 13
    . Ibidem, p. 9.
  • 14
    . Sobre esse assunto, ver DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.
  • 15
    . RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade: sobre ética e política em Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Nau, 2013, p. 35.
  • 16
    . RODRIGUES, Carla. Op. cit., p. 116.
  • 17
    . SPIVAK, Gayatri. Translators Preface. In: DERRIDA, Jacques. Of Gramatology apud RODRIGUES, Carla. Op. cit., p. 30.
  • 18
    . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 35: “O corpo não se representa a si mesmo. Ele apresenta que se apresenta para fora, como ele se volta para fora, como ele é esse fora de “mim” que não possui um “dentro” a não ser para fazê-lo vir à imagem, no como, de que maneira, em que tom, em que nuança, esse é o afazer da pintura”.
  • 19
    . NANCY, Jean-Luc.Op. cit., p. 79.
  • 20
    . Ibidem, p. 79.
  • 21
    . Não poderia deixar de mencionar aqui a leitura de Jacques Derrida sobre Antonin Artaud. No entanto, como o presente artigo, não comporta espaço para isso, remeto a dois ensaios de Derrida: “A palavra soprada” e “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, ambos em DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005; bem como a um outro ensaio, de HADDOCK-LOBO, Rafael. Representação e crueldade: Derrida encena Artaud. In: Revista AISTHE, nº 6, 2010, p. 127-139.
  • 22
    . DERRIDA, Jacques. Op. cit., 2004, p. 52.
  • 23
    . NANCY, Jean-Luc. Op. cit., p. 8.
  • 24
    . WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012, p. 126.
  • 25
    Tadeusz Kantor, Concerto do mar, Osieki, 1967

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016

Histórico

  • Aceito
    03 Nov 2016
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