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As mulheres e a luz na obra de Umberto Boccioni

Women and light in the art of Umberto Boccioni

Resumo

Este artigo reflete acerca da poética do artista italiano Umberto Boccioni (1882-1916) tomando como eixo o tema da mulher em sua obra pictórica e escultórica, temática de importância na obra do artista, utilizada ainda em desenhos e telas de sua fase pré-futurista no sentido de compreender as relações entre os corpos, a luz e a atmosfera. A representação específica de mulheres junto a janelas e balcões persistiu em seus anos futuristas e possibilitou a expansão e o aprofundamento de suas pesquisas relacionadas à percepção da luz e sua incidência nos corpos, bem como a formulação do conceito de “escultura-ambiente”.

Palavras-chave:
Umberto Boccioni; futurismo; arte italiana

Abstract

This article intends to carry out a reflection on the poetics of Italian artist Umberto Boccioni (1882-1916), taking the subject of women in his pictorial and sculptural work as axis. This theme has a particular importance in the artist’s works, and was used in drawings and paintings of his pre-futuristic stage in order to understand the relationship among bodies, light and atmosphere. The specific representation of women at windows and balconies persisted in his futuristic years and enabled the expansion and deepening of his researches related to perception of light and its incidence on bodies, as well as the concept of “sculpture of environment”.

Keywords:
Umberto Boccioni; futurism; Italian art

No dia 26 de setembro de 1915, na condição de soldado integrante do Battaglione Lombardo Volontari Ciclisti ed Automobilisti (Batalhão de Ciclistas Voluntários), Umberto Boccioni (1882-1916) registrou em seu diário do front:

Terminei com A.

Bianca / Ines / Rosina / Maria Farsi / Figlia P. Credito I. /

Carta / Sandrina / Marda C. / Adriana / Mariuccia /

Augusta / Gina d’O. / Cirva M. Jo. Keuna / Jane C. M.1 1 BOCCIONI, Umberto. Diários. Campinas: Unicamp, 2016.

O trecho, escrito em meio à zona de guerra, aparece como uma espécie de memorial do artista, que revisita seu passado através de uma listagem de nomes de mulheres com as quais teve relacionamentos amorosos. Reconhecem-se os nomes de Ines, sua modelo, Sandrina, sua prima, Augusta Popoff e Adriana Bisi Fabbri. Embora pouco se saiba a respeito dos demais nomes, tal registro nos mostra, em parte, os vários envolvimentos afetivos de Boccioni; “em parte”, porque a presença feminina na vida do artista não se restringiu somente aos casos amorosos; sua mãe e sua irmã são frequentemente lembradas e mencionadas em seus diários, cartas e demais textos. As mulheres foram figuras tão importantes na vida de Boccioni que sua obra - independentemente de estar situada em sua fase pré-futurista ou não - está impregnada de referências ao universo feminino, direta ou indiretamente. Desta forma, este artigo pretende, através de um percurso por algumas de suas pinturas, desenhos e esculturas, traçar um itinerário da poética do feminino em sua obra, demonstrando como o tema da mulher auxiliou no desenvolvimento de suas pesquisas sobre a representação da luz e sua relação com os corpos e o ambiente.

A escolha por este tema específico justifica-se pelo fato de que, embora homens e crianças tenham sido representados em sua arte, são nas obras do artista cujo tema é a mulher que percebemos de modo mais contundente as transformações formais de sua poética pictórica e escultórica. Boccioni interessou-se pela representação feminina por vários motivos. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que seu universo é um espaço predominantemente povoado por mulheres: ele convive com a mãe e a irmã; seu pai, que abandona o lar para viver outro relacionamento, raramente é mencionado em seus escritos; as figuras masculinas na vida do artista são seus amigos e empregadores, e não parentes. Este “universo-íntimo” o direcionou a produzir um número elevado de obras onde a mãe, a irmã e a amante Ines são as principais protagonistas.

Em segundo lugar, a trajetória artística de Boccioni manifestou desde cedo um expressivo diálogo com a cultura do Ottocento italiano, que apresentava a mulher como elemento contemplativo, frequentemente associada à natureza; sendo vista, portanto, como um ser plácido, belo e disponível, como o espaço natural. Este universo social do século XIX manifesta-se em Boccioni, que, numa atitude romântica, coloca-se como o “homem-autor” que domina a “mulher-musa”, passiva e amorosa. Neste sentido, o olhar dirigido a estas mulheres é um olhar masculino que, no espaço específico da pintura e da escultura, as modela e as domina, exercendo um controle sobre o corpo simbólico feminino. Trata-se de uma relação de poder na qual o olhar masculino sai vitorioso ao reduzir o corpo da mulher a um objeto preenchido pelos desejos do outro, conforme observa Berger:

os homens agem e as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres veem-se a serem vistas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias. O vigilante da mulher dentro de si própria é masculino; a vigiada, feminina. Assim, a mulher transforma-se a si própria em objeto - e muito especialmente num objeto visual: uma visão.2 2 BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 51.

Em suma, a presença do feminino na obra de Boccioni nos informa sobre o zeitgeist europeu acerca das questões de gênero e do papel da mulher como ser submisso ao homem - mesmo em um momento em que mulheres começam a lutar por autonomia e independência na sociedade -, bem como nos mostra a experiência particular do artista no seu relacionamento com as mulheres.

A mulher está presente na obra de Boccioni como prostituta, como componente da massa urbana que se agita ao redor dos monumentos e dos cafés, como dançarina, amante, irmã, beata pensativa e inspiradora, e como mãe - neste caso, entendida em seu caráter duplo: genitora e força cósmica. Em Umberto Boccioni: l’opera completa (1983), obra de fôlego organizada por Maurizio Calvesi e Ester Coen, é possível visualizar a expressiva quantidade de desenhos, esboços, estudos, telas e esculturas que orbitam exclusivamente este tema. Mesmo em sua fase futurista Boccioni não renunciou à temática, preferindo concentrar-se em modos inéditos de interpretação das formas a enfatizar temáticas tipicamente modernas e industriais, como veremos adiante.

Porém notamos que, na constituição deste universo feminino, Boccioni privilegiou um tema específico: a mulher à janela. Exposta ao olhar do homem, esta mulher não se movimenta, não é dona de ato algum; exibe-se docilmente às intenções do autor, que será responsável por construir simbolicamente o seu corpo. Este claro posicionamento de papéis será o ponto de partida para as transformações formais na obra de Boccioni em seus anos futuristas, conforme veremos a seguir.

Um tema recorrente: a mulher na janela

As primeiras tentativas de Boccioni para se inserir no campo artístico estão em seus desenhos, onde nos deparamos com uma grande variedade temática: estudos de anatomia, paisagens, retratos, cópias dos grandes mestres. Contudo, nestes primeiros anos, entre 1903 e 1909, são marcados por telas, desenhos e pastéis que mostram um interesse particular pelas figuras femininas, especificamente aquelas próximas de seu cotidiano: a irmã Amélia e a mãe Cecilia, Virginia, sogra de Duilio Cambellotti, e a tia Colomba Boccioni Procida. Boccioni esboçou inúmeras silhuetas de homens e mulheres, homens caminhando, mulheres costurando e mulheres diante da janela. O desenho à lápis Giovane che cuce (Jovem que costura), de 1902, é a primeira obra conhecida que representa uma mulher próxima à janela - tema emblemático da poética do artista -, absorta em suas atividades de costura. A obra revela um estudo atento das relações entre luz e sombra e o desejo de obter uma composição complexa, e embora apresente uma rigidez do traço ainda perceptível, o desenho atesta o interesse do artista pelas relações entre luz e ambiente. Obras como os pastéis La sorella che lavora (A irmã que trabalha), La Signora Sacchi (A Senhora Sacchi), La madre che lavora (A mãe que trabalha), e o desenho feito à caneta La madre con l’uncinetto (A mãe com o crochê), todas produzidas em 1907, participam do mesmo universo temático do desenho de 1902.

Em linhas gerais, a temática da janela tem suas raízes modernas no trabalho de artistas como Jean-François Millet, mas também pode estar ligada a algumas fontes do século XIX mais próximas a Boccioni, como as telas de Angelo Morbelli que retratam mulheres idosas costurando próximas à luz que emana das janelas. As figuras femininas, posicionadas em sua maioria junto à janela, atestam um já forte interesse do artista pelo estudo dos efeitos luminosos na construção do volume e na modificação da cor.

A modelagem, a perspectiva e as variações cromáticas são tópicos de profundo interesse para o jovem Boccioni, então envolvido pela atmosfera pictórica italiana do final do século XIX, pela experiência divisionista e pelo estudo das relações entre cor e luz. Se o tema de indivíduos próximos a fontes de luz nos remete a Morbelli, são Gaetano Previati e Giovanni Segantini que atraem profundamente o artista, intrigado com a representação pictórica da luz e seus efeitos no espaço.

Os pintores Segantini, Previati e Pellizza da Volpedo, embora não conhecidos em toda a Itália e ignorados fora do país, exerceram, direta ou indiretamente, um papel importante no desenvolvimento artístico de Boccioni. O divisionismo da alta Itália utilizava cores puras, procurava explorar os efeitos da luz e inclinava-se ao uso da cor em impasto, com pinceladas em toques dissociados. Neste universo divisionista, Boccioni mostrou-se especialmente interessado pela obra de Previati. Antes mesmo de Alberto Grubicy organizar uma exibição de obras divisionistas em sua galeria, Boccioni já havia assimilado as lições daquele artista; um dos primeiros indícios desta assimilação é a modificação da sua pincelada que, antes feita em pequenos toques, passa a assumir características filamentosas, típicas de Previati. Essa pincelada divisionista sugere plasticamente a forma sem alterar a clareza da cor. A modificação na pincelada é um aspecto importante na poética de Boccioni deste período, “porque o permite superar a arte de simples visão, dando-lhe os meios para uma arte de concepção, mais inventada, também pelo ensinamento de Previati sobre o valor da ‘composição em volume e massas luminosas que deformam os corpos e o ambiente segundo a vontade do artista’”3 3 BALLO, Guido. Umberto Boccioni. Milano: Il Saggiatore, 1964, p. 20. Todas as traduções das fontes em língua estrangeira são de nossa autoria. .

Previati assumirá grande importância na formulação do conceito de cor e forma do stati d’animo (estado d’alma), que nasce do uso de uma luz embebida em características psíquicas. Ballo explica: “é a consequência simbolista que de origens pré-rafaelitas desenvolve esta interioridade e, portanto, o conteúdo em projeção psíquica: para a cor, mas também para o linearismo, como no caso de Previati pela marca filamentosa pictórica ondulada”4 4 Ibidem, Loc. cit. . A partir disso, junto com referências retiradas do art nouveau, da obra de Aubrey Beardsley e da gráfica de Albrecht Dürer, Boccioni voltará sua atenção para o valor energético da linha e sua função dinâmica, que em sua fase futurista dará origem ao conceito de linha-força.

Outro elemento fundamental que atrai o artista é o conceito de ambientação, que, interagindo com a composição, origina a “forma aberta”. Neste sentido, mais uma vez a luz merece destaque, sendo a responsável pela compenetração de todos os elementos pictóricos, criando a atmosfera dentro do quadro; esta luz, presente nas obras de Previati, é uma herança da experiência scapigliata e da influência de Tranquillo Cremona.

Assim, a temática da figura feminina à janela permite a Boccioni exercitar essas capacidades plásticas da luz em seus potenciais de cor e, posteriormente, de linha. Neste sentido, merecem destaque as telas Romanzo di una cucitrice (Romance de uma costureira, 1908), La Signora Massimino (A Senhora Massimino, 1908) e Tre donne (Três mulheres, 1909).

Romanzo di una cucitrice apresenta uma leitura bastante aprofundada da obra de Previati, com pinceladas filamentosas compondo as formas. O interior da cena, com a luz intimista e a personagem absorta em sua leitura, é um exemplo da fase divisionista do artista. O uso das cores, dispostas de modo a construir um ambiente multicolorido, remete a Pellizza da Volpedo; a agilidade da pincelada, que vibra em feixes de luz, evoca novamente a pintura de Previati. O tema da mulher que lê surge impregnado de tendências pós-impressionistas, e a composição nos mostra a preocupação do artista com as relações entre os ambientes interno e externo, preocupações que persistiriam em seus anos futuristas. A obra reforça também o universo das atividades da mulher - ler, costurar -, os espaços “tipicamente femininos” - saletas, cozinha, jardins - e o jogo de poder das relações de gênero inserido neles, bem como o caráter voyeurístico do olhar do artista, que conduz a significação do corpo da mulher.

La Signora Massimino, feita sob encomenda do casal Massimino, descreve a figura da mulher sentada próxima a uma janela de onde vemos o movimento cotidiano da rua e das pessoas. A distinta mulher olha para o espectador com uma postura um tanto tímida, porém à vontade. O corte fotográfico da tela e a aplicação divisionista das cores, em uma paleta de tons suaves e tranquilos, remetem à obra de Giacomo Balla, mestre de Boccioni. Esta tela perturbou profundamente o artista, que estava interessado não apenas na problemática da cor, mas sobretudo em seus aspectos formais, levando-o a crises acerca do estudo aprofundado do espaço. Outras telas do artista apresentam composição muito semelhante, como Ritratto della signora Meta Quarck (Retrato da senhora Meta Quarck), de 1910.

Tre donne também está associada ao divisionismo e à presença de Previati; porém Boccioni utiliza a luz de forma ágil, manifestando-a em raios oblíquos, invadindo os corpos e os ambientes. Pleno de luminosidade e atmosfera, o espaço pictórico adquire tonalidades furta-cor, especialmente nas vestes das mulheres; a mãe do artista, sentada, e as duas outras mulheres mais jovens, provavelmente Amelia e Ines, ressoam tanto o tema clássico das três idades da mulher - aludindo à poética das Três Graças - quanto musas banhadas e dissolvidas pela luz, que se insinuam como protagonistas da pintura - a palavra luce (luz) é um substantivo feminino na língua italiana, e pode ser vista nesta obra como a quarta mulher na cena. Aliando-se às pesquisas de Einstein, Boccioni retira a luz de sua concepção de éter, posicionando-a no rol da materialidade.

O tema da mulher na arte de Boccioni permaneceu em sua fase futurista. Notamos especificamente uma maior frequência de representações de uma única figura feminina (em comparação à representação de mulheres em grupo, quase ausente nesta fase)5 5 Uma exceção é o óleo Le due amiche (As duas amigas), de 1914-1915. , sentada em um interior escuro e contra uma janela ou balcão ensolarado, reforçando e dando continuidade às preocupações de Boccioni em estudar e representar a interação da figura com o ambiente ao seu redor. Cabe observar que, na poética de Boccioni, raras vezes encontramos mulheres representadas nuas (em suas telas de 1915 a nudez feminina surge numa chave cezanniana); uma nudez simbólica, contudo, permeia sua criação, no sentido de que o artista, ao tornar o corpo da mulher objeto, a domina. Ao impor à mulher a vontade do homem, o artista a despe.

A experiência futurista

Boccioni encontrou no futurismo a possibilidade de aplicar, explorar e desenvolver uma poética de relações entre o ambiente e os corpos humanos a partir de valores como o dinamismo e a simultaneidade. Porém, na contramão de outros pintores que integravam o movimento, o artista insistiu nos temas tradicionais da história da arte, não abdicando deles para se concentrar em elementos típicos da modernidade industrial que marcava o norte da Itália - a única exceção, neste sentido, é o trem que integra a tela central do tríptico Stati d’animo: gli addii (Estados d’alma: os adeuses), de 1911. Tratava-se, para ele, de aplicar uma nova linguagem pictórica a temas inseridos na tradição artística. Era preciso reinterpretar a luz, o seu efeito nos corpos e a dissolução destes ao se integrarem ao ambiente, criando assim um novo diálogo. Contudo, antes de se voltar a uma abordagem específica da relação entre corpo e velocidade, é à temática estática das mulheres próximas a janelas e balcões que o artista se volta.

O objetivo de Boccioni consiste em atribuir características totalmente renovadas à luz e à atmosfera. Em seus desenhos notamos a tentativa de visualizar a luz e a atmosfera como sólidos - o caráter transformador da luz é determinante neste sentido. No que concerne à presença deste elemento na obra geral de Boccioni, duas observações são fundamentais: a primeira, de que a luz é representada com uma ampla gama de tons em sua pintura, uma característica derivada do impressionismo francês (absorvido tardiamente pela Itália), que passa a enxergar a luz não mais em termos de branco e a sombra em termos de preto, mas criando o luminoso multicor, aplicando esta concepção também aos efeitos de sombra. Essa nova percepção está profundamente ligada à ideia de pensar a atmosfera - o que determinará muito da poética futurista de Boccioni.

A segunda observação refere-se à representação da luz em termos de linha, com ausência de cor, como vemos nos desenhos e nas esculturas de Boccioni. Essa linha, no desenho, pode ser parede, dobra de tecido, sacada, esquadria de janela, luz, ambiente. A mesma linha, de mesma qualidade, de mesma intensidade - é ela, em termos técnicos, a grande responsável pela criação de um espaço único, que agrega o interior e o exterior. A linha torna o mundo tangível; trata-se de uma linha-força, criadora da relação de igualdade entre a figura e a atmosfera.

No desenho, essa luz é criada com traços firmes e rigorosos, de qualidade idêntica àqueles que constroem a carne da cabeça ou o metal da esquadria da janela. Ela se torna material e tangível na tentativa de ser compreendida como fator fundamental na construção e na percepção dos seres e objetos, exercendo papel vital na construção da imagem. Esta “cientificidade” da luz não exclui sua qualidade empática e subjetiva, que se alia às mais diversas formas que constituem o cenário do “estar no mundo”, o mundo onde o homem moderno percebe e interage intuitivamente com seu ambiente.

A representação e uso da luz que verificamos em suas telas de 1908 e 1910, imbuída de um caráter espiritual e metafísico, herdeira da obra de Previati, transforma-se em uma “outra luz” em obras realizadas a partir de 1911: transcende os limites da mera sugestão, torna-se menos difusa e cada vez mais obrigatória na constituição dos planos e dos volumes. A luz passa, cada vez mais, a ter qualidades de linha, e assume grande importância na estruturação de uma obra, como o próprio artista explica em seu livro Pintura e escultura futuristas:

Se podemos modelar a atmosfera multiplicando os componentes plásticos de um objeto e de um ambiente, é claro que não podemos esquecer da luz, que é uma qualidade da atmosfera e tem sempre a forma e volume definíveis, e portanto plasmáveis. Muitas vezes uma luz, seja a de um raio de sol ou de uma lâmpada elétrica, intersecciona um ambiente com uma força de direção plástica preponderante. Esta corrente de luz é considerada no quadro futurista uma direção de forma que se pode desenhar, que vive como uma forma e que possui o valor tangível de qualquer objeto.6 6 BOCCIONI, Umberto. Pittura, scultura futuriste: dinamismo plastico. Milano: Corso Venezia, 1914, p. 201.

A experiência de Boccioni com a obra de Previati, junto com as ideias que constituíam parte de uma atmosfera ocultista na Milão do início do século XX, alimentam a concepção de um mundo onde diferentes acontecimentos ocorrem por trás e além daquilo que vemos, condicionando um novo entendimento dos aspectos relacionados à presença da luz e suas propriedades, não apenas na vivência humana, mas também na produção artística. Isso faz com que Boccioni, especialmente neste tema da figura + janela, encare todos os elementos que constroem a cena - janela, cabeça humana, luz e atmosfera - como iguais, e esta igualdade inicia-se a partir do aspecto material destes elementos.

A tela Idolo moderno (Ídolo moderno), de 1910, inaugura seus estudos sobre a relação entre figura e luz no grupo futurista. Nela vemos uma mulher, e não um homem, como o grande ícone das ruas, dos cafés, das luzes noturnas. A mulher enquanto cultura de massa era inseparável da definição de Boccioni sobre a vida moderna. As cartas que ele escreve para a mãe e a irmã por ocasião de sua primeira visita a Paris nos mostram um viajante fascinado com as roupas e atitudes femininas, com seus risos, sua maquiagem e seus chapéus coloridos.

Idolo moderno merece destaque pois, diferente de outras de suas obras, nela Boccioni coloca a mulher na posição de protagonista. Esta mulher parece realmente “olhar de volta” para o espectador; ela é moderna e colorida, está fora das saletas de costura, é urbana e decidida. Esta é a mulher que espantou o artista e que é descrita em suas cartas, uma mulher diferente daquelas com que estava acostumado a conviver. Estamos diante de uma mulher arquetípica, tal como a figura de sua mãe, com a diferença de que neste caso ela é anônima. Não sabemos seu nome nem suas intenções; seu sorriso, perturbador como o da Gioconda de Leonardo da Vinci, é iluminado pelos raios de luz que emanam dos globos de vidro nas ruas, ressoando o manifesto de Marinetti, Uccidiamo il chiaro di luna! (Matemos o luar!, 1909), bem como a tela de Balla, Lampada ad Arco (Lâmpada em arco, 1909-1911). Realizados ainda com a técnica divisionista, a figura feminina e os globos de luz seriam, dois anos mais tarde, transformados em linhas-força nos desenhos e esculturas do artista. Idolo moderno, com seus raios de luz que emolduram e abraçam a figura, situa-se entre Tre donne e La risata (O riso), realizada um ano depois. A tela de 1910, em suma, é a representação da modernidade em sua forma humana. O ícone da modernidade, o futuro, assume a forma de uma mulher. Uma visão, em suma, que caminha na contramão da poética do movimento futurista como um todo.

Do mesmo ano de Idolo moderno é o desenho Controluce (Contraluz). Trata-se de uma obra fundamental, pois ao mesmo tempo em que acena um adeus a um tipo de representação, acolhe um novo momento na poética do artista; o desenho encontra-se no limite entre uma figuração simbolista, respirando a última lufada de um ar romântico, e o prenúncio de uma nova maneira de olhar e representar o mundo visível que será desenvolvida por Boccioni. Controluce, que já havia sido título de um óleo de 1909 representando a mãe do artista, é uma obra totalmente figurativa, em que enxergamos um forte contraste entre a luz que vem da janela e a sombra que aparece no rosto da moça, provavelmente Ines. Aqui encontramos os primeiros passos de uma pesquisa interessada nos efeitos da luz na superfície: Boccioni ainda não está totalmente envolvido na exploração das qualidades plásticas da luz, especialmente a capacidade desta em alterar, deformar e reconstruir os volumes dos seres e dos objetos, integrando-os em uma nova forma plástica. Neste desenho a luz ainda é responsável apenas pela criação de zonas claras e escuras.

Alguns estudiosos afirmam que esta obra seria uma primeira ideia para a escultura Fusione di una testa e di una finestra (Fusão de cabeça e janela), de 19127 7 CALVESI, Maurizio; COEN, Ester. Boccioni: l’opera completa. Milano: Electa, 1983, p. 304. . A escultura citada trata do mesmo tema que o desenho, mas se faz necessário esclarecer que em 1910 Boccioni não está pensando em produzir escultura. O que existe aqui, portanto, é apenas a constatação de que os temas que constituirão a poética escultórica do artista já estão presentes anteriormente em seus desenhos e pinturas. Em Controluce, a incidência luminosa que apenas define áreas claras e escuras na superfície do desenho, dois anos depois será a responsável por alterar estruturalmente a percepção de um corpo ou objeto, captando uma nova impressão do mundo sensível.

Visioni simultanee (Visões simultâneas) e La strada entra nella casa (A rua entra na casa) são duas telas de 1911 que igualmente atestam um desenvolvimento da frequente temática da mulher à janela. As duas obras manifestam um desenvolvimento mais complexo da relação entre ambiente externo e interno, já expressa em telas como Romanzo di una cucitrice e La Signora Massimino. Contudo, estas obras ainda obedecem a uma clara separação entre lado interno e externo da cena, aspecto que, em Visioni e La strada, sofrem uma alteração: interior e exterior aparecem amalgamados, comunicantes, construindo uma sensação de apreensão total do espaço.

Estudar os efeitos do ambiente na figura e vice-versa, em um tema estático por excelência, torna-se um objetivo sólido para o Boccioni futurista, que em 1912 está envolvido na elaboração mais apurada de sua linguagem visual, aprofundando sua pesquisa pictórica e inaugurando a escultórica, mergulhando nas questões acerca das qualidades físicas da matéria. Ele toma o gênero do retrato e alarga seus limites representacionais usuais na história da arte: destrincha e alonga as possibilidades como se trabalhasse com uma massa elástica, concentrando-se na obtenção de efeitos plásticos até então inéditos ou pouco estudados. Cada linha torna-se uma possibilidade, uma nova chance para que uma ampliação perceptiva ocorra. O que Boccioni fará neste período é “escancarar a janela” que está ao lado da senhora Massimino da tela de 1908 e deixar entrar a atmosfera. “Abrir esta janela” representa o fim de uma fase e o início de outra; principalmente no ano de 1912 o tema da figura feminina próxima da janela saturará sua obra em todos os níveis - pintura, escultura e desenho.

Boccioni procura um arranjo de composição que o permita conceber uma imagem na qual o espaço externo e o interno, que acontecem em esferas distintas, possam coexistir simultaneamente, como alguém que pudesse vê-la oticamente mas não de modo literal no espaço. O artista une os dois ambientes fisicamente no intuito de obter uma síntese universal de todos os componentes do quadro, do desenho, da escultura. Assim, a figura à janela tornar-se-á figura + janela, já que os elementos da imagem são agora pensados em conjunto, comunicantes e determinantes. Tema estático a priori, a mulher próxima à janela não se apresenta mais como uma mera imagem de uma cena imóvel, tranquila, reflexiva - características tradicionais do gênero retrato. Boccioni pensa esta imagem de outro modo, não mais concebida segundo um valor passivo, mas ativo - é justamente este o novo e especial atributo de suas cenas construídas. Os elementos constituintes da imagem passam a dialogar entre si a partir do momento em que compartilham suas forças, quando conseguem intercambiar experiências plásticas que determinam a constituição de uma nova cena e, consequentemente, de uma nova reflexão a respeito dela.

Duas pinturas de Boccioni exemplificam estas considerações: Costruzione orizzontale (Construção horizontal) e Materia (Matéria), ambas de 1912. Este ano assinala a inserção de Boccioni na prática escultórica, elaborando o seu Manifesto técnico da escultura futurista e migrando para este suporte os temas já exaustivamente trabalhados no plano bidimensional. Costruzione orizzontale e Materia são obras que nos auxiliam a compreender o desenvolvimento de sua poética escultórica. Durante este período, a investigação da plasticidade pictórica por Boccioni caminhava junto a outra pesquisa, a da compenetração dos planos na escultura e da interpenetração da matéria e do espaço - esta última entendida pelo artista como matéria. Como os experimentos da pintura dialogam com aqueles pensados para a escultura, Boccioni de fato procurava por uma estética representacional que fosse adequada a todos os suportes.

As duas telas citadas são muito semelhantes, distinguindo-se apenas em relação a sua paleta de cores - Materia possui uma paleta de cores quentes e um espectro maior de tons; porém em ambas temos duas situações presentes: o mundo exterior, que acontece além da sacada, e o interior, que ocorre no espaço íntimo onde posa a mãe do artista. De acordo com Fausto Petrella, o tema da janela na arte apresenta uma particularidade: a janela, e aquilo que ela enquadra, “é como um duplo da pintura, um tipo de pintura dentro da outra; ela é também o local onde o limite natural da pintura, a moldura, encontra um modo de ser representada. Na janela, um ‘fenômeno funcional’ é manifesto, onde a função da moldura em conter, bem como o olho que vê, está mais ou menos conscientemente representado”8 8 PETRELLA, Fausto. Mater materia prima: clinical and critical remarks. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avant-garde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum, 2004, p. 59. . Juntamos a isso o comentário do próprio Boccioni sobre a questão, retirado de seu livro Pintura e escultura futuristas:

O quadrado de uma janela aberta torna-se um corpo variável e irregular, no qual os corpos que vivem do lado de fora, no horizonte, inserem-se por meio de um corpo condutor (a atmosfera), que penetra na sala de um modo em que as potencialidades dos corpos que vivem do lado de fora se imprimem nela. Assim temos um maravilhoso espetáculo de influências entre as linhas-força dos objetos e as linhas-força da janela, entre as quais insinua-se, com gradações de densidade e de ímpetos, o corpo-condutor da atmosfera.9 9 BOCCIONI, Umberto. Op. cit., p. 158.

Numa palestra apresentada na cidade de Roma, em 29 de maio de 1910, Boccioni explica como se constrói esse tipo de cena:

Pintando alguém em uma sacada, visto pelo interior, nós não nos limitamos àquilo que a moldura da janela nos permite ver; pelo contrário, nós procuramos captar todo o agregado de sensações plásticas sentidas pelo pintor junto ao balcão: um trecho de rua iluminado pelo sol, as fileiras duplas de casas que se estendem para a direita e para a esquerda, as sacadas com flores etc. Isto significa uma simultaneidade do ambiente, um deslocamento e desmembramento de objetos, bem como a fusão de detalhes libertos de sua lógica comum e independentes uns dos outros.10 10 BOCCIONI, Umberto apud ROSSI, Laura. Boccioni between painting and sculpture. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Op. cit., p. 36.

Materia também alude a Mater, a Mãe. A mãe do artista é a personagem vital na iconografia do artista - de alguma forma, é nos braços dela que todas as outras mulheres de sua obra se aninham. Em desenhos, telas e esculturas, Boccioni retrata a mãe em diversos estilos, indo desde a influência linear de Dürer até a estética de Cézanne e dos cubistas. Notamos nestas duas telas a figura apresentada em uma pose rígida, sentada, em uma frontalidade quase egípcia, com as mãos cruzadas repousando diante do abdômen. Essa pose se repete insistentemente em vários desenhos, telas e esculturas. A mãe de Boccioni é o dilema íntimo do artista, enigma cósmico absoluto, natureza, arte, vida, criação. Sisuda e ao mesmo tempo complacente, sua feição séria prevalece tanto nas obras quanto nos registros fotográficos - são raras as obras do artista em que a mãe é representada sorrindo. Deusa impassível, consciente de sua misteriosa magnitude, a mãe é Matéria - e portanto nós a somos, nós a vivenciamos e compactuamos com ela. Em essência, a arte de Boccioni, para uma vanguarda que declarou abertamente ir contra os valores femininos, é bastante voltada para a mulher, atribuindo-lhe um simbolismo especial. A mãe, a matéria, a pintura, a vida, a luz, substantivos femininos no italiano, palavras que significam uma única coisa, todas sinônimos do grande mistério que Boccioni imprimiu em seu diário e testemunhou em sua arte.

Tanto na pintura quanto na escultura, a palavra “matéria” passa a ser entendida de uma nova forma por Boccioni, sendo considerada o ponto central e original de tudo aquilo que se quer compreender em arte. Matéria é algo presente em tudo aquilo que consideramos tangível e, mais ainda, ela está presente também no que é considerado intangível, uma vez que para Boccioni não existem espaços vazios, apenas oscilações de diferentes densidades de matéria. Exemplo fundamental é a nova abordagem acerca da luz realizada pelo artista: na sua poética, a luz abdica de sua denominação etérea, impalpável, imaterial, para tornar-se exatamente o oposto, dotada de volume, força e solidez, tanto quanto qualquer objeto que possamos segurar em nossas mãos.

A experiência escultórica

O repertório de temas na escultura de Boccioni é bastante semelhante aos de sua pintura, principalmente nas esculturas produzidas em 1912. Nelas o artista procura reinterpretar temas tradicionais da arte: o retrato e a natureza-morta. Não há uma inovação temática, mas sim uma reelaboração e uma renovação da representação tradicional de temas usuais da arte - Boccioni está mais interessado no “como fazer”. Há a necessidade do dado objetivo, mas este é superado e deformado, nunca abolido, pois o artista não abdica do referencial natural, embora queira recorrer o mínimo possível às formas concretas.

Em termos gerais, a matéria escultórica sempre cuidou da luz e da atmosfera - bastava que o talento do artista construísse zonas no bloco escultórico que, aliadas às influências externas, fornecessem as sugestões luminosas e atmosféricas. Não é isso que Boccioni deseja, sua concepção é uma escultura de ambiente, que aspira integrar na própria matéria da escultura os elementos que usualmente são considerados externos a ela: luz e atmosfera, elas próprias entendidas como matéria. Estendendo à escultura os princípios norteadores da pintura futurista, ele propõe que o núcleo central do objeto e os movimentos interiores e exteriores interajam simultaneamente (infinito plástico aparente e infinito plástico interior).

Suas primeiras esculturas registram um trabalho caracterizado mais pela adição plástica do que pela síntese. Esta constatação justifica o termo “barroco” dado por vários autores às primeiras esculturas do artista, devido ao acúmulo de materiais e às adições plásticas. Nelas notamos uma aproximação maior dos temas desenvolvidos em sua pintura, como a mãe, a mulher à janela, a cabeça de mulher.

A luz e a atmosfera na escultura de Boccioni são as responsáveis pela apreensão do ambiente e pela desmaterialização dos corpos. O olhar do artista quer tornar possível a percepção simultânea do objeto e do conjunto que o absorve e o transforma, formando uma unidade baseada em uma troca recíproca de forças. No Manifesto da escultura de Boccioni há a ideia de que o objeto não é fechado, finito, mensurável - sua extensão alcança até onde suas capacidades plásticas permitem, ou seja, tende ao infinito. A dissolução dos limites, portanto, engrena a comunicação sujeito + ambiente. O artista pensa em produzir a resultante plástica decorrente desta interação objeto + ambiente junto com a participação da intuição, que torna possível retirar a percepção de suas características imóveis e pré-determinadas.

A concepção da matéria como aquela que permeia todos os espaços, anulando a ideia de vazio, pode ser vista nas esculturas do artista a partir de 1912: nas obras Testa + casa + luce (Cabeça + casa + luz) e Fusione di una testa e di una finestra (Fusão de cabeça e janela), elementos até então considerados “invisíveis”, como a luz e a atmosfera - e portanto representados não em suas qualidades materiais, mas em seus efeitos - aparecem plasmados solidamente, adquirindo aspectos táteis como relevo e textura. Logo, o conceito de matéria do artista elimina a ideia de vazio e de intangibilidade na representação pictórica, uma vez que o uso da luz e da atmosfera em suas obras adquiriu um valor novo.

A luz, que se torna mais sólida, mais “tátil”, passou a ser uma constante em sua escultura, participando inclusive do título de Testa + casa + luce, em que notamos ser tão material para o artista quanto uma cabeça ou um objeto. O conjunto escultórico é extremamente semelhante com o quadro Materia; a figura possui a mesma posição da figura da tela, e a presença de uma casa que parece alojar-se logo acima de sua cabeça parece ilustrar a seguinte afirmação de Boccioni, expressa no catálogo de sua primeira exposição de escultura: “Alargando então a concepção do objeto escultórico a uma resultante plástica de objeto e ambiente se terá a necessária abolição da distância que existe, por exemplo, entre uma figura e uma casa distante a duzentos metros”11 11 BOCCIONI, Umberto apud GAMBILLO, Maria; FIORI, Teresa. Archivi del futurismo. Roma: De Luca, 1958, v. 1, p. 120. .

Na maioria dos desenhos e obras realizadas por Boccioni em 1912, um cenário-base se repete constantemente, com algumas variações de técnicas e estilo: identificamos um espaço externo, construído pelo artista e evocado na maioria das vezes pela arquitetura construída pelo homem - eis a “cidade que sobe” - que penetra na cena em primeiro plano, interagindo com a figura da mulher que se impõe a nós. No alto da cabeça da figura a luz nasce como um pequeno triângulo que parte de trás, ou seja, da cena exterior; ao fundo vemos as casas, os edifícios, as visões simultâneas.

Em outros desenhos deste período, Boccioni concentrou sua atenção na cabeça humana, sem representar mais a janela. De mulher + janela verificamos, agora, mulher + ambiente. Temos a impressão de que a mulher agora se espalha pelo espaço, se torna ambiente, e o universo todo passa a ter qualidades femininas. Na maioria destes desenhos a simplificação estrutural ocorre no sentido de obter uma redução dos elementos da cena aos seus aspectos essenciais, geométricos. Embora o raciocínio de síntese na obra de Boccioni seja notado com maior força em 1913, quando ele se ocupa especificamente em representar o movimento humano, percebemos, em alguns dos desenhos de 1912, sua procura por uma cena que se construa de forma um pouco mais sintetizada.

Fusione di una testa e di uma finestra imprime os mesmos elementos básicos constitutivos da obra supracitada, mas desta vez a cena se apresenta como uma espécie de zoom das obras anteriores. Nesta escultura identificamos uma figura humana representada até a altura do busto, junto com uma esquadria (real) de janela que se comunica com um pedaço do balcão. Nesta obra polimatérica, além do gesso encontramos vidro (que brinca de ser o olho da figura e que estranhamente nos remete aos rostos das pinturas de Edvard Munch), metal, crina de cavalo. A falta de integração resultante entre estes materiais paralisa todo o potencial da ação; e é a partir destas experiências que suas esculturas subsequentes sofrerão modificações, graças à substituição de materiais ready-made por trabalho criativo. Em outras esculturas, o gesso, empregado sozinho, prestou-se melhor às ideias do artista sobre a interpenetração dos planos.

Este polimaterismo utilizado pelo artista tenta, enfim, responder a uma angústia que se manifesta pelo desejo de obter uma percepção nova através de materiais tão diversos - a crina de cavalo, o olho de vidro, a esquadria metálica de janela, o pequeno triângulo de vidro - não seria o vidro a memória da janela? Os detalhes realistas, a matéria diversa que nos faz lembrar de nosso próprio mundo, nos diz que tais formas concretas não se despedem totalmente de nós. O dado figurativo não é abolido pois o artista necessita dele, mesmo que seja um ponto de partida. A necessidade de libertação reside portanto no abandono da representação usual das coisas e dos seres; ela deve, para o artista, ser ressignificada no ensejo de criar uma nova realidade, nunca posta no campo da abstração.

Vuoti e pieni astratti di una testa (Vazios e cheios abstratos de uma cabeça, 1912) e Antigrazioso (Antigracioso, 1912-1913) também se concentram na cabeça humana, onde Boccioni deposita os efeitos da luz e da atmosfera - aqui, a referência direta à janela é descartada. O diálogo que o artista trava com a estética cubista pode ser verificado em Vuoti e pieni astratti di una testa: nela encontramos sua preocupação em determinar o desenvolvimento de um objeto no espaço através de uma percepção de volumes; Boccioni inclui os “vazios” e os “cheios” provocados pela matéria, responsáveis pela modificação da percepção da figura. O “prolongar-se de um corpo no raio de luz que o golpeia e o entrar de um vazio no cheio que lhe passa adiante” cria planos côncavos e convexos que definem o perfil “como valor em si, [e] cada perfil contém o aceno de outros perfis (precedentes e sucessivos) que formam o conjunto escultórico”12 12 BOCCIONI, Umberto. Prefácio para o catálogo da Primeira Exposição de Escultura Futurista. In: GAMBILLO, Maria; FIORI, Teresa. Op. cit., p. 119. . A presença dos elementos cubistas também consta nos estudos que Boccioni realizou para esta escultura, em que observamos uma imagem como se estivesse posta diante de um espelho quebrado: luz e atmosfera são linhas que parecem navalhas perigosas, que avançam, invadem, perfuram a face humana; são linhas que desmontam a percepção usual que temos de um rosto, configurando um novo sistema. Os côncavos e convexos da escultura correspondente em gesso criam áreas de luz e sombra verificadas nestes estudos prévios.

“Antigracioso”, além de ser o título de uma escultura e de uma pintura do artista, é um conceito futurista13 13 Sobre a palavra “antigracioso”, Laura Mattioli Rossi observa que o verbete é do gênero masculino, sendo usado por Boccioni para as suas mulheres pintadas e esculpidas, o gênero “estando de acordo com o próprio objeto da arte (…) e não com a pessoa retratada” (ROSSI, 2004, p. 41). . Ambas as obras representam faces que se modificam a partir das influências ambientais, alterando a percepção tradicional do rosto, significando a abolição dos valores de beleza, proporção e harmonia das representações clássicas da figura humana. Podemos ver como alguns desenhos de Boccioni que tratam deste tema rejeitam estes valores: em alguns deles, a figura humana nos é apresentada de forma áspera, como se portasse uma máscara grotesca. A beleza que esperamos encontrar não está lá; ela não é o objetivo, não é a intenção final. A maneira pela qual o artista conduz sua arte o leva a um resultado no qual os valores típicos da beleza que costumamos apreciar não são determinantes.

Boccioni, em síntese, encontrou outra maneira de refletir sobre os atributos femininos. Em telas como Tre donne verificamos como os ícones femininos do artista - a mãe, a irmã, a amante - estão banhados por feixes luminosos que se transformam em particular multicor, assim como as três idades da mulher são vistas com graça e delicadeza. Toda esta sensibilidade que permeia as primeiras telas do jovem Boccioni assume, nos ares de 1912, o caráter do antigracioso, em que a beleza está em sua ausência. O artista enfim se liberta da obrigação de produzir “a bela obra” - aquela recoberta pelo verniz passatista - pois, para ele, a beleza clássica prejudica a percepção dinâmica.

Em Antigrazioso notamos, já a partir do título, uma negação da beleza perfeita clássica, em vez disso, a “antigraça” do objeto: uma cabeça um tanto grotesca, dotada de um estranho sorriso. Mais uma vez identificamos a figura de sua mãe como modelo da obra, sendo que o título completo desta escultura justamente é Antigrazioso: la madre (Antigracioso: a mãe)14 14 CALVESI, Maurizio; COEN, Ester. Op. cit., p. 431. . A relação com a obra de Medardo Rosso aparece aqui sobretudo na modelagem desta peça: os desníveis plásticos angulosos da cabeça contribuem para uma continuidade dinâmica, em que Boccioni concentra sua atenção em uma dialética de tensões externas e internas não aprofundadas na obra de Rosso.

Conclusão

Em suma, a escultura de Boccioni, que passa da qualidade de adição para a de síntese, manteve fortemente presente o tema da figura feminina, que, conforme apresentado neste artigo, pode ser identificado desde seus primeiros desenhos e pinturas. Em sua atividade escultórica, a poética do feminino culmina na série de figuras que caminham, cuja única sobrevivente é Forme uniche della continuità nello spazio (Formas únicas da continuidade no espaço), de 1913. Aqui, a luz, a atmosfera e o corpo humano fundem-se em um único organismo, parte humano, parte ciborgue, ultrapassando a distinção de gênero. Acolhendo tanto o L’homme qui marche (Homem que caminha) de Rodin quanto a Vitória de Samotrácia, o ser de Boccioni antecipa a poética do homem-máquina que seria desenvolvida, sob diversos ângulos, pelos integrantes do movimento futurista na década seguinte15 15 Emily Braun nota que o progresso de Boccioni em direção a uma abstração que emerge a partir de um diálogo com a forma feminina está presente na obra do artista até mesmo quando ausente – como no caso do gesso Forme uniche della continutà nello spazio, que alude a Vitória de Samotrácia. Cf. BRAUN, Emily. Vulgarians at the gate. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Op. cit., p. 13. . O tema da mulher junto à janela e balcões, tal como uma crisálida, preparou a emergência, desde os primeiros desenhos do artista, do homem-luz, do homem-ambiente, e a síntese do orgânico e do espaço finalmente liberta das conceitualizações aprisionadoras.

Embora as reflexões aqui apresentadas acerca das qualidades formais da luz na poética do artista tomem como exemplo específico as obras que representam a mulher, tais questões não se esgotam no universo feminino de Boccioni; estão presentes em sua obra como um todo. Mas podemos afirmar, nestas linhas finais, que a trajetória artística de Boccioni proporcionou uma transformação de seu olhar em relação a estética do feminino nas artes; ao perceber a mulher como múltipla, tornou-a real protagonista de um universo dotado das mais diversas sensibilidades.

Bibliografia complementar

  • BALLO, Guido. Umberto Boccioni. Milano: Il Saggiatore, 1964.
  • BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1982.
  • BOCCIONI, Umberto. Pittura, scultura futuriste: dinamismo plastico. Milano: Corso Venezia, 1914.
  • BOCCIONI, Umberto. Diários. Campinas: Unicamp, 2016.
  • BRAUN, Emily. Vulgarians at the gate. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avantgarde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum, 2004, p. 10-15.
  • CALVESI, Maurizio; COEN, Ester. Boccioni: l’opera completa. Milano: Electa, 1983.
  • GAMBILLO, Maria; FIORI, Teresa. Archivi del futurismo. Roma: De Luca, 1958, v. 1.
  • PETRELLA, Fausto. Mater materia prima: clinical and critical remarks. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avantgarde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum , 2004, p. 50-59.
  • ROSSI, Laura. Boccioni between painting and sculpture. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avantgarde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum , 2004. p. 30-36.
  • 1
    BOCCIONI, Umberto. Diários. Campinas: Unicamp, 2016.
  • 2
    BERGER, John. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 51.
  • 3
    BALLO, Guido. Umberto Boccioni. Milano: Il Saggiatore, 1964, p. 20. Todas as traduções das fontes em língua estrangeira são de nossa autoria.
  • 4
    Ibidem, Loc. cit.
  • 5
    Uma exceção é o óleo Le due amiche (As duas amigas), de 1914-1915.
  • 6
    BOCCIONI, Umberto. Pittura, scultura futuriste: dinamismo plastico. Milano: Corso Venezia, 1914, p. 201.
  • 7
    CALVESI, Maurizio; COEN, Ester. Boccioni: l’opera completa. Milano: Electa, 1983, p. 304.
  • 8
    PETRELLA, Fausto. Mater materia prima: clinical and critical remarks. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avant-garde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum, 2004, p. 59.
  • 9
    BOCCIONI, Umberto. Op. cit., p. 158.
  • 10
    BOCCIONI, Umberto apud ROSSI, Laura. Boccioni between painting and sculpture. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Op. cit., p. 36.
  • 11
    BOCCIONI, Umberto apud GAMBILLO, Maria; FIORI, Teresa. Archivi del futurismo. Roma: De Luca, 1958, v. 1, p. 120.
  • 12
    BOCCIONI, Umberto. Prefácio para o catálogo da Primeira Exposição de Escultura Futurista. In: GAMBILLO, Maria; FIORI, Teresa. Op. cit., p. 119.
  • 13
    Sobre a palavra “antigracioso”, Laura Mattioli Rossi observa que o verbete é do gênero masculino, sendo usado por Boccioni para as suas mulheres pintadas e esculpidas, o gênero “estando de acordo com o próprio objeto da arte (…) e não com a pessoa retratada” (ROSSI, 2004ROSSI, Laura. Boccioni between painting and sculpture. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Boccioni: Materia: a futurist masterpiece and the avantgarde in Milan and Paris. New York: Guggenheim Museum , 2004. p. 30-36., p. 41).
  • 14
    CALVESI, Maurizio; COEN, Ester. Op. cit., p. 431.
  • 15
    Emily Braun nota que o progresso de Boccioni em direção a uma abstração que emerge a partir de um diálogo com a forma feminina está presente na obra do artista até mesmo quando ausente – como no caso do gesso Forme uniche della continutà nello spazio, que alude a Vitória de Samotrácia. Cf. BRAUN, Emily. Vulgarians at the gate. In: BRAUN, Emily; FERGONZI, Flavio; GINEX, Giovanna (eds.). Op. cit., p. 13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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