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O DIREITO DE OLHAR A PARTIR DE FOUCAULT, SPIVAK E MBEMBE

THE RIGHT TO LOOK FROM FOUCAULT, SPIVAK, AND MBEMBE

EL DERECHO A MIRAR DESDE FOUCAULT, SPIVAK Y MBEMBE

RESUMO

Este ensaio adota o pensamento foucaultiano como base para propor um recuo teórico em torno da noção de “direito de olhar” enquanto reivindicação de uma posição nas lutas sobre “como ver”. Após contextualizar o certame, reviso dois textos pontuais que cotejam Foucault: Pode o subalterno falar?, de Gayatri Spivak, e Necropolítica, de Mbembe. Do primeiro, depreendo a ideia geral de que o direito de olhar é o contrário do direito de “ver sem ser visto”. Do segundo, deduzo uma função de opacidade e de gestão da invisibilidade que a necropolítica exerce em conjunção com a biopolítica. Por fim, sustento que, se todo “ver” depende de um “não ver”, o direito de olhar reivindica uma posição que está sempre por construir.

visualidade; subalternidade; necropolítica; invisibilidade

ABSTRACT

This essay adopts Foucault’s thinking as a basis to deepen the notion of the “right to look” while claiming a position in the debate on “how to see”. After contextualizing the subject, I review two specific texts that criticize Foucault: Can the Subaltern Speak? by Gayatri Spivak, and Necropolitics by Mbembe. From the first, I extract the general idea that the right to look is the opposite of the right to “see without being seen”. From the second, I deduce an opacity and invisibility management function that the necropolitics exerts in conjunction with biopolitics. Finally, I argue that, if all “seeing” depends on “not seeing”, the right to look demands a position that is always to be built.

Visuality; Subordination; Necropolitics; Invisibility

RESUMEN

Este ensayo adopta el pensamiento foucaultiano como base para proponer un estudio teórico del “derecho a mirar” en cuanto derecho a una posición en las luchas sobre “cómo ver”. Después de contextualizar el tema, reviso dos textos específicos que critican a Foucault: ¿Puede hablar el subalterno?, de Gayatri Spivak, y Necropolítica, de Mbembe. Desde Spivak extraigo la idea general de que el derecho a mirar es lo opuesto al derecho a “ver sin ser visto”. Desde Mbembe deduzco una función de gestión de la opacidad y la invisibilidad ejercida por la necropolítica, en paralelo a la biopolítica. Finalmente, sostengo que, si todo “ver” depende de “no ver”, el derecho a mirar exige una posición siempre por construir.

visualidad; subordinación; necropolítica; invisibilidad

INTRODUÇÃO

A contra-visualidade propriamente dita é a reivindicação do direito de olhar. É o dissenso com a visualidade, significando uma disputa sobre o que é visível enquanto elemento de uma situação, sobre quais elementos visíveis pertencem ao comum, sobre a capacidade dos indivíduos para identificar este comum e reivindicá-lo.

(MIRZOEFF, 2011MIRZOEFF, Nicholas. The right to look: A Counterhistory of Visuality. Durham: Duke University Press, 2011, p. 24., p. 24) 1 1 . Este e os próximos trechos que, no original, são de língua inglesa foram aqui livremente traduzidos por mim.

Ao falar em termos de “direito de olhar”, Nicholas Mirzoeff salienta que não se trata de uma reivindicação do tipo “direito à liberdade”, como na prédica da Revolução Francesa, pois o olhar faz alusão, aqui, a algo mais elementar: o direito à existência, que o autor associa à Revolução Haitiana. Não custa lembrar, nesse ínterim, que os Estados Unidos, uma vez já independentes da Grã-Bretanha, recusaram-se a reconhecer a independência do Haiti, posto que esta decorrera diretamente de uma rebelião bem-sucedida de escravos. A diferença entre liberdade e existência, portanto, é não só aquela entre um conceito abstrato e um concreto, mas antes entre reconhecer ou não uma determinada existência. Eis o direito de olhar que, na flexão inglesa (right to look), também sugere “direito de parecer” (to look like) tanto quanto “direito de procurar/buscar” (to look for).

É isso o que reivindicava Rosa Parks em 1955, ao se recusar a ceder aos brancos o seu lugar no ônibus2 2 . Ver, a esse respeito, “Rosa Parks Biography”. Academy of Achievement, Dezembro 10, 2019. Disponível em: https://achievement.org/achiever/rosa-parks/. Acesso em: 28 abr. 2020. . E também W.E.B. Du Bois, ao dizer em 1903 que os escravos norte-americanos deveriam se libertar por meio de uma greve geral, em vez de se deixarem emancipar passivamente3 3 . Ver, a esse respeito, DU BOIS (1994). . Não por acaso, pois, a figura do indivíduo escravizado é contraparte emblemática ao “direito de olhar”: o escravizado não só não possui direito algum, como também está sujeito à vigilância constante ligada ao direito de punição por parte de seu proprietário. É o olhar (gaze) que, a um só tempo, anula todos os direitos do escravizado e sustenta o direito de se puni-lo. Por mais que se diga que não há mais escravidão hoje – o que é uma grande mentira4 4 . De acordo com Kevin Bales, em 2012 já havia mais escravos do que em qualquer outro momento da história da humanidade. O sociólogo elenca cinco focos geográficos da escravidão contemporânea: prostituição na Tailândia, venda de água em Mauritânia, produção de carvão no Brasil, agricultura na Índia e fabricação de tijolos no Paquistão. Ver, a esse respeito, BALES (2012). –, resta patente o olhar a partir do qual todos os negros continuam sendo vistos sob suspeita, isto é, como culpados até que se prove o contrário.

O que aí está em jogo é, mais do que leis, liberdades ou representatividades, uma questão de visualidade, dos modos de ver determinada existência. Ao dizer isso, obviamente não se trata de diminuir a importância das lutas históricas e ainda prementes em torno de leis, liberdades e representatividades; fato é que certos modos de ver (os negros, as mulheres, os imigrantes etc.) – olhares estes que historicamente já foram indagados e combatidos, mas que persistiram à espreita – mostram-se hoje revigorados não somente na vida cotidiana, mas sobremaneira em políticas corporativas, institucionais e governamentais. Pressuponho, ademais, que tal dimensão política da visualidade vem ao encontro do horizonte crítico das práticas artísticas contemporâneas, cuja vocação emancipatória já não mira estritamente (se é que um dia fora estrita) às convenções e à instituição da arte, mas se estende aos modos de existir, às formas de tornar visível e invisível, ao confronto de forças visuais, discursivas e de poder.

Neste ensaio, embora eu adote como ponto de partida o conceito de “contravisualidade” enquanto reivindicação pelo direito de olhar, pretendo traçar um recuo conceitual em vez de efetivamente comentar a proposta de Mirzoeff ou dialogar com ela. Isso porque a base teórica que sustenta tal proposta, articulando Foucault e Mbembe, tende a suscitar uma contenda que passa suprimida em Mirzoeff e que merece ser explorada: de um lado, Foucault, além de nunca ter se debruçado detidamente sobre a visualidade, foi alvo de crítica nos chamados estudos pós-coloniais e da subalternidade; de outro, Mbembe também opera uma leitura crítica à Foucault, especialmente ao conceito de biopolítica, e adota Frantz Fanon como principal base teórica. Mediante o certame, proponho revisar o texto Pode o subalterno falar?, de Gayatri Spivak5 5 . Edição consultada: SPIVAK (2010). A escolha do texto se deve não apenas à sua influência no âmbito dos estudos pós-coloniais e da subalternidade, mas sobretudo por sintetizar, de maneira contundente (mas apressada, como argumento a seguir), muitas das críticas e impasses epistemológicos em torno de Foucault. , e, na sequência, o conceito de “necropolítica”, de Mbembe6 6 . Edição consultada: MBEMBE (2018). Esse ensaio sintetiza boa parte das ideias que o autor desenvolve com maior afinco noutros livros como Crítica da razão negra, Sair da grande noite e Políticas da inimizade. (sem abordar, no entanto, sua influência fanoniana)7 7 . Isso apenas por delimitação de espaço e escopo. Quanto à influência de Fanon em Mbembe, cf. NOGUERA (2018). Ver também, sobre uma possível aproximação entre Fanon e Foucault, LORENZINI; TAZZIOLI (2016). . Com isso, não é meu intuito “justificar” a base teórica de Mirzoeff, mas sim mostrar como a filosofia de Foucault, a despeito da leitura apressada que a circunscreve desde o início, permanece relevante ao estudo da visualidade e da contravisualidade.

Antes de tudo, porém, devo pontuar uma ressalva sobre o que me parece ser um limite intransponível: sendo eu um homem branco com uma formação densamente eurocêntrica, ao falar de autores e autoras alheios a esse olhar privilegiado, arrisco “colonizá-los” novamente pelo simples fato de pensar, querendo ou não, sob o prisma que historicamente os colonizou. Uma vez ciente disso, não pretendo tomá-los por objetos de análise, tampouco engajar-me em questões que lhes são caras, mas apenas expor uma leitura particular e, com isso, os limites de meu olhar. Acredito que esse tipo de exposição seja relevante não por confrontar os textos ora elencados, mas antes por insistir que há sempre algo mais a ser criticamente confrontado – o que não implica negar o valor do que se critica. Afinal, como insistia Foucault, aquilo que somos e pensamos também procede do que resistimos pensar e ser.

A NÃO REPRESENTAÇÃO DO SUBALTERNO

Note-se como, a princípio, a questão da “representatividade” parece estar mais atrelada ao domínio discursivo que ao da visualidade: uma noção como a de “lugar de fala”, embora faça alusão a algum lugar ou ponto de vista, dirige-se mais ao questionamento sobre como algumas vozes soam naturalmente dotadas de autoridade enquanto outras permanecem relegadas ao descrédito. Dito de outro modo, o que determina sobre o que se pode falar não é tanto o lugar de onde se vê o mundo, mas antes o lugar de onde (não) se fala e de onde (não) se é visto. Conforme apontei noutro momento8 8 . Ver, a esse respeito, BECCARI (2018). , essa querela estritamente discursiva à qual o lugar de fala tende a remeter mostra-se suscetível à contradição normativa de uma fala que contesta a partir de um lugar inconteste. Ao menos é este, de modo geral, o argumento pós-estruturalista contra o essencialismo discursivo de certas estratégias de visibilidade9 9 . Para Hal Foster, “existem perigos nessa localização da verdade, tais como a restrição de nosso imaginário político a dois campos, os abjetores e os abjetados, e o pressuposto de que, para não ser incluído entre os sexistas e racistas, é preciso se tornar o objeto fóbico desses sujeitos” FOSTER (2014, p. 157). E, como adverte o sociólogo Antonio Engelke, “rejeitar a noção de que seja possível falar sobre o mundo a partir de um lugar desinteressado não nos obriga a ‘escolher um lado’ e aderir acriticamente a ele” ENGELKE (2017, p. 45). Ou seja, uma coisa é questionar as premissas e finalidades de determinado discurso, e outra, bem diferente, é atacá-lo (ou acatá-lo) de antemão – nesse segundo caso, a adesão ou ataque só reitera o lugar em que as coisas ditas são discursivamente situadas. Nas palavras de Donna Haraway, “os posicionamentos dos subalternos não estão isentos de uma reavaliação crítica, de decodificação, desconstrução e interpretação [...] As perspectivas subalternas não são posições inocentes”. HARAWAY (1988, p. 584). .

Gayatri Spivak10 10 . Filósofa indiana responsável pela primeira tradução inglesa de Gramatologia, de Derrida. Leciona na Columbia University desde 1991. Em decorrência do ensaio aqui abordado, Spivak é por muitos considerada uma das fundadoras dos estudos pós-coloniais, reconhecimento este que a autora se recusa a aceitar. Ver, a esse respeito, SPIVAK (1999). , todavia, argumenta que essa lógica pós-representacional também pode esconder em si uma perspectiva essencialista: a do intelectual benevolente que concede ao subalterno o direito de falar aquilo que, na verdade, somente o intelectual pode dizer. Eis a provocação enunciada em “Pode o subalterno falar?”, de 1983, título que se revela propositalmente ambíguo, sobretudo no original “Can the Subaltern Speak?” – ao adotar o verbo can, a autora atribui ao “pode” tanto um sentido de permissão (“ser autorizado a”) quanto de aptidão (“ser capaz de”). Essa dupla acepção é fundamental ao argumento ali traçado, como no exemplo nodal de uma jovem indiana cuja voz é duplamente interditada, primeiro por ser mulher e segundo por ter se enforcado mediante uma tradição religiosa que só admite o suicídio de viúvas. Por sua vez, o sentido de “subalterno” é também duplo: primeiro, como representação do “Terceiro Mundo” sob o discurso ocidental11 11 . A expressão “Terceiro Mundo”, vale lembrar, é própria da Guerra Fria, período em que se insere o texto de Spivak. Não seria adequado, porém, transpor esse termo para a categoria de “países subdesenvolvidos”. Pois, ao falar de um discurso ocidentalizado, a autora parece se referir, antes, a países historicamente colonizadores (a chamada Europa Ocidental), de modo que o “Terceiro Mundo” (e, por extensão, a “subalternidade”) remete aos países que foram colonizados. ; segundo, no léxico de Antonio Gramsci: aquele/a cuja voz não é ouvida.

Mas o título seria mais claro se fosse “Pode o intelectual falar?”. Afinal, se o subalterno, por definição, não pode falar (como é fixado de saída), a autora dedica a maior parte do livro para criticar Foucault e Deleuze pelo fato de, sob a leitura dela – que se detém no debate “Os intelectuais e o poder” (FOUCAULT, 2018, pp. 129-142) –, tais filósofos falarem pretensamente em nome dos subalternos: “ao representá-los, os intelectuais representam a si mesmos como transparentes” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 41). O argumento suscita, a princípio, um disparate imediato: no decorrer desse mesmo diálogo analisado por Spivak – e também noutros momentos12 12 . Ver, por exemplo, “Verdade e poder” (FOUCAULT, 2018, pp. 35-54) e “A Função Política do Intelectual” (Idem, 2011, pp. 213-219). –, Foucault critica precisamente o intelectual que se coloca num lugar pretensamente neutro e externo aos jogos de poder. Mais detidamente, os principais pontos defendidos por Foucault e Deleuze em “Os intelectuais e o poder” podem ser assim resumidos: (1) os intelectuais de esquerda não representam as massas, pois estas sabem melhor do que eles sobre si mesmas; (2) quem fala e quem atua é sempre uma multiplicidade, nunca um sujeito ou uma classe; (3) existe um sistema de poder que interdita o saber das massas; (4) o alvo geral das lutas populares não se resume à exploração do trabalho, pois abrange muitas outras formas de poder; (5) o papel do intelectual consiste em reconhecer e lutar contra as formas de poder que o tornam, a um só tempo, objeto e instrumento do poder; (6) isso implica, dentre outras coisas, encarar a teoria sempre como uma prática local e parcial, não universal e totalizante13 13 . Este último ponto, diga-se de passagem, vem ao encontro da proposta de Donna Haraway (1988) em seu conhecido texto “Situated Knowledges”, a ser retomado no fim deste capítulo. .

Em nenhum momento, portanto, os interlocutores se propõem a falar em nome dos subalternos; ao contrário, defendem que estes tenham meios para falar por si mesmos. A crítica de Spivak, porém, mira no que estaria nas entrelinhas dessa defesa daqueles que “falam por si mesmos”: tal reconhecimento se daria por uma espécie de benevolência intelectual que, segundo a autora, serve para reafirmar implicitamente o sujeito colonizador. Assim, a recusa dos filósofos em representar os subalternos produziria uma falsa transparência própria da retórica dos “profetas da heterogeneidade e do Outro” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 29).

Ora, aparentemente, esse rótulo poderia ser aplicado a todo intelectual que meramente mencione qualquer tipo de “outro”14 14 . Inclusive a própria Spivak. Quando, por exemplo, ela faz a ressalva de que “o caso indiano não pode ser tomado como representativo de todos os países, nações e culturas que podem ser invocados como o Outro da Europa” (SPIVAK, 2010, p. 63), a autora também lança mão de uma retórica da transparência em nome da heterogeneidade. De resto, a acusação de que Foucault e Deleuze “introduzem novamente o sujeito indivisível no discurso do poder” (SPIVAK, 2010, p. 35) parece ecoar Derrida, além de ser algo como uma “cartada” padrão que os pós-estruturalistas investiam amiúde uns contra os outros. , de tal maneira que, para evitar o embuste, os filósofos ocidentais não deveriam falar sobre nada que não diga respeito ao Ocidente. No limite, é como dizer que ao olhar eurocêntrico não resta outra opção além de permanecer enquanto tal. Em segundo lugar, embora o rótulo de “profeta” seja adequado a Deleuze (como eu argumento noutro momento)15 15 . Ver, a esse respeito, BECCARI (2019). , não haveria nada mais alheio a Foucault, que desde o início manteve-se reticente a noções como Outro e diferença16 16 . Em um famoso debate com os maoístas, por exemplo, ele insistia em dizer “eu não sei nada sobre a China”. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2018, pp. 87-128). O único lugar em que vemos uma diminuta alusão ao não ocidental reside no prefácio de As palavras e as coisas, ao mencionar uma enciclopédia chinesa – retirada de um conto de Jorge Luis Borges. Foucault não partilhava, portanto, do “exotismo” que de fato era exaltado entre os chamados pós-estruturalistas: a escrita chinesa em Derrida, as mulheres chinesas em Kristeva, o Japão em Barthes, o nomadismo em Deleuze. . Ao adotar, por exemplo, categorias como “loucos” e “anormais”, Foucault sempre as localiza no interior, como parte constitutiva, da episteme francesa17 17 . Quanto a isso, Spivak questiona: “Mas, e se essa redefinição específica tiver sido apenas uma parte da narrativa da história na Europa, assim como nas colônias? E se os dois projetos de revisão epistêmica funcionavam como partes deslocadas e desconhecidas de uma vasta máquina operada por duas mãos?”. SPIVAK (op, cit., p. 61). Novamente, é uma leitura apressada que requer pressupostos generalizantes, semelhante ao modo como Jean Baudrillard, por exemplo, em À sombra das maiorias silenciosas, encara o marxismo como um imperialismo conceitual que serve de “álibi” para o capitalismo. .

Ademais, há um claro cisma prévio que Spivak não faz questão de disfarçar: “a especulação ‘genealógica’ [...] criou uma resistência lamentável no trabalho de Foucault à ‘mera’ crítica ideológica” (Ibidem, 2010, p. 32, grifo meu). O cisma se deve, eu suponho, ao famoso embate entre Foucault e Derrida (o grande mentor intelectual de Spivak) travado nos anos 1960 em torno de Descartes18 18 . O debate se iniciou em 1963, em uma conferência proferida no Collège Philosophique, em que Derrida criticou a leitura de Foucault, em sua História da loucura, acerca das Meditações metafísicas de Descartes. Passados oito anos da conferência, Foucault decide responder a Derrida, conforme sintetiza Roberto Machado: “Primeiro, retomando ponto por ponto sua argumentação para refutá-la, comparando-a ao próprio texto de Descartes; segundo, e mais fundamentalmente, denunciando seu método por reduzir as práticas discursivas a traços textuais, em vez de situá-las no campo das transformações em que elas se dão, como se nada houvesse fora do texto e de sua estrutura interna” MACHADO (2017, p. 192). . Na ocasião, uma das principais críticas de Foucault (que se aplicaria, a meu ver, inteiramente a Spivak)19 19 . Pois a lógica de Pode o subalterno falar? se ampara declaradamente em Derrida, que “marca a crítica radical contra o perigo de se apropriar do outro por assimilação” (SPIVAK, 2010, p. 164) – o que abre uma questão imediata: tal assimilação insidiosa não residiria, antes, na fórmula derridiana de que não há nada fora do texto? É igualmente curioso o quanto Spivak tenta “assimilar” algo que, como ela própria diz, não se encontra naquilo que ela se propõe a perscrutar: “Foucault é um pensador brilhante do poder nas entrelinhas, mas a consciência da reinscrição topográfica do imperialismo não faz parte de suas pressuposições. Ele é cooptado pela versão restrita do Ocidente produzida por essa reinscrição e, assim, colabora para consolidar seus efeitos” (Ibidem, p. 95, grifos meus). refere-se à prerrogativa derridiana do “não dito” (ou implícito) nos textos: Foucault a descreve como “redução das práticas discursivas aos traços textuais”, como invenção de uma voz que não se encontra no texto e como pedagogia que se manifesta não implicitamente, mas de maneira muito visível e “que inversamente dá à voz dos mestres essa soberania sem limites que lhes permite indefinidamente redizer o texto” (FOUCAULT, 2019FOUCAULT, Michel. Meu Corpo, Este Papel, Este Fogo. In FOUCAULT, Michel. História da Loucura na idade clássica. 12ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2019., pp. 607-608).

De fato, detendo-se na transcrição de um diálogo pontual como se nada houvesse fora dele, Spivak constrói a encenação de um “não dito” que constituiria a suposta lógica interna do texto: o olhar polido de intelectuais colonizadores que, ao defenderem que os subalternos possam falar por si mesmos, os silenciariam ainda mais. Esse argumento “meta-silencioso” corrobora a sua própria dificuldade interna. Mas não é difícil perceber que, embora não o diga explicitamente, Spivak toma Marx como hermenêutica universal de todo texto – “a relação entre o capitalismo global (exploração econômica) e as alianças dos Estados-nação (dominação geopolítica) é tão macrológica que não pode ser responsável pela textura micrológica do poder” (SPIVAK, 2010, p. 54)20 20 . Este ensaio de Spivak, ademais, embora tenha sido publicado primeiramente em 1985 no periódico Wedge, só vai obter notória repercussão ao ser republicado, em 1988, na coletânea Marxism and the Interpretation of Culture, organizada por Cary Nelson e Larry Grossberg. . E ao sugerir que “uma descentralização ainda mais radical do sujeito é, de fato, implícita tanto em Marx quanto em Derrida”, Spivak supõe erroneamente que Foucault e Deleuze desconheçam ou se oponham a Marx (SPIVAK, 2010, p. 24)21 21 . De fato, nenhum dos dois era marxista, o que não implica nem desconhecimento nem antimarxismo. Em O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari se inspiram explicitamente nas críticas de Marx ao sujeito hegeliano. E, em Vigiar e punir, Foucault tributa a Marx a maior parte dos conceitos ali desenvolvidos (por exemplo, técnicas disciplinares e o caráter produtivo do poder). De resto, em seus termos, “cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas” (FOUCAULT, 2018, p. 231). . Desse modo, a autora sutilmente reabilita e blinda o materialismo histórico-dialético, furtando-se de inquirir Derrida – que era tudo menos marxista – com a mesma austeridade dirigida aos filósofos franceses.

Neste ponto, é preciso atentar para o fato de que toda crítica que se faça contra Spivak pode facilmente incorrer nas relações de poder que Spivak critica. Devo, portanto, assinalar que não é o meu intuito aqui “desautorizá-la”. Mesmo porque hoje, passadas quase quatro décadas, o seu ensaio se revela muito mais próximo de Foucault do que ela poderia imaginar. Note-se que, quando Spivak o escreveu nos anos 1980, ainda não havia sido publicada a maior parte da obra foucaultina – seus cursos e os Ditos e Escritos. Com estes, dois pontos se tornaram mais claros: que, enquanto intelectual, Foucault sempre se responsabilizou pelo que diz/escreve, dispondo-se exaustivamente a “prestar contas”; e que, se a sua filosofia se debruça, em larga medida, na invisibilidade subalterna (ou, em seus termos, na “vida dos infames”), é para explicitar um olhar não apenas consciente de sua posição, como também abalizado por seus próprios limites e inflexões.

Do ponto de vista de Spivak, contudo, isso ainda não eximiria Foucault do que a autora denomina “violência epistêmica”: mesmo quando não é intencional ou sequer consciente, há sempre uma violência exercida pelo olhar hegemônico. Estou de acordo com esse ponto. Só discordo de que, como alega Spivak, Foucault exercia esse olhar de maneira “estratégica”. Pois, do ponto de vista dele, são as próprias práticas hegemônicas que possibilitam as práticas de resistência. Se uma asserção como essa tende a soar colonialista (e não deixa de sê-lo), serve ao menos para esclarecer por que, sob o prisma foucaultiano, não faz sentido a concepção de Spivak de “violência epistêmica”. Para Foucault, afinal, a violência sempre esteve no âmago de toda episteme.

Em todo caso, é inconteste a importância que Pode o subalterno falar? ainda exerce não somente nos estudos pós-coloniais, mas também nos estudos feministas e, em especial, nos do discurso e da visualidade. Afinal, a despeito das críticas que ocupam a maior parte do texto, é realmente salutar o argumento (cuja simplicidade se sobressai no emaranhado filosófico que o cerca) de que o subalterno não pode falar por si mesmo uma vez que, de fato, sua voz nunca é ouvida. Spivak ilustra o axioma por meio de um contundente relato (ao qual dedica apenas as últimas cinco páginas do ensaio) sobre Bhubaneswari Bhaduri, uma indiana que, por não ter encontrado os meios para se fazer ouvir, recorrera ao suicídio como tentativa derradeira. O exemplo esclarece não somente o duplo interdito imposto a uma mulher subalterna, mas também a impossibilidade de se articular um discurso de resistência que esteja fora dos discursos hegemônicos.

Foucault diria que estes dependem daqueles, de modo que a impossibilidade seria, antes de tudo, a de um “fora” do discurso22 22 . Ver, a esse respeito, FOUCAULT (1996, p. 53). A partir de 1980, Foucault atualiza essa mesma lógica ao entender que não há sujeito fora dos processos de sujeição e subjetivação. É também no mesmo sentido que Paul Preciado afirma que “nenhum instrumento de dominação está a salvo de ser pervertido e reapropriado no interior do que chamarei, seguindo as intuições de Foucault, de distintas ‘práxis de resistência’” (PRECIADO, 2017, p. 98). . Logo, é igualmente impossível haver uma perspectiva neutra (o que Spivak chama de “transparência”) que possa escapar à representação – tanto é que essa perspectiva representa os “intelectuais”. Se, portanto, é ardiloso o olhar intelectual que romantiza a visão subalterna e/ou se apropria dela, do mesmo modo é capcioso supor que possa haver um ponto de vista radicalmente externo e inacessível aos discursos dominantes. Uma coisa são o silenciamento e a invisibilidade que se impõem tacitamente aos subalternos; outra bem diferente é a premissa de uma transparência imediata (no sentido de não passível de ser mediada) da posição de quem não pode ser visto/ouvido.

Ao acusar Foucault e Deleuze de uma “falsa transparência”, Spivak parece sugerir uma transparência outra, a do outro-radicalmente-outro23 23 . Nos termos de Hal Foster, esse paradigma, ao “conservar a noção de um sujeito da história, definir essa posição em termos de verdade e localizar essa verdade em termos de alteridade”, projeta o Outro como uma transparência do real, seja “porque ele é socialmente oprimido, politicamente transformador e/ou materialmente produtivo” (FOSTER, 2014, pp. 162-163, grifos no original). Vale lembrar ainda que, em As palavras e as coisas, Foucault afirma que o “homem” (humano) projetado pelas ciências que despontam no século XIX, diferentemente do sujeito clássico (cartesiano e kantiano), procura a sua verdade no impensado, no inconsciente e no outro – por isso que, para Foucault, a psicanálise e a antropologia prevaleceram entre os discursos modernos sobre o humano. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2000, p. 504). . Eis o “não dito” que resta em nome de quem não pode falar. Ou, nos termos de Édouard Glissant, “a própria diferença pode ainda revelar uma redução ao Transparente” (GLISSANT, 2008, p. 53). A reivindicação desse escritor martiniquenho a um “direito à opacidade”, no sentido de uma defesa das singularidades irredutíveis, parece ser um rico contraponto ao ensaio de Spivak e que noutro momento mereceria maior atenção. Por ora, serve-nos apenas como ensejo para a incursão em outro horizonte da opacidade, aquele que Achille Mbembe relaciona à necropolítica.

A OPACIDADE NECROPOLÍTICA

No texto “O que são as luzes?” (FOUCAULT, 2005a, pp. 335-352), Foucault nos ensina a escapar da “armadilha do iluminismo” – isto é, a ideia de que devemos ser “a favor” ou “contra” o iluminismo – para, em vez disso, encará-lo como um discurso que ainda baliza o que somos hoje. De maneira análoga, parece-me que, ao desenvolver, em 2003, o conceito de “necropolítica”, Achille Mbembe24 24 . Nascido em Camarões, é professor da Universidade de Witwatersrand e editor do periódico Public Culture. Após passar pela Universidade de Duke, conhecida no campo dos estudos pós-coloniais, Mbembe afastou-se criticamente de sua formação foucaultiana, filiando-se desde então ao legado de Frantz Fanon. escapa à “armadilha da biopolítica”: em vez de concordar ou discordar dessa noção foucaultiana, ele quis atualizá-la, portanto pressupondo que a biopolítica ainda define, ao menos em parte, a maneira como somos governados.

Deve-se ter claro que o conceito proposto por Foucault não se resume a um tipo de governo meramente preocupado com a vida da população. Em 1976, antes ainda de falar em biopolítica, Foucault adotara pela primeira vez o conceito de “biopoder” em A vontade de saber (primeiro volume de História da Sexualidade) e, ao mesmo tempo, no curso Em defesa da sociedade25 25 . Mais precisamente, no último capítulo de A vontade de saber e na aula de 17 de março de 1976 de Em defesa da sociedade. A noção de “biopolítica” será doravante explorada nos seguintes cursos: Segurança, território, população (1977-1978), Nascimento da biopolítica (1978-1979) e Do governo dos vivos (1979-1980). . No primeiro caso, tal noção aparece após a descrição do dispositivo de sexualidade e termina na questão do racismo moderno, um racismo biológico e de Estado. No segundo, o biopoder é descrito ao final de um extenso percurso no qual Foucault analisa as transformações da ideia de guerra de raças26 26 . Aqui, Foucault esclarece que o conceito de raça não tem originalmente um sentido biológico. Antes do século XIX, designava a clivagem histórica entre determinados povos que não se misturam porque não têm a mesma língua, a mesma religião ou a mesma origem geográfica. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2005b, pp. 88-98). Quanto a isso, concordando com Foucault, Mbembe afirma que, “mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou a dominação a ser exercida sobre eles” (MBEMBE, 2018, p. 18). . Em ambos os casos, o biopoder é definido em sua dupla face: como poder sobre a vida (por meio do dispositivo da sexualidade, por exemplo) e como poder sobre a morte (caso do racismo). O ponto de partida de Mbembe é a ideia do racismo como elemento constituinte do biopoder:

Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. [...] é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018., p. 18).

Não obstante, Mbembe julga que a noção de biopoder não é mais suficiente para a compreensão de políticas emergentes que “estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo massacre” (MBEMBE, 2018, p. 59)27 27 . O autor acrescenta que isso não implica um regresso às antigas práticas de suplício público (por exemplo, guilhotinas), uma vez que o massacre contemporâneo não é exercido diretamente pelos Estados, e sim “por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, mas que controlam territórios bastante distintos; ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias” (Ibidem, p. 60). . A noção de necropoder, por sua vez, designa não apenas o direito de matar, mas antes o de expor parte da população à morte por meio de segregação urbana, campos de refugiados, policiamento ostensivo e escravidão. Assim, Mbembe mostra como as diferentes formas de necropolítica – racial, étnica, econômica etc. – reduzem comunidades inteiras a condições precárias no limiar entre a vida e a morte28 28 . O argumento é próximo, embora sem referenciação cruzada, ao de Judith Butler em Vida precária, em especial quando ela denuncia as torturas de Guantánamo. Essa prisão, construída em solo cubano pelos Estados Unidos no ano seguinte ao dos atentados de 11 de setembro, encarcera prisioneiros supostamente ligados aos grupos Taliban e Al-Qaeda – “supostamente” porque a maioria dos prisioneiros não passam por acusação nem julgamento formais e, portanto, não possuem sequer direito à defesa. Embora Barack Obama tenha decretado o fechamento da prisão em 2009 (o que nunca se efetivou), o presidente Donald Trump vem destinando, desde o início de seu mandato, recursos para a modernização das instalações em Guantánamo. Ver, a esse respeito, BUTLER (2019, pp. 73-126). .

Em Foucault, a biopolítica é a governamentalidade pautada em fazer viver e deixar morrer, de modo que “o racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio colonizador” (FOUCAULT, 2005b, p. 307, grifo no original), posto que a morte em massa é um dos instrumentos da gestão populacional. Já para Mbembe, a necropolítica ganha força quando o genocídio passa a existir independentemente das razões de Estado. Aqui se depreende uma diferença crucial: para Foucault, a política é uma forma derivada da guerra (o ágon, o conflito), enquanto para Mbembe a guerra é alimentada pela política29 29 . Ver, a esse respeito, MBEMBE (2018, p. 57). Mais detidamente, Mbembe toma como base Hegel e Bataille para sustentar uma concepção de política à maneira de um “devir sujeito” (Ibidem, pp. 11-12), isto é, como resultado de um trabalho de negação da morte. Por sua vez, Foucault segue o que denomina “hipótese Nietzsche” como inversão da teoria hobbesiana da soberania (isto é, do Estado como meio de evitar a guerra “primitiva” de todos contra todos). Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2005b, pp. 22-23 e pp. 54-55). . Isso explica por que, em Foucault, não faria sentido dar especificidade conceitual a uma política da guerra ou da morte: pois, de saída, a guerra e a morte sempre estiveram no cerne de toda política.

Ora, é somente negando tal pressuposto que, por outro lado, faz sentido pensar em termos de necropolítica. Desse modo, se Mbembe a associa ao estado de exceção e ao estado de sítio, é para defini-la como uma normalização da exceção30 30 . Mbembe elege a noção de “colônia” como representação histórica da exceção, “o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei” (MBEMBE, op. cit., pp. 32-33). (o terror, a guerra) – ao passo que, para Foucault, tal exceção sempre definiu a norma. De um lado, pois, Mbembe considera o antigo sistema plantation como uma primeira experimentação da necropolítica; de outro, Foucault mostrou que o nazismo, como apoteose do biopoder, só aprimorou uma racionalidade há muito já consolidada na Europa, a exemplo (imediato, dentre outros) das teorias médico-legais sobre degeneração e eugenia. As duas teses são, é claro, menos conflitantes do que complementares. O que me parece controverso é que, ao insistir no aspecto da exceção, Mbembe recorre com frequência a Hanna Arendt, a ponto de afirmar que, quando os europeus massacraram os povos colonizados, “de certa forma não tinham consciência de cometerem um crime” (ARENDT apud MBEMBE, 2018, p. 36).

Por mais que esse argumento sirva apenas para elucidar o espaço das colônias como alheio a toda ordem “civilizada”, a lógica de Arendt contradiz o horizonte de exceção a partir do qual Mbembe define a necropolítica: a banalidade do mal, afinal, só se dá pela normalidade de uma máquina burocrática. Desconfio, porém, que a exceção a que se refere Mbembe talvez não signifique o avesso da normalidade, mas uma normalidade intrinsecamente “velada”. Trata-se, primeiramente, de uma norma que sempre sustentou a lógica colonial, qual seja, a do poder de “definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41). Envolve também a instauração de fronteiras internas para fins de vigilância, segregação e controle, como no apartheid e nos atuais campos de refugiados. E, conclui Mbembe, a “exceção” abrange hoje populações inteiras cerceadas por uma tecnologia bélica de alta precisão e, por conseguinte, à mercê de ataques relâmpagos capazes de aniquilar toda forma de subsistência comum.

De fato, são disposições bem distintas daquelas que Foucault descrevia em termos de regimes disciplinares e biopolíticos. No entanto, se o massacre dos imigrantes, por exemplo, tem sido tacitamente tolerado pela maioria dos europeus, é porque persiste não apenas o olhar colonizador como também o princípio biopolítico que faz da guerra o alicerce da gestão populacional. Logo, não se trata (e talvez nunca tenha se tratado) de uma exceção à regra, e sim de normalidade velada e permanente. Mas, insistindo na exceção, Mbembe argumenta que os Estados já não possuem o monopólio do necropoder, assim como o exército e a polícia já não são os únicos meios de exercê-lo31 31 . Aqui, Mbembe tem em mente os muitos Estados africanos que, desde o fim do século XX, “já não podem reivindicar monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto de mercado” (Ibidem, p. 53). Doravante, o autor afirma que, cada vez mais, “a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos” (Ibidem, p. 59). Mas em termos econômicos, tecnológicos e de informação, como se sabe, os Estados soberanos permanecem acirradamente em guerra, ainda que velada. . De imediato, o filósofo parece esquecer que alguns poucos países (como os Estados Unidos, a Rússia e a China) não só possuem tal monopólio em seus territórios como também potencialmente sobre todos os demais. Nenhuma milícia ou exército de guerrilheiros estaria no páreo do necropoder desses poucos Estados.

Mas, sob uma leitura mais atenta, acredito que seja possível depreender de Mbembe um enfoque mais assertivo: a função capital da necropolítica talvez passe ao largo do par exceção-normalidade, incidindo antes sobre a organização da visibilidade por meio da invisibilidade32 32 . Nesse sentido, valendo-se das descrições detalhadas de Eyal Weizman, Mbembe enfatiza, partindo da intrincada topologia de zonas de conflito, passando pelas capciosas configurações das “máquinas de guerra” – a exemplo da morfologia indiferenciada dos esqueletos de Ruanda, ou dos corsários que fazem o trabalho sujo dos Estados em alto-mar –, até deter-se na visualidade do homem-bomba: “ao contrário do tanque ou míssil, que é claramente visível, a arma contida na forma do corpo é invisível”. (MBEMBE, 2018, p. 63). . A chamada crise dos refugiados33 33 . Quanto a isso, um único dado é suficiente: segundo estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, em 2018 uma média de seis imigrantes morriam diariamente no Mar Mediterrâneo. Disponível em: https://www.acnur.org/. Acesso em: 28 abr. 2020. talvez elucide essa questão. Face ao descaso da maior parcela dos cidadãos europeus (isto é, aqueles que se sentem “ameaçados” pela “invasão de imigrantes”), muitas ONGs, instituições acadêmicas e órgãos de imprensa têm se dedicado a expor evidências – tais como fotos e vídeos de imigrantes detidos e torturados nas prisões da Líbia – que denunciam flagrante violação, por parte dos Estados, do direito internacional e dos direitos humanos. No entanto, esse acúmulo de evidências constrangedoras não surte qualquer efeito na desenfreada xenofobia europeia34 34 . Ver, a esse respeito, LORENZINI; TAZZIOLI (2020). .

Pois bem, se parecem ser praticamente inúteis as tentativas de denunciar a necropolítica tornando-a visível ao público, é porque o necropoder logra ser exercido, fundamentalmente, na invisibilidade. Por mais que ele pareça funcionar, ao contrário, como um espetáculo que se explicita diuturnamente, a sua face é irrepresentável: os massacres são amorfos, sem sentido, enredados pelo véu do “não civilizado”. Isso porque, enquanto a biopolítica pauta-se na lógica da “transparência” – a visibilidade total do panóptico, por exemplo, ou da criminologia moderna, que acreditava poder ver através da fisionomia humana35 35 . Essa lógica da transparência, ademais, é hoje tacitamente percebida em termos tecnológicos: equipamentos com GPS, aparelhos inteligentes (smart), documentos biométricos de identificação e, em suma, todos os mecanismos que permitem a coleta, o armazenamento, o rastreamento e o cruzamento de dados pessoais. –, sua contraparte constitutiva não poderia ser outra além de uma “opacidade” necropolítica. Por isso a morte em massa é simultaneamente intolerável e tolerada; o estado de sítio/exceção é tanto mais normalizado quanto menos for legível e mais for arbitrário; e a vida da população permanece, a um só tempo, abalizada pelo biopoder e subjugada ao necropoder.

Devo reiterar que tal esquema decorre de uma leitura foucaultiana que não se encontra em Mbembe. Para este, afinal, a biopolítica estaria em declínio junto com o modelo civilizatório da Europa. Se seguirmos Foucault, não obstante, para quem o racismo é a condição estruturante do Estado moderno, o diagnóstico seria adverso: o projeto colonialista do Velho Mundo, apesar de seus recentes custos “colaterais”, logrou disseminar o racismo para manter-se como “bastião civilizacional” do mundo. Mesmo considerando as atuais querelas que permeiam a União Europeia – acirramento que, sabemos, não é nenhuma novidade –, o biopoder segue revigorado às custas do necropoder. A diferença é que, se outrora o deixar/fazer morrer se concentrava nas colônias, agora ele impregna os próprios arredores da Europa, lá onde jazem os maiores campos de refugiados a céu aberto da história.

A necropolítica, portanto, não se reduz ao poder de aniquilar a vida, compreendendo antes a gestão de sua invisibilidade – ao passo que a biopolítica se encarrega de gerir sua visibilidade (como nos registros de natalidade, mortalidade, criminalidade etc.). Nos termos de Foucault, trata-se de “uma luz que divide, que aclara de um lado, mas deixa na sombra, ou lança para a noite, uma outra parte do corpo social” (FOUCAULT, 2005b, pp. 81-82)36 36 . Aqui, Foucault refere-se ao que, nos séculos XVI e XVII, teria inaugurado uma contra-história: “a nova história que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que foi escondida, e que foi escondida não somente porque menosprezada, mas também porque, ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e disfarçada” (FOUCAULT, 2005b, pp. 83-84). . De sorte que a história do Ocidente moderno é indissociável da história silenciada dos navios negreiros, do longo genocídio intercontinental que se prolongou do século XV até o XIX, dos regimes militares e paramilitares que no século passado se proliferaram na América Latina37 37 . No caso específico do Brasil, conforme assinala Jonnefer Barbosa, toda a nossa história se alicerça sobre a ocultação de cadáveres – de indígenas, escravos, insurgentes etc. Ver, a esse respeito, BARBOSA (2020). e, enfim, de todos os lugares em que a invisibilidade prevalece como critério de inteligibilidade do poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: COMO REVER O INVISÍVEL?

Ao revisar um texto pontual de Spivak e outro de Mbembe, procurei mostrar o quanto o pensamento de Foucault permanece atual e fecundo aos estudos da visualidade e da contravisualidade. A partir do texto de Spivak, retomei sua aguçada análise da não representação do subalterno mediante o capcioso discurso do “ver sem ser visto” que a autora imputa aos intelectuais, mas problematizei a prerrogativa ali implícita de um outro-radicalmente-outro, que segue pari passu a lógica da “falsa transparência” que Spivak critica em Foucault. No texto de Mbembe, questionei a condição de exceção que marcaria a necropolítica – o que expressa, em última instância, um olhar liberal e humanista38 38 . A exceção, afinal, é em relação a qual norma? Aquela dos direitos (supostamente) garantidos aos cidadãos numa democracia liberal. É curioso como alguém que acredita que o modelo civilizatório europeu esteja ruindo ainda se oriente por esse mesmo modelo. O estado de exceção só faz sentido nesse horizonte. É o que se evidenciou, ademais, quando Giorgio Agamben se posicionou frontalmente contra as medidas de confinamento face à pandemia que assolou o mundo em 2020: tais medidas, segundo Agamben, instaurariam um estado de exceção definitivo (o que, a meu ver, só expressa uma nostalgia definitiva). Ver, a esse respeito: AGAMBEN (2020). – e ressaltei a função de opacidade e de gestão da invisibilidade que o necropoder exerce não de forma autônoma, como o autor propõe, mas em conjunção com a biopolítica.

Ambos os textos nos ajudam, com a leitura foucaultiana, a compreender algumas nuances daquilo que eu chamei, a partir de Mirzoeff, de “direito de olhar”. Em primeiro lugar, pode-se dizer, na linha de Spivak, que o direito de olhar é o contrário do direito de “ver sem ser visto”. Enquanto este último é uma espécie de “olho de Deus”, no sentido de pressupor uma visão simultânea de toda parte e a partir de lugar nenhum39 39 . O que não se dá a ver nesse olhar pretensamente neutro é o fato de que, nos termos de Foucault, “foi preciso toda uma rede de instituições, de práticas, para chegar ao que constitui essa espécie de ponto ideal, de lugar, a partir do qual os homens deveriam pousar sobre o mundo um olhar de pura observação” (FOUCAULT, 2013, p. 134). , o direito de olhar é a reivindicação de um modo de olhar, uma inteligibilidade localizada na posição de uma contravisualidade (isto é, contrária à visualidade dominante). O ensaio “Situated Knowledges”, que Donna Haraway publicou em 1988, fundamenta com lucidez essa segunda perspectiva, ainda que o escopo do texto seja outro – sendo notável o quanto a autora lança mão, ali, de analogias sobre a visão e a visualidade. Seu argumento central é o de que a ciência está sempre situada, ou seja, não podendo presumir nem oferecer a “objetividade” de um olhar neutro, universal e atemporal.

Ao mesmo tempo, Haraway salienta – e nesse ponto ela se distancia de Spivak – que a perspectiva parcial também pode ser falaciosa enquanto categoria, como no caso (o exemplo é da autora) da “Mulher do Terceiro Mundo”, uma vez que “sujeição não é base para uma ontologia; é no máximo uma pista visual. A visão requer instrumentos de visão; uma óptica é uma política de posicionamento. Instrumentos de visão mediam pontos de vista; não há visão imediata a partir dos pontos de vista do subjugado” (HARAWAY, 1988HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, 14(3), outono 1988, p. 575-599., p. 586, grifos meus). Isso porque, para Haraway, o olhar é antes de tudo uma prática e um posicionamento, importando menos o que se vê do que aquilo que se pretende ver e sob quais condições, por meio de qual mediação, a partir de qual lugar e mirando qual finalidade. É nessa toada que, conforme Preciado contextualiza e propõe, o sujeito pós-colonial fala e produz linguagens minoritárias:

Enquanto, ao final dos anos 80, Gayatri Spivak, em seu clássico Can the Subaltern Speak?, pensava em um apagamento sistemático da voz do subalterno no texto imperialista, uns anos mais tarde, Chandra Mohanty afirmará que o sujeito subalterno não está nem condenado ao silêncio nem forçadamente calado, mas que se situa justamente nas fraturas entre vários discursos hegemônicos e minoritários; daí a dificuldade em ser ouvido. [...] Creio que em termos políticos o que ocorre é que os subalternos efetivamente, [em que] pese a linguagem dominante, falam e que, além do mais, essas linguagens minoritárias não produzem somente distorções de sentido, produzem também novas significações. Longe de uma intradutibilidade radical da condição de subalternidade, o que estes autores reclamam é o status de toda linguagem como fronteiriça, como em si mesma produto – sempre e em qualquer caso – de tradução, de contaminação, de deslocamento, negando o caráter originário e puro da linguagem e por extensão da identidade nacional, mas também de gênero e sexual. (PRECIADO, 2010PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado por Jesús Carrillo. Revista Poiésis, n. 15, jul. 2010, pp. 47-71., pp. 61-62)

Com efeito, tudo o que se queira ver como autoevidente – como a realidade dos subalternos, ou a lógica do capital – procede de, e traz consigo, muitas lutas a respeito de como ver. Não se trata aqui de relativismo (que é um dos alvos da crítica de Haraway), e sim de demarcação de posição40 40 . Por conseguinte, nos termos de Foucault, “a análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de contra-ataque de uns e de outros” (Idem, 2018, p. 342). . É isto o “direito de olhar”: direito de se posicionar para poder participar das lutas de como ver. Porque a “visão é sempre uma questão do poder de ver – e também da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram moldados os meus olhos?” (HARAWAY, 1988HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, 14(3), outono 1988, p. 575-599., p. 585, grifos meus).

Essa pergunta, por sua vez, nos reconduz à necropolítica enquanto gestão da invisibilidade: a visão de uma sociedade “civilizada”, com seus direitos e liberdades, foi erigida e se mantém em nosso horizonte às custas de uma potente máquina de fazer desaparecer outros modos de ver e existir. Mbembe chega a dizer, quanto a isso, que o velho regime do poder soberano não se atenuara com o projeto da modernidade e hoje se revigora nos complexos do necropoder. No âmbito da visualidade, todavia, tal asserção não me parece acurada. Em uma entrevista intitulada “O olho do poder” (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018., pp. 318-343), Foucault pontuou a discrepância entre a visão soberana e a do panóptico (protótipo disciplinar e do biopoder). No primeiro caso, o fazer morrer ainda habitava o registro do visível, que, por sua vez, era bastante instável e limitado, de modo que os governantes não tinham controle sobre a invisibilidade das insurgências, dos saques, dos complôs etc. Já o panóptico consolidou uma economia da visibilidade, aquela da vigilância que cada indivíduo exerce em relação aos outros e sobre si mesmo. Isso implica, é claro, uma ampliação sem precedentes do domínio do visível, mas também e fundamentalmente uma organização sistemática do invisível – a prisão, por exemplo, não instituiu o fim do fazer morrer, mas, precisamente, o seu ocultamento.

Sob esse prisma, portanto, a necropolítica não reencarna o poder soberano, do mesmo modo que também não figura como estado de exceção ao regime biopolítico. Se, ao menos em termos de visualidade (o poder de ver), a biopolítica nunca esteve tão desenvolvida e articulada, o necropoder assinala justamente a abrangência – no avesso do poder soberano – da gestão do visível e do invisível41 41 . Quanto a isso, Didier Bigo tem investigado a profunda correlação entre visibilidade e vigilância nas estratégias contemporâneas de governamentalidade, com especial atenção a políticas de migração e proteção de fronteiras. Desse modo, Bigo acaba preenchendo certa “lacuna” que Foucault teria deixado em aberto em termos de visualidade: se o nexo entre disciplina e visibilidade possui centralidade em trabalhos como Vigiar e punir e O nascimento da clínica, a visualidade é menos explorada nos posteriores estudos de Foucault em torno da governamentalidade. Ver, a esse respeito, BIGO (2017). . O poder sobre a vida é indissociável do poder sobre a morte, assim como todo “ver” sempre dependeu de um “não ver”. Significa que a invisibilidade do genocídio contemporâneo, desde o feminicídio doméstico até as guerrilhas e zonas de conflito que eclodem à margem de toda jurisdição, não está descolada da prédica cosmopolita e autoevidente do desempenho a todo custo, tampouco do visível triunfo de grandes corporações que, dentre outras coisas, adotam regimes de trabalho mais “flexíveis” para fomentar a “autonomia” de seus empregados, reduzindo ao máximo o custo da força de trabalho42 42 . Ver, a esse respeito, DE CAUWER; CHRISTIAENS (2020). . Isso sem falar, ademais, da disseminação, paralela à do Covid-19, dos genocídios de imigrantes, transexuais, negros, povos ancestrais etc., a ponto de a expressão “não consigo respirar” ter adquirido um sentido global para além dos sintomas respiratórios oriundos do vírus43 43 . Refiro-me ao assassinato de George Floyd, afro-americano que fora estrangulado por um policial branco em 25 de maio de 2020. O episódio obteve repercussão mundial, corroborando, de maneira quase “premonitória”, um ensaio que Achille Mbembe publicou cinco semanas antes com o título “The Universal Right to Breath” (“O direito universal de respirar”). Cf. MBEMBE (2020). .

Eis alguns dos elementos que, na conjuntura da pandemia atual, somando-se aos recentes protestos mundiais em solidariedade ao Black Lives, ensejaram um intenso debate filosófico que, de uma forma ou de outra, mostrou-se tributário ao arsenal conceitual de Foucault44 44 . Ver, por exemplo, a seleção de mais de 50 artigos feita pela Sexuality Policy Watch, sob o título “Biopolitics and coronavirus: compilation”, disponível em: https://sxpolitics.org/biopolitics-and-coronavirus-compilation/20581 . Acesso em: 28 abr. 2020. . Daniele Lorenzini (2020)LORENZINI, Daniele. Biopolitics in the Time of Coronavirus. Critical Inquiry, 2 abril 2020. Disponível em: https://critinq.wordpress.com/2020/04/02/biopolitics-in-the-time-of-coronavirus/. Acesso em: 28 abr. 2020.
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, por exemplo, descreveu assertivamente como a biopolítica contemporânea opera sobremaneira pela produção de vulnerabilidades assimétricas e hierárquicas nas populações. Em igual medida, a defesa de Haraway quanto aos “saberes localizados”, a despeito de sua publicação há mais de três décadas, mantém-se central nas discussões acerca da possibilidade de um “lugar de fala” para além das reduções identitárias e de uma neutralidade epistemológica, na esteira de autoras como Karen Barad e Chela Sandoval45 45 . Ver, respectivamente, BARAD (2012), SANDOVAL (2000). . Preciado, novamente, sintetiza bem o certame:

As críticas da “epistemologia da representação” ou da “metafísica da presença” que tendemos a reconhecer como pós-estruturalistas são elas próprias contemporâneas (talvez ecos) da produção de linguagens subalternas do feminismo radical, do movimento pelos Black Civil Rights, dos movimentos gays, lesbianos e transexuais e da crítica pós-colonial. Como destacava Craig Owens, são precisamente as críticas que emergem do feminismo, dos estudos culturais e do movimento negro aquelas que geraram um questionamento da legitimidade da representação (tanto estética quanto política) ao “interrogar os sistemas de poder que autorizam certas representações enquanto que outras são obstaculizadas, proibidas ou invalidadas”. [...] Aqueles que até agora haviam sido produzidos como objetos abjetos do saber médico, psiquiátrico, antropológico, os “subalternos” (Guha, Spivak), os “anormais” (Foucault), vão reclamar progressivamente a produção de um saber local, um saber sobre si mesmos, um saber que questiona o saber hegemônico. É o que Foucault denomina em 1976 “a insurreição dos saberes sujeitados”. (PRECIADO, 2010PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado por Jesús Carrillo. Revista Poiésis, n. 15, jul. 2010, pp. 47-71., p. 61)

Mas se é verdade, como dizia Bruno Latour, que “jamais fomos modernos” (no sentido de que nós ainda estamos tentando sê-lo, como um projeto não finalizado), talvez o direito de olhar também nunca tenha sido exercido de fato – e parece haver cada vez menos meios para exercê-lo46 46 . Vinte anos após a publicação de Jamais fomos modernos, de 1991, Latour escreveu o extenso An Inquiry Into Modes of Existence para responder à questão: se não fomos modernos, então o que fomos? Os diferentes “modos de existência” sobre os quais o autor se debruça corroboram a tese do primeiro livro, pois explicitam a pluralidade de condições de verdade que definiram os “modernos” ao longo de sua história. Mas a questão que eu destaco é: por que Latour resolveu, após tanto tempo, publicar esse enorme complemento ao seu livro mais conhecido? Para mostrar, primeiro, que a existência de olhares diferentes não é, como muitos creem, um fenômeno “pós-moderno”; segundo, que o acirramento entre as visadas modernas, a exemplo da chamada alt right, só expressa o desejo de nos tornarmos finalmente modernos, isto é, de fazer com que um único modo de ver e de existir prevaleça sobre todos os outros. Ver, a esse respeito, LATOUR (2013). . Compreender isso requer desfazer-se da ilusão de que possa haver, à maneira de um “sair da caverna”, alguma transparência possível a ser acessada no mundo. Todo modo de olhar, seja ele dominante ou subjugado, é histórico, isto é, condicionado a uma dada conjuntura que o possibilita. Mas nada nos autoriza a crer que essa conjuntura seja insuperável. O que também não se confunde com a cômoda esperança de que a crise econômica, institucional ou pandêmica seja capaz, por si só, de provocar uma ruptura dos regimes de poder. Uma configuração que perdura há séculos não desmorona da noite para o dia, como num “curto-circuito” de suas contradições internas. É preciso abrir caminho a partir dos tantos outros já trilhados e apagados, o que passa necessariamente por vislumbrar outras coordenadas além daquelas que permanecem no horizonte.

O que o direito de olhar trata de reivindicar, em suma, não é uma posição já dada, mas aquela que está sempre por construir. O fundamental é reconhecer, de um lado, que não há olhar ex nihilo, isento de prerrogativas e condicionantes, mas também que, de outro, nada do que se se dá a ver é cabal e definitivo, ainda que se mostre inexpugnável. Não se pode perder de vista, afinal, que tudo aquilo o que veio a ser não passa de uma possibilidade dentre outras, uma existência que subsiste ao longo de batalhas incessantes. E que, portanto, a miragem de uma civilização próspera ofusca os corpos que a sustentam sob a sina de uma cogente inexistência. Rever o invisível é procurar (to look for) um ainda possível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AGAMBEN, Giorgio. Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata. Il Manifesto, 26 fev. 2020. Disponível em: https://ilmanifesto.it/lo-stato-deccezione-provocato-da-unemergenza-immotivata/ Acesso em: 28 abr. 2020.
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  • SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010

NOTAS

  • 1
    . Este e os próximos trechos que, no original, são de língua inglesa foram aqui livremente traduzidos por mim.
  • 2
    . Ver, a esse respeito, “Rosa Parks Biography”. Academy of Achievement, Dezembro 10, 2019. Disponível em: https://achievement.org/achiever/rosa-parks/. Acesso em: 28 abr. 2020.
  • 3
    . Ver, a esse respeito, DU BOIS (1994)DU BOIS, William E. B. The Souls of The Black Folk. New York: Dover Publications, 1994..
  • 4
    . De acordo com Kevin Bales, em 2012 já havia mais escravos do que em qualquer outro momento da história da humanidade. O sociólogo elenca cinco focos geográficos da escravidão contemporânea: prostituição na Tailândia, venda de água em Mauritânia, produção de carvão no Brasil, agricultura na Índia e fabricação de tijolos no Paquistão. Ver, a esse respeito, BALES (2012)BALES, Kevin. Disposable People: New Slavery in the Global Economy. Berkeley: University of California Press, 2012..
  • 5
    . Edição consultada: SPIVAK (2010)SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010. A escolha do texto se deve não apenas à sua influência no âmbito dos estudos pós-coloniais e da subalternidade, mas sobretudo por sintetizar, de maneira contundente (mas apressada, como argumento a seguir), muitas das críticas e impasses epistemológicos em torno de Foucault.
  • 6
    . Edição consultada: MBEMBE (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018.. Esse ensaio sintetiza boa parte das ideias que o autor desenvolve com maior afinco noutros livros como Crítica da razão negra, Sair da grande noite e Políticas da inimizade.
  • 7
    . Isso apenas por delimitação de espaço e escopo. Quanto à influência de Fanon em Mbembe, cf. NOGUERA (2018)NOGUERA, Renato. Dos condenados da terra à necropolítica: diálogos filosóficos entre Frantz Fanon e Achille Mbembe. Revista Latino Americana do Colégio Internacional de Filosofia, n. 3, 2018, pp. 59-73.. Ver também, sobre uma possível aproximação entre Fanon e Foucault, LORENZINI; TAZZIOLI (2016)LORENZINI, Daniele; TAZZIOLI, Martina. Confessional subjects and conducts of non-truth: Foucault, Fanon, and the making of the subject. Theory, Culture & Society, 35(1), jan. 2016, pp. 71-90..
  • 8
    . Ver, a esse respeito, BECCARI (2018)BECCARI, Marcos N. Os lugares de um (a)lugar de fala. Revista Não Obstante, 3(1), pp. 12-20, jan./jun. 2018. Disponível em: http://www.naoobstante.com.br/2018/06/04/revista03/. Acesso em: 28 abr. 2020.
    http://www.naoobstante.com.br/2018/06/04...
    .
  • 9
    . Para Hal Foster, “existem perigos nessa localização da verdade, tais como a restrição de nosso imaginário político a dois campos, os abjetores e os abjetados, e o pressuposto de que, para não ser incluído entre os sexistas e racistas, é preciso se tornar o objeto fóbico desses sujeitos” FOSTER (2014, p. 157). E, como adverte o sociólogo Antonio Engelke, “rejeitar a noção de que seja possível falar sobre o mundo a partir de um lugar desinteressado não nos obriga a ‘escolher um lado’ e aderir acriticamente a ele” ENGELKE (2017, p. 45). Ou seja, uma coisa é questionar as premissas e finalidades de determinado discurso, e outra, bem diferente, é atacá-lo (ou acatá-lo) de antemão – nesse segundo caso, a adesão ou ataque só reitera o lugar em que as coisas ditas são discursivamente situadas. Nas palavras de Donna Haraway, “os posicionamentos dos subalternos não estão isentos de uma reavaliação crítica, de decodificação, desconstrução e interpretação [...] As perspectivas subalternas não são posições inocentes”. HARAWAY (1988, p. 584).
  • 10
    . Filósofa indiana responsável pela primeira tradução inglesa de Gramatologia, de Derrida. Leciona na Columbia University desde 1991. Em decorrência do ensaio aqui abordado, Spivak é por muitos considerada uma das fundadoras dos estudos pós-coloniais, reconhecimento este que a autora se recusa a aceitar. Ver, a esse respeito, SPIVAK (1999).
  • 11
    . A expressão “Terceiro Mundo”, vale lembrar, é própria da Guerra Fria, período em que se insere o texto de Spivak. Não seria adequado, porém, transpor esse termo para a categoria de “países subdesenvolvidos”. Pois, ao falar de um discurso ocidentalizado, a autora parece se referir, antes, a países historicamente colonizadores (a chamada Europa Ocidental), de modo que o “Terceiro Mundo” (e, por extensão, a “subalternidade”) remete aos países que foram colonizados.
  • 12
    . Ver, por exemplo, “Verdade e poder” (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018., pp. 35-54) e “A Função Política do Intelectual” (Idem, 2011, pp. 213-219).
  • 13
    . Este último ponto, diga-se de passagem, vem ao encontro da proposta de Donna Haraway (1988)HARAWAY, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, 14(3), outono 1988, p. 575-599. em seu conhecido texto “Situated Knowledges”, a ser retomado no fim deste capítulo.
  • 14
    . Inclusive a própria Spivak. Quando, por exemplo, ela faz a ressalva de que “o caso indiano não pode ser tomado como representativo de todos os países, nações e culturas que podem ser invocados como o Outro da Europa” (SPIVAK, 2010, p. 63), a autora também lança mão de uma retórica da transparência em nome da heterogeneidade. De resto, a acusação de que Foucault e Deleuze “introduzem novamente o sujeito indivisível no discurso do poder” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 35) parece ecoar Derrida, além de ser algo como uma “cartada” padrão que os pós-estruturalistas investiam amiúde uns contra os outros.
  • 15
    . Ver, a esse respeito, BECCARI (2019)BECCARI, Marcos N. O clichê de Deleuze. Revista Não Obstante, 4(1), pp. 25-36, jan./jun. 2019. Disponível em: http://www.naoobstante.com.br/2019/06/13/revista-no-4/. Acesso em: 28 abr. 2020.
    http://www.naoobstante.com.br/2019/06/13...
    .
  • 16
    . Em um famoso debate com os maoístas, por exemplo, ele insistia em dizer “eu não sei nada sobre a China”. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018., pp. 87-128). O único lugar em que vemos uma diminuta alusão ao não ocidental reside no prefácio de As palavras e as coisas, ao mencionar uma enciclopédia chinesa – retirada de um conto de Jorge Luis Borges. Foucault não partilhava, portanto, do “exotismo” que de fato era exaltado entre os chamados pós-estruturalistas: a escrita chinesa em Derrida, as mulheres chinesas em Kristeva, o Japão em Barthes, o nomadismo em Deleuze.
  • 17
    . Quanto a isso, Spivak questiona: “Mas, e se essa redefinição específica tiver sido apenas uma parte da narrativa da história na Europa, assim como nas colônias? E se os dois projetos de revisão epistêmica funcionavam como partes deslocadas e desconhecidas de uma vasta máquina operada por duas mãos?”. SPIVAK (op, cit., p. 61). Novamente, é uma leitura apressada que requer pressupostos generalizantes, semelhante ao modo como Jean Baudrillard, por exemplo, em À sombra das maiorias silenciosas, encara o marxismo como um imperialismo conceitual que serve de “álibi” para o capitalismo.
  • 18
    . O debate se iniciou em 1963, em uma conferência proferida no Collège Philosophique, em que Derrida criticou a leitura de Foucault, em sua História da loucura, acerca das Meditações metafísicas de Descartes. Passados oito anos da conferência, Foucault decide responder a Derrida, conforme sintetiza Roberto Machado: “Primeiro, retomando ponto por ponto sua argumentação para refutá-la, comparando-a ao próprio texto de Descartes; segundo, e mais fundamentalmente, denunciando seu método por reduzir as práticas discursivas a traços textuais, em vez de situá-las no campo das transformações em que elas se dão, como se nada houvesse fora do texto e de sua estrutura interna” MACHADO (2017, p. 192).
  • 19
    . Pois a lógica de Pode o subalterno falar? se ampara declaradamente em Derrida, que “marca a crítica radical contra o perigo de se apropriar do outro por assimilação” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 164) – o que abre uma questão imediata: tal assimilação insidiosa não residiria, antes, na fórmula derridiana de que não há nada fora do texto? É igualmente curioso o quanto Spivak tenta “assimilar” algo que, como ela própria diz, não se encontra naquilo que ela se propõe a perscrutar: “Foucault é um pensador brilhante do poder nas entrelinhas, mas a consciência da reinscrição topográfica do imperialismo não faz parte de suas pressuposições. Ele é cooptado pela versão restrita do Ocidente produzida por essa reinscrição e, assim, colabora para consolidar seus efeitos” (Ibidem, p. 95, grifos meus).
  • 20
    . Este ensaio de Spivak, ademais, embora tenha sido publicado primeiramente em 1985 no periódico Wedge, só vai obter notória repercussão ao ser republicado, em 1988, na coletânea Marxism and the Interpretation of Culture, organizada por Cary Nelson e Larry Grossberg.
  • 21
    . De fato, nenhum dos dois era marxista, o que não implica nem desconhecimento nem antimarxismo. Em O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari se inspiram explicitamente nas críticas de Marx ao sujeito hegeliano. E, em Vigiar e punir, Foucault tributa a Marx a maior parte dos conceitos ali desenvolvidos (por exemplo, técnicas disciplinares e o caráter produtivo do poder). De resto, em seus termos, “cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas” (FOUCAULT, 2018, p. 231).
  • 22
    . Ver, a esse respeito, FOUCAULT (1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996., p. 53). A partir de 1980, Foucault atualiza essa mesma lógica ao entender que não há sujeito fora dos processos de sujeição e subjetivação. É também no mesmo sentido que Paul Preciado afirma que “nenhum instrumento de dominação está a salvo de ser pervertido e reapropriado no interior do que chamarei, seguindo as intuições de Foucault, de distintas ‘práxis de resistência’” (PRECIADO, 2017, p. 98).
  • 23
    . Nos termos de Hal Foster, esse paradigma, ao “conservar a noção de um sujeito da história, definir essa posição em termos de verdade e localizar essa verdade em termos de alteridade”, projeta o Outro como uma transparência do real, seja “porque ele é socialmente oprimido, politicamente transformador e/ou materialmente produtivo” (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014., pp. 162-163, grifos no original). Vale lembrar ainda que, em As palavras e as coisas, Foucault afirma que o “homem” (humano) projetado pelas ciências que despontam no século XIX, diferentemente do sujeito clássico (cartesiano e kantiano), procura a sua verdade no impensado, no inconsciente e no outro – por isso que, para Foucault, a psicanálise e a antropologia prevaleceram entre os discursos modernos sobre o humano. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2000, p. 504).
  • 24
    . Nascido em Camarões, é professor da Universidade de Witwatersrand e editor do periódico Public Culture. Após passar pela Universidade de Duke, conhecida no campo dos estudos pós-coloniais, Mbembe afastou-se criticamente de sua formação foucaultiana, filiando-se desde então ao legado de Frantz Fanon.
  • 25
    . Mais precisamente, no último capítulo de A vontade de saber e na aula de 17 de março de 1976 de Em defesa da sociedade. A noção de “biopolítica” será doravante explorada nos seguintes cursos: Segurança, território, população (1977-1978), Nascimento da biopolítica (1978-1979) e Do governo dos vivos (1979-1980).
  • 26
    . Aqui, Foucault esclarece que o conceito de raça não tem originalmente um sentido biológico. Antes do século XIX, designava a clivagem histórica entre determinados povos que não se misturam porque não têm a mesma língua, a mesma religião ou a mesma origem geográfica. Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2005b, pp. 88-98). Quanto a isso, concordando com Foucault, Mbembe afirma que, “mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou a dominação a ser exercida sobre eles” (MBEMBE, 2018, p. 18).
  • 27
    . O autor acrescenta que isso não implica um regresso às antigas práticas de suplício público (por exemplo, guilhotinas), uma vez que o massacre contemporâneo não é exercido diretamente pelos Estados, e sim “por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, mas que controlam territórios bastante distintos; ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias” (Ibidem, p. 60).
  • 28
    . O argumento é próximo, embora sem referenciação cruzada, ao de Judith Butler em Vida precária, em especial quando ela denuncia as torturas de Guantánamo. Essa prisão, construída em solo cubano pelos Estados Unidos no ano seguinte ao dos atentados de 11 de setembro, encarcera prisioneiros supostamente ligados aos grupos Taliban e Al-Qaeda – “supostamente” porque a maioria dos prisioneiros não passam por acusação nem julgamento formais e, portanto, não possuem sequer direito à defesa. Embora Barack Obama tenha decretado o fechamento da prisão em 2009 (o que nunca se efetivou), o presidente Donald Trump vem destinando, desde o início de seu mandato, recursos para a modernização das instalações em Guantánamo. Ver, a esse respeito, BUTLER (2019BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., pp. 73-126).
  • 29
    . Ver, a esse respeito, MBEMBE (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018., p. 57). Mais detidamente, Mbembe toma como base Hegel e Bataille para sustentar uma concepção de política à maneira de um “devir sujeito” (Ibidem, pp. 11-12), isto é, como resultado de um trabalho de negação da morte. Por sua vez, Foucault segue o que denomina “hipótese Nietzsche” como inversão da teoria hobbesiana da soberania (isto é, do Estado como meio de evitar a guerra “primitiva” de todos contra todos). Ver, a esse respeito, FOUCAULT (2005b, pp. 22-23 e pp. 54-55).
  • 30
    . Mbembe elege a noção de “colônia” como representação histórica da exceção, “o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei” (MBEMBE, op. cit., pp. 32-33).
  • 31
    . Aqui, Mbembe tem em mente os muitos Estados africanos que, desde o fim do século XX, “já não podem reivindicar monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto de mercado” (Ibidem, p. 53). Doravante, o autor afirma que, cada vez mais, “a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos” (Ibidem, p. 59). Mas em termos econômicos, tecnológicos e de informação, como se sabe, os Estados soberanos permanecem acirradamente em guerra, ainda que velada.
  • 32
    . Nesse sentido, valendo-se das descrições detalhadas de Eyal Weizman, Mbembe enfatiza, partindo da intrincada topologia de zonas de conflito, passando pelas capciosas configurações das “máquinas de guerra” – a exemplo da morfologia indiferenciada dos esqueletos de Ruanda, ou dos corsários que fazem o trabalho sujo dos Estados em alto-mar –, até deter-se na visualidade do homem-bomba: “ao contrário do tanque ou míssil, que é claramente visível, a arma contida na forma do corpo é invisível”. (MBEMBE, 2018, p. 63).
  • 33
    . Quanto a isso, um único dado é suficiente: segundo estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, em 2018 uma média de seis imigrantes morriam diariamente no Mar Mediterrâneo. Disponível em: https://www.acnur.org/. Acesso em: 28 abr. 2020.
  • 34
    . Ver, a esse respeito, LORENZINI; TAZZIOLI (2020)LORENZINI, Daniele; TAZZIOLI, Martina. Critique without ontology: Genealogy, collective subjects and the deadlocks of evidence. Radical Philosophy, 207(2), primavera 2020, pp. 27-39..
  • 35
    . Essa lógica da transparência, ademais, é hoje tacitamente percebida em termos tecnológicos: equipamentos com GPS, aparelhos inteligentes (smart), documentos biométricos de identificação e, em suma, todos os mecanismos que permitem a coleta, o armazenamento, o rastreamento e o cruzamento de dados pessoais.
  • 36
    . Aqui, Foucault refere-se ao que, nos séculos XVI e XVII, teria inaugurado uma contra-história: “a nova história que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que foi escondida, e que foi escondida não somente porque menosprezada, mas também porque, ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e disfarçada” (FOUCAULT, 2005b, pp. 83-84).
  • 37
    . No caso específico do Brasil, conforme assinala Jonnefer Barbosa, toda a nossa história se alicerça sobre a ocultação de cadáveres – de indígenas, escravos, insurgentes etc. Ver, a esse respeito, BARBOSA (2020).
  • 38
    . A exceção, afinal, é em relação a qual norma? Aquela dos direitos (supostamente) garantidos aos cidadãos numa democracia liberal. É curioso como alguém que acredita que o modelo civilizatório europeu esteja ruindo ainda se oriente por esse mesmo modelo. O estado de exceção só faz sentido nesse horizonte. É o que se evidenciou, ademais, quando Giorgio Agamben se posicionou frontalmente contra as medidas de confinamento face à pandemia que assolou o mundo em 2020: tais medidas, segundo Agamben, instaurariam um estado de exceção definitivo (o que, a meu ver, só expressa uma nostalgia definitiva). Ver, a esse respeito: AGAMBEN (2020).
  • 39
    . O que não se dá a ver nesse olhar pretensamente neutro é o fato de que, nos termos de Foucault, “foi preciso toda uma rede de instituições, de práticas, para chegar ao que constitui essa espécie de ponto ideal, de lugar, a partir do qual os homens deveriam pousar sobre o mundo um olhar de pura observação” (FOUCAULT, 2013, p. 134).
  • 40
    . Por conseguinte, nos termos de Foucault, “a análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de contra-ataque de uns e de outros” (Idem, 2018, p. 342).
  • 41
    . Quanto a isso, Didier Bigo tem investigado a profunda correlação entre visibilidade e vigilância nas estratégias contemporâneas de governamentalidade, com especial atenção a políticas de migração e proteção de fronteiras. Desse modo, Bigo acaba preenchendo certa “lacuna” que Foucault teria deixado em aberto em termos de visualidade: se o nexo entre disciplina e visibilidade possui centralidade em trabalhos como Vigiar e punir e O nascimento da clínica, a visualidade é menos explorada nos posteriores estudos de Foucault em torno da governamentalidade. Ver, a esse respeito, BIGO (2017)BIGO, Didier. Regimes of Visibility: The Dis-Time of Security and Visibility in Contemporary Governmentalities. An Interview with Didier Bigo. materiali foucaultiani, VI(11-12), jan./dec. 2017, pp. 83-92..
  • 42
    . Ver, a esse respeito, DE CAUWER; CHRISTIAENS (2020)DE CAUWER, Stijn; CHRISTIAENS, Tim. The Multitude Divided: Biopolitical Production during the Coronavirus Pandemic. Rethinking Marxism, Dossier “Pandemic and the Crisis of Capitalism”, verão 2020, pp. 118-127..
  • 43
    . Refiro-me ao assassinato de George Floyd, afro-americano que fora estrangulado por um policial branco em 25 de maio de 2020. O episódio obteve repercussão mundial, corroborando, de maneira quase “premonitória”, um ensaio que Achille Mbembe publicou cinco semanas antes com o título “The Universal Right to Breath” (“O direito universal de respirar”). Cf. MBEMBE (2020).
  • 44
    . Ver, por exemplo, a seleção de mais de 50 artigos feita pela Sexuality Policy Watch, sob o título “Biopolitics and coronavirus: compilation”, disponível em: https://sxpolitics.org/biopolitics-and-coronavirus-compilation/20581 . Acesso em: 28 abr. 2020.
  • 45
    . Ver, respectivamente, BARAD (2012)BARAD, Karen. On touching: the inhuman that therefore I am. differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, 23(3), 2012, pp. 206–223., SANDOVAL (2000)SANDOVAL, Chela. New Sciences: Cyborg Feminism. In WOLMARK, Jenny (ed.). CyberSexualities: A Reader on Feminist Theory, Cyborgs and Cyberspace. Londres: University of Edinburgh Press, 2000..
  • 46
    . Vinte anos após a publicação de Jamais fomos modernos, de 1991, Latour escreveu o extenso An Inquiry Into Modes of Existence para responder à questão: se não fomos modernos, então o que fomos? Os diferentes “modos de existência” sobre os quais o autor se debruça corroboram a tese do primeiro livro, pois explicitam a pluralidade de condições de verdade que definiram os “modernos” ao longo de sua história. Mas a questão que eu destaco é: por que Latour resolveu, após tanto tempo, publicar esse enorme complemento ao seu livro mais conhecido? Para mostrar, primeiro, que a existência de olhares diferentes não é, como muitos creem, um fenômeno “pós-moderno”; segundo, que o acirramento entre as visadas modernas, a exemplo da chamada alt right, só expressa o desejo de nos tornarmos finalmente modernos, isto é, de fazer com que um único modo de ver e de existir prevaleça sobre todos os outros. Ver, a esse respeito, LATOUR (2013)LATOUR, Bruno. An Inquiry Into Modes of Existence: An Anthropology of the Moderns. Cambridge: Harvard University Press, 2013..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    9 Maio 2020
  • Aceito
    1 Nov 2020
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