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COMUNIDADE MINIATURA: ARTE, MODERNIDADE E VAZIO

Miniature Community: Art, Modernity, and Emptiness

Comunidad miniatura: arte, modernidAd y vacío

RESUMO

A expansão da modernidade coincidiu com a miniaturização do mundo, uma condição destacada, em muitas oportunidades, por Walter Benjamin, que afinal a transformou numa espécie de método. Seguindo essa proposta, este texto se detém em produções críticas e artísticas que se valem das formas da miniaturização. Oscar Masotta, León Ferrari, Albertina Carri e artistas ligados ao conceitualismo são protagonistas nessa comunidade imprópria, que encontra no jogo com as miniaturas uma forma de relação com o vazio.

PALAVRAS-CHAVE:
Modernidade; Comunidade; Miniatura; Oscar Masotta; León Ferrari; Albertina Carri

ABSTRACT

The expansion of modernity coincided with the miniaturization of the world, a condition highlighted, on many occasions, by Walter Benjamin, who ultimately turned it into a kind of method. Following this proposal, this text focuses on critical and artistic productions that use the forms of miniaturization. Oscar Masotta, León Ferrari, Albertina Carri and artists connected to conceptualism are protagonists in this improper community, which finds in the game with the miniatures a form of relationship with the emptiness.

KEYWORDS:
Modernity; Community; Miniature; Oscar Masotta; León Ferrari; Albertina Carri

RESUMEN

La expansión de la modernidad coincidió con la miniaturización del mundo, una condición subrayada, en muchas oportunidades, por Walter Benjamin, que, a final de cuentas, la convirtió en una especie de método. Siguiendo esa propuesta, este texto se detiene en producciones críticas y artísticas que se valen de las formas de miniaturización. Oscar Masotta, León Ferrari, Albertina Carri y artistas vinculados al conceptualismo son protagonistas en esa comunidad impropia, que encuentra en los juegos con las miniaturas una forma de relación con el vacío.

PALABRAS CLAVE:
Modernidad; Comunidad; Miniatura; Oscar Masotta; León Ferrari; Albertina Carri

PREÂMBULO: MODERNIDADE E MINIATURIZAÇÃO

A expansão da modernidade coincidiu com a miniaturização do mundo. Um mundo em miniatura é um mundo portátil, afim com a reprodutibilidade técnica e a paixão pelo arquivamento, uma condição que foi experimentada, como sabemos, com euforia, mas igualmente com mal-estar. Da invenção do daguerreótipo à arte como forma de vida e documentação; passando, é claro, pelas Exposições Universais e pelos panoramas; pelos magasins de nouveautés e pelas Passagens de Paris; pela emergência do cinematismo e pelas fotografias aéreas; pela industrialização dos jogos e dos brinquedos, das quinquilharias e dos souvenirs; pela museificação e pelas formas institucionais (públicas e privadas) do colecionismo mais variado; pela definição do inconsciente como arquivo “infinito” e pela física quântica; pelas diásporas e pelos exílios; pela televisão non-stop e pelo vídeo; pelo difícil aprendizado da arquitetura de Las Vegas; pela viagem à Lua e pelas perspectivas de exploração do espaço; pela desmaterialização da arte e pela ascensão da cultura; pelas telas dos celulares e pelas mínimas e onipresentes imagens digitais (etc.) - enfim, em seu processo de ocidentalização do mundo, a modernidade parece ter coincidido, cada vez mais, com a produção de um mundo dado à escansão, um mundo em escala1.

Walter Benjamin - o mais vigoroso dos miniaturistas modernos, ao lado de Marcel Duchamp - elaborou a partir dessa condição um procedimento, um método, talvez, já que a fragmentação, o colecionismo e a citação alegórica são móveis intempestivos do seu pensamento: “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção” (BENJAMIN, 1987, p. 61)2. Em Benjamin, a miniatura é obra e resíduo: sua imagem está sempre banhada por uma luz crepuscular, que oscila entre o vir a ser e a extinção, no palco já arruinado da história. Tomemos do autor, então, um fragmento, uma cintilação presente nessa coleção de miniaturas que é Rua de mão única: em sua pulsação ela poderia servir de epígrafe, ou como uma espécie de endereçamento, um preparo para uma comunidade (em) miniatura que, no auge do capitalismo tardio, gira em torno de um centro ausente, uma e outra vez.

FARDOS: EXPEDIÇÃO E EMPACOTAMENTO Eu ia de manhã cedo, de automóvel, através de Marselha em direção à estação e, assim que no caminho me deparavam lugares conhecidos, depois novos, desconhecidos, ou outros de que eu só conseguia lembrar-me inexatamente, a cidade tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eu lançava ainda rapidamente alguns olhares, antes que ele me desaparecesse dos olhos no baú do depósito por quem sabe quanto tempo. (Ibidem, p. 56)

OSCAR MASOTTA E A HISTORIETA: DIFERIMENTO E SUSPENSÃO

No final dos anos 1950, como em outros lugares, na Argentina travava-se um debate sobre as possibilidades e as limitações da cultura de massa, muitas vezes associada à cultura popular. Marcos Victoria, num artigo publicado na revista Sur em 1957, mantinha um tom de assombro e censurava a vulgarização da cultura, que era, para o escritor, a regra da sociedade de massa. A padronização dos conteúdos, a reprodução das formas, a frivolidade do divertimento fácil e do consumo, a infantilização dos sujeitos, tudo conduzia a uma “conclusão notadamente pessimista”, que afirmava, sustentando a opinião de Horkheimer, que “o desenvolvimento havia deixado de existir” (VICTORIA, 1957, pp. 78-86)3. Mas se um autor como Marcos Victoria censurava a identificação, perniciosa para o desenvolvimento da cultura, entre massificação e vulgarização, outras vozes sem dúvida encaravam o problema sem catastrofismo.

Oscar Masotta, que logo seria introdutor da psicanálise lacaniana na região e protagonista em meio aos experimentos da vanguarda argentina no final dos anos 1960, foi contundente em suas críticas ao liberalismo reinante na revista de Victoria Ocampo e no grupo Sur4. No momento em que a esquerda se inclinava para uma revisão de seus pressupostos, após a queda de Perón e a explicitação do seu legado na Argentina, ele destacava a presença, outrora irreconhecível, de algo que agora podia ser chamado “povo”5. Para Masotta, o catastrófico não advinha da cultura de massa e sua sociedade indistinta; bem ao contrário, aliás, ele reconhecia a catástrofe na figura romântica do artista e nas instituições e nos sujeitos que eram responsáveis pela manutenção do caráter aurático da obra de arte. Assim, além de suas leituras do pop, dos happenings e da arte dos meios de comunicação de massa, Masotta foi um dos principais teóricos das historietas. E ali onde uma leitura aurática encontraria somente a simplificação depreciativa da cultura a que a sociedade industrial está fadada, Masotta, a contrapelo, encontrou um rasgo de linguagem, um estilo definidor, não de um gênero menor das artes visuais, mas da própria vida moderna.

Si los artistas pop han podido tomar a la historieta como “ejemplo” o como tema, es que había en la historieta algo más que el hecho de ser un producto de la sociedad industrial. Ese algo más hay que buscarlo, seguramente, al nivel de los aportes estéticos que existen en esa nueva realidad visual que es la historieta. Entre ese aporte - que existe sin duda - y ciertos “rasgos de estilo” propios de las obras pop, hay una evidente correlación: el esquematismo, la tendencia a la simplificación de las proposiciones, la estilización. Esta correlación, o esta semejanza, es tan evidente que tal vez se podría decir que una gran parte de los artistas plásticos modernos - y no solo los pop - se han hecho enseñar por la historieta esas características del estilo. (MASOTTA, 2010, p. 265)18. MASOTTA Oscar. El "esquematismo" contemporáneo y la historieta. In MASOTTA, Oscar [ANO?]. Conciencia y estructura. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010, pp. 263-272.

A historieta é algo muito mais complexo, para Masotta, do que o mero reflexo de “um público de massa neurótico e doente, o lugar onde os indivíduos realizariam seus sonhos secretos e mórbidos, e onde o grupo social como um todo se consolaria dos seus obstáculos, das suas fraquezas, dos seus fracassos” (Ibidem, p. 269). Esse pessimismo tampouco explicaria a conexão entre “o conteúdo das tirinhas desenhadas e seu efeito sobre a conduta do leitor” (Ibidem, p. 269). Se há então uma relação estreita entre a historieta e a história, e por um lado “não é casual que o período que vai desde o crash de 1930, passando pelos anos sangrentos da revolução espanhola, até o começo da Segunda Guerra Mundial, coincida com a aparição de Superman, Batman, Capitão Marvel”, por outro, “esses símbolos, essas analogias, esses emblemas, podem, às vezes, ser menos relevantes do ponto de vista moral e político” (Ibidem, p. 270). Em outras palavras, Masotta encontra nas historietas não só o fato bruto e manifesto; com o esquematismo, com a miniaturização que orienta seu estilo se abre, para ele, uma saída crítica e criativa. As historietas não seriam, portanto, um diminutivo, no sentido de um empobrecimento da História. Seriam, sim, uma sorte de contração intensiva: como se nelas a história fosse lida por meio de fragmentos, em seu aspecto menor ou portátil, que com efeito é indissociável das massas e dos meios massivos; e sem que isso implique que elas sejam padronizadas em seus efeitos, já que o esquematismo não significa coerção e sim exposição: em cada historieta relata-se uma micro-história.

Essa exposição Masotta a reafirma em Reflexiones presemiológicas sobre la historieta: el “esquematismo”, texto lido nos marcos do “Simposio sobre Teoría de la Comunicación y Modelos Lingüísticos en Ciencias Sociales”, no Instituto Torcuato Di Tella, em outubro de 1967. Aí seus desdobramentos se valem de proposições teóricas advindas do estruturalismo e da psicanálise, num momento em que o pop, o popular e as massas constituíram-se como problema:

La historieta, se sabe, vive de estereotipos - de códigos esquemáticos - que viven de estereotipos. Son este aspecto esquematizante y este bagaje connotativo de la historieta los que inclinan a algunos intelectuales a una visión pesimista de la historieta. Pero al revés, lo cierto es que la historieta puede incorporar historias y personajes reales a condición de trocarlos en fantasmas estereotipados; y que solo realiza esta operación a condición de mostrar los pasos recorridos para suscitar esos fantasmas. Se entiende por lo mismo dónde se centra el interés que la historieta despertaría en los pintores pop: es que, como sugiere [Lawrence] Alloway, el arte pop consiste fundamentalmente en una reflexión sobre la distancia que separa a los símbolos de sus orígenes. Es a este nivel, se ve, donde debe situarse la crítica ideológica: pero ella debe desembarazarse de todo puritanismo con respecto a los esquemas y a los estereotipos. Básicamente, la historieta no nos dice que los estereotipos son “de la realidad”, sino, mejor, que lo son de eso que la sociedad “da a pensar” de ella. La paradoja, o la contradicción histórica, consistiría aquí en que este medio, preñado históricamente de un potencial desalienante, sirve históricamente como vehículo ideológico. (MASOTTA, [1967] 2010, p. 322)6.

Masotta põe em contato a historieta e o pop numa origem tensionada entre o massivo e o popular. A articulação seguinte é com os procedimentos dadaístas:

La historieta es un medio “inteligente” y estético al nivel mismo del contacto: hace posible una cierta contemplación de lo que hace posible constituir el relato. La restricción que obliga al dibujante a traducir hechos de series perceptuales distintas a un verdadero paisaje lunar sin sonidos, ruidos, ni movimientos, y donde las carencias son convertidas en exageraciones y las imposibilidades en efectos, se halla en los fundamentos de una inteligencia comparativa y de una imaginación del espesor del signo. Existe en la historieta y al estado naciente una estética semejante a la que fue introducida en la historia del arte por Schwitters y Duchamp, una táctica analizadora que descompone siempre los mensajes en sus parámetros. La diferencia consiste en que mientras la estética del dadaísmo considera siempre el contexto real como el parámetro que debe ser alcanzado por la transformación, la historieta conserva los resultados de sus traducciones en el interior del marco imaginario. Pero hay una afinidad estructural: por una imitación estereotipada y exagerada del acontecimiento en un caso, y por su textualización en el otro caso, se trata en ambos de descubrir la inherencia de la estructura y del sentido a los parámetros materiales de su constitución. (MASOTTA, [1967] 2010, p. 327)

Masotta entende que comunicação é descentramento e só pode proceder fora dos limites traçados por cada meio, através de desvios, ou melhor, como desvio (Ibidem, p. 336). Modelos são estereótipos de estereótipos. Figuras não “da realidade”, mas do que se “dá a pensar dela”. Há uma distância infraleve a separar os símbolos e suas origens7. Fantasmas que agitam a imaginação da espessura do signo. O parágrafo final sugere como deveria ser um começo para a historieta pensada como suspensão e diferimento:

Y así como se ha dicho de la televisión que es un medio “presentativo” en relación con el cine que es “representativo”, de la historieta habría entonces que comenzar diciendo que solo es representativa a condición de representar fantasmas o que es un arte no-presentativo o de presentación diferida y paralizada a la vez. En resumen: violencia y efectos no son aquí más que el movimiento aquietado y el espejo invertido de la distancia que separa a los signos de los signos y a los signos de las cosas. (MASOTTA, [1967] 2010, p. 339).

LEÓN FERRARI: A REPETIÇÃO SEM CENTRO

Ficção, historieta, pop, dadaísmo. O arranjo tecido por Masotta mantém franca sintonia com muitos trabalhos de miniaturização que León Ferrari desenvolveu a partir do final da década de 1970, durante seus anos de exílio em São Paulo; notadamente com aqueles trabalhos em que o artista recorreu à citação, isto é, à apropriação e à montagem (em chave alegórica) de elementos dissímeis, e à repetição. Entre eles estão a série de arte postal (denominada Flasharte) e as séries reunidas em Homens, em Imagens (com as arqueologias mínimas dos “Códigos”, do “Xadrez”, das “Plantas e Projetos”, dos “Banheiros”), além dos planos reproduzidos em grandes heliografias, para os quais Ferrari se valeu de esquemas (arquitetônicos, urbanísticos), de técnicas e módulos gráficos industriais (padronizados, massificados) (FERRARI, 1984; Idem, [1979-1984] 1989; Idem, 2004).

Poderia ser dito que a cifra histórica de Ferrari se apresenta, no exílio, por meio de seus trabalhos gráficos, como uma forma de, benjaminianamente, suspender o continuum da história ocidental. O aspecto descentrado dos planos e das distintas séries de Ferrari - que miniaturizam o mundo colocando no centro da cena o vazio - pode ser lido também como uma forma de exposição do processo de ocidentalização do planeta: uma abertura que neutraliza a maquinaria econômica ao mostrar o vazio incontornável sobre o qual ela se sustenta; vazio em cujo redor transitam essas muitas figuras que compõem, a cada vez, uma figura singular-plural: lado a lado, feitas com os pequenos módulos seriados de letraset, elas são sempre as mesmas e cada uma delas é também, em sua repetição, sempre uma outra. Chamá-las “massa”, “povo”, “turba”, “pessoas”, “gentes”, “caos”, “nação”, “progresso”, “civilização” - qualquer decisão deve incidir retroativamente sobre essas imagens, uma vez que não há nada que se cristalize de antemão. Ao contrário, a seu modo, elas retardam uma definição primeira ou última; por isso são ao mesmo tempo equivalentes e distintas, estando reunidas-e-separadas nessas cenas que se desdobram na espiral de um espaço-tempo contingente: confim alheio aos rigores da referencialidade topológica e do progresso linear.

FIGURA 1
León Ferrari, Autopista del Sur, 1980. Tinta e letraset sobre papel, 100 x 100 cm. Publicado em Planos y Papeles, Buenos Aires, Ediciones Licopodio, 2004.

Por outro lado, essas paisagens estão marcadas de um rigor epocal irrecusável. Com efeito, são paisagens contemporâneas, em que presenciamos o progressivo arruinamento da lógica do progresso. Não obstante, essa seria uma síntese parcial, uma vez que tal arruinamento não é alheio ao cálculo; antes, diríamos que lhe é necessário e mesmo o satisfaz. Em outras palavras: o delírio e o caos que com ironia e ludicidade surgem nas paisagens gráficas de Ferrari não são o resultado do colapso de um poder; são, mais precisamente, um modo de ser desse poder, e mais, uma condição para sua manutenção. Trata-se da relação que um poder, para constituir-se ou preservar-se, busca manter com aquilo que, a rigor, não possui relação: com aquilo que poderia assumir a figura, incontornável, de um vazio central. Assim, a captura e o controle (que ora são exercidos explicitamente, pelo primado de um poder estatal autoritário, ora são mal-dissimulados pela promessa inclusiva de uma economia sem fronteiras) encontram nesse desbordamento a sua definição. Daí a potência dos trabalhos gráficos de Ferrari.

Aqui precisamos mencionar uma leitura precedente. Roberto Jacoby, como Oscar Masotta uma figura importantíssima para a compreensão das proposições da vanguarda argentina, sobretudo a respeito dos happenings e da arte de los medios, a seu modo já havia

FIGURA 2
(PÁG. ANTERIOR) León Ferrari, sem título. Letraset sobre papel, Publicado em Homens, São Paulo, Edições Licopódio, 1984.

apontado para essas questões em texto de 1987. O gesto duchampiano e a análise foucaultiana do funcionamento do dispositivo panóptico possibilitam ao autor salientar, de maneira notável, a crítica inerente aos planos arquitetônicos de Ferrari, repletos de miniaturas de letraset, cujas cópias eram enviadas a Jacoby (e a outros destinatários) por correio, como arte postal. Para acompanhar seu argumento, vale seguir esta passagem do texto de Jacoby:

[…] A toda luz, se trataba de una arquitectura imposible, no construible. Por más que Ferrari les diera el aspecto de copias heliográficas, su metro y veinte de ancho por 12 de largo, por entero cubiertos con el mapa de miles de dormitorios, comedores, oficinas, baños, cocinas y pasillos habitados por miles de personitas, todo indicaba que esos laberintos sin lógica (y “sin centro”) no podían, tampoco, pertenecer al género de la arquitectura utópica. Nadie se atrevería a proyectar un destino tan horrible para la especie humana. La standarización de la vida se veía de manera brutal debido al uso insistente, indiscriminado, de un sistema industrial de figuración, el Letraset, marca registrada. Ese urbanismo era tan disparatado como inquietante. A lo largo de los planos podían fabularse situaciones que se dudaba en definir como irrisorias o como trágicas: destinos de gente que no se sabe adónde va porque toda la distribución espacial y las conexiones entre lugares y funciones carecen de sentido. La técnica de representación de la industria de la construcción precomputacional

era utilizada como efecto de extrañamiento: el tipo de arte que elabora unidades elementales prefabricadas para otro propósito. Una suerte de objet trouvé, la operación Duchamp ejercida no sobre el objeto-signo, sino sobre una clase especial de signos hechos para diseñar el espacio social urbano. O, más precisamente, pensé, los lugres de encierro. Esa era la clave: se trataba de una vasta cárcel. Una visión traspuesta de la teoría foucaultiana del poder, al menos, de alguna de sus tesis: el dispositivo panóptico donde un ojo soberano vigila sin ser visto, mientras que los observados no se conectan entre sí más que parcialmente. Un territorio que se ordena a fin de disciplinar. El caos que trata de evitar no devendría solo de la acción incontrolada de la muchedumbre, sino de cada minúsculo vínculo de unos con otros. Un aspecto esencial del poder sería la capacidad para organizar el espacio en forma de máquina de comportamientos. Toda la cuadriculación de las ciudades modernas, los sucesivos sistemas clasificatorios de los cuerpos, formaría parte de esta tecnología muda que se impuso en la edificación de escuelas, prisiones, hospitales, fábricas, oficinas y viviendas. En su carpeta Hombres, de 1984, Ferrari ejercía un estilo cada vez más neutro, deshumanizado, un contrapunto respecto de los manuscritos, caligrafías imposibles para una técnica mecánica, que Ferrari usaba desde veinte años antes. Por suerte, una vez que este sentido se hacía presente permanecía siempre un resto incomprensible, “loco”, que invitaba a pensar una idea distinta cada vez. Por ejemplo, los diseños de selvas y jardines (plantas de plantas), también hechos en Letraset, recuerdan a las pinturas de la selva que realizan los aborígenes de Ecuador, en corteza y con tinturas vegetales. Aunque no hay ningún árbol sino un laberinto de líneas, generalmente rectas, sus autores las consideran perfectas representaciones de la jungla. Cárcel, laberinto, selva, ciudad. Y aunque se trate de leer los “hombres” y las “plantas” de Ferrari, marca registrada, en forma independiente del imaginario político social, ellos saltan de uno a otro campo ficcional: el más teórico psicoanálisis o la práctica ingeniería del comportamiento. Figuras repetidas, repetición de figuras, figuración de repeticiones, podrían aludir -no olvidar que la carpeta que recopila estas obras se llama Hombres- a la constitución del sujeto. “Por la repetición el sujeto del inconsciente tiende a la supresión de la diferencia; así trata de obliterar el abismo que lo constituyó”, dice Nicolás Peyceré.Desde el principio sugerimos que estos esquemas iluminan otro campo, inmediato y real en este Cono Sur: el campo de concentración. Con ello se tornan obras de actualidad histórica, documentos de época.

La regimentación de los cuerpos también se observa en las escenas donde aparecen masas, corrientes humanas, flujos de hombrecitos que marchan, casi siempre siguiendo esquemas de fácil matematización: círculos, sinusoides, cuadriláteros. Podría especularse que la uniformación encuentra apoyo en formaciones inconscientes. O bien que, al presentar un espejo, Ferrari desafía a una rebelión contra esos absurdos desplazamientos físicos, contra las ridículas prisiones en que persiste el ser. Hay algo que subleva más que la injusticia en sí: su carácter innecesario. (JACOBY, 1987, pp. 71-73).

Jacoby destaca o aspecto centralizador do dispositivo governamental e seu efeito de atomização social - quando hoje a questão parece recair, precisamente, sobre a efetividade de um poder gestor absolutamente desterritorializado e que pode estimular todos os desejos e contatos possíveis, já que o controle que exerce é flutuante. Seja como for, ganha justo relevo o aspecto carcerário dessa sociedade da exposição sem limites, na medida em que cada passagem possível guarda seu franqueamento cifrado. Ferrari já havia sintetizado a lógica dessa alogicidade: em entrevista a Vicente Zito Lema, afirmara que nessas imagens vemos uma “arquitetura da loucura”8.

Trata-se, com efeito, de uma arquitetura global, a arquitetura da ocidentalização do mundo inteiro; mas sem que deixe de ser, ao mesmo tempo, uma planificação perfeitamente pontual, bem situada numa singular coordenada espaço-temporal: uma arquitetura del Sur. Não do sul da França, como o lugar que serve de cena para o conto pós-apocalíptico - La autopista del sur - de Julio Cortázar, com quem, aliás, León Ferrari se correspondia durante o exílio em São Paulo9. É, neste caso, uma modalização arquitetural - espiralada - de outro mundo: do baixo mundo, do fim do mundo, do Sul do mundo, do Cone Sul. Eis o norte, digamos assim, desses trabalhos de Ferrari. O vazio que eles põem em cena. Algo que o artista já reafirmara em

FIGURA 3
(PÁG. ANTERIOR) León Ferrari, Planta (detalhe), 1980. Tinta e letraset sobre papel, 100 x 100 cm. Publicado em Planos y Papeles, Buenos Aires, Ediciones Licopodio, 2004.

outra entrevista, em 1982, oportunidade em que mais uma vez fez coincidir a impossibilidade da disjunção entre cultura e barbárie:

No hay ninguna intención y no es que yo pretenda representar la locura sino que fue apareciendo [...] claro, evidentemente se usan no sólo los materiales técnicos, sino todo lo que quedó de los años vividos en la Argentina, eso está dentro de quienes salieron de allá. Yo siento la necesidad de poder expresar todo lo terrible que fue y sigue siendo aquello, pero uno no puede decir que quiere hacer algo y proceder, porque antes, tendría que lograr algo con tanta fuerza como todo el horror que fue lo de la Argentina; y si no se hace con un lenguaje que tenga el mismo nivel de fuerza es difícil reflejar esa realidad. Yo no conozco nada en el plano expresivo que tenga la fuerza de la represión en la Argentina. (MALVINO, 1982, p. 50).

FIGURA 4
León Ferrari, sem título. Letraset sobre papel. Publicado em Homens, São Paulo, Edições Licopódio, 1984.

DESMATERIALIZAÇÃO: ARTE E VAZIO

Para além das proximidades do posicionamento político, Ferrari mantém afinidades com artistas que, participando de grupos minoritários, a partir dos anos 1960 avaliavam o que restou do comunismo na União Soviética, depois de Stalin e antes da nova fundação da Europa10. Mas igualmente está em sintonia com procedimentos ensaiados por inúmeros artistas latinoamericanos, individualmente ou em coletivos, durante as últimas ditaduras no Cone Sul. Assim, surgem traços que fazem ecoar um comentário crítico bifronte: dirigido, por um lado, à extrema burocratização da vida sob a racionalidade estatal stalinista e, por outro, à extrema liberalização que em simultâneo toma conta do mundo, e de grande parte da América Latina de maneira singular, por meio da administração da violência nos Estados em regimes de exceção.

A efetividade de tal comentário redunda nas imagens, notadamente aquelas dos planos arquitetônicos e urbanos, que, se de saída parecem reproduzir um dado material mundano, com essa repetição produzem um desvio. Não se trata de correção (de uma visão contrária ou complementar, em todo caso ideologicamente reparadora). Trata-se de expor a racionalidade ordeira ao dado indomesticável que, sendo-lhe indissociável, não cessa de ser violentamente obliterado, excluído, exilado, permanecendo, desse modo, capturado. Trata-se de expor essa lógica e, ainda, de apontar para essa violência: um modo de suspender, quem sabe, sua propriedade apropriadora, que mantém sob controle mesmo aquilo que supostamente foi posto fora. Assim, na base do cálculo, abre-se o desequilíbrio: a falta, o excesso; um elemento qualquer que recompõe ironicamente, ludicamente, como num chiste, reconhecimento e estranhamento11. Trata-se de uma máquina, por certo; mas algo nela parece não funcionar bem: as figuras se aglomeram entre caminhos, cômodos, carros, camas, letras, traços, tabuleiros, mesas, banheiras ou privadas, numa sucessão de labirintos ordinários que parecem conduzir ao frenesi de um movimento neurótico sem fim, isto é, a um modo de paralisia.

A heterogeneidade que se costuma reunir em torno do sintagma “conceitualismo de Moscou” encontra em Ilya Kabakov uma de suas figuras mais notáveis. E talvez seja mesmo o artista que mais se aproxima, em suas proposições e procedimentos, dos interesses e do pensamento que os trabalhos gráficos de Ferrari no exílio dão a ver. A primeira exposição-exílio de Kabakov - seu primeiro aparecimento no mundo ocidental - foi realizada em 1985 na Kunsthalle de Berna, sem a presença do autor12. Am Rande, “à margem”: esse foi o título escolhido por Kabakov para a exposição, que apresentava um tríptico homônimo, de 1974, no qual a marginalidade era repetida com o aspecto formal dos trabalhos:

[…] el centro de los trabajos no muestra sino un vacío indefinido enmarcado por las figuras, como si de un friso se tratase. En el comentario adjunto, Kabakov describe al modo de una parábola la peculiar distribución de los personajes en el cuadro. “Estos personajes se encuentran, igual que el paisaje, siempre ‘al márgen’, ‘en el márgen’: no pueden apartarse ‘del márgen’, ni acercarse un ápice al centro que no les pertenece” (GROYS; DEL JUNCO; HOLLEIN, 2008, p. 65)

Como nos trabalhos de Ferrari, as figuras marginais de Kabakov não se separam de uma vacuidade central que parece espraiar-se pela paisagem. Quer dizer, como se fossem um friso, sim, as figuras mesmas redobram, frisam, mimetizam esse vazio comum, que não lhes pertence. Daí o confim: sempre “à margem”, “na margem”: não podem afastar-se “da margem”, nem chegar um pouco mais perto do centro. E, não obstante, também há aí um ponto perfeitamente determinável, que se mostra através da ambivalência das imagens. Em síntese: se uma potência não é alheia ao “vazio”, tampouco o são o mercado e a nação, visto que igualmente não formam pares de oposições dialéticas com “ele”, e sim, ao contrário, como uma potência, só podem de algum modo “ser” com esse “não-ser”, com esse vazio de ser que, paradoxalmente, os constitui. Essa proposição pôde ser bem ensaiada por outro conceitualista de Moscou, Andrei Monastyrski, a partir dos happenings promovidos em meados dos anos 1970 pelo grupo Ações Coletivas; mas também por Kabakov, num texto de 1990 - no limite do período soviético, portanto - a respeito da ubiquidade da estatização comunista, nomeada pelo autor, desde “outro lugar”, num ponto de vista mais uma vez marginal, como “o vazio”13.

Yo estaba en Checoslovaquia en la primavera del año 1981; y entre otras interesantísimas impresiones e imágenes, destacó una, ligada a la posibilidad de mirar “nuestro lugar” desde otra parte, desde el punto de vista del que se ha ido, desde “otro lugar”. ¿Qué aspecto tiene “por fuera”? Es como si viajáramos, por un tiempo interminablemente largo, en el compartimento de un tren, sentados durante todo el trayecto, sin salir de él para nada, y de pronto, en una parada, saliéramos al andén de una estación, diéramos unos pasos, y desde ese andén, desde fuera, mirásemos a través del cristal al interior de ese compartimento en el que hacía un instante estábamos sentados. Enseguida se apodera de nosotros la principal vivencia que lo une todo, lo define todo y le da a todo su lugar: es una visión clara, definitiva, del vacío, de la vacuidad de ese lugar en el que permanentemente vivimos. (KABAKOV, [1990] 2008, pp. 359-360)

A possibilidade de escandir a experiência e de miniaturizar-se, de ver-se num espaço suplementar muito singular, aquele de uma vacuidade ordinária, vivida dia a dia, é a condição para ver-se a si mesmo e os indivíduos ao redor como tal vazio. Em uma palavra: o exílio é o espaço-tempo da impessoalidade, vale dizer, da suspensão do direito. E não apenas do direito ocidental, liberal, cristão, mas igualmente daquele direito conduzido pela burocratização e violência do Estado comunista, a partir de um ideário na mesma medida universalizante e excludente. Afinal, qual o efeito que se pode esperar do espelhamento desse vazio que se estende indistintamente por todos os espaços de propriedade do “nosso lugar”? Da exposição desse vazio que não significa “vago”, “ainda não semeado ou ocupado”? Como entender a elaboração de um vazio que “não pode ser descrito em termos de apropriação, de população, de emprego de trabalho ou de economia, isto é, nos termos da consciência racionalista europeia”? (KABAKOV, [1990] 2008). Pois o vazio de Kabakov, o ubíquo vazio soviético, tão espacial quanto psíquico, material e imaterial, é aquele que não pode não ser dotado de atividade; mas de uma atividade singular: aquela que só pode ser levada adiante por uma institucionalização da potência do vazio, por uma centralização comunista do comum.

El vacío del que hablo, no es el cero, no es simplemente “nada”; el vacío del que hablo no es una frontera nula, neutralmente cargada, pasiva. En absoluto. El “vacío” es tremendamente activo, su actividad es igual a la del ser positivo, ya se trate de la actividad de la Naturaleza, de la del hombre o de la de fuerzas superiores. Pero su actividad presenta un signo contrario, está dirigida en sentido opuesto, y actúa con la misma energía y fuerza que la aspiración de la existencia viva, la aspiración de ser, devenir, crecer, construir, existir. Con la misma indestructible actividad, fuerza y constancia, el vacío “vive”, convirtiendo el ser en su contrario, destruyendo la construcción, mistificando la realidad, convirtiendo todo en polvo y oquedad. El vacío, repito, es la conversión del ser activo en no-ser activo y, lo más importante y sobre lo que quisiéramos llamar la atención en especial, ese vacío vive, existe, no en sí mismo, sino con la vida, con el ser, a su alrededor; vida que él elabora, que muele, que hace caer dentro de sí. (Ibidem, pp. 360-361)

Nesse vazio, segundo Kabakov, não há memória, não há história. Daí, quem sabe, reforça-se a importância atribuída pelos conceitualistas de Moscou à exposição e, consequentemente, desnaturalização do discurso oficial, por meio de procedimentos que consistiam em atravessá-lo com os entendimentos e desentendimentos idiomáticos, com o caráter lúdico e irônico de muitas de suas proposições, e que o contagiavam, ademais, com as imagens mais correntes do pensamento ocidental, do mercado etc14. Tal exposição contradiz qualquer fábula de voluntarismo, de consenso, de comunidade. Para Kabakov, eis o aspecto da estatalidade burocrática soviética: construções e projetos megalíticos sustentados por nada mais que um vento frio constante fundam e refundam, também constantemente, um espaço-tempo de presente plano, sem fim e sem sentido; salvo, sim - pois sempre há resto -, “uma ligeira memória poética: houve mosteiros como focos de cultura, houve cidades, houve alguma vida em algum momento, quando... onde... tudo se dissipou no vazio como fumaça”15.

Em certo sentido, diríamos que Kabakov, Monastyrski e os demais conceitualistas buscavam seguir, de uma maneira enviesada, ao mesmo tempo literal - isto é, “ao pé da letra”, tocados pelo baixo materialismo da linguagem - e desliteralizante - ou seja, diferindo a estrita ordem do discurso - o ensinamento de um rigor analítico que pode ser lido não apenas em O Capital, mas igualmente no contexto de sua feitura, a partir da vida exílica do seu autor. Horacio González, ele mesmo um exilado da última ditadura argentina, em São Paulo no início dos anos 1980, como Ferrari, sintetizaria esse aspecto das origens do marxismo:

O Capital era o livro de um exilado, escrito graças ao auxílio de um exilado (“full of thanks, Fred”, escreve Marx a Engels, quando os manuscritos estão prontos) e dedicado a um exilado, o operário Wilhelm Woolf, um amigo do Mouro dos primeiros tempos da Liga dos Comunistas, falecido em Londres. Para muitos dos combatentes operários dessa época, o livro era menos portador de uma “vitória científica” do que testemunha do raro talento de um homem que convertia em estudo e rigor analítico as duras condições de vida proporcionadas por esse longo exílio que nunca acabava. (GONZALEZ, 1984, p. 110).

PEQUENOS COLETIVOS, OUTROS ENDEREÇAMENTOS

Talvez pudesse ser dito que o exílio, na medida em que se caracteriza por ser um espaço-tempo não dado a priori, por ser um confim, um vazio, uma potência, não pode não estar sujeito a disputas. Em torno de sua singular ausência entram em contenda distintas demandas, diferentes poderes que dependem dessa figuração do informe para formarem-se. Assim o exílio é reivindicado, uma e outra vez, tanto por aqueles que o encontram como princípio e razão de seus mitos fundacionais quanto por outros que, resistentes a isso, empenham-se, de várias maneiras, em buscar interrupções, aberturas através da exposição desses projetos operantes. Para estes, diante do fechamento, trata-se de encontrar saídas para a saída; de manter aberta a abertura. Em São Paulo, León Ferrari esteve em contato com inúmeros artistas e críticos que incentivavam uma contínua experimentação de meios, materiais, técnicas, linguagens. Xerox, heliografia, carimbos, arte postal, arte em outdoors, em microfichas, por telefone, em videotexto, gravuras, esculturas luminosas, desenhos, design, colagens, montagens, feitura de livros, objetos, instalações, esculturas musicais, performances: a arte, para Ferrari, desdobra-se nos limites do contingencial, enquanto fazer que acontece com outros sujeitos, e com outras coisas, dispersas no mundo; e inclusive com outros fazeres que, às vezes - pode acontecer -, vêm a ser considerados arte.

É um trabalho exílico que pode ser lido na articulação dessa extensa rede disponível que não se limita às fronteiras paulistas ou brasileiras, assim como não se restringe ao que pôde ser registrado no intervalo histórico que vai de 1976 a 1984, embora encontre nessas coordenadas modulações precisas, que de nenhuma forma podem ser desdenhadas. Se a afinidade com artistas e críticos argentinos e com coletivos do conceitualismo moscovita encontra sua emergência, o mesmo ocorre com grupos locais, ou ao menos mais próximos, que também criam suas inflexões a partir da arte conceitual, como os coletivos 3Nós3, Viajou sem passaporte (com integrantes advindos do teatro, herdeiros do surrealismo de Breton e do trotskismo), TIT (Taller de Investigaciones Teatrales), GAS-TAR (Grupo Artistas Socialistas-Taller de Arte Revolucionario) e C.A.Pa.Ta.Co. (Colectivo de Arte Participativo - Tarifa Común), estes últimos, assim como Ferrari, dedicados à cooperação com movimentos sociais ou organizações de direitos humanos16. Artistas como Paulo Bruscky, Mira Schendel, Carlos Zílio, Carmela Gross ou Nelson Leirner também integram essa comunidade contingente. E se há um denominador para os trabalhos desenvolvidos, ele está, com efeito, nos desdobramentos singulares de uma espécie de acefalia comum; na aposta de uma diferença que aparece não só em suportes ou procedimentos, mas também como agente capaz de dar continuidade a um exercício criativo de efetiva desobediência17.

As intervenções urbanas, assim como os trabalhos gráficos de Ferrari, apresentam cartografias do desastre; mas enquanto as intervenções pretendem atuar pontualmente nos hábitos - no habitat -, de acordo com um plano que parece ser mais atento à horizontalidade imediata da vivência sensível da cidade, dificilmente circunscrita pelos limites institucionais da arte ou mesmo da arquitetura, os planos e projetos de Ferrari mostram um distanciamento vertical que, concentrando um ponto de vista pela miniaturização do mundo, apresenta a impossível simultaneidade das experiências e planifica o que seria uma série sem fim de diferenças.

A produção de Ferrari é certamente variada. Mas seja em sua atuação, na primeira metade dos anos 1970, no Fórum pelos Direitos Humanos e no Movimento contra a Repressão e a Tortura; seja na expressão gestual, caligráfica, dos seus desenhos; seja no acento erótico-herético de suas leituras da bíblia; seja na performance com esculturas musicais ou nos monumentos públicos; ou seja, ainda, na colagem com pequenos objetos e brinquedos, o que se vê são experiências em tudo opostas à padronização da vida e à centralização do poder: experiências que apontam, portanto, para uma circulação absolutamente não hierárquica dos contatos, dos sentidos, e que afinal reverberam nas próprias plantas arquitetônicas, miniaturas que, em torno do vazio, planificam o afundamento do cálculo no caos, a extroversão da ordem no delírio.

ALBERTINA CARRI, O CÁRCERE E O BRINQUEDO

Por meio de um procedimento mimético, lúdico, vemos surgir nos planos “construtivos” de Ferrari a estreita intimidade entre ordem e exceção que funda a governabilidade e da qual redunda, com essa figura de um vasto cárcere que se espraia - seja em qualquer deserto (global), seja numa Nação qualquer (Argentina) -, uma sorte de normalização da loucura. Nesse sentido, torna- se marcante a afinidade que o trabalho de Ferrari mantém com Albertina Carri, emblematicamente com o filme Los rubios18. Também no filme de Carri o encarceramento - o estado de exceção como norma - cobra ao mesmo tempo um sentido tão globalizante quanto perfeitamente determinado.

Os bonecos playmobil, como suplementos ou próteses que compõem ao longo do filme o trabalho de rememoração de uma história familiar a rigor inalcançável, apontam o centro ausente do mito pessoal e comunitário que estrutura muitas das subjetividades das gerações descendentes de militantes assassinados ou desaparecidos nos anos sessenta e setenta na Argentina19. Movimentando essas miniaturas, Carri (ou melhor, a atriz que a interpreta), uma das filhas de um casal sequestrado e assassinado em 1977, compartilha com o esquematismo das historietas e com os módulos de letraset o mesmo aspecto fantasmático e suplementário da origem, que assim falta em seu lugar; compartilha, portanto, o mesmo caráter conflituoso das decisões sobre o sentido, das demandas afetivas, das construções identitárias, dos pertencimentos.

A ficção de Carri não deixa de desdobrar sua própria exposição, não deixa de endereçar-se à distância de si e como endereçamento. Com isso evita ocupar o lugar estável dos inúmeros relatos que, ratificando uma pretensa propriedade do discurso testemunhal ou memorialístico, parecem oferecer verdades inquestionáveis de sujeitos supostamente autoconscientes, sem diferença20. “Mais ou menos, eu me lembro do que ela desenhou em sua lembrança”, afirma a atriz-Carri. E a partir dessa descrição de um centro clandestino de detenção (CCD) feita pela personagem Paula L. - sobrevivente que se nega a aparecer no filme ou gravar entrevista e que teria convivido nesse centro, enquanto sequestrada, com os pais de Carri - a atriz-Carri faz um desenho que, mostrado à câmera, se apresenta como um esboço, um plano miniatura dos planos arquitetônicos repetidos por Ferrari.

FIGURA 5
Albertina Carri, Los rubios, 2003. Still de vídeo.

FIGURA 6
León Ferrari, sem título. Tinta e letraset sobre papel. Publicado em Imagens, São Paulo, Edições Exu, 1989.

No desenho sobressai a imprecisão, a insuficiência documental do que emerge como uma malha de recordações e desejos; como nos trabalhos de Ferrari, vale frisar, nos quais tampouco há uma inquestionável marca referencial, algo que os vincule inapelavelmente a uma cidade, um centro. E, não obstante, como vimos, não deixa de habitar esses planos, como na rememoração de Los rubios, a impronta da violência da ditadura argentina: esta seria, em suma, sua cifra histórica, singular-plural.

Ao longo de sua obra e em torno de diferentes questões, Ferrari engarrafou variados objetos; engaiolou miniaturas de santos e de animais; interveio em bonecos, em aviões, tanques e carros de brinquedo; recorreu a baratas e ratazanas de plástico; construiu maquetes etc. Como vimos, ele não está sozinho nesse jogo, que é levado adiante por artistas como Liliana Porter, Nelson Leirner ou Sebastián Gordín. A título de epílogo, uma repetição mais: entre o vir a ser e a extinção, trata-se do ecoar de uma proposta já quase centenária para uma teoria dos brinquedos e dos jogos - uma teoria, enfim, para uma comunidade miniatura:

Um tal estudo teria, por fim, de examinar a grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos: a lei da repetição. Sabemos que para a criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o “mais uma vez”. A obscura compulsão por repetição não é aqui no jogo menos poderosa, menos manhosa do que o impulso sexual no amor. E não foi por acaso que Freud acreditou ter descoberto um “além do princípio do prazer” nessa compulsão. E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial. (BENJAMIN, [1928] 2002, p. 101).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 7
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  • 8
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  • 9
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  • 10
    FERREIRA Glória. Arte como questão: anos 70. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009.
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  • 14
    KABAKOV Ilya. Sobre el vacío. In GROYS, Boris; DEL JUNCO, Manuel Fontán; HOLLEIN, Max. La ilustración total: arte conceptual de Moscú 1960-1990. Madrid: Fundación Juan March, 2008, pp. 358-368.
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    MALVINO Adriana. León Ferrari inaugura hoy su exposición: ningún artista ha logrado reflejar, fuera de Argentina, la violencia de la represión. Unomásuno, Cidade do México, 7 abr. 1982, p. 50.
  • 17
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  • 18
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  • 19
    MASOTTA Oscar. Sur o el antiperonismo colonialista [1956]. In MASOTTA, Oscar. Conciencia y estructura. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010, pp.
  • 20
    MASOTTA Oscar. Reflexiones presemiológicas sobre la historieta: el "esquematismo" [1967]. In MASOTTA, Oscar. Conciencia y estructura. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010, pp.
  • 21
    MONASTYRSKI Andrei. Prologo al primer tomo de Viajes a las afueras de la ciudad [1980]. In GROYS, Boris; DEL JUNCO, Manuel Fontán; HOLLEIN, Max. La ilustración total: arte conceptual de Moscú 1960-1990. Madrid: Fundación Juan March, 2008, pp. 323-330.
  • 22
    NOVAES Adriana Carvalho. O canto de Perséfone: o Grupo Sur e a cultura de massa argentina (1956-1961). São Paulo: Annablume, 2006.
  • 23
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  • 24
    SARLO Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.
  • 25
    VICTORIA Marcos. El cine y la cultura 'Kitsch'. Sur, Buenos Aires, n. 248, pp. 78-86, set.-out. 1957.
  • 26
    VILA-MATAS Henrique. História abreviada da literatura portátil / trad. Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • 27
    Los rubios (2003). Albertina Carri, Argentina, 83 min.
  • 28
    DERRIDA Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana / trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • 29
    DIDI-HUBERMAN Georges. Atlas ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2011.
  • 30
    DOANE Mary Ann. The Emergence of Cinematic Time: Modernity, Contingency, the Archive. Cambridge: Harvard University Press, 2002.
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    GROYS Boris. A arte na era da biopolítica: da obra de arte à documentação de arte. In GROYS, Boris. Arte, Poder / trad. Virgínia Starling. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, pp. 73-82.
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    SARLO Beatriz. Escenas de la vida posmoderna: intelectuales, arte y videocultura en la Argentina. 2 ed. Buenos Aires: Ariel, 1994.
  • 33
    VENTURI Robert, SCOTT BROWN Denise, IZENOUR Steven. Aprendendo com Las Vegas. O simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica / trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

NOTAS

  • 1
    As referências são abundantes. Em sua emergência, o motivo pode ser acompanhado por meio da fundamental leitura de Benjamin, em A origem do drama barroco alemão e no livro sobre as Passagens; além dos textos sobre os jogos e os brinquedos, e o volume Rua de mão única, entre outros. Para um mínimo desdobramento, cf. a Bibliografia Complementar, ao final.
  • 2
    Enrique Vila-Matas deu contorno a uma singular comunidade dos portáteis em livro publicado em 1985. Além de Benjamin e Duchamp, encontramos entre seus membros F. Scott Fitzgerald, Cesar Vallejo, Man Ray, Tristan Tzara, Federico García Lorca e outros. Cf. VILA-MATAS (2011).
  • 3
    Adriana Carvalho Novaes refere-se a Victoria e seu artigo: “Além do perigo e das consequências ainda incertas, a cultura de massa é associada à cultura popular na maioria dos textos. Como por exemplo, em ‘El cine y la cultura Kitsch’, de Marcos Victoria. Ao tratar do advento das massas e do homem-massa, critica sua superficialidade e imediatismo, além da personalização que faz de tudo que conhece. Para Marcos Victoria, a cultura de massa significa o predomínio do kitsch, o declínio da cultura, o comprometimento da leitura, do teatro e a criação de uma linguagem cinematográfica repetitiva” (NOVAES, 2006, p. 106).
  • 4
    Marco é o seminário “Psicoanálisis y estructuralismo”, ditado no Instituto Torcuato Di Tella (palco privilegiado no intenso itinerário das vanguardas portenhas) entre julho e agosto de 1969. Cf. MASOTTA ([1970] 1988).
  • 5
    Em texto de julho de 1956, publicado em Contorno, Masotta rebate a edição especial de Sur, de dezembro de 1955, que saiu na forma de um dossiê de caráter fundacional chamado “Por la reconstrucción nacional”. Segundo Masotta, “desde el momento en que Sur es algo así como la vedette encargada de exhibirse rodeada de los mejores ‘espíritus’ argentinos - ¿qué es lo que se entiende en Sur por espíritu? Espíritu, arte, moral, ciencias: es necesario salvar a las elites de la irrupción de las masas en la historia”. Ainda mais, a revista de Victoria Ocampo podia ser lida como uma cristalização da violência da civilização ocidental e cristã: “Es importante, nos parece, señalar aquí que Victoria Ocampo solo conoce dos modos de comunicación: el grito y el rezo. […] Gritar, notemos, que es la negación del modo más simple de comunicación que se espera de la palabra del otro, simple reconocimiento del otro, para alcanzar a través de él el propio reconocimiento… En el origen del grito está el no reconocimiento del otro. La abolición de la contestación. Gritar es alcanzar al otro en lo que tenga de más esencial, alcanzarlo de un golpe y acallarlo. Más exactamente: herirlo. Herida de lanza o estocada: he ahí la imagen que más perfectamente remeda al grito en el seno de la comunicación. En el rezo, en cambio, se trata de hacer presa del otro, pero de distinta manera: envolviéndolo. Cuando oímos rezar, en voz baja, calladamente, las palabras cuyo significado no alcanzamos a entender van entrando en nosotros lentamente, como en contra nuestra voluntad nos cubren […]. Obsérvese que rezo y grito forman una pareja en que el otro es puesto como objeto y nunca como libertad a convencer. Grito y rezo, espada y oración, el guerrero y el santo […]. Enemigo a doblegar o cuerpo calenturiento, el otro es en ambos casos suprimido como sujeto. Sujeto de conquista o de misión se tiende a convertirlo en objeto. Conquistadores y misioneros por un lado, seres dignos solamente de ser conquistados o salvajes poseídos por alguna religión pagana por el otro: entre estas dos especies de seres de naturaleza tan desigual es imposible el diálogo” MASOTTA ([1956] 2010, pp. 139-140).
  • 6
    Sobre a tensão entre pop, popular e massas, afirma Lawrence Alloway: “La expresión pop art pasa por ser de mi invención pero no sé con certidumbre cuando la usé por primera vez... Además, lo que quise decir entonces con esa expresión no es lo mismo que lo que significa ahora. La usé, ciertamente, y también otra expresión semejante, pop culture (cultura pop), para aludir a los productos de los medios de comunicación de masas, no a las obras de arte basadas en la cultura popular” (ALLOWAY, 1993, p. 27).
  • 7
    Sobre a noção de infraleve, cf. DUCHAMP (1975, p. 194).
  • 8
    “De esta serie de experiencias seguí desarrollando las copias heliográficas, que es la que hoy por hoy más me interesa. En las mismas utilizo imágenes del catálogo de letraset, las que sirven generalmente a los arquitectos para sus proyectos. El resultado tiene el aspecto de planos o urbanizaciones, con cierta gracia surrealista, y también puede verse, de alguna manera, como una arquitectura de la locura. […] Personalmente, cuando las veo terminadas, mi propia interpretación, que no limita ni excluye otras, es que estas obras expresan lo absurdo de la sociedad actual, esa suerte de locura cotidiana necesaria para que todo parezca normal” (LEMA, 1984, p. 22).
  • 9
    Cf. FERRARI (1981).
  • 10
    “La explicación de todo ello hay que buscarla sobre todo en la forma en que, tras la II Guerra Mundial, llegaron a Occidente las noticias sobre los últimos desarrollos en el arte ruso. El Conceptualismo moscovita es una tendencia artística que se desarrolló dentro de la escena artística independiente, no oficial, del Moscú de los años 60, 70 y 80. Este movimiento surgió en las grandes ciudades de la Unión Soviética casi inmediatamente después de la muerte de Stalin, en el año 1953. Y si bien fue tolerado por la autoridad competente, lo cierto es que casi siempre se le dejó al margen de las exposiciones oficiales, así como de los grandes medios de comunicación controlados por el Estado. Por eso, ni el público soviético ni el más amplio público occidental tenían acceso a información alguna sobre este movimiento. […] La elección de las obras se llevaba a cabo, la mayoría de las veces, de un modo casual, y venía determinada principalmente por las amistades personales y las preferencias individuales del coleccionista en cuestión. Más allá, las condiciones de adquisición y exportación de obras de arte no oficiales eran, a menudo, bastante arriesgadas. Y la situación apenas mejoró con el final de la Unión Soviética. Los comisarios y coleccionistas occidentales que llegaron a Rusia en los años 90 se encontraron con una gran cantidad de obras de arte que les resultaban desconocidas y que estaban firmadas por nombres igualmente desconocidos”. (GROYS, 2008, pp. 18-27).
  • 11
    O aspecto lúdico dos trabalhos gráficos de Ferrari e sua leitura pelo viés do chiste freudiano são propostos por Teixeira Coelho na apresentação do livro Imagens. “O que é o chiste, afinal? ‘Contraste de ideias’, ‘o sentido no nonsense’, ‘confusão e clareza’. [...] León mostra agora que [...] é preciso dispensar um pouco o pudor [...]. Com isso segue um dos impulsos motores do chiste, do humor, do traço de espírito, do lúdico, que é o impulso de compartilhar a produção jocosa, produção de jocus, de jogo, lúdica. O cômico, repara Freud, pode ser experimentado sozinho. A prática do jocus, porém, deve ser uma prática em comum: é este o impulso social do jocus [...]. León Ferrari abre sua produção para essa convivialidade pedida por uma nova forma de socialidade (baseada amplamente no pensamento estético) cansada das ilusões, vícios e cumplicidades do velho pensar de tipo (supostamente) lógico e ético cujas inadequações em todos os campos - do político ao econômico passando pelo artístico - nos têm levado ao desespero e à inércia precoces” (COELHO in FERRARI, [1979-1984] 1989, n.p.).
  • 12
    Para as proposições deste trecho, valho-me dos textos e das reproduções no catálogo GROYS; DEL JUNCO; HOLLEIN (2008).
  • 13
    Andrei Monastyrski, em texto de 1980, relata os propósitos de uma série de ações desenvolvidas com espectadores convidados que desconheciam os sucessos a seguir. Tais ações ocorriam fora das cidades e propunham estabelecer relações miméticas entre o “vazio” dos campos físicos e o “vazio” dos campos subjetivos dos espectadores em sua expectativa de participação, de maneira que a imaterialidade do que se entende por consciência viesse a ser um “objeto” significante para a construção do sentido dessas ações. Ou seja: a consciência, nessas ações, espelhava a abertura do campo, e vice-versa: os espectadores, ao verem o campo aberto, fora da cidade, como um “vazio de expectativas”, viam-se vendo esse vazio, e viam-se também como um vazio - construtivo - das ações (MONASTYRSKI, [1980] 2008).
  • 14
    […] la Unión Soviética fue, como es sabido, una institución administrada burocráticamente. No existía en ella la diferencia entre una cultura de masas comercializada y una alta cultura institucional. La cultura soviética era uniforme y estaba marcada exclusivamente por lo institucional. La cultura de masas vulgar estaba administrada de un modo tan centralista, burocrático e institucional como la alta cultura, y en el fondo era valorada, reconocida y difundida según idénticos criterios de corrección ideológica. Por eso, el discurso oficial acerca de lo que era arte jugaba un papel absolutamente determinante en todos los ámbitos de la cultura soviética. El procedimiento capital del Conceptualismo moscovita consistía en utilizar, variar y analizar ese discurso oficial de un modo particular, irónico y profano” (GROYS, 2008, p. 22).
  • 15
    “Lo que más armoniza con la definición de la estatalidad es una metáfora: la imagen del viento que sopla sin cesar por el lado de las casas y entre ellas, que lo atraviesa todo; del viento helado que siembra frío y ruina, que ruge y empuja siempre con la misma presión. […] La estatalidad es precisamente ese mismo vacío […]. Ante todo, la estatalidad es una actividad inconcebible para el hombre, contraria e inaccesible a él por su sentido. Exige de él el cumplimiento de ‘objetivos estatales’, de tareas sólo conocidas por ella, prometiendo a cambio sólo clemencia. […] Esos objetivos incluyen siempre el abarcamiento, la apropiación de todo el territorio ocupado por el vacío, como un todo único. Eso es, ante todo, el rápido desplazamiento por todo el territorio de ese lugar, entendido como una única totalidad plana indivisa. Los moradores de ese lugar están sumidos en ese torrente en torbellino, devienen una partícula impotente de ese torbellino. Por eso, entre las acciones auténticamente estatales figuran proyectos y construcciones megalíticos y sobrehumanos” (KABAKOV, [1990] 2008, pp. 365-366).
  • 16
    As relações entre esses grupos são parte de uma muito extensa rede dos conceitualismos na América Latina. O importantíssimo trabalho de mapeamento dessa rede vem sendo realizado por pesquisadoras e pesquisadores da plataforma internacional Red Conceptualismos del Sur (http://redcsur.net/), que busca reativar a potência crítica das proposições conceituais latinoamericanas. No catálogo da exposição Perder la forma humana: una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina, realizada no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía entre outubro de 2012 e março de 2013, podemos ler um relato desses contatos: “En el verano de 1980, parte de los miembros que integraban el TIT, entre ellos Pablo Espejo, Luis Sorrentino y Ricardo Chiari junto con un grupo de casi 30 personas, viajaron a São Paulo en un autocar que acudió directo al teatro Procópio Ferreira, donde estaba refugiado Juan Uviedo. Al cabo de unos días, los jóvenes del TIT fueron expulsados del teatro y se trasladaron a la Universidad de São Paulo (USP). […] Durante esta estancia en la USP, conocieron a los integrantes de Viajou Sem Passaporte. La pasión entre los dos grupos fue casi inmediata, porque ambos reivindicaban un arte revolucionario y el surrealismo moderno. A diferencia de Viajou Sem Passaporte y 3Nós3, que provenían de familias de clase media, los miembros de TIT eran, según Chiari, ‘lumpen proletarios’ que se establecieron en São Paulo de forma comunitaria con recursos muy escasos, pasando hambre e ideando planes de robo de comida en los supermercados. Aunque en Buenos Aires el TIT trabajaba montando piezas propias o escenificando adaptaciones de obras de autores como Jean Genet, en São Paulo empezó a realizar intervenciones urbanas, muy influidas por 3Nós3 y Viajou Sem Passaporte”. “GAS-TAR y C.A.Pa.Ta.Co llevaron a cabo durante toda la década de los ochenta y los primeros años noventa una serie de intervenciones callejeras participativas (gráficas, performáticas), a la vez que propiciaron movidas masivas dentro de espacios contraculturales (como el Parakultural, Babilonia o Mediomundo Varieté). En muy pocas ocasiones se instalaron en los márgenes del circuito artístico tensionando sus lógicas internas. Por el contrario, su espacio privilegiado fue claramente la calle en el marco de movilizaciones masivas, en su mayor parte convocadas por el movimiento de derechos humanos, aunque también asumieron la intervención en conflictos obreros (en especial, la larga huelga de la fábrica Ford en 1985) y desplegaron solidaridades internacionales (de claro signo internacionalista)”. (RED Conceptualismos del Sur, 2012, pp. 57, 227).
  • 17
    Acefalia encenada, por exemplo, na intervenção chamada Operação ensacamento do coletivo 3NÓS3 (Hudinilson Júnior, Mario Ramiro e Rafael França), realizada em São Paulo, na noite de 27 de abril de 1979, e que consistiu em cobrir com sacos plásticos a cabeça de 69 esculturas e monumentos públicos da região do Ipiranga até o centro velho da cidade. A intervenção foi lida como vandalismo; mas também foi considerada uma forma de protesto contra o apagamento da memória pública da cidade, sendo, neste caso, a chamativa obliteração das cabeças um jogo com o in-visível. Mas devemos considerar, sobretudo, que a ação foi levada a cabo durante a ditadura, aludindo, portanto, a situações de tortura - sufocamento, desaparecimento - praticadas no Brasil e em outros países do Cone Sul. Cf. FERREIRA (2009).
  • 18
    Los rubios (2003). Albertina Carri, Argentina, 83 min.
  • 19
    O lúdico como forma de encenação mimética das contendas reaparece, em Carri, no curta-metragem Barbie también puede eStar triste, de 2001, no qual vemos uma crítica da violência da estrutura patriarcal da sociedade, que normaliza práticas sexuais, gêneros, padrões de beleza, de família etc.
  • 20
    Posição que se vê na dessemelhança que permite o contato entre as figuras da testemunha, da diretora e da intérprete, por exemplo; e que se reforça na questão da estrangeirice que dá título ao filme: los rubios designa a família de Carri, segundo a descrição de vizinhos entrevistados; família em que, ao que tudo indica, ninguém era loiro. Mas a equipe de produção decide assumir essa diferença, de modo que a ficção se encerra com todos usando perucas loiras. Nas palavras da atriz que faz a vez de Carri: “Sí lo que era extraño era cómo llamábamos la atención en el lugar, no? Porque, digo, más allá de la cámara éramos como un punto blanco que se movía y era muy evidente que no éramos de ahí, ¿no?, que éramos extranjeros para ese lugar y me imagino que sería parecido a lo que pasaba en su momento con mis padres… este… estábamos desde otro lado…” (Los rubios, 2003). Sobre o assunto, cf. SARLO (2005).
  • SOBRE o autor

    Artur de Vargas Giorgi é Professor Adjunto de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    07 Nov 2021
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