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O grande mundo da invenção1 1 Este texto integra, com “A cor da música” de Paula Braga, o catálogo que organizamos para a exposição “Hélio Oiticica: estrutura corpo cor”, sob nossa curadoria, na Universidade de Fortaleza [Unifor] – Fundação Edson Queiroz, produzida por Base7 Projetos Culturais, de 26 de janeiro a 1 de maio de 2016 .

The great world of invention.

Resumo

O texto se propõe a caracterizar o que Oiticica chamou de “estado de invenção”, desencadeado com a descoberta do corpo no Parangolé e que conduziu o seu programa experimental até o fim, ao “além da arte”, através de uma cascata de proposições que efetivaram um processo de abertura das estruturas e o “sentido de construtividade” na constituição do ambiental como um redimensionamento ético-estético de transmutação da arte.

palavras-chave:
invenção; sentido de construção; experimental; ambiental; além da arte

Abstract

“The text aims to characterize what Oiticica called “invention”, which was triggered by the discovery of the body in Parangolé and that conducted his experimental program until the end, beyond painting, through a set of propositions that implemented an opening process of the structures and the “sense of constructivism” in the constitution of the environmental art as an ethical-esthetic resizing of the transmutation of art.

keywords:
invention; sense of constructivism; experimental; environmental; beyond painting

“Só existe o grande mundo da invenção”, disse Hélio Oiticica em uma de suas últimas entrevistas ao rememorar o seu percurso desde a saída do quadro em 1959, com a descoberta da invenção nos monocromáticos, exatamente denominados Invenções, até seus últimos projetos, ambientações e escritos. Assim, entendeu esse percurso como um programa in progress, que efetivou o “estado de invenção” desencadeado, definitivamente, com a descoberta do corpo nos Parangolés2 2 Cf. CARDOSO, Ivan. A arte penetrável de Hélio Oiticica. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 nov. 1985. Ilustrada, p. 48; OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 227. (Série Encontros). . De fato, observa-se, vendo em retrospecto a sequência de suas proposições, que a conquista desse estado disparou o processo de abertura estrutural, já indiciado em Bilaterais, Relevos espaciais, Bólides, Núcleos e Penetráveis, configurando um lúcido, rigoroso e coerente trabalho de diluição estrutural voltado à transmutação da arte, sua transformação em alguma outra coisa, um “além-da-arte” entendido como uma posição ético-estética que, livre de resíduos esteticistas, pudesse abarcar as vivências individuais e coletivas, redimensionando-as.

A atividade inventiva de Oiticica, as reflexões e teorizações que explicitam as sucessivas posições do programa, propõe “o experimental” e a crítica da cultura como vultos de um mesmo processo de ressignificação da arte, tendo em vista um particular entendimento e uma proposta de transformação da vanguarda brasileira, segundo o que denominava “sentido de construtividade”: “No Brasil, (…) uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos”3 3 OITICICA, Hélio. Brasil diarréia. In: PONTUAL, Roberto (coord.). Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois. São Paulo: Collection, 1973, p. 152. . O programa desencadeado pelo Parangolé, ou antiarte ambiental, imbrica reconceituação da experiência estética e posição ética numa visionária concepção das relações de arte e vida. Inconformismo estético e social, radicalidade e marginalidade, são atitudes que afirmaram Oiticica com o emblema de inventor. Ao deslizar da pintura às estruturas e manifestações ambientais e, assim, às estruturas-comportamento, a atividade de Oiticica mantém a unidade proveniente da tensão entre uma básica tônica conceitual - que reconceitua a arte - e a categoria de vivência - que valoriza ações, gestos e comportamentos. O que antes era obra ou objeto transmuta-se em intervenção ou acontecimento: alguma coisa que desborda do que era considerada arte, pela intensificação de forças, afetos, sensações e ideias tramadas em perspectiva cultural; potências de um viver em disponibilidade criadora. O operador dessas transformações é a categoria de participação, que circulava na época, mas que em Oiticica singulariza-se por ser considerada prática construtiva que retém as exigências e o rigor da construtividade da forma, da cor, da estrutura - além de inerente ao seu um peculiar entendimento do “desenvolvimento construtivo da arte contemporânea”, com que pretende contribuir para as “novas possibilidades ainda não exploradas”4 4 Idem. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 54. .

A lucidez das proposições de Oiticica é dupla: por situar, historicamente, a sua posição estética na continuidade das intervenções modernas e no empenho da desidealização da arte, particularmente em relação ao estado da arte brasileira de vanguarda; e por afirmar a especificidade individual de seu trabalho no contexto das experimentações em que se reconhecia ao lado de outros artistas significativos5 5 Ibidem, p. 33 e 84. . O seu entendimento dos desenvolvimentos construtivistas, da historicidade das práticas vanguardistas e das questões culturais implícitas nessa arte, sensível ao social, à criação e participação coletivas, levaram-no a recusar vários equívocos, como os das mistificações da arte, da vida e de um imediatismo do político na arte. Oiticica sempre se preocupou em expor as ambiguidades e ambivalências das ideias e dos processos artísticos vigentes na arte daquele tempo, por exemplo, a ênfase que se atribuía aos objetos, tornados substitutivos da obra de arte, propondo o experimental como um reexame dos pressupostos subentendidos na atitude experimental.

A extensão da arte na vida, a proposta da criatividade generalizada, inicialmente pela conquista do “espaço real”, fora do quadro - decisivamente com a proposição do Crelazer, que são âmbitos e “estruturas germinativas” para comportamentos, como o que foi materializado no Éden ambientado em 1969 na Whitechapel Gallery de Londres - embora insistindo na tônica sensorial, desliga os efeitos perceptivos e afetivos de uma espontaneidade irracionalista e “anticonceitual”, como desligam o político de uma função imediatista. A diluição estrutural mantém a ideia de estrutura e os procedimentos construtivos, produzindo, inclusive, um aumento do conceitual. Das primeiras estruturas no espaço aos “exercícios imaginativos” do Supra-sensorial e do Crelazer, a tensão entre o artístico e as vivências não subscreve a adesão ao vivido mistificado ou folclorizado; antes, propõe a abertura como fundação de estruturas-comportamento. Enfim, essa desestetização significa que a valorização das sensações e afetos não é uma simples oposição ao racionalismo (na concepção do espaço plástico, nas relações de espaço e cor, da função social da arte, do valor da arte), pois tal ponto de vista poderia ser uma postulação sub-reptícia e substitutiva dos mesmos ideais da arte que estavam sendo questionados. Há violência em sua proposição: visava ao devir de uma experiência em que a totalização do vivido levaria, necessariamente, à transmutação dos indivíduos por meio da transformação da arte em atividade cultural, por multiplicação e “expansão celular”6 6 Ibidem, p. 116-117. .

As estruturas, o espaço, o tempo, sons, cores, palavras, ideias, sensações e afetos entram como constituintes de acontecimentos que se “entre-exprimem” na conjugação de forças heterogêneas nas invenções de Hélio Oiticica, na fulguração das cores e incorporação do espaço da música e da dança dos Parangolés; nos labirintos e na pletora de imagens de Tropicália; nas estruturas táteis-pigmentares de Bólides; nos âmbitos, células-germinativas de comportamentos dos Ninhos; no espaço-ambiente-lazer Barracão; nos Delírios ambulatórios; e nos Contrabólides. Nas superfícies e dobras dos acontecimentos e nas relações que se produzem do entrechoque de imagens e referências, como tão bem manifestam os labirintos, brilha o esplendor do sentido, encarnado em situações e processos. Os acontecimentos se constroem como enunciações, por conjugação e diferenciação, liberando a imagem de um pensamento em que o conceito é sensorial e as sensações, conceituais. Assim, as proposições que se sucedem definem uma poética do instante e do gesto que visa não aos simbolismos da arte, mas ao símbolo dos estados de transformação: a invenção é, portanto, mais do que criação; é um dispositivo que alia pulsões e reflexões, impulsos desterritorializadores e elaboração do que está sendo produzido.

Se a imagem de labirinto é a metáfora unificadora desses estados, pois enfatiza polimorfismos, mobilidades, aberturas, jogos, tensões, surpresas e intervenções ativíssimas e se os Parangolés são o ponto de partida dessa poética, os índices dessa concepção da arte encontram-se, progressivamente, encadeados nas proposições anteriores: na proposição de um “além-da-pintura”; nos Metaesquemas (meta - além, transcendência da visualização; esquema - estrutura, quadro); nas Invenções, em que a cor é liberada como pulsação promovendo não só a mudança dos meios, mas da própria concepção de pintura; na ativação do espaço com Bilaterais, Relevos espaciais e Núcleos, em que a vivência da estrutura-cor explora as múltiplas ressonâncias de espaço e cor temporalizados; na instauração do novo espaço, o Penetrável, perseguido nas experiências construtivas; e, finalmente, nos Bólides.

Os Bólides ocupam um lugar muito especial nos desenvolvimentos do programa de Oiticica. São ao mesmo tempo as últimas “estruturas primordiais” do processo de instauração da ordem ambiental e espécie de tubos de ensaio. Evidenciam o processo de abertura das estruturas expondo as possibilidades e os procedimentos que seriam efetivados plenamente nos desenvolvimentos ambientais. São objetos com forte conotação conceitual; mágicas incursões que permitem experiências sensoriais e lúdicas. Signo e evento, objetos plásticos e âmbitos para exercícios imaginativos permitem a inspeção das estruturas pigmentares de cor; são focos de uma luminosidade que se expande, quer soltar-se e fulgurar no espaço. Não é por menos que Oiticica, até o fim, sempre os recodificou e revitalizou-os, dizendo, em 1978, que eles “são a semente, ou melhor, o ovo de todos os futuros projetos ambientais”7 7 Cf. PECCININI, Daisy (org.). Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Faap, 1978, p. 190. , protótipos de desenvolvimentos ambientais e comportamentais.

Visando a ressaltar o caráter operatório dos Bólides, que fazem a passagem das “estruturas transcendentais imanentes” para “estruturas comportamento-corpo”, Oiticica caracteriza-os como “transobjetos”, ressaltando, inclusive, que a proposta é a mesma dos Parangolés. Neles, importa o signo e não o objeto como obra, pois a participação (explorar, manipular, descobrir) é atividade constitutiva.

O princípio operante da composição dos Bólides é a apropriação, procedimento construtivo e desestetizante fundamental da arte moderna e da contemporânea. Contudo, Oiticica pretende diferenciar suas apropriações de outras vigentes na arte daquele tempo, pois para ele,

nessas experiências a chegada à objetivação, ao objeto tal como ele é no contexto de uma obra de arte, transportada do “mundo das coisas” para o plano das ‘formas simbólicas’, dá-se de maneira direta e metafórica. Não se trata de incorporar a própria estrutura, identificá-la na estrutura do objeto, mas de transportá-lo fechado e enigmático da sua condição de ‘coisa’ para a de ‘elemento da obra’. A obra é virtualizada pela presença desses elementos, e não antes a virtualidade da obra na estrutura do objeto.8 8 OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 63-65.

Nos Bólides, exatamente para enfatizar o processo de construção, e para não os reduzir à desfuncionalização ou estetização dos objetos apropriados, não há “justaposição virtual” de elementos, mas, ao escolher cada um deles, já se identifica a “estrutura implícita” deles com a ideia que preside sua concepção. Os objetos “achados na paisagem” são, assim, incorporados a uma “ideia estética”, com que se valoriza a eleição como um ato que não visa ao objeto em seu estado natural, mas à sua “estrutura implícita”. A virtualidade (de cor, luminosidade, estrutura, ludismo) está, portanto, nos elementos e não na “obra”, com que se ressalta a carga cultural do “mundo das coisas”, assim como a tônica conceitual do procedimento9 9 Ibidem, Loc. cit. .

Os Bólides são manifestações singulares da “tendência ao objeto” vigente na arte brasileira do período. Oiticica, entretanto, sublinha equívocos e confusões da maioria dos “fazedores de objetos” e dos “fazedores de caixas” que, para ele, propugnam uma “estética do objeto”. Por considerar o objeto como etapa do processo de mutação da arte - sendo esta uma etapa prévia, pois está apenas comprometida com as transformações estruturais - Oiticica não o entende como uma nova categoria acrescentada à pintura, mas como uma espécie de categoria substitutiva, uma tábua de salvação face à crise da pintura. Acrescenta que o problema do objeto é mais complexo; “parece ser uma aspiração mais ampla no pensamento moderno: parece desafiar a lógica dessas transformações”. O que importa, para ele, não é o objeto-obra, mas “a ação no ambiente, dentro do qual os objetos existem como sinais” e se propõem como “exercício para um comportamento”10 10 PECCININI, Daisy. Op. cit., 1978, p. 190. . É por isso que Oiticica considera os Bólides como o “objeto por excelência” da posição do objeto na vanguarda brasileira11 11 Ibidem, Loc. cit. , pois exploram, exemplarmente, o intervalo que vai do sinal à ação, fundindo ideia e objeto.

Assim, a conquista definitiva do estado de invenção nos Parangolés pode ser entendida como proveniente da explosão da estrutura-Bólide: a expressividade da cor em estado pigmentar desenvolve-se no espaço temporalizado, impregnando o ambiente. Incorporando a cor e soltando-a no espaço; liberando a ação e multiplicando os sinais; deslizando dos espaços poético-táteis-pigmentares de contenção para os atos-corporais-expressivos, os Parangolés redefinem aquela fusão de ideia e objeto dos Bólides. A apropriação de materiais é relativizada, mas a escolha ainda supõe a identificação da “estrutura implícita”. O acréscimo de música e dança colaboram com a diluição das estruturas; são signos transformáveis e de transformação que comandam o ambiente. A dança realiza o que está implícito na ideia, atualizando relações mutáveis da estrutura e do corpo, da cor e do movimento. A proposição do Parangolé é, assim, o ponto crucial do programa de Oiticica, porque articula imanência expressiva, transformabilidade e vivência: nisso está a chave da invenção.

Transformar os processos de arte em sensações de vida12 12 OITICICA, Hélio. Éden (catálogo da exposição). Londres, 1969. In: ______. Op. cit. 1986. : este é o desígnio que mobilizou o “estado de invenção” que Hélio Oiticica diz ter alcançado com a “descoberta do corpo” no Parangolé. A partir disso, o deslizamento da imanência expressiva da obra para a “imanência do ato corporal expressivo” levou-o à configuração de sua poética do instante e do gesto, da ação e do comportamento, em direção à instauração de um campo de transvaloração da arte - um além-da-arte - realizado como um programa in progress nas diversas proposições de sua antiarte ambiental, em que realiza aquele interesse de articular o conceitual ao fenômeno vivo13 13 Idem. Brasil diarréia. In: PONTUAL, Roberto (coord.). Op. cit., 1973, p. 147. .

Proposição exemplar e radicalizante do deslocamento operado nas artes da modernidade, o programa desenvolvido por Oiticica é uma consequência da inscrição do corpo na arte, efetivando a ideia da vida como processo criador. Nessa concepção, o corpo não é mero protagonista ou uma fonte de sensorialidade, mas uma estrutura-comportamento que redimensiona o sensível da arte, a própria ideia de arte e também a de artista. A consequente requalificação estética, que rompe a demarcação entre arte e vida, decorre da percepção do corpo humano na arte e na vida cotidiana, assim como do seu poder de afetar, constituindo-se, assim, em condição indispensável da experiência artística14 14 JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Maria Lourenço Pereira. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 13. .

A partir dessa descoberta do corpo, Oiticica articula-se às pesquisas de pintores e músicos que, na modernidade, conjugam formas, cores, sonoridades, movimentos, enfim, novas relações de espaço e tempo. Formula uma teoria do “desenvolvimento nuclear da cor”, em que busca o sentido e o “corpo da cor”, em que se percebe repercussão da kandinskiana sonoridade da cor, das pesquisas de Klee e da gestualidade da abstração cromática de Newman, Rothko e Pollock. Enquanto estes artistas exaltam nas cores e sonoridades, nos timbres e nas nuanças, explorando indeterminações, Oiticica figura com o Parangolé essas ocorrências no seu processo de incorporação.

Assim, a descoberta do corpo ressalta as vivências, as intensidades e os afetos liberados no processo de abertura estrutural, com que se desloca o sujeito das obras aos comportamentos, privilegiando a exploração das sinestesias, dos estímulos que atingem simultaneamente a vista e o ouvido, todo o corpo, situando-se no vasto campo das analogias entre imagens sensoriais, cromáticas e sonoras. Particularmente, esse processo, ao mesmo tempo vivencial e cultural, ratifica o fato de que, naqueles e outros artistas modernos, a variação intensiva dos afetos é a atividade constitutiva do sujeito. Na dança, voz e fala, como música ou ruído, na escuta ou no silêncio, o que entra pelo corpo materializa uma relação de linguagem e cultura que tem na arte o lugar de resistência à simples dispersão cotidiana.

A ênfase na proposição vivencial não se confunde, entretanto, com certas proposições de simples “expressão corporal”, na qual frequentemente se observa, pela mitologização do corpo e do cotidiano, a disjunção entre arte e vida. O mais significativo é quando o corpo vira signo em situação: tudo se passa “entre”, não é uma representação ou um suposto real. Esse “entre” é um índice de indeterminação, espaço contingente onde nasce toda relação, assim implicando o processo de transvaloração da arte, de modo que o que resulta não é mais a arte ou a vida empiricamente vivida, as vivências, mas outra coisa, talvez um além da arte. Pois o “entre” é o lugar do intempestivo, porque “o interessante nunca é maneira pela qual alguém começa ou termina. O interessante é o meio, o que se passa no meio (…). É no meio que há o devir, o movimento, a velocidade, o turbilhão”15 15 DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto de menos. Tradução Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, p. 34-35. .

Signo de transformabilidade, a experiência da dança explicita, exemplarmente, a abertura estrutural e a incorporação do som e da cor. A transmutação do sentido de construção, que a partir disso se efetua, provoca a “ressemantização” do corpo e é, simultaneamente, sua consequência. A dança é o desenvolvimento requerido pelo Parangolé e o rito por excelência das atividades que suscita, dada a labilidade das imagens corporais. Realiza o que está implicado na ideia de envolver-se e desdobrar-se, pois institui um espaço intercorporal gerado pelas estruturas-comportamentos, em que se atualizam relações mutáveis da estrutura e do corpo. A dança é a fantasia desse movimento: integra ritmo, corpo e estrutura; enfatiza a embriaguez dionisíaca que provém da vivência plena do presente como “lucidez expressiva da imanência do ato”16 16 OITICICA, Hélio. A dança na minha experiência. In: ______. Op. cit., 1986, p. 72-75. .

Para Oiticica, a dança como “busca do ato expressivo direto” respondeu à “necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, à necessidade de uma livre expressão”17 17 Ibidem, Loc. cit. - referindo-se, certamente, à distinção entre a linguagem do corpo e a das palavras, e que a manifestação de sentido no movimento é anterior à produção do significado18 18 JEUDY, Henri-Pierre. Op. cit., 2002, p. 69. - ressaltando assim o vivencial, implícito já nas proposições anteriores, mas em que o estrutural era ainda determinante. Mas para que tivesse esse poder de diluição estrutural não poderia ser a dança formalizada, mas outra, livre, suscetível a interferências acidentais e improvisações. Inicialmente o samba e depois o rock lhe possibilitaram “uma imersão do ritmo, uma identificação vital completa do gesto, do ato com o ritmo”. Porque na dança,

as imagens são móveis, rápidas, inapreensíveis - são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas - em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crueza essencial - está aí apontada a direção da descoberta da imanência. Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador, uma arte - é a criação do próprio ato, da continuidade.19 19 Ibidem, p. 73.

A sua antiarte ambiental transforma a concepção de artista; ele se torna um motivador para a criação. Criar, disse Oiticica, “não é tarefa do artista, sua tarefa é a de mudar o valor das coisas”20 20 OITICICA, Hélio. Experimentar o experimental. Navilouca, Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. Revista organizada por Torquato Neto e Waly Salomão. , apontando, assim, uma nova inscrição do estético: a arte como intervenção cultural. Seu campo de ação é a atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social, com que se rompe a distância entre a obra e o espectador, abrindo um campo da participação inédito na arte contemporânea.

A antiarte ambiental, além de conceito mobilizador para conjugar a reversão artística e o interesse político, enfim, as dimensões ética e estética, a superação da arte, a renovação da sensibilidade e a participação coletiva, implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das ações. As proposições visavam a liberar as atividades do ilusionismo, para que as ações funcionassem como intervenção nos debates daquele tempo.

A extensão da arte na vida, a proposta de uma criatividade generalizada, liberada pela conquista do “espaço real”, como nos Ninhos do Éden -- “células germinativas”, âmbitos para comportamentos em que a tônica sensorial desliga os efeitos imediatistas - relativizam a ênfase no conceitual e no procedimental exigidas para a efetivação da diluição do estrutural, a superação da pintura e a instauração da arte “nos fios do vivencial”, nos “exercícios imaginativos” surgidos do tensionamento entre o conceitual e o fenômeno vivo. Portanto, a desestetização processada nesses âmbitos não significava uma valorização simples das sensações e dos afetos como oposição ao suposto e genérico racionalismo atribuído aos modos de compreender as significações assumidas na arte no ocidente moderno. Visava, antes, ao devir da experiência, em que a totalização do vivido levaria necessariamente à transmutação das relações entre arte e vida e, portanto, dos indivíduos, através da transformação da arte em atividade cultural, por efeito da multiplicação e da “expansão celular”. Assim, nos acontecimentos da vida “como manifestação criadora”, brilharia o esplendor do sentido, encarnado em situações, indivíduos, processos e comportamentos que desbordariam das regras institucionalizadas do “viver-em-sociedade”, em favor de um “viver-coletivo”. Conceituais e sensoriais, esses acontecimentos materializariam uma imagem do pensamento que valoriza situações instáveis e indeterminadas, de fim impreciso, típicas das experiências exemplares, simbólicas, nas quais coexistem intensidade de sentido, convicção e violência: transformabilidade.

Tratando em 1968 do “problema do objeto” na arte contemporânea - e rejeitando uma tendência que se manifestava na arte brasileira daquele momento de considerar “o objeto como uma nova categoria” que viria a substituir “as antigas de pintura e escultura” - Oiticica, ao contrário, entendia estrategicamente a passagem pelo objeto como necessária para a emergência de “novas estruturas para além daquelas de representação”. Nisso, no “giro dialético” em relação às transformações estruturais em curso na produção artística brasileira, propugnava o deslocamento da ênfase no objeto-obra para o “comportamento criador” e para a “ação no ambiente”. Acentuava que a questão da representação na arte moderna - objeto de suas intervenções desde a passagem pelo neoconcretismo -, transformara-se na questão do comportamento, entendido como a “descoberta do mundo, do homem ético, social, político, enfim da vida como perpétua manifestação criadora”21 21 Idem. O objeto: instâncias do problema do objeto. GAM: Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n. 15, p. 26-27, 1968. . A proposição das “novas estruturas para além daquelas de representação”, já sugeridas no salto da pintura para o espaço e realizadas na concepção dos projetos ambientais iniciados com Tropicália e Éden, indiciariam “o fim das artes”, ou pelo menos “o fim das artes chamadas plásticas que se formaram a partir do Renascimento”, como um programa que, embora no início fosse “irreversível e inútil seria a ele voltar às costas”. Dez anos depois, todo o percurso de constituição daquelas estruturas, surgidas principalmente com os Bólides e Parangolés e configuradas na antiarte ambiental, foi por ele considerado como uma etapa preparatória, necessária, para o “processo de desmitificação” que, “irreversível”, se poria como “PRELÚDIO àquilo que há de vir e que já começa a surgir a partir desse ano na minha ‘obra’: ao que antes chamei de OVO há de seguir O NOVO -- e já era tempo!”22 22 PECCININI, Daisy. Op. cit., 1978, p. 189-190. .

Com essa ideia, as proposições e atividades desenvolvidas a partir de 1978, quando voltou ao Brasil, configuraram um trabalho que pode ser entendido como uma anamnese daquele percurso que então considerava um prelúdio ao que seria a sua verdadeira criação; como reativação das proposições fundantes do seu percurso experimental reelaboradas segundo as novas condições, isto é, segundo as elaborações efetuadas desde que saíra do país. Insistia, contudo, que não se tratava absolutamente de simples retomada das proposições anteriores, especialmente dos Bólides e das Manifestações ambientais. Dizia: “não é retomada de coisa alguma, porque só agora estou começando. Tudo o que fiz antes, considero um prólogo”23 23 MARIA, Cleusa. Hélio Oiticica está de volta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 mar. 1978. Caderno B. . Assim, exatamente porque para Oiticica não há origem - este é o segredo da sua ideia de invenção - pode-se considerar que estava reescrevendo a trajetória, continuando, em situação diversa, aquela configurada desde o impulso inicial de superação da pintura, sendo, portanto, uma reafirmação e reelaboração do seu fundamental sentido de construção e desestetização.

Nas últimas entrevistas, em que assinala o estado atual de suas reflexões sobre a arte contemporânea e assinala as expectativas formuladas por ocasião de sua volta ao Brasil, insiste na posição central da proposição vivencial e da participação, repensadas em função dos desenvolvimentos efetivados nos projetos feitos nos anos em que ficou em Nova Iorque. O destaque que ele dá aos Bólides neste momento é muito significativo, pois surgiram inicialmente nos anos 1960 como instâncias experimentais prévias de uma nova sensibilidade e de um novo sentido da arte, sendo que eles ainda concentram e prefiguram as possibilidades dos desenvolvimentos ambientais. Situando-se ambiguamente no espaço plástico e fora dele, permitiram a Oiticica reescrever os pressupostos de seu trabalho e remeter-se novamente às operações que presidiram à crítica da ênfase dada até então nas estruturas.

Antes, no início de 1970, quando já tinha desatado o processo do além da arte e também o da participação, dizia que “o novo é o viver sempre, o Crelazer que tudo absorve”, para além da arte e da antiarte, e mesmo além do ambiente, que “são como sarampo ou catapora; tem-se uma vez só e se esquece, pois é preciso viver”24 24 OITICICA, Hélio. Entrevista de Hélio Oiticica. In: AYALA, Walmir (org.). A criação plástica em questão. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 163 e ss. . A chegada ao além de tudo ocorreu por transformações que vão da abertura estrutural do “mundo das imagens” do abstrato-conceitual derivado dos conceitos neoconcretos - em que “a preocupação estrutural se dissolve no desinteresse das estruturas”, que se tornam receptáculos abertos à significação - ao comportamento-estrutura e à proposição vivencial formulada com o Supra-sensorial e o Crelazer25 25 OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 103, 114 e 116. . Assim, se a antiarte ambiental é consequência da expansão das operações construtivas ao espaço das vivências e exemplo da nova situação estética originada da crise da pintura, detonadas pela descoberta do corpo no Parangolé, que transforma o destinatário em protagonista, nela se dá a reproposição do tema da criação, efetuada por “uma nova fundação objetiva da arte”26 26 Opinião 65 (catálogo da exposição). Rio de Janeiro: Galeria de Arte Banerj, set. 1984. . Como dizia:

sinto uma liberdade interior fantástica, uma falta de compromisso formal absoluto: não existe mais a preocupação de criar algo que evolua numa linha daqui para ali: creio que a maior ambição ainda seja de procurar uma forma de conhecimento, ou formas de conhecimento, por atos espontâneos de criação (…); a necessidade de inventar é agora algo livre, solto das amarras da invenção de ordem esteticista: inventar é criar, viver.27 27 PIRES, Luiz Antonio. Entrevista com Hélio Oiticica. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 mar. 1970, p. 4.

Em virtude disso, a proposição ambiental articula ações e comportamentos, não visando à criação de um “mundo estético” pela aplicação de estruturas artísticas ao cotidiano ou simplesmente diluindo as estruturas e a arte no cotidiano. Efetiva-se, assim, a proposição vivencial: “chegar ao outro lado do conceito de antiarte - à pura disponibilidade criadora, ao lazer, ao prazer, ao mito de viver, onde o que é secreto agora passa a ser revelado na própria existência, no dia a dia”28 28 OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 100. .

Assim, reconhece-se a permanência da ideia de que o comportamento é a tendência do programa in progress de Oiticica, evidenciado com contundência com a formulação do Supra-sensorial e do Crelazer, configurados no Éden, nos Ninhos e no Barracão. Em todos estes, completa-se a desestetização com alusão a um “além-participação”29 29 AYALA, Waldir (org.). Op. cit., 1970, p. 163. , pois as operações antiartísticas, deslocadas, concentram-se em experiências sensoriais, o dilatamento das “capacidades sensoriais” corresponde ao dilatamento da consciência30 30 OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 102 e ss. . O interesse de Oiticica coincide, nesse aspecto, com algumas das experiências que se faziam naquele tempo e que se estenderam até meados dos anos 1970, no âmbito da contracultura, do underground, da “nova sensibilidade” contracultural que no Brasil foi designada por “curtição”, cujas atividades, consideradas não repressivas e transgressivas, pretendiam afirmar-se como revolucionárias “no sentido total do comportamento”, inconformistas, “à margem de tudo”31 31 FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark – Hélio Oiticica: cartas (1964-74). Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 44. . Como disse:

para mim há um tipo de atividade criadora, esse tipo: no mundo seria considerado “underground”: a marginalidade das atividades criadoras é assumida e usada como elemento de frente: à minha atividade atual, no seu todo, quero chamar de “subterrânea”: não será exposta, mas feita: seu lugar no tempo é aberto.32 32 PIRES, Luiz Antonio. Op. cit., 1970, Loc. cit.

A abertura crescente do estrutural em direção ao comportamento-estrutura, ao “além-ambiente”, tem no Crelazer o seu ponto de definição, que toma corpo no Éden, projeto montado em Londres, entre fevereiro e abril de 1969 na Whitechapel Gallery, em que incorpora a concepção de vida-arte como atividade não repressiva, sempre política, pois se opõe a todas as formas da dessublimação programada33 33 AYALA, Walmir (org.). Op. cit., 1970, p. 163-166. . O Éden foi caracterizado por Oiticica como

um campus experimental, uma espécie de taba, onde todas as experiências humanas são permitidas (…). É uma espécie de lugar mítico para as sensações, para as ações, para a feitura de coisas e construção do cosmo interior de cada um - por isso, proposições “abertas” são dadas e até mesmo materiais brutos e crus para “fazer coisas” que o participador será capaz de realizar.34 34 OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 117.

Oiticica disse que a experiência em Londres foi decisiva, pois lhe permitiu reavaliar o percurso experimental e tentar proposições que não eram possíveis no Brasil: articular estrutura e comportamento em espaços amplos, sem as costumeiras delimitações de galerias e museus. Assim, foi possível gerar acontecimentos em um recinto-participação e, com ela, disse que tinha chegado “ao limite de tudo”. No Éden, diferentemente de Tropicália, não há imagens a serem decifradas ou decodificadas, mas um espaço de circulação, sensações, imaginação e ideias. Nos vários percursos que a exposição propicia, o participante passa por experiências diversas, receptáculos e espaços abertos a vivências: brincar, dormir, aconchegar-se, amar etc., antes de sair para o “além-ambiente”. Cada um dos lugares funciona como “célula germinativa” governada pelos princípios de expansão e indeterminação; são “células-comportamento” que propõem modos de “estar no mundo”. O Éden, diz Oiticica, é o projeto de um “contexto para o comportamento, para a vida”; as ideias de reprodução, multiplicação e crescimento são operadores de uma experimentação coletiva, imaginada como “comunidade germinativa”.

A partir daí, imaginou o Barracão, que para ele só poderia germinar no Brasil, especificamente no Rio: um “recinto-proposição” de um “mundo-abrigo” em que poderia nuclear todas as experiências e, desse modo, uma comunidade poderia germinar e crescer sem repressões, algo associado aos ideais da nova sensibilidade contracultural. Entretanto, em anotações posteriores de 1973, pensando a “relação-conduta de cada indivíduo” nessas experiências, segundo a “proposição de experimentalismo livre”, referidas ao conceito de “mundo-abrigo”, indica o ultrapassamento da nova sensibilidade contracultural, direcionando a proposição para experiências-grupo mais vitais que as células underground, que nem sempre permitem experiências-limite. A partir disso, a proposta de “reconhecer o urbano como experimentalmente mais apto a experiências-grupo” mais vitais. Assumir o experimental no comportamento, considerar o “MUNDO como campo experimental”, significa tomar o “experimental como exercício para um tipo de comportamento-plenitude q ao menos tenda a uma estrutura de lazer como prazer oposta à atual de lazer como dessublimação programada q sustenta períodos-horas de trabalho-produção alienado”. Assim, diz que na ideia de Barracão há uma

‘exigência inicial sobre espaço-ambiente: criar espaço-ambiente-lazer q se coadune a um tipo de atividade q não se fragmente em estruturas precondicionadas e q em última instância se aproxime de uma relação corpo-ambiente cada vez maior’, tendo em vista a ‘intensificação do viver sem intermediação ritualística.35 35 Idem. Arquivo HO, NTBK 2/73. Folha de S.Paulo, São Paulo, 25 jan. 1986. Ilustrada, p. 52.

Em Nova Iorque, Oiticica estende a proposição do Crelazer buscando uma nova síntese das experiências ligadas ao comportamento, encaminhando-se cada vez mais para o seu “programa pra vida”, para o ultrapassamento da arte, do “prelúdio” configurado em sua trajetória experimental, uma vez tendo chegado “ao limite de tudo”, ou seja, da arte. Nas experiências-limite, esgotaram-se as transformações implícitas no “sentido de construção” que vigorava desde a passagem pelo neoconcretismo, assim incorporando e superando os pressupostos modernos, tal como tinha enunciado. Desintegrada a pintura e encerrados os imperativos vanguardistas, Oiticica vive o puro “estado de invenção”; propõe e assume “o experimental” como exercício pleno da liberdade, “um ato cujo resultado é desconhecido”36 36 Idem. Experimentar o experimental. Op. cit, 1974. , ou, dizendo de outra maneira, indeterminado, tendo em vista um “além da arte”. O impulso vanguardista possibilitou-lhe a elaboração das promessas de liberdade na utopia de uma arte unida à vida, em que a criatividade generalizada não se confunde, contudo, com a diluição da arte na vida, com as mistificações da criatividade pela crença em uma espécie de “naturalismo da criatividade”, ou a aplicação de categorias estéticas à vida. O seu “estado de invenção” é o reencontro com o estado nascente das experiências modernas, mas também da tendência a estetizar a vida. Livres do “drama da procura”, os signos já experimentados são agora incluídos em uma nova disposição. Começar tudo de novo implica não repetir ou retomar, mas reativar.

Pode-se assim entender a sua atividade em Nova Iorque como uma atitude tática e reflexiva: sintomática do “novo” que haveria de advir; depois da arte. Pensa que os muitos blocos de projetos e maquetes lá desenvolvidos deveriam ser montados no Brasil, pois seria o local apropriado para eles. Como disse, ao voltar em 1978:

Minha vinda está ligada a alguns projetos que pretendo construir aqui. Este trabalho faz parte de um sonho antigo: montar grandes espaços labirínticos em amplas áreas livres. Penso que terei oportunidade de construí-los, porque há mais sentido em fazê-los aqui, num ambiente tropical, do que no inverno de N.York.37 37 “Não sou filho pródigo. As raízes foram arrancadas há muito tempo”. Cf. Idem. Hélio Oiticica está de volta. In: MARIA, Cleusa. Op. cit., 1978, Loc. cit.

Religava, assim, os fios lançados, soltos de 1961 no Projeto Cães de Caça de 1961, agora com projetos como Magic Square, para lazer e prazer, para o uso diário.

Minhas pesquisas estão muito mais ligadas ao Brasil, porque são trabalhos que tendem ao coletivo, mais que ao individual. A função de minhas maquetes, anteriormente, era a de uma participação coletiva planejada. Hoje, elas já nascem como se fosse uma obra pública. Isso tem mais a ver com a realidade brasileira, do que a própria arquitetura.38 38 Ibidem.

Outras atividades de Oiticica no Rio em seus últimos anos de vida são elucidativos de como pensava começar tudo de novo e o significado da revivescência de proposições anteriores, por exemplo, os Contrabólides, que procedem da reconfiguração dos Bólides por inversão de seu processo, como na experiência Devolver a terra à Terra, no aterro de lixo do Caju, e os acontecimentos poético-urbanos, que procedem das manifestações ambientais, como o Delírio ambulatório. Não se tratava, entretanto, de repetição de experiências que já tinham se manifestado, mas de reescrever ações fora das expectativas que presidiram o processo de desconstrução da arte e do corpo. Oiticica diz que “o delírio ambulatório é um delírio concreto”, exatamente porque a experiência de andar pelas ruas, de perambular no espaço urbano, implica a experiência da imanência do ato de andar pelos lugares agora desmistificados: Central do Brasil, Morro da Mangueira, Morro de São Carlos etc.

Não se pode dizer com clareza para onde se encaminhavam essas experiências que visavam a um além da arte. Parece que a reativação de ideias e proposições fundantes passava por um processo de rememoração e anamnese que vinha se efetuando desde Nova Iorque, com que a proposição vivencial, patente nos inícios da linha construtiva da arte moderna, reativada e perlaborada, indiciava que a pulsão que mobilizou o seu trabalho do início ao fim implicava o impulso de se exceder em direção a uma outra temporalidade, “impresentificável”.

  • 1
    Este texto integra, com “A cor da música” de Paula Braga, o catálogo que organizamos para a exposição “Hélio Oiticica: estrutura corpo cor”, sob nossa curadoria, na Universidade de Fortaleza [Unifor] – Fundação Edson Queiroz, produzida por Base7 Projetos Culturais, de 26 de janeiro a 1 de maio de 2016
  • 2
    Cf. CARDOSO, Ivan. A arte penetrável de Hélio Oiticica. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 nov. 1985. Ilustrada, p. 48; OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 227. (Série Encontros).
  • 3
    OITICICA, Hélio. Brasil diarréia. In: PONTUAL, Roberto (coord.). Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois. São Paulo: Collection, 1973, p. 152.
  • 4
    Idem. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 54.
  • 5
    Ibidem, p. 33 e 84.
  • 6
    Ibidem, p. 116-117.
  • 7
    Cf. PECCININI, Daisy (org.). Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Faap, 1978, p. 190.
  • 8
    OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 63-65.
  • 9
    Ibidem, Loc. cit.
  • 10
    PECCININI, Daisy. Op. cit., 1978, p. 190.
  • 11
    Ibidem, Loc. cit.
  • 12
    OITICICA, Hélio. Éden (catálogo da exposição). Londres, 1969. In: ______. Op. cit. 1986.
  • 13
    Idem. Brasil diarréia. In: PONTUAL, Roberto (coord.). Op. cit., 1973, p. 147.
  • 14
    JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Maria Lourenço Pereira. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 13.
  • 15
    DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto de menos. Tradução Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010, p. 34-35.
  • 16
    OITICICA, Hélio. A dança na minha experiência. In: ______. Op. cit., 1986, p. 72-75.
  • 17
    Ibidem, Loc. cit.
  • 18
    JEUDY, Henri-Pierre. Op. cit., 2002, p. 69.
  • 19
    Ibidem, p. 73.
  • 20
    OITICICA, Hélio. Experimentar o experimental. Navilouca, Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. Revista organizada por Torquato Neto e Waly Salomão.
  • 21
    Idem. O objeto: instâncias do problema do objeto. GAM: Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro, n. 15, p. 26-27, 1968.
  • 22
    PECCININI, Daisy. Op. cit., 1978, p. 189-190.
  • 23
    MARIA, Cleusa. Hélio Oiticica está de volta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 mar. 1978. Caderno B.
  • 24
    OITICICA, Hélio. Entrevista de Hélio Oiticica. In: AYALA, Walmir (org.). A criação plástica em questão. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 163 e ss.
  • 25
    OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 103, 114 e 116.
  • 26
    Opinião 65 (catálogo da exposição). Rio de Janeiro: Galeria de Arte Banerj, set. 1984.
  • 27
    PIRES, Luiz Antonio. Entrevista com Hélio Oiticica. O Jornal, Rio de Janeiro, 6 mar. 1970, p. 4.
  • 28
    OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 100.
  • 29
    AYALA, Waldir (org.). Op. cit., 1970, p. 163.
  • 30
    OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 102 e ss.
  • 31
    FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark – Hélio Oiticica: cartas (1964-74). Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 44.
  • 32
    PIRES, Luiz Antonio. Op. cit., 1970, Loc. cit.
  • 33
    AYALA, Walmir (org.). Op. cit., 1970, p. 163-166.
  • 34
    OITICICA, Hélio. Op. cit., 1986, p. 117.
  • 35
    Idem. Arquivo HO, NTBK 2/73. Folha de S.Paulo, São Paulo, 25 jan. 1986. Ilustrada, p. 52.
  • 36
    Idem. Experimentar o experimental. Op. cit, 1974.
  • 37
    “Não sou filho pródigo. As raízes foram arrancadas há muito tempo”. Cf. Idem. Hélio Oiticica está de volta. In: MARIA, Cleusa. Op. cit., 1978, Loc. cit.
  • 38
    Ibidem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2016
  • Aceito
    10 Jul 2017
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