Acessibilidade / Reportar erro

Por mais tempo afogado: considerações sobre Le Noyé , de Bayard

For more Time Drowned: Considerations on Le Noyé , by Bayard

Por más tiempo ahogado: consideraciones acerca de Le Noyé , de Bayard

Resumos

Ao perceber, no autorretrato como um homem afogado, de Bayard, certa semelhança entre a pose corporal de sua fotografia e de outras produções visuais engendradas ao longo da história ocidental, estruturou-se um painel com 27 imagens baseado no conceito warburguiano de Pathosformeln para discutir as transformações diante da confrontação com a morte na sociedade ocidental, estudadas por Huizinga, Ariès e Morin. Por outro lado, a análise de Poivert sobre as relações dessa fotografia com o teatro, a biografia de Chatterton e a pintura da morte do poeta possibilitou pensar as noções de jogo, de ritual e de performatividade, presentes em Schechner; o caráter forjado da poesia chattertoniana, discutido por Groom; e a forte simulação desse afogado a partir de Baudrillard.

fotografia; morte; performatividade; simulação; Pathosformeln


Upon realizing a resemblance between the body´s pose in the photographic self-portrait of Bayard as a drowned man and other visual productions made throughout Western history, a twenty-seven-image panel guided by the Warburguian notion of Pathosformeln was elaborated to discuss the transformations of Western society in confronting death, studied by Huizinga, Ariès and Morin. On the other hand, Poivert´s analysis on the relation of this photography with theater, the Chatterton biography, and the painting of the poet´s death has made it possible to think about the notions of play, ritual and performativity, present in Schechner; the forged character of Chattertonian poetry, discussed by Groom; and the strong simulation of this drowned man, based on Baudrillard´s thought.

Photography; Death; Performativity; Simulation; Pathosformeln


Percibiendo, en el auto-retrato de Bayard cómo un hombre ahogado, una semejanza entre la pose corporal en la fotografía y producciones de la historia occidental, fue estructurado un panel con 27 imágenes basado en el concepto warburguiano de Pathosformeln con fines a discutir los cambios en la confrontación de la muerte en la sociedad occidental, estudiados por Huizinga, Ariès y Morin. Además, el análisis de Poivert de las relaciones de Bayard con el teatro, la biografía de Chatterton y la pintura de su muerte ha posibilitado reflejar acerca del juego, lo ritual y la performatividad, presentes en Schechner; del carácter forjado de la poesía chattertoniana, discutido por Groom; y de la simulación de eso ahogado, a partir de Baudrillard.

fotografía; muerte; performatividad; simulación; Pathosformel


Bayard e as relações com a morte e com Chatterton

Hippolyte Bayard (1801-1887) produziu, em 1840, uma série de três fotografias intitulada Le Noyé . Seus autorretratos como um homem afogado levantam ainda hoje inúmeras discussões no campo da visualidade fotográfica. No entanto, na maioria dos livros de história e teorias da fotografia e da arte, a abordagem realizada desse trabalho em específico centra-se no campo da anedota, como já esperado de uma historiografia da ciência herdeira do positivismo. O ponto mais incoerente dessas análises está, contudo, no argumento de que Bayard – considerando-se as imagens e o texto presente em uma delas – estaria unicamente a reivindicar os louros do seu método de feitura fotográfica junto à daguerreotipia.

Nesse sentido, é bastante álacre a reflexão de Poivert (2015POIVERT, Michel. Brève histoire de la photographie. Paris: Hazan, 2015. , pp. 40-41) sobre a fotografia desse afogado não como um protesto ressentido em relação ao descaso ou abandono do Estado francês, mas sim como uma estratégia criativa que, em pleno século XIX, inaugura a exploração da pluralidade do universo fotográfico, cuja utilização e reconhecimento se fizeram possíveis somente a partir dos anos 19601 1 . Vale ressaltar que a primeira monografia sobre Bayard foi escrita por Joseph-Marie Lo Duca e publicada com o nome do fotógrafo estudado, em 1943. Tem-se, portanto, um lapso temporal de 103 anos para que as imagens de Bayard começassem a circular. Entretanto, é apenas no momento em que surge a Body Art e outros movimentos das artes do corpo, como o Fluxus e o Acionismo Vienense, que as teorias sobre a performance começam a se delinear mais profundamente, possibilitando hoje um olhar atualizado sobre as proposições artísticas do passado. . Poivert considera o texto manuscrito de Bayard enquanto elemento plausível para a legitimação de seu autorretrato como a “primeira ficção” da história da fotografia, ao tratar imagem e texto como uma coisa só. O autor explica ainda, em outro livro, que, na imagem-performance, a questão não gira em torno do registro de uma performance, mas antes no sentido “da execução linguística que associa uma palavra a um ato”, o que “significa produzir uma imagem como se efetuar um gesto” (POIVERT, 2011, p. 213, tradução nossa). Isso posto, fica mais fácil compreender o caminho teórico realizado por Poivert ao incorporar em seu discurso o conceito de performativo , originário dos estudos da filosofia da linguagem de John Austin (1911-1960). Apesar dos problemas existentes entre proferimentos constatativos e proferimentos performativos2, a ideia de fazer algo com palavras é amplamente importada pelas humanidades, seja nas artes visuais, na dança, no teatro, e ressignificada para o “fazer algo com imagens”. Assim, o entendimento de que “a imagem é também, sobretudo, uma forma de experiência do mundo” ( POIVERT, 2011POIVERT, Michel. La fotografia contemporanea. Turim: Giulio Einaudi, 2011. , p. 213, tradução nossa) enfatiza a capacidade da encenação enquanto existência concreta.

Um importante dado a ser considerado é o fato de que o texto não é o verso da imagem, pois “o cadáver do Senhor que você vê no verso é aquele do Sr. Bayard”3 3 . Frase inicial do texto escrito por Bayard na frente de uma das três fotografias. ; o que implica um jogo entre texto e imagem, entre apresentação e representação, entre registro e acontecimento, entre realidade e imaginário. O uso da primeira e da terceira pessoa do singular inscreve uma discussão acerca do conceito de simulação , o qual também se faz presente na imagem, uma vez que “simular é fingir ter o que não se tem” e se refere especificamente a uma ausência ( BAUDRILLARD, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. , p. 9). Ao apresentar textual e imageticamente a si próprio como sendo outro, Bayard questiona a diferença entre o verdadeiro e o falso: ele está simultaneamente morto e vivo. O jogo entre essas duas categorias, do válido e do ilusório, “convém bem às imagens conceituais, nas quais uma de suas especificidades é justamente manifestar a suspensão de valor” ( POIVERT, 2015POIVERT, Michel. Brève histoire de la photographie. Paris: Hazan, 2015. , p. 46, tradução nossa). Ou, como bem explica Schechner (2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002. , p. 117, tradução nossa), “a simulação não é nem fingimento e nem imitação. Ela é uma replicação de... si mesma em outra”; muito próxima talvez do significado da dança macabra mais antiga, na qual o dançarino, vivo, duplicava-se em sua singularidade para se tornar, também, a imagem de si próprio morto ( HUIZINGA, 2010HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média / trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. , p. 235).

Levando em consideração a forma de experiência do mundo, pode-se aproximar a intenção de Bayard das relações com a performatividade e com o jogo. Tanto em Schechner quanto em Poivert a estrutura de uma ação performativa se distingue da performance justamente pelo fato de poder ser produzida sem público, na intimidade da vida diária, ou seja, pelo entendimento de que “as performatividades são uma parte ativa da ‘vida real’” (SCHECHNER, 2002, p. 110, tradução nossa). Assim, o gesto, a encenação e a performance devem ser apreendidos não como espetáculo e sim como uma saraivada cujo propósito é o desvelamento do ordinário, desse vigor íntimo da vida como ela é; não porque dela recortou-se a realidade, mas, ao contrário, porque se acrescentou no real um pouco mais de vida.

Ao romper com a representação, porquanto sua imagem é uma simulação, Bayard propõe partir

do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência. Enquanto a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro. ( BAUDRILLARD, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. , p. 13)

O conflito exordial entre presença e ausência, promovido por Le Noyé , não era caro ao discurso em voga acerca da fotografia na sociedade francesa da primeira metade do século XIX; talvez por isso tenha sido preciso mais de um século para se voltar a enfrentá-lo. A Academia de Ciência francesa, bem como todos os envolvidos no processo da legitimação da fotografia frente às descobertas de Daguerre, estava ocupada demais com suas odes à verdade, à transparência e com “o lápis da natureza”4 4 . The pencil of nature é o nome do livro feito por Talbot a partir de sua descoberta de um sistema negativo-positivo, em papel, na Inglaterra. Talbot perseguia também a representação do mundo natural com objetividade e, diverso ao daguerreotipo, cria um sistema capaz de reproduzir a mesma imagem irrestritamente a partir de um negativo. .

O fato de Bayard simular sua morte por meio da palavra e da imagem oferece a possibilidade de pensar sua fatura como mais próxima da sátira literária – a qual vinha sendo desenvolvida mais fortemente com a elaboração de caricaturas da sociedade francesa desde os anos 1830 –, mas ainda conectada à antiga dança macabra, visto que, de acordo com Huizinga, a morte era também uma sátira social (HUIZINGA, 2010, p. 236). Poder-se-ia arriscar uma aproximação do fazer artístico de Bayard com a κωμῳδία ( komoidia ), em razão dos tipos de temas e do modo como eles eram abordados no teatro antigo. Nas comédias gregas antiga e intermediária, o discurso era direcionado ao ataque direto às pessoas notáveis, recorrendo-se a seus nomes verdadeiros; porém, o que as diferencia é a ausência do coro na intermediária. Com a comédia nova surge então a comédia de maneiras, um modo de satirizar o comportamento social, sobretudo o da classe dominante. Assim sendo, é provável que a intenção de Bayard não fosse a de requisitar um lugar ao sol, segundo comumente se afirma, mas, antes, satirizar e criticar o próprio sistema do Estado francês, visto o jogo existente entre as pessoas verbais usadas, a encenação performativa e o apontamento textual dos nomes da Academia e do Rei.

Em tempo, é preciso pontuar a visão de Poivert sobre o trabalho de Bayard como um drama5 5 . Trata-se da referência do próprio Poivert a um texto de 2002 de sua autoria, citada por ele nesse artigo de 2016, o que explica suas preocupações serem anteriores aos outros textos aqui utilizados, e não posteriores. O autor não exclui a presença do riso e do humor, considerados inaugurais no trabalho de Olympe Aguado e explica: “o riso é moderno, e a imagem encenada, por seu caráter artificial, inventa de uma certa maneira o burlesco em imagem” ( POIVERT, 2016 , p. 110). , visto sua proximidade com o teatro moderno: “ele não constrói esta imagem sem refletir precisamente a influência da invenção da fotografia sobre o teatro reformado” ( POIVERT, 2016POIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia? / trad. Fernanda Verissimo. Revista Porto Arte, 21(35), 2016, pp.103-114. , p. 109). No que diz respeito à cronologia histórica, a existência de um teor dramático não está afastada, pois o sentimento de fracasso “está na origem do clima de depressão que se alastra nas classes remediadas das sociedades industriais” ( ARIÈS, 1989ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média / trad. Pedro Jordão. Teorema: Lisboa, 1989. , p. 38). Esse sentimento contemporâneo, como explica Ariès, se faz presente cada vez mais cedo na vida do adulto. Embora se reconheça a existência desse clima, bem como a legitimidade da reflexão de Poivert, admite-se haver uma inscrição cômica, debochada e satírica em Bayard. Inclusive, em suas reflexões, o próprio Poivert acredita no insucesso mais como uma força propulsora à criação do que à exaltação de um sentimento dramático, de fracasso, ou mesmo causa de amargura, visto que a proposta de reabilitação do nome de Bayard no hall dos pioneiros do descobrimento da fotografia e sua recusa em integrar esse lugar se deram ainda no século XIX, por volta de 1850 ( POIVERT, 2015POIVERT, Michel. Brève histoire de la photographie. Paris: Hazan, 2015. ).

A sátira de Bayard é desenhada no segundo parágrafo, no qual critica a postura do governo em relação ao montante financeiro destinado a Daguerre, e particularmente explícita na surpresa da exclamação: “Ó, instabilidade das coisas humanas!”. Em seguida, fala sobre o tratamento recebido dos artistas, dos eruditos e dos jornais, os quais nem se ocupavam mais dele. Fato esse que promoveu a exibição de seu cadáver por vários dias no necrotério. Por fim, convida: “Senhores e Senhoras, passemos a outros por temor de que seu olfato seja afetado, pois a figura do Senhor e suas mãos começam a apodrecer”6 6 . Os dois últimos trechos entre aspas se referem ao texto escrito por Bayard, que acompanha a imagem de seu autorretrato. O texto está disponível no site da Société Française de Photographie. Disponível em: https://sfp.asso.fr/blog-collection/public/FRSFP_0024IM_269_H_001.jpg . Acesso em: 22 mai. 2018. Tradução nossa. . O epílogo de sua sátira induz a conjeturar acerca do tratamento concedido pelas estruturas de poder a pessoas importantes à história do país, como são os casos de Antoine Lavoisier (1743-1794) e Jean-Paul Marat (1743-1793), no século anterior ao seu7 7 . Lavoisier foi executado na guilhotina como resposta aos anseios da Revolução Francesa, sobretudo após a publicação de uma nota no jornal L´Ami du peuple que ligava o pai da química moderna ao sistema da Ferme Généra l, tão odiado pelos que ocupavam o poder naquele momento. Lavoisier já era reconhecido, mas sua morte e o modo como seu cadáver foi tratado parecem dialogar com o mesmo descaso levantado por Bayard. Ironicamente, o feitiço se voltou contra o feiticeiro, e Marat, cujas incitações jornalísticas levaram Lavoisier à guilhotina como um “inimigo do povo”, foi assassinado pela Sra. Corday, de partido e ideologia contrários aos seus, enquanto estava imerso na banheira para cuidar de uma doença de pele. Ocorre, tanto com Lavoisier quanto com Marat, a supervalorização dos seus nomes e caráteres para, em seguida, serem banidos em razão das mudanças ocorridas nas estruturas do poder sociopolítico e, posteriormente, serem de novo reconhecidos pelo governo – o qual, por sua vez, encomenda celebrações de diversos tipos para realocá-los na história. . “Passemos a outros” ressalta as manobras de interesse das estruturas de poder em relação à sociedade. É nesse aspecto que se pode falar de uma crítica política no discurso textual e imagético de Bayard, bem como da noção de perecibilidade, oriunda do final da Idade Média, diante da qual era impensável “enxergar a morte sob outro aspecto além do da deterioração” ( HUIZINGA, 2010HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média / trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. , p. 221).

Poivert escreve sobre o suicídio ter se tornado uma moda em Paris na época de Bayard: “o afogamento é a moda suicida então em voga, e a visita ao necrotério – onde anônimos são apresentados aos transeuntes atrás de vidros, a fim de que possam ser identificados –, um passatempo tão mórbido quanto banal” (POIVERT, 2015, p. 39, tradução nossa). Nada estranho para uma sociedade na qual o cemitério já tinha sido um lugar de passeio, comércio, flerte e outras atividades, como foi o caso do Cemitério dos Inocentes, em Paris. Um verdadeiro ponto de encontro. Frequentado por pobres e ricos, comerciantes, ambulantes, monges mendicantes, prostitutas, o local era tido como o melhor para se ficar à toa. Em função da grande quantidade de pessoas que morriam diariamente, as ações de sepultamento e exumação eram constantes, tornando o convívio entre vivos, ossos e cadáveres em estado de decomposição um tanto trivial. Naquele cemitério, ainda, reuniam-se procissões e festividades ( HUIZINGA, 2010HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média / trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ). A morte, na Idade Média, era familiar a todos e, portanto, inseparável da vida. Não era impressionante às pessoas daquele tempo o convívio com tal “espetáculo dos mortos”, em que a superfície era tomada por ossos expostos: o “fascínio do corpo morto, tão intenso no séc. XVI e depois na época barroca, mais discreto no séc. XVII, exprime-se no séc. XVIII com a incidência duma obsessão”, cujos respingos alcançaram grande parte do século XIX ( ARIÈS, 1989ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média / trad. Pedro Jordão. Teorema: Lisboa, 1989. , p. 92).

Ainda segundo Poivert, Bayard manteve relações muito próximas com o teatro8 8 . No livro Burning with Desire: The Conception of Photography, escrito por Geofrey Batchen em 1997, o autor defende o interesse de Bayard pelo teatro e sua proximidade com o Comédie-Française. em decorrência de sua amizade, desde a infância, com Edmond Geffroy (1804-1895), cuja consagração como ator se deu pela sua atuação como personagem principal em uma peça homônima ao livro de Alfred de Vigny, Chatterton . Fato esse que, de acordo com o autor, pode ter servido de modelo para Bayard imaginar seu autorretrato como um afogado, analogamente à gravura de Edward Orme (1775-1848) intitulada A morte de Chatterton . A conexão com o teatro, mais especificamente com o tableau vivant , não era particular a Bayard. No capítulo “Amateurs Éclaires et Tableaux vivants” , Poivert mostra como essa prática de encenação percorreu o ideário fotográfico do século XIX, dos amadores aos já considerados profissionais da fotografia, muito embora o paladar do público tenha sido efetivamente conquistado pelos modelos oriundos das Belas Artes: paisagens, naturezas mortas e retratos (POIVERT, 2015).

A intimidade de Bayard com o teatro e, consequentemente, com Chatterton por meio de seu amigo Geffroy é, sem sombra de dúvidas, uma grande influência. Porém, precisá-la como único catalisador para seu autorretrato é impossível. Seria uma sofrível redução encarar a potência artística elaborada por Bayard como mera imitação do tema. Acontece que, de acordo com os estudos da época, o poeta britânico teria se suicidado aos 17 anos em razão de um amor não correspondido e da falta de reconhecimento artístico, o que lhe rendeu a alcunha de marvellous boy 9 9 . Foi William Wordsworth (1770-1850) quem concedeu a Chatterton tal denominação. e o lugar de grande herói trágico de todo o Romantismo. Os românticos franceses o adotaram como exemplo, e o ponto crucial dessa veneração se explicitou no livro de Vigny, adaptado como espetáculo teatral. As questões sobre a morte de Chatterton, inscritas sob as rubricas do suicídio, da pobreza, do não reconhecimento intelectual e das dificuldades biográficas, são loquazes argumentos certificatórios às escolhas de Bayard, tendo em vista seu discurso texto-imagético.

Todavia, conforme já sinalizado, deve-se atentar para a existência do teor satírico, crítico e debochado como elemento integrante de sua carta-imagem de suicídio, de modo que a compreensão de suas fotografias não se restrinja apenas ao âmbito de sua vida privada, mas, ao contrário, que seja ampliada para o contexto social que envolve o artista. Por esse motivo, sugere-se olhar para outras relações e, dentre elas, algumas previamente esboçadas: a replicação de si em outro (simulação); as diferenças entre os padrões visuais e de pose na fotografia de Bayard e na gravura de Orme; a proximidade da pose e de elementos da cena com algumas pinturas sobre a lamentação de Cristo, com a morte de Marat, com as gravuras das mortes de Sêneca e de Sócrates, com o assassinato de Príamo pintado em terracota e com o encontro com os êxtases de São Francisco, Santa Teresa e Santa Maria Madalena; e a constituição do jogo como pensamento.

Não obstante, é apenas a partir da primeira década dos anos 2000 que os relatos disseminados acerca da vida, da morte e do reconhecimento de Chatterton como poeta são revelados por Nick Groom como sendo fantasiosos. O autor sinaliza a terapêutica empregada pelo poeta para tentar se curar de uma doença sexualmente transmissível com o uso de arsênico. Segundo ele, Chatterton se enganou na dosagem do tratamento, acabou por ingerir uma quantidade superior à prescrita e por isso morreu. Contudo, a existência de certos versos suicidas em seus poemas foi determinante para que sua morte fosse assim interpretada. De outro lado, a pesquisa revela ainda que a vida do marvellous boy não tinha sido de dificuldades financeiras, considerando que o recebimento dos lucros advindos de sua poesia lhe foram suficientes a uma vida confortável ( GROOM, 2005GROOM, Nick. The Death of Chatterton. In: HEYS, Alistais. From Gothic to Romantic: Thomas Chatterton’s Bristol. Bristol, Londres: Redcliffe Press, 2005, pp.116-125. , pp. 116-125).

É interessante desfazer as anedotas em torno de Chatterton para evidenciar a necessidade da construção de um modelo a ser seguido, de um exemplo especular a quem se assemelhar. Para Baudrillard (1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. , p. 34), “o que toda uma sociedade procura, ao continuar a produzir e a reproduzir, é ressuscitar o real que lhe escapa”. Daí a simulação não ter nada a ver com o falso ou o enganoso. Para o autor, tanto o real quanto o verdadeiro não podem mais ser alcançados enquanto objetos por si próprios; logo, trata-se não de um fingimento acerca do real ou da verdade, isto é, de dissimular, e sim de modelos sem realidade e sem origem, portanto, hiper-reais ( BAUDRILLARD, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. , p. 8). Isso porque o entendimento de Baudrillard é destinado a perceber o simulacro como predecessor do real, porquanto por trás dele não há nada.

“Assim, em toda parte o hiper-realismo da simulação traduz-se pela alucinante semelhança do real consigo mesmo” (Ibidem, p. 34) e, para percebê-lo, basta olhar novamente o modelo romântico provido por Chatterton. Sob esse aspecto, há algo pululante nos comentários de Groom sobre o caráter da falsificação (forgery) em Chatterton, diverso de outros comentadores. Ao autor interessa pensar essa palavra distante do seu aspecto pejorativo e próxima “da distinção da falsificação como um ato criativo” ( FEJÉRVÁRI, 2012FEJÉRVÁRI, Boldizsár. From Fake Lit to the Value of Real Nightingales: An Interview with Nick Groom. The AnaChronisT, 17(1), 2012, pp. 279-297. , p. 282), sem estendê-la aos aspectos legais ou médicos. Apesar de reconhecer que a palavra forgery carrega consigo uma duplicidade inerente entre o positivo e o negativo, sua escolha por encará-la a partir da raiz forge (forjar) permitiu-lhe compreender a ação poética de Chatterton para além do falso – assim como o fez Poivert com Bayard – e, desse modo, é possível assegurar que ambos os artistas tenham forjado seus trabalhos no sentido de construí-los.

E é especialmente esse aspecto construtivo, de uma ação forjada que ultrapassa o falso, o que demarca o simulacro. No caso do poeta britânico, ele foi duplamente replicado: primeiro por ele mesmo, deliberadamente, ao assumir o nome de um monge do século XV como autor de seus poemas e, depois, pelos outros que escreveram sua história de vida e morte. Em Bayard também se está diante de uma dupla replicação de si, ora no texto, ora imageticamente. Existe, nesses dois artistas, uma intencionalidade objetiva, um interesse afastado da mimese, da representação: “uma simulação não é uma farsa, mas algo em que a aparência em si é a realidade” ( SCHECHNER, 2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002. , p. 118, tradução nossa), pois “a ilusão já não é possível porque o real já não é possível” ( BAUDRILLARD, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. , pp. 29-30). Apesar do suposto pessimismo baudrillardiano, a sua hiper-realidade tem uma característica bastante profícua: a possibilidade do plural, do diverso; a promessa a todas as pessoas de serem criadoras de seu próprio mundo. A vida real sendo inexistente, encontra-se a vida possível. A simulação é uma estratégia de dissuasão porque operada no real.

Bayard para além de Chatterton

Um dos pontos mais enfáticos da arte contemporânea tem sido esgarçar as fronteiras do pensamento por meio de estratégias visuais oriundas, principalmente, do fazer artístico e não da teoria da arte em si. Então, nota-se que o produto da arte desestabiliza as normas vigentes, não para negar o padrão, mas para pensá-lo, confrontá-lo. Baudrillard entende a simulação e o simulacro a partir do conto borgesiano chamado “Do rigor da ciência”; Groom pensa a abertura das acepções linguísticas estimulado pela poesia chattertoniana; Huizinga lamenta a inexistência de mais imagens e artefatos do medievo para analisar melhor os aspectos e os modos de vida daquele tempo; Poivert e Schechner, cada qual ao seu modo, enfrentam as teorias do teatro e da performance pela ampliação de um conceito de filosofia da linguagem incitados pela produção artística e visual. Sendo então o produto visual o eixo gerador de tais reverberações, é um tanto descabido não confrontar as imagens em discussão com maior proximidade.

A visualidade da qual Bayard teria se aproximado para produzir seu autorretrato afogado é, segundo Poivert, a gravura da morte de Chatterton, de 1794, de Orme ( POIVERT, 2015POIVERT, Michel. Brève histoire de la photographie. Paris: Hazan, 2015. ). Entretanto, seria prejudicial ignorar a pintura realizada por Henry Wallis (1830-1916) em 1856 acerca da morte do poeta. Em ambos os trabalhos, o quarto é simples e tem as paredes descascadas ou mal pintadas, com estrutura de madeira aparente e de pouca amplitude. Em Wallis, a figura de Chatterton parece superdimensionada em relação ao espaço arquitetônico diminuto e sufocante, enfatizando o drama romântico da existência. Porém, o mais interessante de uma analogia entre as imagens desses três artistas reside na solidão dos personagens: mesmo quando há outras pessoas na cena, como é o caso do trabalho de Orme, elas estão ali para acentuar a atmosfera de dor, compadecimento e exílio.

Na pintura de Wallis, o cadáver do poeta está com os olhos abertos, direcionados para cima, como se estivesse a rememorar todo o suposto sofrimento de sua hipotética amarga vida: “acredita-se que cada homem revê toda a sua vida no momento de morrer, num único relance. Crê-se também que a sua atitude nesse momento dará à sua biografia o sentido definitivo, a conclusão” ( ARIÈS, 1989ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média / trad. Pedro Jordão. Teorema: Lisboa, 1989. , p. 35). Tanto o caráter solitário quanto a rememoração do defunto estão conectadas à mudança promovida, desde os séculos XIV e XV, na estreita relação entre a morte e a história de cada vida em particular. Cada sujeito passa, então, a ser dotado de um valor individual perante a morte, à medida que dela se tomou consciência como espelho de si próprio10 10 . A ideia da morte de si próprio está vinculada ao sentimento de fracasso tratado anteriormente. Para Ariès (1989 , p. 95), “o homem de hoje não associa a sua amargura à morte”. E é justamente a frustração que inaugura um plano de futuro em função da biografia, ou seja, da consideração de “uma vida individual como objeto duma previsão voluntária” (Ibidem, p. 95). O autor fala que, desde o século XII, há a progressão para o entendimento de que cada morte representa uma biografia diferente. E, para indicar algo que aparecerá na discussão logo adiante, a transformação frente à morte não para, a ponto de, durante os séculos nos quais viveram Chatterton e Bayard, ser tratada como, ou convertida em, medo e prazer, aos quais aparecia também associada. Contudo, o medo em específico se afirmará somente no século XIX, mas o prazer é bastante explorado desde o século XVI, tendo seu auge no século XVIII, anterior à interdição da morte no Ocidente. .

Morte e fotografia como reflexos especulares de uma individualidade, de uma beleza particular, de uma história ímpar. A exaltação de si pela autoconsciência é o lado menos contrastante dessa história. Logo, seria proveitoso pensar num tríplice assassinato promovido por Bayard: o da natureza (real), o da técnica (fotografia) e o da norma (verdade). O caráter concludente de Le Noyé é a abertura, anacrônica, de um campo de exploração fotográfica prematuro, portanto inconcluso à época e somente passível de delineação na atualidade. Nas palavras de Poivert, trata-se de “uma imagem conceitual antes da hora” (POIVERT, 2015, p. 45, tradução nossa).

As estruturas das poses corporais da gravura e da pintura da morte de Chatterton estão deveras distantes do desfalecimento do corpo em Bayard. Recostado à cadeira, o torso nu, a presença do lençol branco e da vida simples, revelada pelo chapéu de palha preso à parede, conduzem a uma associação a outras imagens11 11 . Para tentar estabelecer uma relação mais adequada com a leitura de que a pose de Bayard se aproximava sobretudo daquelas de Cristo deposto da cruz, iniciou-se uma busca por diversos trabalhos artísticos cujas figuras tivessem características formais em correspondência direta com aquela fotografia e, aos poucos, percebeu-se sua proximidade também com as cenas de êxtase. Destarte, por associação, uma imagem foi levando a outra, de modo que se chegou a um painel composto por 27 imagens (a numeração foi feita da esquerda para a direita e de cima para baixo; ver figura 1 , p. 190-191): 1 - Peter Paul Rubens, Saint Mary Magdalene in Ecstasy , 1619-1620; 2 - Petrus Christus, The Lamentation over the Dead Christ, 1455-1460; 3 - Benjamin West, The Death of General Wolfe , 1770; 4 - Caravaggio, Francis of Assini in Ecstasy, ca. 1594; 5 - Hippolyte Bayard, Le Noyé, 1840; 6 - Benjamin West, Study of the Lamentation on the Dead Christ, ca. 1785; 7 - Ânfora de barro atribuída ao pintor de Nikoxenos, ca. 500 a.C.; 8 - Sandro Botticelli, Lamentation over the Dead Christ, 1495-1500; 9 - Jusepe de Ribeira, The Lamentation over the Dead Christ , início da década de 1620; 10 - Peter Candid, The Lamentation over the Dead Christ , c.1585-86; 11 - Pierre Peyron, The Death of Socrates , 1790; 12 - Anthony van Dyck, Lamentation over the Dead Christ , ca. 1634-1640; 13 - Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson, The Entombment of Atala , 1808; 14 - Pier Francesco Mazzucchelli (Morazzone), The Ecstasy of Saint Francis , ca. 1615; 15 - Jacques-Louis David, The Death of Marat, 1793; 16 - Luisa Roldán (La Roldana), The Ecstasy of Saint Mary Magdalene , ca. 1690; 17 - Bernini, Ecstasy of Saint Teresa, 1647-52; 18 e 19 - Henry Pech Robinson, Fading Away, 1858, e She Never Told Her Love , ca. 1858; 20 - Henry Wallis, Chatterton, 1856; 21 - Daniel Orme, Edward Orme, Henry Singleton, The Death of Chatterton , 1794; 22 - Philippe de Champaigne, Lamentation over the Dead Christ , sem data; 23 - Jean Guillaume Moitte, The Death of Seneca , sem data; 24 - Giovani Baglioni, The Ecstasy of Saint Francis , 1601; 25 - Guercino (Giovanni Francesco Barbieri), The Entombment, ca. 1656; 26 - Andrea Solari, Lamentation over the Dead Christ, ca. 1509; 27 - Nicolas Tournier, The Descent from the Cross , 1632-1635. Figura 1 Autoria própria Painel para análise do Pathosformeln , 2018. 95 x 160 cm, Salvador. produzidas ao logo da história da humanidade. A primeira aproximação foi com a imagem de Cristo deposto da cruz em inúmeras pinturas de autores variados. A partir de então, estabeleceu-se um diálogo com o conceito de Pathosformeln desenvolvido por Aby Warburg (1866-1929), principalmente pelos elementos envolvidos na construção da sua fórmula de pathos: a polaridade do ser humano e a cristalização dos gestos, repetidos de época em época, como linguagem social.

No painel montado, a semelhança do gesto corporal de Bayard com o das lamentações de todos os Cristos pintados em diversas épocas é surpreendente. Porém, é ainda mais impressionante perceber a presença dessa gestualidade corporal no momento da morte, desde as pinturas do período grego12 12 . Sugere-se visitar o site do Metropolitam Museum of Art, em Nova York, para visualizar o vaso em terracota que integra o painel elaborado. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/247265?sortby=relevance&amp ; when =1000+b.c.-a.d.+1&where=greece&what=terracotta&who=nikoxenos+painter%24nikoxenos+painter&ft=amphora%5d&offset=0&rpp=20&pos=1. Acesso em: 5 abril 2018. arcaico até imagens posteriores ao afogado de Bayard, como nas duas fotografias de Henry Peach Robinson (1830-1901), realizadas por volta de 1858, bem como identificá-la no momento do êxtase, presente nas pinturas de São Francisco ou Maria Madalena ou na escultura de Santa Teresa. De acordo com Via, foi a teoria de Darwin sobre a expressão das emoções no homem e nos animais o spunto para que Warburg compreendesse a dor, o medo, a alegria como manifestações de intensa emoção capazes de sobreviver e de serem revividas no tempo ( VIA, 2014VIA, Claucia C. Introduzione a Aby Warburg. eBook. Bari: Latterza, 2014. , p. 58, tradução nossa).

Assim, o gesto como linguagem social, ao sobreviver na memória e encarnar no Pathosformeln , encontra-se manifestado nas imagens criadas pelo homem, podendo ser visto como “documentos tangíveis da psicologia de uma civilização” ( MURANO, 2016MURANO, Jessica. Fisiologia del gesto. Fonti warburghiane del concetto di Pathosformel. Aisthesis. Pratiche, Linguaggi e Saperi dell´Estetico, 9(1), 2016, pp. 153-175. , p. 154, tradução nossa). Nesse sentido, a narrativa das emoções é algo de suma importância para o entendimento da capacidade patética no ser humano e sua presença nas imagens transmitidas ao longo do tempo. “É uma história na qual descobrimos que as imagens transmitem, e ao mesmo tempo transformam, os gestos emotivos mais imemoriais” ( DIDI-HUBERMAN, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? / trad. Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016. , p. 35). Esse gesto de desfalecimento do corpo, sobrevivente nas imagens aqui reunidas e revivido desde a antiguidade clássica até os séculos XV ao XIX, demonstra a pujança emocional do encontro com a morte.

“Warburg pretendia provar a possibilidade da pintura de representar aquilo que é significativo e atribuir, então, à arte figurativa a capacidade de representar não apenas o que é contíguo, mas também o patético e o expressivo” ( VIA, 2014VIA, Claucia C. Introduzione a Aby Warburg. eBook. Bari: Latterza, 2014. , p. 49, tradução nossa) e, para tanto, percebeu a existência de uma polaridade intrínseca ao ser humano cujo efeito e significado podem se modificar com o tempo. É o que ocorre na relação entre o homem e a morte conforme apresentam Morin e Ariès em seus estudos acerca desta última, no Ocidente, posteriormente às formulações de Huizinga sobre a convivência e enfrentamento do homem, na sociedade medieval, com a morte. O banimento desta ou, nas palavras de Ariès, a sua interdição desde a última década do século XIX talvez tenha sido o motivo precursor da proibição de fotografias de mortos, conhecidas como fotografias post-mortem ou memento mori , tão comuns até os finais dos anos 1890. Sua prática, vista a partir de então como imoral, foi extinta em toda Europa já em 191514 14 . As imagens de pessoas mortas tiveram seu ápice durante as décadas de 1870 e 1880. Pessoas jamais fotografadas vivas deixavam instruções de como queriam ser fotografadas depois de mortas. Intentava-se preservar as características de alguém com vida, retocando pele, escolhendo a pose e até mesmo fazendo um retrato em família. Uma das maiores coleções sobre esse tipo de produção fotográfica é a do Thanatos Archive, cuja página na internet dispõe de uma galeria com cerca de 2000 imagens produzidas desde 1840 até o começo do século XX. . Hoje em dia, fotografar um defunto é tabu15 15 . Porém, enviar imagens, por WhatsApp, de corpos destroçados em acidentes e de pessoas assassinadas pelo tráfico, pela polícia ou pelo próprio autor do crime tem sido uma prática corriqueira, ao menos no Brasil. Existem inúmeras campanhas no país contra a circulação e divulgação, por WhatsApp, de imagens de pessoas mortas, tendo sido o caso da morte de um cantor brasileiro de música sertaneja, em 2015, .

A fórmula de pathos warburghiana requeria uma polaridade entre pathos e ethos , entre dionisíaco e apolíneo, entre impulso e racionalidade16 16 . A importância da filosofia de Nietzsche na obra de Warburg tem sido cada vez mais delineada por diversos estudiosos com o intuito de desconstruir os questionamentos acerca das propostas sugeridas por Gombrich nos termos evolucionistas e iluministas e expressas na biografia por ele escrita sobre Warburg. Via, Agamben e Didi-Huberman, para citar autores aqui usados, fazem parte desse hall de pesquisadores interessados em melhorar a compreensão dessa “ciência sem nome” – termo usado por Agamben (2005) para tratar da pesquisa de Warburg. . Portanto, entre uma intensidade emocional arrebatadora, como a morte e o êxtase, e uma precisão representativa, capaz de conter e informar tal emoção devido à não separação entre forma e conteúdo, e, mais claramente, ao “indissolúvel enredo de uma carga emotiva e de uma iconográfica” ( AGAMBEN, 2005AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e la scienza senza nome. In: AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza Ed., 2005, pp.123-146. , p. 125, tradução nossa).

A morte, em Cristo, apesar de uma lamentação, inscreve a celebração porque é a abertura à salvação, ao violento amor de Deus: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia...” ( BÍBLIA, 1959BÍBLIA, N. T. Romanos. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria.141 ed. São Paulo: Ed. Ave-Maria, 1959, cap. 8, vers. 35-36. , cap. 8, vers. 35-36). Interessa depreender a polaridade iluminada por Didi-Huberman quando ele discute a coexistência de dois sentimentos bastante diversos entre si na mesma imagem, no mesmo corpo, no mesmo gesto (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 35). Nas pinturas das lamentações, a violência convertida na dor de Jesus é simultânea ao amor e à promessa da vitória sobre a morte, garantidas pelo Pai. Em Bayard, a simulação do suicídio reacende a memória gestual da iconografia do corpo cristão, podendo ser compreendida como um dinamograma , cujo significado ultrapassa, no século XIX, o pesar, a salvação e o amor para inscrever uma crítica sobre tal sociedade, seus costumes e preferências. De certo modo, lida-se constantemente com a falta e o desejo de algo ou alguém em todas as imagens. Ou, como descrito por Schechner, a violência, a sexualidade e o teatro englobam as duas principais tradições ocidentais, a saber, a grega e a hebraico-cristã, que, segundo o autor, originam-se do grupo de ações ritualísticas e narrativas de sacrífico e fertilidade oriundas do Oriente Médio (SCHECHNER, 1987, p. 6)17 17 . Para maior aprofundamento sobre os três elementos apontados pelo autor, sugere-se a leitura do artigo citado, “The future of ritual”, e do livro homônimo, publicado em 1995. .

Para que amor (sexualidade), morte (violência) e ação (teatro) coabitem o gesto corporal do Cristo desfalecido, percebe-se, no conjunto das imagens reunidas, a presença de outras pessoas ao redor do morto: é assim nas lamentações, na morte do General Wolfe, no sepultamento de Atala, no assassinato de Príamo, em Fading Away , nas gravuras sobre a morte de Sêneca e de Sócrates e nos êxtases de São Francisco, Santa Teresa e Santa Maria Madalena. O amor (desejo, sexo) precisa de um objeto ao qual se endereçar e, quando exacerbado, conduz à idêntica força emocional na morte e no êxtase, sob a qual é preciso agir. Por outro lado, a solidão de Marat, de Chatterton, de She never told her love e de Bayard evidencia, em seu aspecto infértil, a impossibilidade de tal endereçamento devido à distância tomada de um objeto de desejo. São imagens cujo impulso sexual é satisfeito nelas próprias, por isso profanas e impuras frente às demais.

A semelhança da gestualidade do corpo na representação da morte e do êxtase asseveram a existência do Pathosformeln e sua polaridade sobre aparências dinâmicas e estáticas. “As fórmulas de pathos trazem sua vitalidade da funcionalidade do corpo vivo, onde se encontra uma isomorfia entre percepção e ação, entre sentir e agir, entre percepção de si e percepção do mundo, não apenas visual como também motriz” ( MURANO, 2016MURANO, Jessica. Fisiologia del gesto. Fonti warburghiane del concetto di Pathosformel. Aisthesis. Pratiche, Linguaggi e Saperi dell´Estetico, 9(1), 2016, pp. 153-175. , p. 172). Nesse sentido, Cristo e Bayard comungam da mesma isomorfia.

A noção da vida, oriunda da percepção das festas italianas, conforme expõe Via, possibilitou a Warburg um avizinhamento fundamental com as artes performativas como “ações viventes que permitem transfigurar o modelo antigo na esfera artística” (VIA, 2014, pp. 59-60, tradução nossa), e este parece ser um ponto circunjacente ao desenvolvido por Poivert para pensar o fazer artístico de Bayard: sua ligação com o teatro, na imediata vida compartilhada com seu amigo ator, e a fotografia (POIVERT, 2015). Todavia, o desprezo dirigido a Le Noyé se deu, à sua época, pela interpretação da transparência fotográfica como pretensão de fuga ao realismo e, principalmente, pelo incômodo irresolúvel instaurado à Razão em função de uma verdade, visto seu registro mecânico, e de uma mentira, porque encenada ( POIVERT, 2016POIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia? / trad. Fernanda Verissimo. Revista Porto Arte, 21(35), 2016, pp.103-114. , p. 106).

Tais ações vivas se assemelham ao conceito de comportamento restaurado elaborado por Schechner em seus performance studies , pois, de acordo com o autor, essa conduta presente no teatro, na dança ou na música também acontece na vida diária, assim como o jogo e o ritual ( SCHECHNER, 2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002. )18 18 . O termo “comportamento restaurado” era chamado pelo autor de “comportamento ritualizado” em seu livro Essays on performance theory . . “O comportamento ritualizado engloba toda a gama de ação humana, mas a performance é uma particular arena aquecida do ritual, e o teatro, o script , e o drama são áreas compactas e aquecidas da performance” (Idem, 1994, p. 95, tradução nossa). A dificuldade descrita por Poivert em relação ao entendimento da coexistência do real e do ilusório pode ser entendida pelo caráter desse comportamento restaurado, o qual “tem a qualidade de não ser inteiramente ‘real’ ou ‘sério’. O comportamento restaurado é condicional; pode ser revisado” ( SCHECHNER, 2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002. , p. 79, tradução nossa).

A gestualidade corporal de Bayard torna evidente a relação ritualística cristã, cuja fronteira com a vida diária estava em vias de desaparecimento no Oitocentos, e talvez esse tenha sido o motivo para dois problemas atuais: o primeiro, em compreender a indistinção entre vida e arte – principalmente depois da obra de arte ter adquirido um valor em si com o Renascimento19 19 . Questão bastante explorada pelas teorias da arte, chegando ao seu apogeu nesses estudos a partir dos anos 1960. –, e o segundo – interesse da discussão –, em reconhecer a presença do jogo como estrutura de pensamento. Inicialmente, as pesquisas produzidas na busca por uma definição do jogo chegam a uma conclusão comum: trata-se de um termo de difícil demarcação. Sua maleabilidade ou inconstância o dotam de uma variação sem fim ao se considerar a diversidade de culturas existentes. Por esse viés, indagar “qual é a relação entre a vida de um período e o modo com o qual o homem é representado na arte desse período e como tudo isso se conecta com a concepção de vida de um indivíduo?” (WARBURG apud VIA, 2014VIA, Claucia C. Introduzione a Aby Warburg. eBook. Bari: Latterza, 2014. , p. 61, tradução nossa) soa necessário e urgente ainda hoje.

Tendo em vista o gráfico de Schechner (1994SCHECHNER, Richard. Performance theory. Nova York: Routledge, 1994. , p. 72) sobre o drama, o script , o teatro e a performance, fica mais fácil entender a dimensão e a abrangência desta última. Os três primeiros são partes da performance, e o jogo, tal qual o ritual, é o seu coração (Ibidem): “jogar – fazer algo que ‘não seja de verdade’ – está, como o ritual, no coração da performance” (Idem, 2002, p. 79, tradução nossa)20 20 . “Not for real”, no original em inglês, não significa ausência de seriedade, de compromisso, ou, de modo genérico, uma ação teatralizada em sentido depreciativo. Ao contrário, esse ponto do “não ser de verdade” estabelece o elo necessário para o jogo artístico, cujo intuito é sempre levado a sério por seus propositores. . Como esclarece Poivert, a fotografia teatralizada, a partir dos anos 2000, enfatizou a história geral da representação ao constituir-se como a parte mais emblemática de uma fotografia chamada contemporânea. E, ademais, essas imagens encenadas propuseram a anulação do extracampo fotográfico. A partir de então, “tudo está dentro da imagem, sem necessidade de dar sentido ao fora” ( POIVERT, 2011POIVERT, Michel. La fotografia contemporanea. Turim: Giulio Einaudi, 2011. , pp. 209-210). Le Noyé pode ser interpretada sob esse prisma, pois a capacidade crítica e histórica do desenvolvimento da teoria fotográfica só alcançou esse entendimento dos anos 1990 em diante.

Bayard opera um jogo artístico genuíno ao promover, de um lado, o encontro entre a espontaneidade do jogo, as tradições ocidentais e a fotografia e, de outro, uma manipulação consciente das regras desses sistemas à sua intenção, porquanto “onde não houver o artifício, não há arte” ( SCHECHNER, 1987SCHECHNER, Richard. The future of ritual. Journal of Ritual Studies, 1(1), 1987, pp. 5-33. , p. 11, tradução nossa)21 21 . O artifício deve ser pensado como uma substância artística, algo sério, e não no sentido simplista de enganação, mas naquele da simulação, dicionarizado em língua portuguesa. . Seu autorretrato, muito antes de ser a reivindicação de um reconhecimento, é, acima de tudo, o atestado de sua máxima e plural existência; especialmente no campo da arte, onde seu pioneirismo e originalidade devem não apenas ser amplamente reconhecidos, mas aprofundados de acordo com o entendimento hoje possível. “O jogo é intrinsicamente parte da performance porque cria o ‘como se’, a atividade de risco do faz de conta” ( SCHECHNER, 2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002. , p. 81, tradução nossa) que, em Bayard, tonifica o corpo da “transformação da memória em desejo, do passado em futuro, ou então da tristeza em alegria” ( DIDI-HUBERMAN, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? / trad. Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016. , p. 44). A imagem-texto de Bayard implica as intensas “experiências da emoção humana na inteira gama de sua polaridade trágica, do comportamento passivo no sofrimento até aquele ativo na vitória” (WARBURG apud VIA, 2014VIA, Claucia C. Introduzione a Aby Warburg. eBook. Bari: Latterza, 2014. , p. 158, tradução nossa). A afirmação contundente e primeva de Bayard é única: a fotografia é um jogo simulatório.

Bibliografia

  • AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e la scienza senza nome. In: AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza Ed., 2005, pp.123-146.
  • ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média / trad. Pedro Jordão. Teorema: Lisboa, 1989.
  • BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação / trad. Maria J. da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água, 1991.
  • BÍBLIA, N. T. Romanos. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria.141 ed. São Paulo: Ed. Ave-Maria, 1959, cap. 8, vers. 35-36.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? / trad. Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34, 2016.
  • FEJÉRVÁRI, Boldizsár. From Fake Lit to the Value of Real Nightingales: An Interview with Nick Groom. The AnaChronisT, 17(1), 2012, pp. 279-297.
  • GROOM, Nick. The Death of Chatterton. In: HEYS, Alistais. From Gothic to Romantic: Thomas Chatterton’s Bristol. Bristol, Londres: Redcliffe Press, 2005, pp.116-125.
  • HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média / trad. Francis Petra Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • MURANO, Jessica. Fisiologia del gesto. Fonti warburghiane del concetto di Pathosformel. Aisthesis. Pratiche, Linguaggi e Saperi dell´Estetico, 9(1), 2016, pp. 153-175.
  • POIVERT, Michel. La fotografia contemporanea. Turim: Giulio Einaudi, 2011.
  • POIVERT, Michel. Brève histoire de la photographie. Paris: Hazan, 2015.
  • POIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia? / trad. Fernanda Verissimo. Revista Porto Arte, 21(35), 2016, pp.103-114.
  • SCHECHNER, Richard. The future of ritual. Journal of Ritual Studies, 1(1), 1987, pp. 5-33.
  • SCHECHNER, Richard. Performance theory. Nova York: Routledge, 1994.
  • SCHECHNER, Richard. Performance Studies. An introduction. Nova York: Routledge, 2002.
  • VIA, Claucia C. Introduzione a Aby Warburg. eBook. Bari: Latterza, 2014.

Bibliografia complementar

  • ROSS, Alf. Grandeza y Decadencia de la Doctrina de las Expresiones Realizativas. In: ROSS, Alf. El Concepto de Validez y Otros Ensayos. Mexico, D.F.: Fontamara, 2006, pp. 93-115.
  • SCHECHNER, Richard. Essays on performance theory. New York, Drama Publishers, 1976.
  • SCHECHNER, Richard. The Future of Ritual: Writings on Culture and Performance. New York: Routledge, 1995.
  • 1
    . Vale ressaltar que a primeira monografia sobre Bayard foi escrita por Joseph-Marie Lo Duca e publicada com o nome do fotógrafo estudado, em 1943. Tem-se, portanto, um lapso temporal de 103 anos para que as imagens de Bayard começassem a circular. Entretanto, é apenas no momento em que surge a Body Art e outros movimentos das artes do corpo, como o Fluxus e o Acionismo Vienense, que as teorias sobre a performance começam a se delinear mais profundamente, possibilitando hoje um olhar atualizado sobre as proposições artísticas do passado.
  • 2 . Por não ser foco do texto, os problemas teóricos de Austin podem ser melhor esclarecidos no capítulo do livro de Ross indicado na bibliografia complementar.
  • 3
    . Frase inicial do texto escrito por Bayard na frente de uma das três fotografias.
  • 4
    . The pencil of nature é o nome do livro feito por Talbot a partir de sua descoberta de um sistema negativo-positivo, em papel, na Inglaterra. Talbot perseguia também a representação do mundo natural com objetividade e, diverso ao daguerreotipo, cria um sistema capaz de reproduzir a mesma imagem irrestritamente a partir de um negativo.
  • 5
    . Trata-se da referência do próprio Poivert a um texto de 2002 de sua autoria, citada por ele nesse artigo de 2016, o que explica suas preocupações serem anteriores aos outros textos aqui utilizados, e não posteriores. O autor não exclui a presença do riso e do humor, considerados inaugurais no trabalho de Olympe Aguado e explica: “o riso é moderno, e a imagem encenada, por seu caráter artificial, inventa de uma certa maneira o burlesco em imagem” ( POIVERT, 2016POIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia? / trad. Fernanda Verissimo. Revista Porto Arte, 21(35), 2016, pp.103-114. , p. 110).
  • 6
    . Os dois últimos trechos entre aspas se referem ao texto escrito por Bayard, que acompanha a imagem de seu autorretrato. O texto está disponível no site da Société Française de Photographie. Disponível em: https://sfp.asso.fr/blog-collection/public/FRSFP_0024IM_269_H_001.jpg . Acesso em: 22 mai. 2018. Tradução nossa.
  • 7
    . Lavoisier foi executado na guilhotina como resposta aos anseios da Revolução Francesa, sobretudo após a publicação de uma nota no jornal L´Ami du peuple que ligava o pai da química moderna ao sistema da Ferme Généra l, tão odiado pelos que ocupavam o poder naquele momento. Lavoisier já era reconhecido, mas sua morte e o modo como seu cadáver foi tratado parecem dialogar com o mesmo descaso levantado por Bayard. Ironicamente, o feitiço se voltou contra o feiticeiro, e Marat, cujas incitações jornalísticas levaram Lavoisier à guilhotina como um “inimigo do povo”, foi assassinado pela Sra. Corday, de partido e ideologia contrários aos seus, enquanto estava imerso na banheira para cuidar de uma doença de pele. Ocorre, tanto com Lavoisier quanto com Marat, a supervalorização dos seus nomes e caráteres para, em seguida, serem banidos em razão das mudanças ocorridas nas estruturas do poder sociopolítico e, posteriormente, serem de novo reconhecidos pelo governo – o qual, por sua vez, encomenda celebrações de diversos tipos para realocá-los na história.
  • 8
    . No livro Burning with Desire: The Conception of Photography, escrito por Geofrey Batchen em 1997, o autor defende o interesse de Bayard pelo teatro e sua proximidade com o Comédie-Française.
  • 9
    . Foi William Wordsworth (1770-1850) quem concedeu a Chatterton tal denominação.
  • 10
    . A ideia da morte de si próprio está vinculada ao sentimento de fracasso tratado anteriormente. Para Ariès (1989ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade Média / trad. Pedro Jordão. Teorema: Lisboa, 1989. , p. 95), “o homem de hoje não associa a sua amargura à morte”. E é justamente a frustração que inaugura um plano de futuro em função da biografia, ou seja, da consideração de “uma vida individual como objeto duma previsão voluntária” (Ibidem, p. 95). O autor fala que, desde o século XII, há a progressão para o entendimento de que cada morte representa uma biografia diferente. E, para indicar algo que aparecerá na discussão logo adiante, a transformação frente à morte não para, a ponto de, durante os séculos nos quais viveram Chatterton e Bayard, ser tratada como, ou convertida em, medo e prazer, aos quais aparecia também associada. Contudo, o medo em específico se afirmará somente no século XIX, mas o prazer é bastante explorado desde o século XVI, tendo seu auge no século XVIII, anterior à interdição da morte no Ocidente.
  • 11
    . Para tentar estabelecer uma relação mais adequada com a leitura de que a pose de Bayard se aproximava sobretudo daquelas de Cristo deposto da cruz, iniciou-se uma busca por diversos trabalhos artísticos cujas figuras tivessem características formais em correspondência direta com aquela fotografia e, aos poucos, percebeu-se sua proximidade também com as cenas de êxtase. Destarte, por associação, uma imagem foi levando a outra, de modo que se chegou a um painel composto por 27 imagens (a numeração foi feita da esquerda para a direita e de cima para baixo; ver figura 1 , p. 190-191): 1 - Peter Paul Rubens, Saint Mary Magdalene in Ecstasy , 1619-1620; 2 - Petrus Christus, The Lamentation over the Dead Christ, 1455-1460; 3 - Benjamin West, The Death of General Wolfe , 1770; 4 - Caravaggio, Francis of Assini in Ecstasy, ca. 1594; 5 - Hippolyte Bayard, Le Noyé, 1840; 6 - Benjamin West, Study of the Lamentation on the Dead Christ, ca. 1785; 7 - Ânfora de barro atribuída ao pintor de Nikoxenos, ca. 500 a.C.; 8 - Sandro Botticelli, Lamentation over the Dead Christ, 1495-1500; 9 - Jusepe de Ribeira, The Lamentation over the Dead Christ , início da década de 1620; 10 - Peter Candid, The Lamentation over the Dead Christ , c.1585-86; 11 - Pierre Peyron, The Death of Socrates , 1790; 12 - Anthony van Dyck, Lamentation over the Dead Christ , ca. 1634-1640; 13 - Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson, The Entombment of Atala , 1808; 14 - Pier Francesco Mazzucchelli (Morazzone), The Ecstasy of Saint Francis , ca. 1615; 15 - Jacques-Louis David, The Death of Marat, 1793; 16 - Luisa Roldán (La Roldana), The Ecstasy of Saint Mary Magdalene , ca. 1690; 17 - Bernini, Ecstasy of Saint Teresa, 1647-52; 18 e 19 - Henry Pech Robinson, Fading Away, 1858, e She Never Told Her Love , ca. 1858; 20 - Henry Wallis, Chatterton, 1856; 21 - Daniel Orme, Edward Orme, Henry Singleton, The Death of Chatterton , 1794; 22 - Philippe de Champaigne, Lamentation over the Dead Christ , sem data; 23 - Jean Guillaume Moitte, The Death of Seneca , sem data; 24 - Giovani Baglioni, The Ecstasy of Saint Francis , 1601; 25 - Guercino (Giovanni Francesco Barbieri), The Entombment, ca. 1656; 26 - Andrea Solari, Lamentation over the Dead Christ, ca. 1509; 27 - Nicolas Tournier, The Descent from the Cross , 1632-1635.
    Figura 1
    Autoria própria Painel para análise do Pathosformeln , 2018. 95 x 160 cm, Salvador.
  • 12
    . Sugere-se visitar o site do Metropolitam Museum of Art, em Nova York, para visualizar o vaso em terracota que integra o painel elaborado. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/247265?sortby=relevance&amp ; when =1000+b.c.-a.d.+1&where=greece&what=terracotta&who=nikoxenos+painter%24nikoxenos+painter&ft=amphora%5d&offset=0&rpp=20&pos=1. Acesso em: 5 abril 2018.
  • 13
    . As datas dos livros de Ariès, Morin e Huizinga se referem às traduções para o português: 1997, 1989 e 2010, respectivamente. Entretanto, Huizinga foi quem primeiro se debruçou sobre esses aspectos, visto a primeira edição de seu estudo, em 1919.
  • 14
    . As imagens de pessoas mortas tiveram seu ápice durante as décadas de 1870 e 1880. Pessoas jamais fotografadas vivas deixavam instruções de como queriam ser fotografadas depois de mortas. Intentava-se preservar as características de alguém com vida, retocando pele, escolhendo a pose e até mesmo fazendo um retrato em família. Uma das maiores coleções sobre esse tipo de produção fotográfica é a do Thanatos Archive, cuja página na internet dispõe de uma galeria com cerca de 2000 imagens produzidas desde 1840 até o começo do século XX.
  • 15
    . Porém, enviar imagens, por WhatsApp, de corpos destroçados em acidentes e de pessoas assassinadas pelo tráfico, pela polícia ou pelo próprio autor do crime tem sido uma prática corriqueira, ao menos no Brasil. Existem inúmeras campanhas no país contra a circulação e divulgação, por WhatsApp, de imagens de pessoas mortas, tendo sido o caso da morte de um cantor brasileiro de música sertaneja, em 2015,
  • o
    primeiro evento a acender essa discussão. Há, inclusive, um projeto de lei em tramitação, desde 2017, na Comissão de Constituição e Justiça que prevê o aumento da pena para pessoas envolvidas em compartilhamento de fotografias de mortos
  • 16
    . A importância da filosofia de Nietzsche na obra de Warburg tem sido cada vez mais delineada por diversos estudiosos com o intuito de desconstruir os questionamentos acerca das propostas sugeridas por Gombrich nos termos evolucionistas e iluministas e expressas na biografia por ele escrita sobre Warburg. Via, Agamben e Didi-Huberman, para citar autores aqui usados, fazem parte desse hall de pesquisadores interessados em melhorar a compreensão dessa “ciência sem nome” – termo usado por Agamben (2005)AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e la scienza senza nome. In: AGAMBEN, Giorgio. La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza Ed., 2005, pp.123-146. para tratar da pesquisa de Warburg.
  • 17
    . Para maior aprofundamento sobre os três elementos apontados pelo autor, sugere-se a leitura do artigo citado, “The future of ritual”, e do livro homônimo, publicado em 1995.
  • 18
    . O termo “comportamento restaurado” era chamado pelo autor de “comportamento ritualizado” em seu livro Essays on performance theory .
  • 19
    . Questão bastante explorada pelas teorias da arte, chegando ao seu apogeu nesses estudos a partir dos anos 1960.
  • 20
    . “Not for real”, no original em inglês, não significa ausência de seriedade, de compromisso, ou, de modo genérico, uma ação teatralizada em sentido depreciativo. Ao contrário, esse ponto do “não ser de verdade” estabelece o elo necessário para o jogo artístico, cujo intuito é sempre levado a sério por seus propositores.
  • 21
    . O artifício deve ser pensado como uma substância artística, algo sério, e não no sentido simplista de enganação, mas naquele da simulação, dicionarizado em língua portuguesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2018
  • Aceito
    25 Jun 2020
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br