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JUDITH SCOTT: A TESSITURA DO DEVIR

JUDITH SCOTT: THE TEXTILE OF BECOMING

JUDITH SCOTT: LA TESITURA DEL DEVENIR

RESUMO

Este artigo aborda o fiar como devir nas obras de Judith Scott (1943-2005), artista trissômica, iletrada e inábil para a linguagem verbal. O intento é examinar a índole intuitiva e a temporalidade - a formatividade prioriza o processo ao produto. A temporalidade será abordada a partir da filosofia bergsoniana. Frequentemente, expressões ínsitas são sufocadas pelo conhecimento teórico, por “ideias muito possuídas”, em termos pontyanos. Deduzir aleatoriedade é um equívoco, orientado pela generalidade. Considerando o ineditismo da pesquisa sobre a estadunidense no Brasil, esta reflexão contribui com a diversidade de perspectivas sobre processos de saber artístico e com a consolidação da fortuna crítica, além de proporcionar uma discussão sobre a possibilidade de pensar a arte a partir de uma perspectiva fenomenológica.

PALAVRAS-CHAVE:
Judith Scott; Arte ínsita; Intuição; Fenomenologia; Henri Bergson

ABSTRACT

This paper approaches spinning as becoming in the works of Judith Scott (1943-2005), an illiterate trisomic artist incapable of verbal language. The intent is to examine the intuitive nature and the temporality - the formativity prioritizes the process over the product. The temporality will be approached from the Bergsonian philosophy. Frequently, innate expressions are smothered by theoretical knowledge, by “very possessed ideas”, in Merleau-Ponty terms. Thus, deducing randomness is a mistake, guided by generality. Considering the originality of research on this American artist in Brazil, this reflection contributes to the diversity of perspectives on artistic processes and to the consolidation of critical fortune, in addition to providing a discussion on the possibility of considering art from a phenomenological perspective.

KEYWORDS:
Judith Scott; Inherent Art; Intuition; Phenomenology; Henri Bergson

RESUMEN

Este artículo aborda el hilar como devenir en las obras de Judith Scott (1943-2005), artista trisómica, iletrada e inhábil para el lenguaje verbal. El intento es examinar la índole intuitiva y la temporalidad - la formatividad no prioriza el producto sino que el proceso. La temporalidad se abordará desde la filosofía bergsoniana. Frecuentemente, expresiones inherentes son ahogadas por el conocimiento teórico, por "ideas muy poseídas", en términos pontyanos. Deducir aleatoriedad es un equívoco, orientado por la generalidad. Partiendo del ineditismo en Brasil de la pesquisa acerca de la artista estadounidense, esta reflexión contribuye con la diversidad de perspectivas acerca de procesos de saber artístico y la consolidación de la fortuna crítica, además de discutir la posibilidad de pensar el arte desde una perspectiva fenomenológica.

PALABRAS-CLAVE:
Judith Scott; Arte inherente; Intuición; Fenomenología; Henri Bergson

JUDITH SCOTT: A TESSITURA DO DEVIR

Deu meia noite, a lua faz um claro

Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste.

A aranha tece puxando o fio da teia

A ciência da abeia, da aranha e a minha

Muita gente desconhece […].

“Na asa do vento”, João do Vale

O que retira o fazer arte do âmbito do fazer ordinário? Essa inquietação, quase tão antiga quanto as reflexões da filosofia acerca da liberdade, não está sendo aqui empregada como um subterfúgio na abordagem de um problema complexo - a saber, a delimitação do campo em certa produção, nomeadamente de arte. Em outros termos, não é evasiva para contornar a discussão sobre o que é arte. Essa temática exaustiva tem sido disputada e tem alcançado áreas do saber que lhe eram, até então, estrangeiras.

A flexibilidade de meios e de fins tem exposto a leniência da pós-modernidade em relação aos limites do sistema das artes. Houve quem se arriscasse sobre a possibilidade de desgaste extremo, que viria a decair no exaurimento completo da capacidade expressiva no campo artístico. Mas, como já mencionado, não é esse nosso intuito. Estamos mais preocupados com a implicação entre expressão e liberdade, nos modos de constituição e de compartilhamento da produção e do conhecimento artístico, do que com legislar o campo estético a partir de um saber convencionado. Alojamo-nos, então, aquém e além dessas discussões, que nos ocupariam mais energia do que o pretendido. Contudo, estamos cientes: esse é um terreno contíguo e será tangenciado ocasionalmente e se necessário.

Há relação estreita entre a exiguidade expressiva e a percepção temporal, que segue impactando a produção e circulação de imagens, a fruição e uma corporeidade cibernética que advém dos caprichos da velocidade, conforme haviam nos advertido, entre tantos outros, Paul Virilio (PAOLI; VIRILIO; YUNUS, 2009) e expoentes da arte carnal. Os desdobramentos relativos à aceleração foram se assentando, estabelecendo-se como paradigmas na modernidade: sujeitos reificados, moldados pela fixidez, pelo automatismo e pela passividade imposta ao ritmo da máquina industrial, com severo prejuízo da autonomia e da autoconsciência. Na pós-modernidade essa condição foi radicalizada - seguimos abandonados aos desmandos de uma velocidade supersônica, confrontados com uma obsolescência corpórea e a decorrente urgência da pós-humanidade.

Se, na dinâmica do capital, têm sido cada vez mais incentivadas as relações entre baixo dispêndio de tempo e alto volume produtivo, também os artistas têm sido, há muito, arrastados para a lógica mercantil; e não é castigado apenas o âmbito da feitura, mas também o da fruição. Por exemplo, em se tratando de espaços institucionais, aponta Hans Belting (2011), tudo é organizado sob o critério do fluxo e do agrupamento. O filósofo expõe as vísceras e a índole do processo expositivo: do recolhimento à reunião, a classificação categorial acompanha o percurso de uma ponta a outra. Objetos sobrevivem por insistência, per si, ou por subsistência ao antigo regime, anterior à sua vida museográfica. Trata-se, portanto, de um cálculo temporal entre o antes e o agora; a contemplação acaba subordinada a relações que se estabelecem por contraste, por camuflagem ou por acúmulo, denunciando a urgência flagrante, perceptível nas grandes filas que se instalam nos arredores, e no fluxo dos que perambulam pelos corredores dos museus, mas não só; essa não é prerrogativa exclusiva desses espaços. Do lado externo dos muros das instituições, continuamos submetidos a uma miríade de imagens em tempo absoluto. Estamos expostos a uma velocidade supersônica, que corresponde a uma condição multiespectral. E, assim, vai se consolidando todo um campo de relações - velozes, fugazes - que sustentamos com os objetos expressivos, convertidos à inflação do campo imagético, responsável por violentar e neutralizar olhares e corpos.

O SUPERSÔNICO E O ULTRAESPACIALIZADO

A filosofia bergsoniana estabelece e distingue a natureza de duas realidades: uma é simbólica e espacial, a outra, temporal, é uma realidade em si. Quando confrontada a vida pragmática (essencialmente espacializante) à pura duração (temporalidade e movimento), tudo decai no homogêneo. Nossa dificuldade com o tempo é que, sabemos, é uma realidade, mas somos incapazes de estabelecer com ele qualquer relação de controle ou fixidez, pois apreendemos apenas seus efeitos. Por outro lado, o espaço é homogêneo, porque é assim definido, em contraste ao tempo, indefinido por natureza. No entanto, se considerado como exterioridade, em estados que se desenrolam e se sucedem, o tempo é tornado homogêneo, processo que o filósofo chama de espacialização. Constatamos nossa impotência - a temporalidade - e espacializamos, visando subtrair à duração o que nos escapa:

Seria, portanto, oportuno interrogar-nos se o tempo, concebido sob a forma de um meio homogêneo, não seria um conceito bastardo, devido à intrusão de uma ideia de espaço no domínio da consciência pura. [...] a exterioridade é a característica própria das coisas que ocupam espaço, enquanto os fatos de consciência não são essencialmente exteriores uns aos outros, e só se tornam assim por um desenrolar no tempo, considerado como um meio homogêneo. (BERGSON, 19883. BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 71)

Há, portanto, diferentes concepções de duração na condução bergsoniana, uma é pura e a outra sofre uma corruptela, na qual intervém a ideia de espaço. A duração pura é uma sucessão de estados de consciência, surge sob a condição - rara - de um eu que se deixa viver, sem que sejam desconectados estados presentes e anteriores.

No campo artístico, essa solidariedade de estados é coesa na medida da expressividade. O intérprete que se demora em uma das notas da música abdica de sua integridade, fazendo com que o conjunto se dissolva, como uma mudança qualitativa sobre o todo: as notas se sucedem, mas percebemos o conjunto; as coisas surgem por brotamento umas nas outras; diz Bergson (20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 172), é a “melodia contínua de nossa vida interior" e prossegue sempre indivisível, ao longo de nossa existência consciente. Como em um ser vivo, as partes são distintas, mas interpenetram-se solidárias. Como se dá por abstração nos arranjos visuais, percebe-se um certo todo, quando se observa algo que está e que não está ali: “Pode, portanto, conceber-se a sucessão sem a distinção, como uma penetração mútua, uma solidariedade, uma organização íntima de elementos, em que cada um, representativo do todo, dele não se distingue nem isola a não ser por um pensamento capaz de abstração” (BERGSON, 19883. BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 73).

Somos obsedados pela ideia de simultaneidade e mutabilidade. Mas nada há de espacial nela e, sem percebermos, introduzimos elementos estrangeiros ao representarmos a sucessão em justapostos estados de consciência que se dobram à percepção simultânea. É assim que tecemos cálculos de velocidade, por exemplo. Analisamos um movimento variado como se fosse uniforme. A mecânica trabalha com o tempo conservando uma simultaneidade, retendo dele apenas certa imobilidade e, assim, projetamos o tempo no espaço e exprimimos a duração como um extenso. Falar em temporalidade mecânica ou supersônica é, pois, forjar e flertar com a ultraespacialização, usando uma licença metafórica do termo bergsoniano. Talvez tenhamos nos confrontado com a dificuldade de expressar certas conduções através de uma linguagem que, parece, expõe seus limites e resiste a uma distinção clara de termos - representar multiplicidade sem relação alguma com o espaço - e que não é traduzível para a linguagem trivial. Trata-se, portanto, de um hábito profundamente enraizado: desenvolver o tempo no espaço.

AS COISAS E OS CONCEITOS

Ao longo da história do pensamento, enfaticamente após os modernos, cultivamos uma inclinação pela intelecção em detrimento de outro tipo de conhecimento que deveria ter sido considerado. Coisas são substituídas pelos seus conceitos, mas isso não implica que devemos, em revanche, desprezar o conhecimento letrado; a recomendação do filósofo é que seja igualmente reinventado. É preciso, portanto, ajustar nossos passos ao seu andamento, adotando seus gestos e suas atitudes. A inteligência virá para matizá-lo naturalmente e mais tarde, como ocorre com o aprendizado conatural na infância. Bergson alerta: a substituição por conceitos é na medida de uma socialização da verdade, por sinal, perfeitamente natural ao espírito humano, que não está espontaneamente destinado à ciência pura e, menos ainda, à filosofia. Um esforço, um pensar mais dificultoso deve ser empenhado, no que refere ao conhecimento puro, enquanto a vida cotidiana se orienta por verdades de ordem prática, para a qual a socialização deveria servir - é esse seu fim.

A intuição é reflexão, a mobilidade está no fundo das coisas e no arrepio de nossa simpatia natural pela segurança que a fixidez oferece. A permanência da substância é, paradoxalmente, a continuidade de mudança. A questão que se coloca é saber em que medida a mudança pura e simples deve ser adotada socialmente. O que é, permanece, e as instituições devem sustentar um quadro mais ou menos estável para a diversidade e para a mobilidade dos desígnios individuais. Visando eficácia, a ação precisa da solidez de um ponto de apoio - essa é a tendência do ser vivo.

Bergson esclarece que a consciência se instala na mobilidade, e se contrai em instantâneos de uma história longeva que, aliás, existe antes e fora dela: “Quanto mais alta a consciência, mais forte é essa tensão de sua duração em comparação com a das coisas” (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., pp. 100-101). É um constrangimento admitir que indivíduos inaptos para o trato intelectual, na forma como é convencionado socialmente, desfrutem de um nível de consciência profundo, como ocorre com o fazer - aliás, artístico, porque duração - da criadora estadunidense Judith Ann Scott (1943-2005). Essa é uma originalidade rara, que confronta as reiteradas acusações de vazio de sentido em que se encontra a Arte Contemporânea.

A ARANHA TECE PUXANDO O FIO DA TEIA

Judith Ann Scott nasceu em Cincinnati, Ohio, no dia 1º de maio de 1943 . O dado mais relevante na sua história é a relação com a irmã gêmea Joyce Scott, hoje com 78 anos, e muito dedicada à divulgação da memória de sua “Judy”. Além das gêmeas, seus pais, o biólogo William Wallace Scott e Lillian White, tiveram outros três filhos mais velhos, porém nenhuma das demais relações familiares se comparava com os laços que as gêmeas estabeleceram (MORRIS; HIGGS, 201410. MORRIS, Catherine; HIGGS, Matthew. Judith Scott: Bound and unbound: catalog / curator Catherine Morris, Sackler Family Curator of the Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art; co-curator Matthew Higgs. Brooklin, NY: Brooklyn Museum & Del Monico Books; Prestel and Brooklyn Museum, 2014.). Apesar do vínculo profundo, as irmãs foram condenadas a viver separadas depois do longo período de institucionalização que Judith Scott cumpriu por cerca de 35 anos até sua morte, em 2005, boa parte do tempo em cidades distantes da residência familiar.

Enquanto Joyce Scott estudou em Berkeley, se tornou enfermeira e chegou a se envolver em trabalhos voluntários com crianças especiais, o destino de Judith Scott foi determinado por um teste de inteligência feito por um programa para crianças com deficiências em Cincinati. O resultado foi QI 30, profundamente retardada, o que obviamente não era correto, explica Joyce Scott; afinal ela era muito esperta, era especialmente treinada para se suprir e podia, por exemplo, se vestir sozinha. Tudo aconteceu porque era surda e ninguém havia percebido; o diagnóstico da trissomia mascarou o da surdez, que só pode ser identificada muitos anos depois, quando já era tarde demais para que recebesse acompanhamento adequado. Àquela altura, a Síndrome de Down ainda não tinha sido muito explorada cientificamente e o senso comum culpava a mãe, que, para agravar ainda mais as coisas, tinha um irmão considerado com certo retardo, fazendo com que a percepção pública recaísse sobre ela.

A separação radical da família desencadeou uma série de problemas cognitivos que acabaram por acompanhar Judith Scott para o resto de sua vida. Logo após o apartamento do convívio parental ela começou a se lamentar e seu estado se tornou patológico. Desenvolveu uma grande regressão, perda das habilidades anteriormente conquistadas, falência no desenvolvimento e completa perda de identidade. Depois de passar por uma série de instituições distantes de casa e das vistas da família, em meados de 1982, quando Judith Scott tinha cerca de 40 anos, o diagnóstico de surdez foi finalmente efetivado. Só então que ela começou a aprender os signos de linguagem. A irmã explica que talvez ela tenha nascido parcialmente surda e que, segundo os médicos, pode ter se tornado profundamente surda por volta de 4 anos, em virtude de febre escarlatina. O resultado foi a inaptidão para estabelecer uma comunicação verbal, o que não a impediu de ser especialmente sensibilizada por imagens e gostar de saboreá-las impressas em revistas.

O único programa que teve alguma ascendência no trabalho que ela viria a desenvolver mais tarde foi o Clothes Tearing Extinction Program. Os registros apontam uma mudança em seu comportamento, mostrando que ela estava se esforçando para aprender. Foram seis itens em agosto de 1984 e outros três ou quatro em janeiro de 1985. Esses foram os primeiros sinais de seu envolvimento com os têxteis - até então, o hábito era rasgar peças de roupa.

Tudo caminhava para seu anonimato em uma instituição de custódia, mas aconteceu uma reviravolta em sua vida após o resgate de sua irmã gêmea. Houve muito cuidado e critério para escolher uma instituição que pudesse abrigar Judith Scott na Califórnia. Em 26 de novembro de 1986, Joyce Scott entrou em um avião desacompanhada, a caminho de São Francisco, sem saber ao certo o que a aguardava ou mesmo se a irmã a reconheceria: “Ela chegou à procura, perdida e aterrorizada. Havia olheiras sob seus olhos. Ela caiu em meus braços e chorou. Não tenho certeza de que ela sabia quem eu era. Ela estava contente simplesmente por ter alguém lá para olhar por ela” .

O envolvimento de Judith Scott com arte foi tardio, depois dos 35 anos de idade, quando começou a integrar o programa oferecido pelo Creative Growth Art Center, em Oakland, no dia 1º de abril de 1987. Significava, finalmente, liberdade em mão dupla: Judith se reencontrou consigo mesma, e teve vazão uma habilidade inata e adormecida. O centro foi criado por Florence e Elias Katz e se dedica a suprir pessoas com deficiências. Lá elas encontram oportunidades de engajamento consigo mesmas e de seguirem por um caminho cujo paradigma seria o das artes visuais. Judith Scott inicia indiferente, fazendo rabiscos e olhando distraidamente à sua volta. Durante as cinco primeiras semanas no Creative Growth Center, ela pouco se interessou por desenho e pintura. Foi somente quando descobriu as fibras e começou a desenvolver formas tridimensionais que o seu engajamento foi catapultado a um nível bastante obsessivo; antes disso todas as possibilidades de materiais e recursos foram se extenuando, uma a uma. Depois de alguns meses, ela começa a desenvolver formas abstratas e, mais tarde, aplica um colorido sofisticado em seus trabalhos, até que o uso da paleta de cores se torna irrestrito.

Em 1987, pela primeira vez Judith Scott produz uma obra de Arte Ínsita - do latim, insitus significa inato, congênito, não formado, original -, enfim, um termo equânime, na expectativa de arbitrar a disputa discursiva no campo da arte. A expressão foi proposta pela primeira vez nas Trienais de Bratislava, em 1972, mas caiu em desuso até que decidi resgatá-lo. A artista começa a participar da classe conduzida por Sylvia Seventy no Creative Growth Center, que um dia se deparou com uma exuberante escultura têxtil feita com varetas de salgueiro atadas por camadas sobrepostas de fios, em tons de púrpura e vermelho, com lama sobre eles. A primeira peça tridimensional de Judith Scott é a precedente de uma série de outros tantos objetos relacionados que sugerem relevante significância para si e vão se tornando cada vez mais refinados e precisos à medida em que o trabalho amadurece. Ela trabalha uma peça de uma vez, nunca duas ou mais ao mesmo tempo. Outra peculiaridade é que ela modela cada face, refinando todas as superfícies das obras, até o objeto aparente ficar uniformemente finalizado.

Qualquer tendência para assumir que o resultado do trabalho de Judith Scott é acidental - e, talvez, em alguma medida seja mesmo - cai por terra diante da simples observação de seu processo de feitura, que aponta para outra direção. Durante o trabalho, há uma atitude de incontestável agilidade na mudança de planos, e uma ênfase conferida nos planos de mudança através do uso da cor (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 70, tradução nossa). Aos poucos, juntamente com a modelagem das formas, seu estilo peculiar vai se evidenciando, surgindo. O processo de trabalho de Judith Scott envolve recobrir um pequeno segredo sob várias camadas de fios e cabos. Ela acopla objetos de todos os tipos no interior das peças: ventilador, CDs, guarda-chuvas velhos, carretéis de papelão, tudo reforçado e protegido por guarnições de metal, unidos consistentemente através do entrelaçado de fios e de cabos, encobertos por lã até atingir uma forma final suave e reconfortante. É absolutamente primordial que algum item seja escondido dentro das peças e, assim, surge um sentido orgânico: algo vive no interior das formas.

Desde a hora em que Judith Scott chega no Art Center, no período da manhã, até o final do dia, quando decididamente resolve encerrar suas atividades, ela o faz de modo autônomo, não há necessidade de interferências sobre sua dinâmica de trabalho. O trabalho costuma durar, em média, três semanas. Judith Scott é firme também quanto à finalização, e decide quando está terminado. Ela parece saber exatamente o que fazer, não esboça qualquer hesitação. Paradoxalmente, para os afazeres da vida cotidiana ela é dependente, e sua postura nessa esfera contrasta radicalmente com aquela voltada ao trabalho.

O trabalho assumiu uma enorme preponderância na sua existência. A artista parece ter sido moldada por sua obra; sua aparência frágil é esquecida quando em obra e se transforma quando aplicada e profundamente concentrada, divergindo contundentemente do quadro de institucionalizada dos anos anteriores, muito embora alguns elementos e trejeitos persistam. Em geral, a concentração é intensa, os gestos são lentos e cuidados como de uma pessoa que sabe com o que está envolvida. Ela trabalha de modo bastante independente, a sós com o objeto ao qual se dedica no momento.

Todos os dias, quando chega ao Creative Growth Art Center, Judith Scott busca um lugar da mesa compartilhada com outras pessoas, mas se senta de frente para a parede, absolutamente concentrada no essencial, desinteressada do mundo. Além disso, vislumbra o processo prioritariamente ao resultado propriamente dito. Ao que parece, ela persegue um sentido de devir. Segundo seu biógrafo, a habilidade para criar imagens significativas, que refletem o mundo ou a si mesmos, são signatárias de uns poucos indivíduos que podem ser considerados especialmente dotados (MACGREGOR; BORENSZTEIN; MARIA, 2004, p. 8, tradução nossa).

Judith Scott não recebeu uma preparação formal, muito menos participou de qualquer aprendizado no campo da arte. Sua peregrinação por variadas localidades, em instituições americanas para indivíduos com debilidades psicofísicas, começou muito cedo. Atravessou a vida sem que tivesse treinado a habilidade para a linguagem verbal, que acabou preterida por determinação do destino, e por predileção pela linguagem imagética. Desse modo, os ritos culturais que estabelecemos para objetos de arte não a sensibilizam; não houve inserção da criadora em um meio restrito como o circuito das artes, que colaborasse com o entendimento sobre o teor ou o significado de sua função, do modo como nos é socialmente concedido. Ela não se importa com o estatuto de artista, e tampouco com o modo como os objetos que cria são percebidos como obras de arte.

Suas estruturas abstratas de fibra têxtil ganham proporções enormes, alcançando quase o dobro de sua modesta estatura. A empreitada consome semanas de dedicação e também extraordinárias concentração e intensidade, pontuadas por paciência e cuidado, esclarece John MacGregor (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 2, tradução nossa). Mas uma questão instigante persegue fruidores: se o que ela faz não diz respeito ao campo da arte, o que então ela está fazendo (Ibidem, p. 2, tradução nossa)? Talvez ela tenha sido levada a fornecer uma resposta expressiva à solidão e ao isolamento que os infindáveis anos de institucionalizada lhe impuseram e que, paradoxalmente, parecem ter aberto uma porta para a liberdade, fazendo ventilar modos de abordagem inalienáveis. Há indivíduos que não se redimem em dar plena vazão à vida interior.

Se essas conjecturas não respondem o problema do fazer artístico, pelo menos esboçam o modo originário que abriga todo fazer humano. No entanto, para esclarecer nossa inquietação inicial, é preciso antes investigar o ponto de viragem nas lacunas que se desenham entre a inteligência e a intuição. A resposta sobre a passagem do fazer ordinário ao excepcional talvez indicie o que lhe dá sentido e textura existencial.

Inicialmente, inteligência e linguagem se confundiam, depois se apoderaram da matéria e, plasmando a ciência, objetivaram maior precisão. A intuição fazia com que a linguagem sentisse sua influência e tornou-se coextensiva do espírito. Entre essas formas de pensamento, subsiste o pensamento trivial, e a linguagem continua a exprimi-lo:

[...] não há pensamento sem espírito de finura, e o espírito de finura é o re-flexo da intuição na inteligência. Concedo também que essa parte tão módica de intuição se tenha alargado, que ela tenha dado origem à poesia, depois à prosa, e tenha convertido em instrumentos de arte as palavras que, de início, eram apenas sinais [...]. Nem por isso é menos verdade que pensamento e linguagem, originalmente destinados a organizar o trabalho dos homens no espaço, são de essência intelectual. Mas trata-se necessariamente de uma intelectualidade vaga - adaptação muito geral do espírito à matéria que a sociedade precisa utilizar. (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., pp. 90-91)

Cada palavra de nossa linguagem é convencionada, mas a linguagem em si não é uma convenção, e falar é tão natural quanto andar. Assim, a função primitiva da linguagem é estabelecer comunicação, objetivando cooperação: transmite ordens, avisos, prescreve ou descreve. Enquanto ordens são uma convocação à ação imediata, avisos assinalam a coisa ou propriedades suas para a ação futura; a função é, portanto, sempre social. As palavras carregam um sentido convencional e relativamente fixo, mas há chance de que possam vir a exprimir o novo, a partir de um rearranjo nas convenções. Judith Scott nasceu surda e não foi alfabetizada para articular signos linguísticos.

Supomos que o processo criativo no campo da visualidade é um rearranjo da linguagem convencional e, como já mencionado, criação em dupla instância: de uma linguagem que reinaugura o instituído e da obra per si. A criação parece brotar de uma duração que é vivida de dentro pela criadora, e é a coisa mesma, íntegra. Judith Scott refundou sua vida e passou a se desenvolver engajada em um processo de crescimento interior, tecendo um novo significado para sua existência, orientada por paradigmas que estabeleceu para si: “a metamorfose de Judith foi inteiramente sua própria criação” (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 180, tradução nossa).

Acredita-se que há uma faculdade geral de conhecer as coisas sem tê-las estudado, explica o filósofo. É como se uma inteligência ultrapassasse o manejo de conceitos úteis à vida social, é uma certa potência de obter conhecimento do real a partir de conceitos sociais, combinando-os bem. Essa destreza superior é uma maior força de atenção especializada, inclinada pela natureza ou pelo hábito para determinados objetos, é como uma visão direta que atravessa as palavras, mas é justamente nossa ignorância sobre as coisas que nos torna tão aptos a discorrer facilmente sobre elas. Vivemos a plena expressão da inteligência relativa a ferramentas do raciocínio em benefício da vida pragmática. O que dizer de um sujeito inábil para tal tarefa? Essa inabilidade constrangeria outros saberes?

A incapacidade de articular conceitos, de um pensamento lógico, dedutivo, acabou por inviabilizar outros tipos de aptidões que viessem a corroborar ou decorressem em conhecimento. O mundo acabou dividido entre capazes e incapazes - os que são e os que não são inteligentes -, reflexo da desvalorização generalizada do saber inato, do empobrecimento cognitivo convergente para a uniformidade de perspectivas em virtude do desprezo pelos saberes que pudessem acenar para a alteridade.

Não é uma função da linguagem do tipo primitiva a que orienta um fazer como o de Judith Scott e que, ao que parece, é de outra classe. A linguagem instituída é arriscada para que seja reconstituída a partir de um fazer unívoco. É um mergulho na temporalidade, uma abertura para o devir. Como mencionado há pouco, é um fazer que se constitui duplamente como criação: uma linguagem reinstituída que se articula com generosa cumplicidade a uma narrativa.

A configuração está e não está ali, pois é da ordem do impalpável; a forma é seu meio de passagem. Assim, a superação dos contornos discerníveis na materialidade da obra na direção de uma instância inefável, para além do que é físico, é a própria temporalidade. Mas a questão que relaciona temporalidade e espacialização em Bergson precisa ser considerada perspectivamente com o problema da fixidez nas Artes Visuais: como recusar a espacialização no campo de uma linguagem cuja genealogia é eminentemente espacial? Em princípio, essa particularidade da linguagem plástica, se tomarmos estritamente o caráter espacial das Artes Visuais, poderia suscitar dificuldades quando a cotejamos com o problema da espacialização bergsoniana. No entanto, para o filósofo, as artes ditas plásticas nos oferecem uma fixidez entre definitiva e eterna:

As artes plásticas obtêm um efeito do mesmo gênero pela fixidez que de súbito impõem à vida, e que um contágio físico comunica à atenção do espectador. Se as obras da estatutária antiga exprimem emoções leves, que mal as aflorem como uma brisa, em contrapartida, a pálida imobilidade da pedra empresta ao sentimento expresso, ao movimento iniciado, não sei que de definitivo e eterno, em que o nosso pensamento se absolve e a vontade se perde. (BERGSON, 19883. BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988., p. 20).

A instituição dessa linguagem é uma transgressão do convencionado, superado no sentido do inconvencional, e faz transferir para a matéria algo da ordem do inextenso. Assim, fica difícil ratificar que um fazer como o de Judith Scott seja da classe do comum, do ordinário, pressupor aleatoriedade ou, ainda, submetê-lo ponto a ponto às dinâmicas da arte do sistema, desconsiderando sua univocidade. A obra é expressiva e não é viável argumentar pelo viés da inabilidade para a vida pragmática ou da limitação intelectiva. Esses são argumentos insustentáveis diante de uma perspectiva discursiva desafiadora; não é lícito, nem plausível. Bergson refuta a fixidez das Artes Visuais: em termos de temporalidade, algo de espiritual é transferido para a matéria e a obra de arte, como resultado desse fluxo, projeta o eterno no devir. Nesses termos, está sacramentado o ponto de viragem, da inteligência à intuição, no fazer da obra artística de Judith Scott.

UMA ÍNDOLE INTUITIVA

O artístico não é mera decorrência do fabril, uma vez que ritos de passagem devem ser cumpridos. Há que se abstrair da vida cotidiana e se abandonar na duração; coincidir com a temporalidade é para poucos. O filósofo contrasta duas facetas do homem: homo sapiens x homo faber. O primeiro nasce de uma atividade reflexiva do artífice sobre os artefatos e nos é antipático, é mera reflexão sobre a palavra, um tipo de inteligência que se subordina ao fazer. Contudo, a inteligência se beneficia do adestramento da mão - homo faber -, como em uma criança que, construindo, experimenta as possibilidades no campo da abertura, do inusitado. A criança é espontaneamente ansiosa pelo mundo que se oferece diante de si, é aberta à novidade sem exigências prévias. Impaciente pela regra, está mais próxima da natureza que na idade adulta e é, concomitantemente, pesquisadora e inventora.

De modo análogo à experiência infantil, o fazer de Judith Scott responde à espontaneidade da criança: ela é excepcionalmente hábil no campo artístico e inábil para o cuidar de si cotidiano. Não obstante o homo sapiens não seja naturalizado, ele atende a práxis mais trivial. Nós o resgatamos reiteradamente visando suprir demandas da vida pragmática. O traço mais inato, próprio da essência humana, é o criar - material e moralmente -, fabricar e fabricar-se a si, próprio do homo faber. Aliás, isso é de fácil constatação quando, por exemplo, se observam sujeitos que, conformados pela atividade profissional, não raro sofrem com o prejuízo da qualidade de vida e da saúde. O trabalho de Judith Scott assumiu centralidade na sua existência - ela parece ter sido talhada pela atividade e à medida da obra:

A aparência física de Judith Scott é, até certo ponto, surpreendente, moldada por seu trabalho [...]. A pessoa que vemos hoje, aplicando-se com profunda concentração, deve diferir de forma significativa do paciente institucionalizado de anos atrás, embora elementos que habitam aquela personalidade persistam em certos maneirismos inextirpáveis. [...] O senso de propósito tão evidente em sua forma de trabalho e nos seus gestos se transfere para tudo o que ela faz. Uma mulher pequena, de quatro pés e nove polegadas e meia de altura [aproximadamente 1,46m], ela é magra e forte da cintura para cima, e mais volumosa abaixo. O contraste marcante pode ser explicado pela tendência quase invariável de Judith para trabalhar sentada, onde o erguer e abaixar constante de seus braços, [movimentos] necessários em seu trabalho, refinam e moldam apenas a parte superior de seu tronco. Quando sentada, seus pés não tocam o chão. Judith é bem cuidada, impecavelmente arrumada com seu cabelo arranjado em constante mudança de estilos. Ela gosta de joias e sempre usa alguns colares de grandes contas multicoloridas, bem como pulseiras e pequenos grampos. (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, pp. 30-32, tradução nossa)

Judith Scott é homo faber, não foi aparelhada para a linguagem textual, intelectual, e privilegia o fazer. Assim, “a inteligência subirá da mão para a cabeça” (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 96). Mas o fazer de Judith Scott é, além de um pensar, também um instituir, criar. A atividade impacta sua corporeidade, a fragilidade cede quando ela se põe em obra com foco intenso, gestos lentos, cuidadosos, quase como se fossem calculados, como os de alguém que está muito apropriado, engajado em seu fazer.

Chegamos ao ponto de retomada de nossa consumição inicial. Se, ao buscar apreender uma mudança, decaímos inelutavelmente na espacialização, qual a saída e quem estaria mais bem provido para a percepção da mudança, sem a suscetibilidade de decair na fixidez, a ponto de retirar o fazer de sua trivialidade, e catapultá-lo ao âmbito do vital?

Mas o problema da mudança parece preceder tais questões. Resgatar a mudança pode transformar e transfigurar tanto nossa impressão sobre as coisas quanto a reação da inteligência, da sensibilidade e da vontade - arriscamos, inclusive, reputar a liberdade. Falamos da mudança, mas não a percebemos ou pensamos nela; agimos como se não existisse, mesmo sabendo que é a própria lei das coisas, presente nas palavras e nos raciocínios. Segundo Bergson (20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 151), há um “véu de prejuízos” entre nós e a mudança: “Conceber é um paliativo quando não é dado perceber, e o raciocínio é feito para colmatar os vazios da percepção ou para estender seu alcance. [...] uma concepção só vale pelas percepções possíveis que representa”.

Sem renunciar às faculdades de concepção, Bergson propõe que nos voltemos para a percepção a fim de fazê-la dilatar seu campo de domínio. A insuficiência da percepção natural fez com que ela fosse completada com concepções, nivelando e sistematizando o conhecimento das coisas, mas isso acaba por reduzir ou eliminar as diferenças qualitativas, empobrecendo nossa visão. Se o alargamento da percepção é, em princípio, impossível, por outro lado o esforço pode tornar o objeto mais preciso, iluminá-lo e intensificá-lo, sem fazer surgir algo que já não estivesse ali a priori. Nesse sentido, os artistas seriam os mais hábeis: “[...] há séculos que surgem homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas” (Ibidem, p. 155).

A arte nos impressiona os sentidos e a consciência, na natureza, no espírito, dentro e fora de nós. Não foram poucos os artistas das vanguardas modernas que, visando depurar o campo perceptivo, passaram a adotar sistematicamente as descidas a campo, em manicômios, recantos exóticos ou no submundo, interessados no desenho infantil, no vício ou na condição de restabelecimento vivaz, após um longo período em que os sentidos estiveram dormentes pela enfermidade. Estariam buscando um porto para ancorar suas percepções? Para Bergson, dentre as artes, a pintura é a linguagem que mais oferece possibilidade e espaço para a imitação ; os pintores exprimem certa visão das coisas e a tornam de todos, uma visão que a princípio é pessoal:

Um Corot, um Turner, para citar apenas estes, perceberam na natureza muitos aspectos que não notávamos. - Acaso se dirá que não viram, mas criaram, que nos entregaram produtos de sua imaginação, que adotamos suas invenções porque nos agradam e que simplesmente nos divertimos olhando a natureza através da imagem que os grandes pintores dela nos traçaram? - Isso é verdade, em certa medida; mas, se fosse unicamente assim, por que diríamos acerca de certas obras - a dos mestres - que elas são verdadeiras? Onde estaria a diferença entre a grande arte e a pura fantasia? Aprofundemos o que experimentamos diante de um Turner ou de um Corot: descobriremos que, se os aceitamos e os admiramos, é porque já havíamos percebido sem aperceber. Era, para nós, uma visão brilhante e evanescente, perdida nessa multidão de visões igualmente brilhantes, igualmente evanescentes, que se recobrem em nossa experiência usual como “dissolving views” e que constituem, por sua interferência recíproca, a visão pálida e descolorida que temos habitualmente das coisas. O pintor isolou-a; fixou-a tão bem sobre a tela que, doravante, não podemos nos impedir de aperceber na realidade aquilo que ele próprio viu nela. (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 156)

A arte é um liame possível entre o olhar e o fazer do criador, a obra que se faz e a extensão das faculdades perceptivas do espectador ampliadas, considerando que, inclusive, os criadores são espectadores potenciais, no processo e em processo, respectivamente, feitura e leitura. Mas, em geral, a maioria de nós tem mais apego à realidade. Somos orientados pela necessidade de viver e de agir; temos, portanto, uma visão mais estreita, talvez esvaziada, dos objetos, se comparada com a percepção do artista.

A extensão na arte só é possível porque o artista tem menor preocupação - às vezes nenhuma, como é o caso aqui - com o lado positivo e material da vida. Assim, quanto maior a preocupação com a vida material, menor inclinação para a contemplação, as necessidades da ação normalmente limitam o campo de visão. O processo de encurtamento da percepção pelo qual passamos, reduz o mundo perceptivo à conceitos e explicações:

[...] a percepção distinta é simplesmente recortada pelas necessidades da vida prática, num conjunto mais vasto. Gostamos, na psicologia e alhures, de ir da parte para o todo, e nosso sistema habitual de explicação consiste em reconstruir idealmente nossa vida mental com elementos simples, e depois supor que a composição desses elementos entre si tenha realmente produzido nossa vida mental. Caso as coisas se passassem assim, nossa percepção seria de fato inextensível; seria feita pela junção de certos materiais determinados, em quantidade determinada, e nunca encontraríamos nela algo diferente daquilo que nela foi depositado de início. Mas os fatos, quando os tomamos tais e quais, sem segundas intenções de explicar o espírito mecanicamente, sugerem uma interpretação inteiramente diferente. Mostram-nos, na vida psicológica normal, um esforço constante do espírito no sentido de limitar seu horizonte, de desviar o olhar daquilo que ele tem um interesse material em não ver. (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 157)

Na vida cotidiana, operamos por seleção, colhemos em um extenso conhecimento virtual, para que possamos, então, constituí-lo atualizado, realizar nossa ação sobre as coisas e desprezamos o resto. Mas o conhecimento nasce por associação de elementos simples, é efeito de uma dissociação brusca. O passado é geralmente afastado para ceder espaço para a situação presente, porém é uma eficiente fonte de esclarecimento e complementação útil. O cérebro efetua escolhas, atualiza lembranças úteis e sufoca as demais. A percepção opera de modo semelhante e auxilia na ação: classifica, categoriza e isola somente o que interessa em meio ao conjunto da realidade e oferece as coisas mesmas para que delas tiremos partido:

Mas, de longe em longe, por um acidente feliz, homens surgem cujos sentidos ou cuja consciência são menos aderentes à vida. A natureza esqueceu de vincular sua faculdade de perceber à sua faculdade de agir. Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais para eles; percebem por perceber - por nada, pelo prazer. Por um certo lado deles próprios, quer por sua consciência, quer por um de seus sentidos, nascem desprendidos; e conforme esse desprendimento seja o de tal ou de tal sentido, ou da consciência, são pintores ou escultores, músicos ou poetas. É, portanto, realmente uma visão mais direta da realidade que encontramos nas diferentes artes; e é pelo fato de o artista não pensar tanto em utilizar sua percepção que ele percebe um maior número de coisas. (BERGSON, 20065. BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006., pp. 158-159, grifo do autor)

Há indivíduos excepcionais, que não se furtam à expressão, e nos convocam de dentro de seu transbordamento vital. Diria Jean Dubuffet: homme du commun et hommes hors du commun [homens comuns e homens fora do comum] (THÉVOZ, 198012. THÉVOZ, Michel. L' Art Brut. Genebra: Editions D'art Albert Skira, 1980., LOMBARDI; PEIRY, 20127. LOMBARDI, Sarah.; PEIRY Lucienne. Collection de l'Art Brut: catalogue. Collection de l'Art Brut, sous la direction de Lucienne Peiry. 176 p.; il. Paris: Collection de l'Art Brut et Skira-Flammarion, 2012.), referindo a capacidade de capturar o trivial e elevá-lo à substancialidade existencial. Se há um latente mnemônico na obra de Judith Scott, ele encontra ressonância em suas experiências, relevantemente cotejando uma vida familiar na primeira infância e a longa estadia em instituições totais, iniciada próximo ao período da idade escolar.

Como um fotógrafo, que nos rouba o olhar para aquilo que está sendo invocado com um intrigante índice de indeterminação, Judith Scott nos faz ver, e dá a ver, a tessitura que perpassa sua epopeia em fios, pontuada por texturas e por matizes. A narrativa nos assalta, seja por sua contundência, por sua veemência ou por uma cumplicidade solidariamente concedida. Diante das obras, deparamo-nos com a relação humana mais primeva e, talvez, a mais longeva: aquela que se estabelece pelos laços de sangue, entre irmãos, e segue vida afora. Uma vez entrelaçadas, o vínculo se torna perene, a exemplo de sua história, quando resgatada pela irmã gêmea após anos em que estiveram distantes.

De algum modo misterioso, a falta de letramento da criadora acabou por corroborar e impulsionar a inventividade linguística e foi decisiva. Esse elemento positivo no processo de Judith Scott tornou a privação em articulação e reinvenção. Ao instaurar uma linguagem própria, ela adotou um caminho alheio ao conceito, priorizando a percepção. Esse contexto possibilitou-lhe uma vazão intuitiva, fazendo com que se abandonasse à duração e ao movimento. A existência não pode ser um agregado, um composto de estados desarticulados, do contrário, a duração não existir.

Desfrutamos nossa relação com o mundo empregando uma parte muito pequena, tímida, de nosso repertório pregresso, contudo: “[...] é com nosso passado inteiro, inclusive nossa curvatura de alma original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado, portanto, manifesta-se integralmente por seu impulso e na forma de tendência, ainda que apenas uma sua diminuta parte se torne representação”, (BERGSON, 20054. BERGSON, Henri. Evolução criadora. 2ª ed. Coleção Tópicos. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005b., p. 6) esclarece o filósofo, enraizando na memória a fonte de suprimento para a sobrevivência e para a vontade.

Retomamos o liame que nos trouxe a este ponto, e com o qual abandonaremos o leitor. O que, de fato, retira o fazer arte do âmbito do fazer ordinário é o pleno exercício da liberdade, que se realiza na plena negligência às atitudes protocolares do cotidiano, normativas e servis. A tomada de posição é um dever/devir político; o que lhe confere estatuto privilegiado é a ousadia da transgressão - ou traição, palavra que partilha o radical com tradução - ao curso banal da vida, que permeia as expressões artísticas, abandona-as na temporalidade e que é, também, vital e criadora da vazão à fruição de um certo todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ARNHEIM, Rudolph. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora / trad. Yvonne Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira, Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
  • 2
    BELTING, Hans. A Exposição das Culturas / trad. A. Morão. Project Ymago. Porto, Portugal: Ymago News Edições e Conferências, documento no ar desde 2011. Disponível em: http://www.proymago.pt Acesso em: fev. 2015.
    » http://www.proymago.pt
  • 3
    BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988.
  • 4
    BERGSON, Henri. Evolução criadora. 2ª ed. Coleção Tópicos. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005b.
  • 5
    BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • 6
    FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1978.
  • 7
    LOMBARDI, Sarah.; PEIRY Lucienne. Collection de l'Art Brut: catalogue. Collection de l'Art Brut, sous la direction de Lucienne Peiry. 176 p.; il. Paris: Collection de l'Art Brut et Skira-Flammarion, 2012.
  • 8
    MACGREGOR, John. M.; SCOTT, Joyce; BORENSZTEIN, Leon. Metamorphosis: The Fiber Art of Judith Scott: The outsider Artist and the Experience of Down's Syndrome. Oakland/CA: Creative Growth Art Center, 1999.
  • 9
    MACGREGOR, John M.; BORENSZTEIN, Leon; MARIA, Tom di. One is Adam. One is Superman. The Outsider Artists of Creative Growth. Photographs by Leon Borensztein. Essay by John M. MacGregor. Introduction by Tom di Maria. San Francisco/CA: Chronicle Book, 2004.
  • 10
    MORRIS, Catherine; HIGGS, Matthew. Judith Scott: Bound and unbound: catalog / curator Catherine Morris, Sackler Family Curator of the Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art; co-curator Matthew Higgs. Brooklin, NY: Brooklyn Museum & Del Monico Books; Prestel and Brooklyn Museum, 2014.
  • 11
    OLIVEIRA, Solange de. Arte por um fio: mitopoética nas obras têxteis de Bispo do Rosário e de Judith Scott. 2017. Tese (Doutorado em Psicologia Social); Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi:10.11606/T.47.2017.tde-14112017-173649. Acesso em: 11 out. 2011.
    » https://doi.org/10.11606/T.47.2017.tde-14112017-173649
  • 12
    THÉVOZ, Michel. L' Art Brut. Genebra: Editions D'art Albert Skira, 1980.

NOTAS

  • 1
    . Dados biográficos compilados em OLIVEIRA (2017).
  • 2
    . Notas da entrevista que Joyce Scott concedeu a John M. MacGregor em 17 de fevereiro de 1998 (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 52, tradução nossa).
  • 3
    . Segundo a antropóloga Lélia Coelho Frota, Arte Ínsita, como definição do termo em latim insitus, que significa inato (FROTA, 1978, 2006). Segundo a antropóloga Lélia Coelho Frota, Arte Ínsita, como definição do termo em latim insitus, que significa inato (FROTA, 1978, 2006).
  • 4
    . Estabelecemos distinção entre forma e configuração, nos termos da Gestalt. As formas não estão restritas aos dados físicos aos quais estamos submetidos, são determinadas para além de sua silhueta. Imagens visuais são frutos da totalidade das experiências dos sujeitos, noção compatível com a filosofia bergsoniana, aliás. Porém, a configuração abrange uma ainda maior gama de elementos, é um vão entre o objeto físico, as inflexões do meio, o aparato sensível do observador e sua relação com o entorno, além de lapidar contornos do mundo cultural. Cf. ARNHEIM (1997). Estabelecemos distinção entre forma e configuração, nos termos da Gestalt. As formas não estão restritas aos dados físicos aos quais estamos submetidos, são determinadas para além de sua silhueta. Imagens visuais são frutos da totalidade das experiências dos sujeitos, noção compatível com a filosofia bergsoniana, aliás. Porém, a configuração abrange uma ainda maior gama de elementos, é um vão entre o objeto físico, as inflexões do meio, o aparato sensível do observador e sua relação com o entorno, além de lapidar contornos do mundo cultural. Cf. ARNHEIM (1997).
  • 5
    . Fazemos uma parada para esclarecer noções e resguardar peculiaridades. O uso do termo inefável, no campo da arte, relaciona um inominado ou indescritível, porém intenso e inebriante prazer diante do belo. Mas o filósofo emprega inefável para esclarecer que nada há de misterioso na duração real, trata-se do tempo, que é percebido como indivisível. Cf. BERGSON (2006, p. 172). Fazemos uma parada para esclarecer noções e resguardar peculiaridades. O uso do termo inefável, no campo da arte, relaciona um inominado ou indescritível, porém intenso e inebriante prazer diante do belo. Mas o filósofo emprega inefável para esclarecer que nada há de misterioso na duração real, trata-se do tempo, que é percebido como indivisível. Cf. BERGSON (2006, p. 172).
  • 6
    . Devido à anacronia dos protagonistas deste estudo, assumiremos que a linguagem têxtil de Judith Scott está compatível com a noção que Bergson aqui atribui à pintura, de forma ampliada. Devido à anacronia dos protagonistas deste estudo, assumiremos que a linguagem têxtil de Judith Scott está compatível com a noção que Bergson aqui atribui à pintura, de forma ampliada.
  • SOBRE A AUTORA

    Solange de Oliveira é doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, e pós-doutorada em Estética e Filosofia Contemporânea, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Há dez anos desenvolve pesquisa de fenomenologia estética sobre a produção de criadores iletrados artisticamente, que se expressam através da imagem prioritariamente à linguagem verbal. Foi docente na área de formas expressivas no Departamento de Artes Visuais e Design da Universidade Federal de Sergipe (DAVD/UFS) e atualmente mantém uma plataforma de conteúdo digital, o Ateliê Tessitura, que aborda a arte, entre a fruição e a reflexão existencial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2021
  • Aceito
    26 Set 2021
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