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Veneza em Volpi

Venice in Volpi

RESUMO

Este artigo indaga em que medida a viagem realizada por Volpi para a Europa, em particular a Veneza, teve impacto significativo na sua obra pictórica, pois esta cidade possui características cromáticas e urbanísticas que podem ser vistas nas pinturas do artista a partir da década de 1950.

Palavras-chave:
Volpi; Pintura moderna; Veneza

ABSTRACT

The article seeks to investigate how Volpi ‘s voyage to Europe, specially Venice, has had a significant impact on the artist’ s pictorial work since this city has chromatic and urban features that can be seen in the artist’s paintings from the 50’s.

Keywords:
Volpi; Modern Painting; Venice

Fig. 1
Montagem com fotos tiradas pelo autor em Veneza (2016) e dois quadros de Alfredo Volpi: 1) Sem título (série viagem à Itália), início da década de 1950, óleo sobre madeira, 49,5 x 30,0cm; 2) Fachada com Calha, têmpera sobre tela, década de 1960 (Coleção Domingos Giobbi).

A formação estética de um artista muitas vezes se faz mediante viagens. Volpi vai para a Itália e França em 1950, com Mário Zanini e Paulo Rossi Osir, durante aproximadamente 6 meses, permanecendo certo tempo em Veneza. Demonstra admiração pela cidade medieval, em especial pela arte italiana pré-renascentista, e visita muitas vezes a série de afrescos executados por Giotto em torno de 1305 na Cappella degli Scrovegni, na cidade vizinha em Pádua.

Taís Cabral Monteiro1 1 MONTEIRO, Taís. Percursos poéticos. 2017. Tese (Doutorado em Poéticas Visuais) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

Volpi nasceu em Lucca, na Itália, em 14 de abril de 1896, veio ao Brasil dois anos depois, quando os pais imigraram para São Paulo. Ainda jovem, antes de se tornar um pintor profissional, trabalhou como pintor de frisos, florões e painéis nas paredes das mansões paulistanas e até mesmo numa capela nas cercanias de Piracicaba. A presença da arquitetura eclética italiana ainda pode ser notada em alguns casarões a beira da ruína em bairros tradicionais de imigração italiana, como os bairros do Bixiga e Cambuci. Na verdade, fotografias da década de 1930 mostram que a presença de elementos arquitetônicos de origem italiana era difundida por toda a cidade, seja em casas simples, seja nos teatros e lojas, seja em edifícios como o Martinelli, primeiro construído em São Paulo, finalizado em 1929. Logo, torna-se pertinente indagar quando e em que medida a arquitetura italiana exerce influência na sua produção pictórica madura de fachadas, mastros e bandeirinhas.

Já se discorreu sobre o fato de sua primeira viagem de volta à Itália ter exercido enorme impacto em sua obra. Também foi discutido em que medida esta viagem fez com que o artista passasse a se interessar pelo emprego da técnica da têmpera, técnica comumente utilizada na pintura italiana antes do advento da pintura a óleo no final do século XV2 2 GIANNOTTI, Marco. Volpi ou a reinvenção da têmpera. Revista ARS, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 72-77, 2006. . O que aparenta ser um retrocesso a uma prática medieval, na verdade marca o amadurecimento poético de Volpi, pois o pintor adquire um estilo único ao reutilizar uma técnica e uma espacialidade medievais.

Contudo, a influência sobre a técnica não se faz apenas na releitura dos grandes mestres. Importantes historiadores da arte, como Francastel e Argan, procuram estabelecer laços entre a pintura e arquitetura. Se o primeiro nos mostra como a técnica da perspectiva está atrelada à imaginação, de modo que durante o Renascimento artistas projetaram cidades ideais na pintura que só posteriormente seriam construídas, o outro faz da famosa Cúpula da Catedral de Florença uma metáfora da hegemonia florentina sobre as cidades da Toscana. A cidade, como afirma Argan, tem um caráter eminentemente artístico após o Renascimento:

A origem do caráter artístico implícito da cidade lembra o caráter artístico implícito da linguagem, indicado por Saussure: a cidade é intrinsecamente artística. A concepção da arte como expressão da personalidade tinha a sua primeira raiz na concepção da arte na Renascença - justamente o período em que se afirma, pelo menos em hipótese, que pode existir uma cidade ideal, concebida como uma única obra de arte, por um único artista.3 3 ARGAN, Giulio. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 82. Sobre a técnica como uma prática ligada a imaginação, conferir FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

A cidade de Lucca situa-se na Toscana, próxima de Florença. Seria natural supor que Volpi buscasse suas origens na cidade natal. Entretanto, passa mais tempo em Veneza e Pádua. Por que razão? Tornou-se um lugar comum afirmar que Volpi é dos maiores pintores brasileiros pela riqueza cromática de sua paleta. A antiga disputa da primazia do desenho sobre a cor revela na verdade um embate entre duas correntes pictóricas que se firmam desde o Renascimento. A pintura com um desenho bem delineado se afirma em Florença, enquanto a pintura de grande variação de matizes se desenvolve em Veneza. A representação da arquitetura em contraponto à natureza sempre coloca problemas geométricos na composição pictórica. Com o advento da perspectiva criada por Brunelleschi nos primórdios do século XV a sistematização matemática do espaço pictórico parece estar concluída.

Desde o Renascimento, instaura-se uma famosa querela retórica sobre a primazia do desenho (disegno x colore) sobre a cor na composição pictórica, que explicita a disputa pela primazia entre a escola florentina e a veneziana. Contudo, aspectos distintos são evidentes não só na ocupação urbanística, a primeira, mais linear pautada pela perspectiva, e a segunda, inserida aparentemente de modo mais caótico sob a laguna, mas também pela maneira como alguns pintores passam a abordar diretamente a pintura sem recorrer ao desenho prévio.

Vasari elogia Michelangelo e critica o veneziano Giorgione justamente pela falta do rigor gráfico na composição do segundo4 4 Cf. GOMBRICH, Ernst. The Image and the Eye. London: Phaidon, 1994, p. 227. . A perspectiva, que passa a orientar a construção do espaço pictórico a partir do desenho, foi “inventada” em Florença por Brunelleschi, com demonstrações feitas a partir do pórtico da Catedral com uma pintura aplicada em uma madeira, que parece ter a mesma grandeza relativa do batistério. No mesmo período, em 1419, seu projeto foi o vencedor do concurso de arquitetura para a construção da cúpula da Catedral. O arquiteto utiliza um método construtivo romano com tijolos para cobrir o grande vão que parecia intransponível. A viagem que realizou anos antes com Donatello para investigar Roma efetivamente lhe abriu novos horizontes construtivos.

É importante salientar que uma concepção previa da espacialidade a partir do desenho não impede que a paleta Florentina tenha mais vivacidade que a Veneziana. O que distingue uma escola da outra é a maneira como os pintores venezianos, influenciados pela técnica da pintura a óleo realizada no Países Baixos e trazida para a Itália via Antonello da Messina, utilizam camadas distintas e pigmentos mais transparentes, a fim de criar uma ambientação atmosférica baseada na diferença dos matizes, proporcionando uma profundidade ótica mais apurada sem se pautar na perspectiva5 5 A este respeito, conferir SORABELLA, Jean. Venetian Color and Florentine Design. Heilbrunn Timeline of Art History, New York: The Metropolitan Museum of Art, out. 2000. Disponível em: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/vefl/hd_vefl.htm>. Acesso em: 10 nov. 2018. . No alto Renascimento a perspectiva linear não é considerada suficiente para dar conta do espaço virtual, outros esquemas espaciais passam a ser utilizados, de modo que o espelhamento entre o ponto de fuga e o ponto de vista já não é tão rígido. O desenvolvimento no século XVI de uma interpretação antagônica entre disegno e colore é aos poucos substituída pelo reconhecimento de que a cor desempenha uma função na percepção da luz através de uma gradação tonal e matizada6 6 GOETHE, Wolfgang. Viagem à Itália: 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Gage salienta que Alberti não opõe propriamente o desenho à cor, visto que “o pintor deve saber além de desenhar, bene conscriptam - colorir com excelência”. Desde o século XII já se tinha conhecimento de que o olho teria receptores monocromáticos bem como policromáticos. GAGE, John. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005, p. 117-119. .

O comércio dos pigmentos desde o século XI foi um dos fatores que elevaram Veneza a condição de grande cidade. Pensava-se que o azul que podemos ver no céu estrelado da Capela de Scrovegni em Pádua, na região do Vêneto, que tanto encantou Volpi era o azul ultramar, que chega das minas do Afeganistão à Europa graças ao comércio marítimo veneziano7 7 Marco Polo afirma que em Badakstan há uma grande montanha de onde o mais puro azul é extraído. Cf. BRUSATIN, Manlio. A history of colors. Michigan: Shambhala, 1991. Volpi visita diversas vezes a cidade de Pádua, e a obra de Giotto: “Eu de vez em quando dava um pulo em Pádova. Sempre sozinho. De Veneza a Pádova é perto, não é, um ônibus. Fui umas 17 ou 18 vezes lá; mais para ver o Giotto e também para distrair um pouco…”. VOLPI, Alfredo. Depoimento de Alfredo Volpi [2 de abril de 1971]. São Paulo, 1971. Entrevistador: Theon Spanudis. Acervo do Museu da Imagem e do Som. Disponível em: <http://acervo.mis-sp.org.br/audio/depoimento-de-alfredo-volpi>. Acesso em: 10 nov. 2018. Paulo Sergio Duarte chama a atenção para o fato de que em Giotto, “pela primeira vez, a cidade aparece como tema efetivo na pintura”. Apud KLABIN, Vanda. 6 perguntas sobre Volpi: um debate sobre arte brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009, p. 58. . Marco Polo, no relato de suas viagens, comenta a preciosidade deste pigmento, que chega a valer mais do que ouro. Porém, como afirma Taís Cabral: para os numerosos fundos de azul, tanto das cenas representadas nas paredes quanto na extensão do céu no teto da Capela, Giotto deu preferência ao uso do mineral azurita (carbonato de cobre hidróxido), ao invés do raro pigmento proveniente do lápis-lazúli trazido das minas do Afeganistão, muito mais dispendioso8 8 MONTEIRO, Taís. Reflexões sobre a cor. São Paulo: Martins Fontes, [201-]. No prelo. . À primeira vista, pode perecer curioso o fato de que a capela - um marco arquitetônico na história da relação entre cor e espaço - tenha sido feita por um dos grandes artistas da escola florentina, ao qual supostamente se atribui o grande domínio do desenho. Mas o fato é que já no século XIV sua obra é celebrada até mesmo por Dante e se torna um paradigma para o que seria a nova pintura do Renascimento. Artistas como Michelangelo minuciosamente estudam seus afrescos antes de iniciar a Capela Sistina, quase duzentos anos mais tarde.

Além de ter acesso a cores variadas, os pintores venezianos se tornaram célebres pelo manejo inconfundível da tinta, seja ela têmpera, têmpera gorda ou óleo. A pintura veneziana adquire uma vibração cromática e uma dimensão atmosférica única na pintura do Renascimento. A partir do século XVI firma-se na pintura europeia o estudo da paisagem, principalmente devido a propagação da pintura italiana e sua relação dialética com a pintura dos países baixos. Entretanto, no interior da paisagem, muitas vezes vestígios da civilização sempre aparecem para balizar nosso olhar. Por exemplo, tanto na famosa Tempestade de Giorgione de 1508, uma das primeiras pinturas com o tema da paisagem, como na pintura de Poussin Paisagem com São João em Patmos, realizada em 1640, observa-se no primeiro plano ruínas antigas que remetem a figuras geométricas tridimensionais. No caso de Poussin, no meio plano aparece ainda a ruína de um templo, um pouco mais ao fundo um obelisco e por fim uma montanha. O que torna fascinante esta pintura é justamente este jogo entre natureza e cultura que permite a contemplação da natureza9 9 No sentido etimológico de contemplar: contemplatus, p. p. of contemplari to contemplate; con- + templum, remete ao espaço de observação do Augur que prevê o futuro mediante o voo das andorinhas diante do frontão de um templo. . É graças a presença de formas geométricas que o olhar pode chegar até a montanha vista à distância e que, por sua vez, sugere a figura de um triângulo perfeito.

Leonardo da Vinci busca conciliar o desenho florentino e a cor veneziana na perspectiva aérea. O azul do céu é interpretado como fenômeno atmosférico e não como cor intrínseca. Leonardo tenta integrar um conhecimento teórico dos tratados medievais sobre a supremacia da luz e dos problemas ópticos-fisiológicos com estudo empírico da natureza10 10 “A leitura de Leonardo das fontes medievais, em particular Alhazen, Bacon, Witelo e Pecham, o levou a entrar em contato com a ótica fisiológica. Muito do seu trabalho pode ser visto, como em Ghiberti, como uma tentativa de testar, depurar e ampliar os seus vastos estudos sobre a natureza”. GAGE, John. Op. cit., p. 133. “Leonardo reacende o preconceito de Vitruvio e Plinio contra o colorido extravagante e continua a desenvolver práticas do Quatrocento em direção à uma harmonia mais coerente e de tons mais rebaixados”. GAGE, John. Op. cit., p. 133-134. Leonardo valorizava sombra distinguindo-as das trevas, e criando a técnica do sfumato. Conferir ainda, em GAGE, John. Op. cit., como a polêmica sobre as questões gráficas de transposição de uma espacialidade tridimensional para o bidimensional ofuscava o debate sobre o colorido, entendido durante os séc. XV e XVI como secundário. . Ele aconselhava o pintor a comparar suas cores com a cor natural do motivo. Suas nuances cromáticas, por sua vez, acabam cada vez mais confinadas ao jogo do claro e do escuro (chiaroscuro), descrito no seu tratado como uma ciência de grande relevância. Leonardo afirma que o azul sustenta a perspectiva e manifesta a espacialidade atmosférica:

O azul é a cor do ar. As coisas mais distantes parecem mais azuladas, devido à grande quantidade de ar que se encontra entre a vista e o objeto (…). O sentido de realidade física da pintura renascentista baseia-se na conjugação das perspectivas aérea e linear. (…) Sem a perspectiva das cores, a perspectiva linear não é suficiente em seu movimento para determinar as distâncias.11 11 Leonardo da Vinci apud PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 2010, p. 41.

Com a progressiva divulgação em toda a Europa dos novos paradigmas da arte italiana, pautados muitas vezes no estudo sobre a cultura da antiguidade clássica, sediada principalmente em Roma, o processo de formação de um artista passa desde então por uma viagem obrigatória a Itália. À medida em que Roma firma-se como o centro artístico da Europa graças ao mecenato de papas como Urbano VIII, eleito em 1623, vários artistas como Claude Lorrain (1600-1682) e Poussin (1594-1665) deixam a França e passam boa parte de suas vidas em Roma. A Academia Francesa em Roma foi fundada em 1666 por Luís XIV, na Villa Medici, sob a direção de Colbert, Charles le Brun e Gian Lorenzo Bernini.

Anos mais tarde, no final do século XVIII, Goethe descobre o colorido justamente na sua viagem de formação à Itália. A partir de então dedica mais de vinte anos ao estudo do fenômeno cromático.

Meu velho dom de ver o mundo com os olhos do pintor cujos quadros [referia-se a Paolo Veronese] acabei de contemplar conduziu-me a um pensamento singular. É evidente que os olhos se formam em consonância com os objetos que divisaram desde a infância, e, sendo assim, o pintor veneziano há de ver tudo com maior clareza e limpidez do que os outros homens. Nós, que vivemos numa terra ora imunda, ora poeirenta, incolor, a obscurecer qualquer reflexo, muitos até, talvez, em cômodos apertados, não podemos, por nós próprios, desenvolver visão assim jubilosa.12 12 GOETHE, Wolfgang. Op. cit. p. 102.

Já em Veneza, no século XVI, nota-se uma nova maneira de abordar o espaço pictórico, através da vedutas de Canaletto e posteriormente com Guardi. Embora se possa notar uma perspectiva que nos leva para horizontes longínquos, o espaço é bem diferente da pintura florentina. Segundo Alberto Tassinari:

Aquilo que mais distingue Veneza de Florença não é espaço X cor, mas o espaço atmosférico, ambientado, de Veneza, que não é parte extra partes como em Florença mas uma unidade única, como dirá Wölfflin sobre o Barroco. E essa unidade única vem do matiz. Não de tons, pois tons diz respeito a valores de claro e escuro.13 13 Segundo Tassinari, em conversa por e-mail, há confusão de terminologias no Brasil ou em português sobre tom e matiz. TASSINARI, Alberto.Mensagem pessoal. Mensagem recebida por <Marcog@usp.br> em 15 jul. 2017.

* * *

A paisagem urbana sempre foi um dos pontos basilares na obra de Volpi. Entretanto, sua inclinação pictórica sempre se volta justamente para a pintura do trecento (pintura do século XIV na Itália), a pintura feita com pontos de vistas e espacialidades diversas, à revelia do espaço unificado da perspectiva. Neste sentido, podemos dizer não só que o azul pleno da Capella Scrovegni o tenha influenciado, mas também a construção enviesada, onde a arquitetura tem uma relação desmesurada com o homem. A cidade se apresenta neste caso de forma labiríntica, de modo que jamais pode ser decifrada num só golpe de vista: “É por meio de uma visão cada vez mais apurada sobre o espaço urbano que se dão as grandes mudanças, as passagens de ‘fases’ em sua obra”, segundo Taís Cabral Monteiro14 14 MONTEIRO, Taís. Alfredo Volpi: paisagem, memória e imaginação. Revista ARS, São Paulo, v. 17, n. 34, p. 141-161, 2018. .

As bandeirinhas parecem como que num processo de metamorfose; adquirem uma propriedade orgânica, pois surgiram de uma espécie de mutação formal pictórica. Em certa medida são elementos que surgem dos telhados das fachadas, que sempre produziam bandeirinhas em negativo. Embora afirme que sua pintura trata exclusivamente de cor e forma, Volpi é um exemplo para aqueles que ainda acreditam no potencial expressivo da pintura, visto que as questões que acompanham seu trabalho nunca são estritamente pictóricas, mas remetem sempre a determinadas experiências de vida. Ao falar sobre a Atualidade do belo, Gadamer nos diz que uma obra de arte deve ter uma dimensão simbólica, induzir ao jogo e remeter a uma festa, pois uma obra reúne as pessoas15 15 GADAMER. Hans. A atualidade do belo. São Carlos: Diagrama, 1985. v. 14. . Como ninguém, Volpi faz destes preceitos uma forma de vida artística.

Ao contrário de um aspecto sóbrio e linear de Florença, Veneza, entrecortada por múltiplos canais e ruas estreitas, só permite uma vista abrangente nos grandes canais. Ao andar pela cidade labiríntica, vemos inúmeras fachadas refletidas n’agua. A cidade tem formação medieval, a única Piazza, de São Marco, é que nos permite ver suas construções com uma certa distância perspectivada. Por sua natureza lagunar, Veneza parece recusar um traçado firme, cores se refletem por todos os lados. Observar um belo entardecer na cidade torna-se quase uma epifania: a Catedral de São Marco com suas pedras multicoloridas, assim como o Pallazzo Ducale, adquire um tom róseo que se contrapõe ao azul do céu e aos vários matizes da lagoa. Não é à toa que grandes coloristas como Turner e Monet buscaram captar esta sensação indescritível.

Ao caminhar pela cidade é possível redescobrir Volpi em cada detalhe: nas fachadas de tons amarronzados com portas de um verde vibrante, nos campos que se abrem e permitem a contemplação de espaços mais amplos, nas janelas multicoloridas arqueadas e fechadas. Muito se falou sobre como os mastros de Volpi remetem às bandeiras que animam os campos de batalha de Paolo Uccelo, pouco se comentou como estes mastros nos fazem lembrar os mastros listrados que são utilizados para amarrar as embarcações.

Se a cidade de São Paulo apaga vestígios da arquitetura de bairros imigrantes como o Cambuci, podemos em Veneza imaginar Volpi deslumbrado com a cidade. Se sua primeira abordagem pictórica com a pintura à óleo ainda remete a uma tradição pictórica recorrente dos anos trinta em São Paulo como na Itália, logo em seguida, com o emprego da têmpera, Volpi cria seu estilo inconfundível. No seu emprego do óleo, as cores parecem se misturar criando meios tons que não retratam a luminosidade da cidade. Tudo parece húmido, sujo, envelhecido. Será com a têmpera que Volpi cria um método de trabalho que não suja o pincel, de modo que o poder cromático do pigmento volta a ter uma presença mais decisiva na composição de cada fachada, mastro ou bandeirinha. Ao invés da paleta, Volpi passa a aplicar na superfície uma só cor de cada vez.

Basta olharmos para suas pinturas em meados da década de 1950 para notarmos como suas cidades imaginárias podem ter sido motivadas pela cidade mais onírica de todos os tempos. A partir daí, Volpi joga com bandeirinhas, fachadas e mastros como peças de um mosaico. Vale lembrar que tanto em Ravenna como em Veneza temos os mais belos exemplos de uma arquitetura que parece se iluminar de dentro para fora. Até hoje é possível observar em Murano a fabricação destas peças multicoloridas feitas a partir do vidro. Tésseras não distinguem a cor do seu meio material; são dispostas numa superfície criando um ritmo difícil de ser perspectivado, pois as relações cromáticas imperam. Impossível não notar em Veneza o predomínio da cor nas fachadas, nos costumes, nas roupas, nos sorvetes, nas vitrines, na paisagem. Até mesmos os pisos dos grandes palácios com seus jogos de geometria de pedra multicoloridas nos fazem repensar uma pintura efetivamente concreta feita não de tinta, mas de pedra.

Um pouco da memória desta viagem veneziana certamente está ainda presente em suas pinturas. Embora tenha participado da XXVII edição da Bienal de Veneza16 16 Em 1954, o comissário responsável foi Francisco Matarazzo Sobrinho, a instituição responsável foi o Museu de Arte Moderna de São Paulo, e os curadores Antonio Bento, Mario Pedrosa, Wolfgang Pfeiffer e Sérgio Milliet. Artistas participantes: Alfredo Volpi, Antonio Bandeira, Arnaldo Pedroso d’Horta, Candido Portinari, Fayga Ostrower, Ivan Ferreira Serpa, Karl Plattner, Lívio Abramo, Lygia Clark, Milton Goldring, Paolo Rissone e Samsom Flexor; conferir BIENAL de Veneza 1954. Instituto Volpi, [S.l.], 3 ago. 2012. Facebook.. Disponível em: <https://www.facebook.com/institutovolpi.com.br/posts/428253523892220>. Acesso em: 10 nov. 2018. , ainda pouco conhecido em Veneza, seu nome perdura graças ao Conde Giuseppe Volpi de Misuratta, que foi presidente da Bienal de Veneza em sua terceira edição de 1935 e criou a Coppa Volpi para a melhor interpretação de ator ou atriz de cinema. Entretanto, Veneza sempre perdura como cidade imaginária, não só do passado, mas como paradigma do que uma cidade verdadeiramente humana venha a ser. Neste breve relato, podemos rever as pinturas das fachadas de Volpi com o olhar do viajante, que traz consigo um pouco de cada lugar que passou, pensando como, de uma maneira indireta, o olhar descompromissado de Volpi para a Veneza que vivenciou perdurou em sua memória. Assim podemos ver Veneza em Volpi, como Ítalo Calvino, por sua vez, também a imaginou em As cidades invisíveis17 17 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 52-53. :

Marco Polo - Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.

Kublai Kahn - Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.

MP - Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.

KK - Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela.

MP - Às margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se - disse Polo. - Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco.

Bibliografia

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    » http://acervo.mis-sp.org.br/audio/depoimento-de-alfredo-volpi
  • 1
    MONTEIRO, Taís. Percursos poéticos. 2017. Tese (Doutorado em Poéticas Visuais) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • 2
    GIANNOTTI, MarcoGIANNOTTI, Marco. Volpi ou a reinvenção da têmpera. Revista ARS, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 72-77, 2006.. Volpi ou a reinvenção da têmpera. Revista ARS, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 72-77, 2006.
  • 3
    ARGAN, GiulioARGAN, Giulio. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 82. Sobre a técnica como uma prática ligada a imaginação, conferir FRANCASTEL, PierreFRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes , 1990.. Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
  • 4
    Cf. GOMBRICH, ErnstGOMBRICH, Ernst. The Image and the Eye. Londres: Phaidon, 1994.. The Image and the Eye. London: Phaidon, 1994, p. 227.
  • 5
    A este respeito, conferir SORABELLA, JeanPEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 2010.. Venetian Color and Florentine Design. Heilbrunn Timeline of Art History, New York: The Metropolitan Museum of Art, out. 2000. Disponível em: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/vefl/hd_vefl.htm>. Acesso em: 10 nov. 2018.
  • 6
    GOETHE, WolfgangGOETHE, Wolfgang. Op. cit. 102. Viagem à Itália: 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.. Viagem à Itália: 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Gage salienta que Alberti não opõe propriamente o desenho à cor, visto que “o pintor deve saber além de desenhar, bene conscriptam - colorir com excelência”. Desde o século XII já se tinha conhecimento de que o olho teria receptores monocromáticos bem como policromáticos. GAGE, JohnGAGE, John. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005.. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005, p. 117-119.
  • 7
    Marco Polo afirma que em Badakstan há uma grande montanha de onde o mais puro azul é extraído. Cf. BRUSATIN, ManlioBRUSATIN, Manlio. A History of Colors. Michigan: Shambhala, 1991.. A history of colors. Michigan: Shambhala, 1991. Volpi visita diversas vezes a cidade de Pádua, e a obra de Giotto: “Eu de vez em quando dava um pulo em Pádova. Sempre sozinho. De Veneza a Pádova é perto, não é, um ônibus. Fui umas 17 ou 18 vezes lá; mais para ver o Giotto e também para distrair um pouco…”. VOLPI, AlfredoTASSINARI, Alberto.Mensagem pessoal. Mensagem recebida por <Marcog@usp.br> em 15 jul. 2017.. Depoimento de Alfredo Volpi [2 de abril de 1971]. São Paulo, 1971. Entrevistador: Theon Spanudis. Acervo do Museu da Imagem e do Som. Disponível em: <http://acervo.mis-sp.org.br/audio/depoimento-de-alfredo-volpi>. Acesso em: 10 nov. 2018. Paulo Sergio Duarte chama a atenção para o fato de que em Giotto, “pela primeira vez, a cidade aparece como tema efetivo na pintura”. Apud KLABIN, VandaKLABIN, Vanda. 6 perguntas sobre Volpi: um debate sobre arte brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.. 6 perguntas sobre Volpi: um debate sobre arte brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009, p. 58.
  • 8
    MONTEIRO, TaísMONTEIRO, Taís. Alfredo Volpi: paisagem, memória e imaginação. Revista ARS, São Paulo, v. 17, n. 34, p. 141-161, 2018.. Reflexões sobre a cor. São Paulo: Martins Fontes, [201-]. No prelo.
  • 9
    No sentido etimológico de contemplar: contemplatus, p. p. of contemplari to contemplate; con- + templum, remete ao espaço de observação do Augur que prevê o futuro mediante o voo das andorinhas diante do frontão de um templo.
  • 10
    “A leitura de Leonardo das fontes medievais, em particular Alhazen, Bacon, Witelo e Pecham, o levou a entrar em contato com a ótica fisiológica. Muito do seu trabalho pode ser visto, como em Ghiberti, como uma tentativa de testar, depurar e ampliar os seus vastos estudos sobre a natureza”. GAGE, JohnGAGE, John. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005.. Op. cit., p. 133. “Leonardo reacende o preconceito de Vitruvio e Plinio contra o colorido extravagante e continua a desenvolver práticas do Quatrocento em direção à uma harmonia mais coerente e de tons mais rebaixados”. GAGE, JohnGAGE, John. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005.. Op. cit., p. 133-134. Leonardo valorizava sombra distinguindo-as das trevas, e criando a técnica do sfumato. Conferir ainda, em GAGE, JohnGAGE, John. Colour and Culture. London: Thames and Hudson, 2005.. Op. cit., como a polêmica sobre as questões gráficas de transposição de uma espacialidade tridimensional para o bidimensional ofuscava o debate sobre o colorido, entendido durante os séc. XV e XVI como secundário.
  • 11
    Leonardo da Vinci apud PEDROSA, Israel______. Reflexões sobre a cor. São Paulo: Martins Fontes, [201-]. No prelo.. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: SENAC Nacional, 2010, p. 41.
  • 12
    GOETHE, WolfgangGOETHE, Wolfgang. Op. cit. 102. Viagem à Itália: 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.. Op. cit. p. 102.
  • 13
    Segundo Tassinari, em conversa por e-mail, há confusão de terminologias no Brasil ou em português sobre tom e matiz. TASSINARI, AlbertoSORABELLA, Jean. Venetian Color and Florentine Design. Heilbrunn Timeline of Art History, New York: The Metropolitan Museum of Art, out. 2000. Disponível em: <Disponível em: http://www.metmuseum.org/toah/hd/vefl/hd_vefl.htm >. Acesso em: 10 nov. 2018.
    http://www.metmuseum.org/toah/hd/vefl/hd...
    .Mensagem pessoal. Mensagem recebida por <Marcog@usp.br> em 15 jul. 2017.
  • 14
    MONTEIRO, TaísMAYER, Ralph. Manual do artista. São Paulo: Martins Fontes , 1996.. Alfredo Volpi: paisagem, memória e imaginação. Revista ARS, São Paulo, v. 17, n. 34, p. 141-161, 2018.
  • 15
    GADAMER. HansGADAMER. Hans. A atualidade do belo. São Carlos: Diagrama, 1985. v. 14.. A atualidade do belo. São Carlos: Diagrama, 1985. v. 14.
  • 16
    Em 1954, o comissário responsável foi Francisco Matarazzo Sobrinho, a instituição responsável foi o Museu de Arte Moderna de São Paulo, e os curadores Antonio Bento, Mario Pedrosa, Wolfgang Pfeiffer e Sérgio Milliet. Artistas participantes: Alfredo Volpi, Antonio Bandeira, Arnaldo Pedroso d’Horta, Candido Portinari, Fayga Ostrower, Ivan Ferreira Serpa, Karl Plattner, Lívio Abramo, Lygia Clark, Milton Goldring, Paolo Rissone e Samsom Flexor; conferir BIENAL de Veneza 1954BIENAL de Veneza 1954. Instituto Volpi, [S.l.], 3 ago. 2012. Facebook. Disponível em: <Disponível em: https://www.facebook.com/institutovolpi.com.br/posts/428253523892220 >. Acesso em: 10 nov. 2018.
    https://www.facebook.com/institutovolpi....
    . Instituto Volpi, [S.l.], 3 ago. 2012. Facebook.. Disponível em: <https://www.facebook.com/institutovolpi.com.br/posts/428253523892220>. Acesso em: 10 nov. 2018.
  • 17
    CALVINO, ÍtaloCALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 52-53.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2018
  • Aceito
    13 Nov 2018
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