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O mensageiro

The messenger

Resumo

Este texto resultou do convite de Ars ao artista Carlos Zilio para que nos desse um testemunho de seu convívio com Hubert Damisch, a quem conheceu em 1978, quando frequentou o seminário ministrado pelo teórico francês naquele ano.

Palavras-chave:
Hubert Damisch; Carlos Zilio; Yve-Alain Bois

Abstract

This text results from Ars’ invitation to artist Carlos Zilio, who has been asked to give us a testimony of his contact with Hubert Damisch since 1978, when Zilio attended to the seminar given that year by the French theoretician.

Keywords:
Hubert Damisch; Carlos Zilio; Yve-Alain Bois

O primeiro texto que li de Hubert Damisch foi o artigo “Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura”, publicado no segundo número de Macula, importante revista de arte editada por Yve-Alain Bois e Jean Clay entre 1976 e 1979. O texto começava com a seguinte frase: “Existe uma verdade da pintura ou, conforme o enunciado voluntariamente ambíguo de Cézanne - ‘devo-lhes uma verdade em pintura e a direi. Existe uma verdade em pintura?’”1 1 Trata-se do texto Huit thèses pour ou contre une semiologie de la peinture, que reproduzia a comunicação de Damisch no primeiro Congresso da Associação Internacional de Semiótica, realizado em Milão, em 1974, e publicado no número 2 da revista Macula, em 1977: “Y a-t-il une vérité de la peinture ou, suivant le mot, I’énoncé délibérément ambigu de Cézanne : ‘je vous dois la vérité en peinture et je vous la dirai, y a-t-il une vérité en peinture ?’ Et cette vérité, vérité de la peinture, vérité en peinture, appartient-il au sémiologue, sinon de la dire peut-être ne saurait elle l’être, dite, cette vérité qu’en peinture ?, au moins de l’inscrire dans le registre théorique, d’en désigner le lieu d’émergence, d’en définir les conditions d’énonciation par référencé à l’objet “Peinture” tel qu’il travaille pour sa part et selon ses moyens à le constituer en tant que domaine, champ ou mode spécifique de production d’un sens lui-même spécifique ?…”. Disponível em: <https://goo.gl/xCznJ9>. Acesso em: 19 fev. 2018. [N. Ed.] . Pintura, verdade, Cézanne, eram palavras-chave para mim. O ponto de interrogação no fim da frase era estimulante. Vivendo em Paris e fazendo uma espécie de revisão solitária do meu trabalho, a pintura vinha se impondo como a questão a ser enfrentada. No ano de 1978CÉZANNE, Paul. Cézanne: les dernières années 1895-1906 (catálogo da exposição). Paris: Grand Palais, 1978., mais precisamente em abril, foram inauguradas as exposições “Cézanne: les dernières années”2 2 CÉZANNE, Paul. Cézanne: les dernières années 1895-1906 (catálogo da exposição). Paris: Grand Palais, 1978. [N. Ed.] (talvez a maior do artista já realizada desde então) e a retrospectiva de Jasper Johns3 3 JOHNS, Jasper. Jasper Johns: 19 avril – 4 juin 1978 (catálogo da exposição). Paris: Centre Georges Pompidou; Musée National d’Art Moderne, 1978. [N. Ed.] . Eram confluências mobilizadoras.

Saí em busca de Damisch. Encontrei seu livro fundamental, Théorie du nuage4 4 DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage: pour une histoire de la peinture. Paris: Seuil, 1972. [N. Ed.] , e comecei a frequentar como ouvinte o seu seminário. Imediatamente fui arrebatado pela intensidade de suas aulas. A sensação mais exata que senti foi uma vertigem intelectual; nada de espetáculo, é claro, mas o estar diante da realização incessante de uma trama constituída por diversos saberes, que tornavam o objeto da arte sempre mais presente.

Nessa época me aventurei a pensar sobre o que se convencionou chamar de identidade da arte brasileira, o que acabou resultando em meu livro A querela do Brasil5 5 ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. [N. Ed.] . Minhas referências teóricas se situavam entre a iconologia de Panofsky e o conceito de espaço de Francastel (que havia sido, assim como Merleau-Ponty, professor de Damisch). A aproximação com o pensamento de Damisch me levou a problematizar esse campo de referências e, ao colocar em causa o conceito de estilo, deu-me a saída estratégica para minha análise.

Em 1984, o curso de especialização em História da Arte da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) lançou a revista Gávea, da qual eu era editor responsável. No primeiro número do periódico foi publicado “Oito teses a favor (ou contra?) uma semiologia da pintura”, e em 1996, no número 14, outro artigo de Damisch, “O desaparecimento da imagem”, que havia sido originariamente apresentado em uma conferência no Rio de Janeiro dois anos antes.

Em 1992 voltei a ser aluno de Damisch, dessa vez oficialmente como pós-doutorando na sede da École des Hautes Études en Sciences Sociales. O seminário que apresentou abordava O julgamento de Páris6 6 DAMISCH, Hubert. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992. [N. Ed.] , editado pouco depois. Novamente eu enfrentava a vertigem de um pensamento capaz de articular a arte por meio de diversos campos de conhecimento e deslocamentos incessantes no tempo.

Durante todo esse período meu contato com ele foi sempre muito formal, talvez em parte por conta da minha timidez. Quando Damisch foi convidado para participar, no Rio de Janeiro, de um colóquio em 1994 junto com outros intelectuais europeus, os organizadores me solicitaram para ciceroneá-lo. Acompanhei-o no Rio e ajudei a organizar as viagens dele e de sua mulher Teri a São Paulo, Brasília, Salvador e Ouro Preto. Aproximamo-nos muito, e finalmente transpusemos a etiqueta francesa do tratamento vous para o tu.

Depois disso revi Damisch várias vezes em Paris. Lembro-me de conversas que se prolongavam na sua casa e em restaurantes e, em detalhes, da visita que juntos fizemos à exposição de Courbet. Tinha uma enorme paciência para ouvir e sempre um comentário com lucidez.

Em um belo texto lido no enterro de Damisch no cemitério de Père Lachaise, lançando mão do título do único livro de ficção de Damisch, Le messager des îles, Yve-Alain Bois fala do conhecimento do autor como um arquipélago de disciplinas, que ele articulava visando aos objetos do seu amor - a pintura sobretudo, mas igualmente o cinema, a fotografia, a arquitetura, sem esquecer da literatura7 7 Trata-se do texto “Homenagem a Hubert Damish”, que publicamos neste número de Ars. [N. Ed.] . Bois relembra ainda o encontro de Damisch com o professor Merleau-Ponty, que em poucos minutos conseguiu precisar para ele qual seria seu objeto de estudo pelos próximos dez anos, o que para Damisch era uma ambição como professor (plenamente atingida, diz, com razão, Yve-Alain Bois).

Quanto a mim, aproveitando a ideia do título do livro, gostaria de reter o aspecto messager. Desde a primeira aula minha sensação foi de ser envolvido por alguém que trazia mensagens de vários lugares, sempre precisando e ampliando o campo da arte. Alguém que fez minha atividade de artista ganhar um universo de referências capaz de tornar o exercício da arte uma aventura ainda mais fascinante.

Bibliografia complementar

  • CÉZANNE, Paul. Cézanne: les dernières années 1895-1906 (catálogo da exposição). Paris: Grand Palais, 1978.
  • DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage: pour une histoire de la peinture. Paris: Seuil, 1972.
  • DAMISCH, Hubert. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992.
  • JOHNS, Jasper. Jasper Johns: 19 avril – 4 juin 1978 (catálogo da exposição). Paris: Centre Georges Pompidou; Musée National d’Art Moderne, 1978.
  • ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
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    Trata-se do texto Huit thèses pour ou contre une semiologie de la peinture, que reproduzia a comunicação de Damisch no primeiro Congresso da Associação Internacional de Semiótica, realizado em Milão, em 1974, e publicado no número 2 da revista Macula, em 1977: “Y a-t-il une vérité de la peinture ou, suivant le mot, I’énoncé délibérément ambigu de Cézanne : ‘je vous dois la vérité en peinture et je vous la dirai, y a-t-il une vérité en peinture ?’ Et cette vérité, vérité de la peinture, vérité en peinture, appartient-il au sémiologue, sinon de la dire peut-être ne saurait elle l’être, dite, cette vérité qu’en peinture ?, au moins de l’inscrire dans le registre théorique, d’en désigner le lieu d’émergence, d’en définir les conditions d’énonciation par référencé à l’objet “Peinture” tel qu’il travaille pour sa part et selon ses moyens à le constituer en tant que domaine, champ ou mode spécifique de production d’un sens lui-même spécifique ?…”. Disponível em: <https://goo.gl/xCznJ9>. Acesso em: 19 fev. 2018. [N. Ed.]
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    CÉZANNE, Paul. Cézanne: les dernières années 1895-1906 (catálogo da exposição). Paris: Grand Palais, 1978. [N. Ed.]
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    JOHNS, Jasper. Jasper Johns: 19 avril – 4 juin 1978 (catálogo da exposição). Paris: Centre Georges Pompidou; Musée National d’Art Moderne, 1978. [N. Ed.]
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    DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage: pour une histoire de la peinture. Paris: Seuil, 1972. [N. Ed.]
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    ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. [N. Ed.]
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    DAMISCH, Hubert. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992. [N. Ed.]
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    Trata-se do texto “Homenagem a Hubert Damish”, que publicamos neste número de Ars. [N. Ed.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Dez 2017
  • Aceito
    07 Fev 2018
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