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Esboço de uma definição de tragédia à brasileira: Álbum de família, de Nelson Rodrigues, encontra o modernismo dos anos 1970

Outlining a definition of Brazilian tragedy: Nelson Rodrigues’ Álbum de família meets the Modernism of the 1970s

Esbozo de una definición de tragedia brasileña: Álbum de família, de Nelson Rodrigues, encuentra el modernismo brasileño de los 1970

Resumo

Este texto se propõe a examinar, através de leitura crítica e cerrada, três dramas brasileiros situados em dois momentos históricos de efervescência modernista - ambos ocorridos no Brasil durante o século XX - e que têm em comum a temática da família. A partir disso, objetivou-se mapear as singularidades do que seria uma tragédia à brasileira em comparação a outras formas dramáticas que se desenvolveram posteriormente em solo nacional. Os dramas são Álbum de família (1945), de Nelson Rodrigues, o eixo tonal da análise aqui proposta - dela partirá a tentativa de definir o drama trágico -, Em família (1970), de Oduvaldo Vianna Filho, e Hoje é dia de Rock (1971), de José Vicente.

Palavras-Chave:
Nelson Rodrigues; Tragédia; Modernismo brasileiro; Família

Abstract

This work aims to analyze, by critical and close reading, three Brazilian dramas set in two historical moments of modernist ebullience - both happening in Brazil in the 20th century - and which had in common the subject of the family. From that, the aim was to map the particularities of what could be a Brazilian tragedy, when compared with other dramatic forms that later flourished on national soil. The dramas are Álbum de família (1945), by Nelson Rodrigues, the tonal axis of the analysis proposed here - from it will come an attempt to define tragic drama -, Em família (1970), by Oduvaldo Vianna Filho, and Hoje é dia de Rock (1971), by José Vicente.

Keywords:
Nelson Rodrigues; Tragedy; Brazilian Modernism; Family

Resumen

Este texto se propone realizar una lectura atenta de tres dramas brasileños, que están situados en dos agitados momentos históricos del modernismo de Brasil - ambos ocurridos en este país durante el siglo XX - y que coinciden en el tema de la familia. Para ello, se pretende mapear las singularidades de lo que sería una tragedia brasileña en comparación a otras formas dramáticas, que luego se desarrollaron en el país. Los dramas son Álbum de família (1945), de Nelson Rodrigues, eje central de este análisis - del cual partirá el intento de definir el drama trágico -, Em família (1970), de Oduvaldo Vianna Filho, y Hoje é dia de Rock (1971), de José Vicente.

Palabras clave:
Nelson Rodrigues; Tragedia; Modernismo brasileño; Familia

O objetivo deste texto é estabelecer uma comparação entre dois momentos do drama brasileiro que compõem o que chamarei aqui de dois modernismos distintos ocorridos no século XX. Farei isso partindo de três peças de teatro que abordam frontalmente a temática da família. Essa escolha metodológica justifica-se pela convicção de que, colocando lado a lado obras com o mesmo tipo de conteúdo tratado por autores e tempos diferentes, as variações formais de cada drama se tornarão mais claras. Os dramas são Álbum de família, peça de Nelson Rodrigues escrita em 1945; Em família, de Vianinha, escrita em 1970; e Hoje é dia de Rock, de Zé Vicente, peça de 1971. Aviso de antemão que o centro da análise comparativa será Álbum de família, visto que o propósito é depreender a natureza e a especificidade daquilo que seria uma tragédia em oposição a outras formas dramáticas de modernidade mais evidente.

O tema da família é particularmente profícuo para esse tipo de reflexão por dois motivos. Primeiro, porque é relativamente fácil encontrar dramas sobre questões familiares na história do teatro, e os exemplos vão de Édipo rei a Mãe Coragem, passando por Hamlet, Casa de bonecas e As três irmãs - se se trata de disputas por poder, questões morais e pecuniárias, choques geracionais ou da mediocridade da vida familiar burguesa, nos dirá sempre o momento histórico em que as obras foram escritas. Segundo, porque há uma tradição crítica relevante (STEINER, 2006STEINER, George. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva , 2006.; SZONDI, 2004SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. São Paulo: Cosac Naify, 2004.) que considera que houve uma mudança significativa da hegemonia da tragédia para um conceito mais genérico de “drama sério”, a partir do século XVIII, que passou, entre outros fatores, pela entrada em cena de conflitos da vida privada cuja ação se desenrola não mais nos salões, mas nas salas de jantar - e que sinaliza, portanto, a importância do núcleo familiar burguês como material de representação para o teatro, ao mesmo tempo em que aponta sua entrada na vida histórica iniciada com o capitalismo.

Antes de encarar os dramas em si, faz-se necessário dizer duas palavras sobre os períodos em que se situam essas peças. De início, é preciso considerar que as três têm em comum o fato de terem sido escritas durante as ditaduras brasileiras - a primeira no fim do Estado Novo da Era Vargas, e as outras duas no período mais violento da Ditadura Militar. Nenhuma delas dialoga diretamente com o contexto repressivo no qual estão inseridas, o que torna mais complexa a tarefa de desvelar em que sentido elas são - e devem ser - fruto de seu tempo histórico. Álbum de família (2017) é a terceira peça daquele que é considerado um dos primeiros modernos da dramaturgia nacional - modernidade que, diga-se de passagem, desenvolveu-se tardiamente no nosso teatro se comparado às outras artes, algumas se iniciando no modernismo ainda na década de 1910. Pouco foi especulado na crítica de teatro brasileira sobre o suposto atraso da modernidade nesse ramo artístico, mas é possível arriscar alguma hipótese. Talvez o teatro, por ser a arte mais dependente de uma espécie de pacto estabelecido com o público, necessite que a sociedade na qual floresce já possua um certo grau de consciência cultural adquirida coletivamente - de Bildung, pra usar o conceito alemão - para que consiga compartilhar com ela de suas premissas estéticas sem que seja rejeitado em bloco. Essa dependência era um dos grandes motivos de angústia do próprio Nelson Rodrigues, que chegou a afirmar em suas memórias que “dos gregos a Shakespeare, de Ibsen a O’Neill, todos escrevem para a senhora gorda”, “comedora de pipocas”, e que, portanto, “ela é coautora de cada texto dramático” (RODRIGUES, 2008RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2008., p. 176) - fato que faria do teatro “uma arte bastarda; uma falsa arte” (ibid., p. 177). Nessas mesmas memórias, o dramaturgo relembra um encontro com o colega Vianinha em que este lhe diz: “teatro é plateia” (ibid., p. 178). Deixando de lado o tom rancoroso de Nelson Rodrigues sobre esse fato, o depoimento está alinhado ao espírito do tempo e às demandas modernas da arte, que vinham reivindicando autonomia na construção de uma linguagem própria e a emancipação com relação a outros campos - demandas que, no caso do teatro, adquirem uma coloração muito particular, uma vez que a exigência pela satisfação do público seria sempre uma barreira a seu livre desenvolvimento.

No Brasil, é possível que a formação de um público de teatro não mais interessado apenas em distrações leves e montagens comerciais tivesse de esperar que o país passasse por um processo de modernização que só se iniciaria com o fim da República Velha e a incipiente industrialização daí decorrente, o que forneceu então ao drama materiais de representação mais avançados e já plenamente aderidos à vida social urbana da época. É o que se deduz da investigação de Décio de Almeida Prado (2009PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.) sobre o teatro brasileiro moderno e seu resgate das companhias teatrais que vinham se formando no país pós-política do café-com-leite, cujas aspirações artísticas já vinham se desatrelando de metas de bilheteria. Mas, em se tratando do Brasil ainda predominantemente rural das décadas de 1930 e 1940, tais materiais de representação não eram lá muito mais avançados - pelo menos, eram ainda bem distantes daqueles da sociedade alemã para quem Brecht escrevia, formada por um operariado sólido e anônimo que habitava um país industrial. Álbum de família é escrita dois anos depois de Vestido de Noiva, peça de Nelson Rodrigues considerada o marco inaugural do modernismo teatral brasileiro e, portanto, contemporânea ao frenesi do contexto de sua recepção - bebe de suas inovações formais, mas definitivamente seu material de representação é mais arcaico, embora não fosse menos atual.

Em família (2007) e Hoje é dia de Rock (2010), por sua vez, são fruto de um Brasil de modernização madura, de burguesia ascendente, e que já havia passado por Juscelino Kubitschek, pela Bossa Nova, pela construção de Brasília, pelo Tropicalismo, pelo Cinema Novo e pelo Concretismo. Havia uma intensa disputa em torno do que seria uma cultura genuinamente brasileira (SCHWARZ, 1999), que se aproveitou do acúmulo de discussões do começo do século e foi além dele, assumindo com ainda mais convicção a natureza antropofágica das nossas vanguardas artísticas e já em condições de estabelecer contrastes mais nítidos - ora de forma mais cínica, ora crítica - entre nosso cosmopolitismo, de um lado, e nosso subdesenvolvimento, de outro - contrastes dos quais a Ditadura foi, segundo Roberto Schwarz (2014SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras , 2014.), a nossa melhor síntese. No que diz respeito às artes dramáticas, já havíamos conhecido Dias Gomes, o Teatro de Arena, o Teatro Oficina e o que ficou conhecido pela crítica como Nova Dramaturgia brasileira; todos esses movimentos ajudaram a consolidar uma linguagem dramática autenticamente brasileira, já relativamente autônoma com relação às demandas de mero entretenimento do público e, portanto, com pretensões políticas e estéticas próprias, menos efêmeras e mais ambiciosas.

Minha sugestão é que Álbum de família constitui um espécime bastante representativo de tragédia à brasileira, cuja definição pretendo ainda esclarecer. A família patriarcal rodriguiana - mineira, católica, incestuosa, rural e pró-oligarquias cafeeiras, como nos informa o coro no terceiro ato1 1. O speaker, que para parte da crítica faz as vezes de coro em Álbum de família, conta-nos que o patriarca da família “havia passado um telegrama ao então presidente Artur Bernardes, tachando de reprovável e impatriótica a revolução de São Paulo. Nada lhe entibiava o civismo congênito. (…) Justamente se cogitava da eleição de Jonas para o Senado Federal na seguinte Legislatura” (Álbum, p. 407). - é a mesma da casa-grande de Gilberto Freyre (1984FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1984.), cujos valores rígidos de fidalguia provinciana se chocam com a vida sexual degenerada dos patriarcas, festejada pelo sociólogo como fundadora da nação brasileira - fenômeno que ele chamou de sifilização. Note-se que há em Gilberto Freyre uma vontade de reconstituir as origens da formação do povo brasileiro que em muitos momentos assume tonalidades míticas; de outro lado, é como se o núcleo familiar rodriguiano agisse na tragédia encenando a truculência que é apenas sugerida no ensaio freyreano, mas que é a base de nossas raízes coloniais. Em Gilberto Freyre, a moral sexual brasileira, malgrado desregrada, constituiu “o único processo de colonização que teria sido possível no Brasil: o da formação, pela poligamia (…) de uma sociedade híbrida” (Ibid., p. 48). A indistinguibilidade entre natureza e cultura, convivendo de modo harmônico num arcaico equilíbrio de influências, também assume ares mitológicos em Casa-grande & senzala:

Se é certo, como querem antropólogos modernos, que “a irregularidade de relações sexuais tem em geral manifestado a tendência para crescer com a civilização”; que nos animais domesticados encontra-se o sistema sexual mais desenvolvido que nos selvagens; que entre os animais domésticos, amolecidos pela relativa falta de luta e de competição, as glândulas reprodutoras absorvem maior quantidade de alimento; e, ainda, que o poder reprodutor no homem tem aumentado com a civilização da mesma maneira que, nos animais, com a domesticação - podemos nos arriscar a concluir que dentro de um regime como o da monocultura escravocrata, com uma maioria que trabalha e uma minoria que só faz mandar, nesta, pelo relativo ócio, se desenvolverá, necessariamente, mais do que naquela, a preocupação, a mania, ou o refinamento erótico. (…) Nada nos autoriza a concluir ter sido o negro quem trouxe para o Brasil a pegajenta luxúria em que nos sentimos todos prender, mal atingida a adolescência. A precoce voluptuosidade, a fome de mulher que aos treze ou catorze anos faz de todo brasileiro um don-juan não vem do contágio ou do sangue da “raça inferior” mas do sistema econômico e social da nossa formação; e um pouco, talvez, do clima; do ar mole, grosso, morno, que cedo nos parece predispor aos chamegos do amor e ao mesmo tempo nos afastar de todo esforço persistente. Impossível negar-se a ação do clima sobre a moral sexual das sociedades. (Ibid., p. 320)

Só que na linguagem rodriguiana não há um vestígio sequer da prosa descritiva, afetuosa e conciliatória própria de Gilberto Freyre; pelo contrário, em Álbum de família afloram com violência os clássicos conflitos universais típicos da célula familiar, presentes de Sófocles a Freud, mas que se desenrolam num cenário de Brasil profundo do início do século XX, ainda semiescravocrata e onde, segundo o sociólogo, estaria a essência da cultura brasileira. Mas se Freyre e Nelson Rodrigues partem do mesmo ponto - a família patriarcal rural brasileira -, é certo que apontam para direções distintas. Pois se Freyre, compartilhando dos ímpetos modernistas de se pensar a origem e as forças de composição da nação brasileira, apostou que da comunhão das raças, ainda que feita sob dominação e coerção violentas, surgiria uma civilização brasileira fecunda e rica capaz de ser interpretada como uma unidade cultural e econômica, em Álbum de família, o que ocorre é o oposto: a total descrença de que seja possível, do núcleo familiar assim constituído, haver qualquer pacto civilizatório. É a falência da proposta de nação e de cultura de Gilberto Freyre: não há flor que resista a tamanho lodaçal. É verdade que não há no drama de Nelson qualquer representação de conflito racial; a força da ação é absolutamente centrípeta, cujo vetor aponta para o núcleo familiar branco, e o enredo gira em torno dos desejos incestuosos de pai com filha, de filha com pai, de mãe com filhos, de filhos com a mãe e de irmão com irmã - e dos respectivos ódios que daí decorrem, numa trama para lá de edipiana, o que lhe rendeu mais de vinte anos de censura. É um reforço da tese básica de Freud (2013) de que não é possível sociedade sem o tabu do incesto, com risco de consequências sanguinárias a qualquer ideia de comunidade e ímpetos de retorno à natureza instintiva. O negro é mencionado apenas três vezes em toda a peça, e as menções apenas reforçam o racismo congênito da família patriarcal brasileira. Destaco aqui os dois momentos mais relevantes: a primeira vez numa fala de Tia Rute, agregada da família e cúmplice das perversões sexuais do patriarca Jonas, à sua irmã, D. Senhorinha:

Uma vez em Belo Horizonte, eu saí com você… (…) uma porção de sujeitos sopravam coisas no seu ouvido - às vezes cada imoralidade! Mas a mim nunca houve um preto, no meio da rua, que me dissesse ISSO ASSIM!… (…) Quer dizer, toda mulher tem um homem que a deseja, nem que seja um crioulo, um crioulo suado, MENOS EU! (Álbum de família, p. 378)2 2. Para melhor acompanhamento do leitor, as referências aos dramas citados neste trabalho seguirão o seguinte padrão: título do drama, seguido da paginação, na primeira menção, e palavras-chaves do título seguidas da paginação nas menções posteriores.

O desabafo é mais complexo do que aparenta à primeira vista e posiciona a personagem fora do circuito libidinoso familiar, do qual participa apenas lateralmente, relacionando-se com o todo da peça de forma particular; mas infelizmente não será possível desenvolver esta reflexão aqui, pois ela escapa ao recorte de análise proposto. Ainda uma outra vez o negro aparece numa indicação de rubrica já no final do terceiro ato, no enterro do filho Edmundo - que se mata depois de um diálogo grotesco com os pais, no qual o casal lhe revela que D. Senhorinha teve um amante que foi assassinado por Jonas, e que, portanto, não tinha sido ele, Edmundo, o amante de sua mãe:

Pouco depois, entram quatro homens. Cai a luz; os homens trazem tochas. Vão levar o esquife de Edmundo. São pretos, de grandes pés, e nus da cintura para cima. Calças arregaçadas até o meio das pernas. (…) Os homens vão levar Edmundo. Esta é uma cena de que se deve tirar o máximo de rendimento plástico. (Álbum, p. 413)

Essa é a única participação cênica do negro em toda a peça, e é difícil dissociá-lo, nessa descrição, da condição de escravo. Apesar de discreta, essa cena é fundamental para que seja possível estabelecer no drama o contraste entre a dinâmica da casa-grande - cruel, repressora e depravada em si mesma, mesmo na ausência do que Gilberto Freyre chamou de “escravo doméstico” - e a senzala, que só aparece na condição de figurante - aliás, esse contraste só é possível por causa dessa cena. A indicação “esta é uma cena de que se deve tirar o máximo de rendimento plástico” sugere que há uma espécie de “clímax estético”, se é que podemos chamar assim, nesse momento da trama, o que eleva sua importância relativa no drama. Elaborando o que a crítica chamou de “arquétipos”, mais ou menos universais, mais ou menos brasileiros - o patriarca provinciano terrível, a esposa adúltera, a tia solteirona, o filho ex-seminarista, os pretos que carregam o caixão -, Nelson Rodrigues preferiu retratar o nosso atraso, a barbárie que persiste miticamente na sociedade brasileira, a apontar, em tom otimista, as cenas de seu tempo que guardavam uma promessa de progresso.

Uma das muitas definições de tragédia disponíveis à crítica - e, como todas, igualmente insuficiente -, que pode ser deduzida a partir da própria Poética de Aristóteles (2005), aponta que ela é a encenação de um conflito entre partes distintas ou antagônicas que agem por meio da palavra. Implícita nessa definição está a ideia de que a ação se dá pela palavra, como se cada fala trágica consistisse num enunciado performativo. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Franco Moretti, em palestra recente transmitida pelo Laboratório de Estudos do Romance da USP, apontou que, na Antígona de Sófocles, aquilo que efetivamente mata a heroína é a clareza desconcertante de seu diálogo com Creonte, sem ambiguidades, ironias ou subentendidos (TRAGEDY…, 2021). Essa mesma clareza é o que, em Álbum de família, agride o leitor-espectador: há uma violência ininterrupta nos diálogos e o estado de conflito está tão estruturalmente incrustrado no drama que ele se torna obsceno, quase insuportável. É possível, inclusive, afirmar que os diálogos incestuosos são os menos obscenos, consistindo num relaxamento da tensão que se acumula de maneira aguda em alguns pontos, uma vez que o amor é quase sempre correspondido e, por isso, não há conflito. Veja-se, por exemplo, o seguinte diálogo que se desenrola entre Jonas, D. Senhorinha e Edmundo, um dos filhos apaixonado pela mãe, na ocasião da revelação do adultério materno:

D. SENHORINHA - Edmundo, ele me obrigou a chamar Teotônio no dia seguinte (…) e o matou dentro do meu quarto! Como se fosse um cachorro!

JONAS - Matei.

D. SENHORINHA - Depois, começou o meu inferno. (…) Todo dia, na frente de outras pessoas, seu pai batia nas minhas cadeiras - dizia - FÊMEA!

EDMUNDO - Eu fazia o mesmo!

JONAS - Mas nem isso - nem FÊMEA você era… ou foi… comigo. Nem você nem nenhuma mulher que eu conheci. (…) Todas me deixam mais nervoso do que antes - doente, doente, querendo mais não sei o quê. (…) Nem FÊMEAS as mulheres são! (…) O que mais me admira é que ela sempre foi FRIA! Nunca teve uma reação, nada. Parecia morta! (…)

EDMUNDO - Não passa de uma fêmea!

D. SENHORINHA - Então, por que você deixou tudo - esposa - e veio para cá?

EDMUNDO - Vou voltar para Heloísa!

D. SENHORINIHA - Quero ver!

EDMUNDO - Fêmea. (Álbum, pp. 403-404)

A hostilidade desse diálogo é bastante representativa do conflito pela palavra que se sucede ao longo do drama todo - aliás, qualquer trecho da peça poderia ter sido randomicamente selecionado para os propósitos deste texto e seria igualmente representativo da linguagem violenta de Álbum de família, tamanha a sua unidade formal. Mas há um outro aspecto digno de atenção e que, nesse trecho, se revela de forma emblemática: o aspecto carnal, instintivo, que é o verdadeiro motor da ação do drama. É como se suas personagens fossem seres mais próximos do animal do que do humano; há uma força irresistível - que a psicanálise chamaria de pulsão - que impede que qualquer racionalidade se instaure, qualquer cálculo, qualquer mediação. Ela puxa as personagens para sua natureza mais primitiva, propondo um retorno ao mundo pré-civilizado. Nesse ponto, a abordagem de Nelson Rodrigues não difere tanto da de Gilberto Freyre, para quem a cultura brasileira só foi possível graças aos hábitos sexuais poligâmicos dos senhores de engenho, que promoveram a confraternização das raças e o surgimento de novas raças híbridas, “superiores”. O contraste entre os dois se dá na relação que cada um deles estabelece entre natureza e cultura: se, para o sociólogo, entre elas há uma linha de continuidade, para o dramaturgo, há uma incompatibilidade absoluta, cujo constante atrito só poderá resultar na destruição de um dos campos de força - e, em Álbum de família, é a própria civilização que sucumbe sob a soberania da animalidade.

Comentários que exaltam a animalidade das personagens são uma constante de Álbum de família, e aparecem muitas vezes vinculados às funções reprodutoras do corpo, como se nota nessa fala de D. Senhorinha, a “mãe fecunda”, como o speaker a denomina:

D. SENHORINHA - Ela não podia ser mãe - de modo algum. Não tem bacia - quase não tem bacia. (…) Graças a Deus sempre fui feliz nos meus partos… (…) muitas rasgam, levam pontos. Eu, nunca! (…) [para si mesma, com orgulho, acariciando o próprio ventre] O médico disse que as minhas medidas eram formidáveis… Que eu tinha bacia ótima… (Álbum, p. 394)

Esse tipo de fala está alinhada ao que ordena o coro logo no início da peça, em clara ironia: “E não esquecer o que preconizam os Evangelhos: ‘Crescei e multiplicai-vos!’” (Álbum, p. 350). O significado desse comentário, feito meio em tom de profecia, meio em tom de maldição, vai se revelando na medida em que a ação do drama progride, permitindo-nos perceber que é falsa a sua indumentária de transcendência religiosa; “multiplicar-se” é um imperativo da natureza que, em contato com os valores civilizatórios, acarretará em destruição e desagregação - e nunca em reforço ou alastramento dos vínculos culturais, como sugeriu Gilberto Freyre.

Agora comparemos o diálogo entre D. Senhorinha, Jonas e Edmundo citado acima com o seguinte, do drama Em família, de Vianinha, que também encena um conflito. Nele, os filhos discutem entre si o que fazer com os pais idosos que, sem casa própria ou herança de qualquer qualidade, acabam prometidos a um asilo:

SOUZA - …qualquer lugar que vocês arranjem pra gente serve… uma casinha pequena e… não faz mal que seja distante… nós não saímos: televisão, um passeio por ali mesmo, bate-papo… vidinha curta… se cada um de vocês pudesse entrar com uma pequena…

ROBERTO - Uma pequena parte das minhas dívidas?

JORGE - Não, Beto, agora não é hora de graça, realmente agora…

ROBERTO - … olha como estou sério: aonde vou arranjar dinheiro?

JORGE - … você poderia dar um tiro nos miolos e deixar o dinheiro do seguro por exemplo…

ROBERTO - …e como é que pago a apólice?…

JORGE - …por exemplo, economizando no choppe, em whisky ou… (…)

NELI - …meu marido é rico, Roberto, mas é dinheiro dele, eu não tenho nada, sou pobre, eu…

ROBERTO - …mas não há coisa mais pobre nesse mundo que você, querida, imagino que essa roupa, por exemplo, você conseguiu na LEA, não foi? Ou foi na Casa do Pequeno Jornaleiro? (…) Jorge, você não está comprando um título do Motel Clube?

JORGE - Estou Roberto! Depois se você quiser pode ir aos hotéis tomar suas bebedeiras diárias! (…) De dois em dois meses eu dou dinheiro pra ele papai. Dia sim, dia não, almoço em casa...

ROBERTO - Ele é quem me chama pra mostrar o automóvel de quatro portas! (Em família, loc. 85-107)

Esse é o típico diálogo vulgarmente qualificado como “mesquinho”. O motivo do conflito é inequívoco: dinheiro. O diálogo é atulhado de termos pecuniários: dinheiro, dívidas, seguro, apólice, economia, rico/pobre, título… Pode-se dizer que toda a ação da peça é movida pelas questões materiais que afligem a célula familiar de classe média composta de pai, mãe e cinco filhos que moram, em sua maioria, em apartamentos exíguos (com exceção de Neli, que possui marido rico mas com quem tem uma relação conturbada) e que efetivamente encontrarão problemas em abrigar os progenitores em seus lares - nada mais realista. Souza, o pai, está longe de incorporar o patriarca que centraliza a família, como é Jonas, que na peça de Nelson Rodrigues é uma espécie de semideus fálico - uma força da natureza instintiva animal, de “vaga semelhança com Jesus” (Álbum, p. 347), como o dramaturgo o descreve na apresentação dos personagens e a filha Glória confirma posteriormente. “Não é testamento não. Vocês sabem que eu não tenho nada pra deixar, como é que podia ser testamento?” (Em Família, loc. 53-64), responde Souza à pergunta do filho sobre o motivo pelo qual brindaram no almoço, cuja real razão era o seu despejo e o da esposa. Sem herança, o velho casal reduz-se a nada ou, quando muito, a um estorvo - sua existência se traduz em cálculos de custo-benefício, de ganhos e de gastos para os filhos; ou seja, sua principal e mais importante qualidade são suas posses - ou, no caso, a falta delas. Isso é exatamente aquilo que Marx identificou como sendo o atributo divino do dinheiro: sua capacidade mágica de transmutar quantidade em qualidade:

o que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas - [de] seu possuidor - qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. (MARX, 2010MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 159)

Isso não significa, contudo, que os filhos sejam portadores de uma índole maligna. Não há juízos morais pressupostos, nem qualquer ideia de natureza humana em jogo: há apenas as necessidades materiais e de sobrevivência dos indivíduos, que os tornam joguetes das contingências sociais, atrás das quais está o dinheiro, o grande manipulador da fábula. A própria ideia de sacrifício nesse contexto aparece como um equivalente de perdão de dívidas, uma vez que assumir a guarda dos pais é o mesmo que isentá-los de pagarem o que supostamente ficariam devendo ao guardião; é o que Neli dá a entender quando responde aos irmãos: “vocês! Vocês têm inveja que eu… eu vivo bem e daí? Precisa ter raiva? Eu dou dinheiro pra você, Roberto, meu marido já ajudou o Jorge que nem sei e… não vê que eu acabei de propor fazer o maior sacrifício? Ficar com os dois assim pro resto da vida?” (Em família, loc. 145-157). Questões mundanas dessa natureza passam ao largo das preocupações da família rodriguiana, cujo deus não é o dinheiro, mas a natureza pulsional humana. Percebe-se aí uma das distinções entre um conflito trágico e um conflito característico do realismo burguês.

Enquanto o casamento de Jonas e D. Senhorinha é o núcleo para o qual apontam todos os vetores da ação de Álbum de família - ponto de origem da família primitiva que age como se fosse “a única e primeira”, conforme diz Edmundo (Álbum, p. 400), e cuja intensidade do amor e do ódio que gera é tão destrutiva que acaba por exterminá-los -, na peça de Vianinha, o pragmatismo da vida urbana, movido pela necessidade de dinheiro e trabalho, tende a ir deixando para trás os vínculos afetivos que antes faziam do casal procriador o altar sagrado da pequena comunidade familiar. A virilidade de Jonas, varão destemido que subjuga esposa e filhos até quase o último minuto da peça - e tão convicto a ponto de, a certa altura, bradar a D. Senhorinha e Tia Rute “eu sou o PAI! O pai é sagrado, o pai é o SENHOR!” (Álbum, p. 359) -, está muito distante do remorso nostálgico assumido por Souza e do tom indulgente de Lu no diálogo final de Em família, quando o casal está prestes a ser separado pela ação dos filhos:

LU - Que besteira, Souza, que besteira… você não vê que ficou mais difícil do que pra nós?… viver assim correndo, sem pra que, sem família grande, sem companheiros, sem nada a que se apegar, em apartamentinhos e contas e contas e taxas, só sobreviver, só sobrar e mais nada? Não. Pra eles ficou muito ríspido viver, Souza… (…) SOUZA - …a melhor coisa pra julgar uma época é ver como vivem os velhos… acho que nossa época não teria muito boa cotação, não… nós somos marginais, Lu… marginais dentro de casa, marginais nas famílias que nós fizemos… sei lá, o trabalho virou uma obrigação tão cega, tão árida que eles acham que nos premiam deixando a gente trabalhar mais… e com isso nos põe de lado e pronto… consciência tranquila… e a gente precisa ficar velho pra sentir que tudo é muito desumano… (Em família, loc. 663-674)

Já na “peça-romance” Hoje é dia de Rock, de Zé Vicente, de estilo bem mais experimental que as outras duas, praticamente não há conflito: o que há, numa mistura de diálogo com narração, é uma transição geracional pacífica do sertão para a cidade, do velho para o novo, da tradição para a vanguarda, numa linha reta - quase como num romance de formação. Os longos trechos narrativos em nada lembram o estilo épico que, aqui no Brasil, fez parte dos laboratórios do Teatro de Arena. Não há coringa, coro ou qualquer espécie de narrador: a prosa simplesmente invade os diálogos, por vezes sem diferenciar-se minimamente do ritmo dialógico do texto dramático - inclusive, fazendo uso do discurso indireto -, indicando autonomia da peça com relação à sua montagem no palco, como no trecho a seguir:

PEDRO - Eu escutei a música uma vez. Só uma vez. Inteira. Nessa época eles moravam na beira duma estrada e tinha uma venda, por onde passavam uma jardineira, de semana em semana, levando não se sabe pra onde uma gente magra, suja de uma terra vermelha, e que estava indo-se embora. Adélia, que era quem cuidava dos negócios, olhava do balcão da venda esses retirantes silenciosos e jurava que um dia ia vender tudo: até os alqueires de terra, onde só existia pedra.

E que ia juntar a mudança e os filhos e seguir pela estrada com eles até um lugar onde tivesse futuro. (Hoje é dia de rock, pp. 216-217)

Diferente de Álbum de família, tanto nessa peça quanto na de Vianinha a força da ação é centrífuga, dispersora: os filhos não estão retornando ao lar familiar, mas esvaziando-o em direção a uma vida cosmopolita, mais móvel e instável, em que a ideologia da busca por oportunidades, seja via trabalho, seja via nomadismo hippie, indica um movimento progressivo, e não cíclico.

Os ares liberais dos anos 1970 se fazem sentir em falas como “se o mundo não é bom, faça o seu” (Hoje é dia, p. 275), de Ifigênia, freguesa do botequim da família, e “casamento é fria! Sempre me disseram que casamento é fria! Também, se não der certo eu me separo, porra!” (Hoje é dia, p. 287), de Isabel, a filha que foge da vida familiar interiorana com o popstar Elvis Presley. Um tal pragmatismo positivo está totalmente indisponível à lógica implacável da tragédia rodriguiana; se bem que o speaker faça a todo momento comentários irônicos sobre o matrimônio e a célula familiar patriarcal - uma vez que estão em total desacordo com a ação efetiva das personagens -, o divórcio não parece ser uma opção real à mesa. Sua realização como enunciado performativo está muito mais distante do que a solução pelo assassinato ou suicídio, saídas mais ajustadas à organicidade própria da peça. (Esse mesmo pragmatismo está presente na postura da família vicentiana quanto à ida do filho Davi para o seminário. Enquanto Davi desiste da batina pela simples “falta de vocação”, Guilherme, em Álbum de família, faz a mesma escolha porque, mesmo castrado, não consegue se libertar do desejo que sente pela irmã). Por isso, quando o speaker pronuncia exclamações como “e ainda há quem seja contra o casamento! (…) Uma mãe assim é um oportuno exemplo para as moças modernas que bebem refrigerantes da própria garrafinha!” (Álbum, pp. 364-365), ou “os divorcistas que se mirem neste espelho (…) só o matrimônio perfeito proporciona tão sadia e edificante felicidade” (Álbum, p. 413); quando o speaker pronuncia exclamações desse tipo, embora em tom de ironia crítica, não está fazendo uma defesa da superação da instituição do casamento, tampouco do fim da união entre D. Senhorinha e Jonas. Em vez disso, o efeito é de atestar a eternidade dessa instituição, ainda que seu destino seja inexoravelmente trágico. O mesmo se pode dizer do imperativo “se o mundo não é bom, faça o seu”: tal processo positivo de individuação - de negação tranquila e indolor do todo - não é possível num microcosmo onde os sujeitos sentem a existência “como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse (…) Então, o amor e o ódio teriam que nascer entre nós” (Álbum, p. 400), como expressa Edmundo em Álbum de família.

Em Hoje é dia de Rock, a desagregação familiar é repetida formalmente no texto dramático. Não há unidade de ação: as cenas são fragmentárias e desconexas, intercaladas por lembranças narradas pelos personagens em linguagem poética, recordando um passado arcaico cujo imperativo é que seja esquecido, “e não tem lágrima” (Hoje é dia, 2010, p. 276), como sentencia Neuzinha, a esposa cigana de um dos irmãos. Há um impulso, vindo dos filhos, rumo à modernidade que nem é impedido, nem sentido com rancor pelos pais; apesar de inevitáveis, os tempos modernos não são encarados com fatalismo trágico, mas com otimismo. “Eu quero fazer minhas unhas, gosto de arrumar meu cabelo… Eu quero… Eu quero ser moderna… Eu quero… Eu não quero nada impossível!” (Hoje é dia, p. 254), é o que diz a personagem Isabel. “Mas se você ficar”, pergunta Rosário, a irmã mística que é o “repositório da memória da família” (como ficamos sabendo na apresentação dos personagens), a Davi, “você tem alguma coisa pra fazer aqui? Porque por mim não… Não sei o papai e a mamãe… Por mim eu não ligo” (Hoje é dia, p. 289). A despedida da tradição rumo à modernidade é feita de forma conciliada, sem obstáculos. O único lampejo de dúvida e angústia quanto à chegada do futuro - e a perda da unidade que dela advém - surge num rápido diálogo entre Pedro e seu Guilherme:

SEU GUILHERME - Eu vi coisa demais na minha vida, seu Pedro! E foi embaralhando tudo… embaralhando tudo… e de vez em quando eu pergunto: será que isso tudo tem relação? Será que existe alguma ordem que liga isso tudo? Algum fio? Será? Existe alguma relação, seu Pedro?

PEDRO - É difícil, seu Guilherme. Difícil.

SEU GUILHERME - Pra nós que somos músicos, tem. Tem ou não tem, seu Pedro?

PEDRO - Tem. Tem e não tem. (Hoje é dia, p. 272)

Um diálogo assim evasivo também destoa da clareza obscena de Álbum de família, a qual Moretti considera atributo da tragédia (TRAGEDY…, 2021). Vejamos o diálogo entre D. Senhorinha e a nora Heloísa, esposa de Edmundo, foco da disputa entre as duas mulheres:

HELOÍSA [abstraindo-se] - Três anos vivemos juntos. [apaixonadamente] Três anos e ele nunca - está ouvindo? - tocou em mim…

D. SENHORINHA [fascinada] - Quer dizer que nunca?

HELOÍSA [baixando a cabeça, surdamente] - NUNCA!

D. SENHORINHA [aproximando-se da outra, olhando-a bem nos olhos] - Nem na primeira noite?

HELOÍSA [desprendendo-se como uma sonâmbula] - Quando queria, e me procurava, a lembrança da “outra” IMPEDIA! Então, ele me dizia: “Heloísa, ‘Ela’ não deixa!” Me lembro de uma vez, eu fiz tudo…

D. SENHORINHA [perturbada] - Tudo como?

HELOÍSA - TUDO o que uma mulher pode fazer, as coisas mais incríveis!

D. SENHORINHA [devorada pela curiosidade] - Fez… então?

HELOÍSA [veemente] - Perdi inteiramente a vergonha, não sei. Também, eu estava! A princípio, ele ficou assim… Mas depois a lembrança da “outra”… Me senti tão humilhada - mas tão! (Álbum, pp. 409-410)

O tom de confissão em estilo pergunta-e-resposta - acompanhado por uma ostensiva gestualidade que vai se construindo como consequência de cada fala, em andamento alegro - exige uma conversa sem ambiguidades, em que a pergunta seguinte cumpre a função de dissipar a menor sombra de dúvida que possa ter pairado sobre a resposta anterior - num esquema semelhante ao da conversa entre Antígona e Creonte analisada por Moretti (TRAGEDY…, 2021). As palavras “nunca” e “tudo”, em si mesmas genéricas e vazias, vão se preenchendo de significado à medida em que vão ganhando atributos que esclarecem sua qualidade para o leitor, num processo de desnudamento tanto da língua quanto da personagem Heloísa. O “tem e não tem” de Pedro, por outro lado, como resposta à questão existencial de Seu Guilherme, é a indefinição total: é como se a personagem quisesse se eximir da responsabilidade de produzir afirmações categóricas que pretendessem desvelar grandes mistérios e, dessa forma, que pudessem indicar um rumo unívoco para a ação do drama. O ápice dessa indefinição é a resposta que a Índia, personagem que é como uma aparição fantasmagórica no seio da família, dá a Adélia, a mãe, quando esta lhe pergunta sobre o futuro dos filhos: “não me pergunta com palavra o que eu não sei responder com palavra” (Hoje é dia, p. 248). Essa é a declaração antitrágica por excelência, pois esvazia a palavra de sua potência performativa e de sua qualidade fetichista, desencantando-a em direção talvez do puro gesto, ou da narração pura.

Coincidência ou não, em Hoje é dia de Rock a origem também é fixada em Minas Gerais, lugar que deve simplesmente ser deixado para trás, como demonstra essa fala-tema, dita por Adélia que aparece com algumas variações em outros momentos do drama: “Minas morreu. Acabou. Nem mar não tinha. Nós é que estamos vivos!” (Hoje é dia, p. 220). Também a Índia diz aos pais na ocasião de sua mudança, depois que o pai, Pedro, “perde a memória”: “Pra que teu ouvido não escute. Teu olho não veja. Tua boca não fale. Teu nariz não cheire. Tua mão não apalpe, mais, Minas vai virar lenda. E não vai ter nem dor… Nem lembrança mais… Até que apague esse tempo. E um novo tempo venha”. E o novo tempo, conforme vai ficando claro no desenrolar da peça, é uma colagem que junta Elvis Presley, Coca-Cola, James Dean, palavras em inglês, astrologia, teorias sobre o fim do mundo e disco voador. “O que não pode é ficar”, diz Neuzinha. “Ficar é apodrecer. Ficou, apodreceu”. É a direção oposta do impulso que guia os personagens de Álbum de família: a proposta de Guilherme a Glória, sua irmã, é “fugir para bem longe! (…) Nada de casa, de parede, de quarto. Mas chão de terra! E não faz mal que chova! (…) Mesmo no amor! Quarto, não, nem cama! Terra, chão de terra!” (Álbum, p. 388). O novo, na tragédia rodriguiana, é o retorno ao natural - apenas o recomeço do ciclo. Quando, na penúltima rubrica, após o assassinato de Jonas pela esposa, lê-se que “D. Senhorinha parte para se encontrar com Nonô e se incorporar a uma vida nova” (Álbum, p. 419), subentende-se que ela se juntará ao filho por quem nutria um amor correspondido e que os dois viverão no mato, que Nonô habitava nu em pelo desde que endoidecera ao se deitar com a mãe - fato que constitui na peça a verdadeira origem da ruína da família. Essa vontade de retorno também está presente na seguinte fala de Edmundo à mãe: “O homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá, toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega, não sei. (…) O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento - foi teu útero…” (Álbum, p. 400).

Em seus escritos sobre teatro, Brecht (1957BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro: para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugália, 1957.) afirmou que o drama tradicional focado na ação de indivíduos tinha se tornado insuficiente para representar a nova realidade capitalista, com suas formas sociais abstratas e seus parques industriais repletos de anônimos. Um “teatro de uma época científica” (Ibid., p. 110) estaria mais interessado em dar relevo ao ambiente no qual se inserem as personagens, levando o espectador a refletir sobre a racionalidade própria por trás das dinâmicas sociais, que, em seu modelo de teatro, deveriam se manifestar de forma independente no palco, e não mais subordinadas aos sujeitos dramáticos. Os principais acontecimentos da vida do homem moderno - tais como a luta de classes - já não cabiam dentro dos vetores de ação típicos da tragédia, ou mesmo do drama moderno, tal como este se desenvolveu no fim do século XIX e início do século XX, e por isso a técnica dramática do épico - narrativa, descritiva e distanciada - se apresentaria como mais conveniente e receptiva à vida no pós-primeira guerra. De maneira análoga, George Steiner (2006STEINER, George. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva , 2006.), em A morte da tragédia, afirmou que seria impossível realizar na modernidade uma tragédia absoluta, visto que seus materiais - tais como o dinheiro, a ciência, os hábitos de vida racionalistas e o definhamento da ideia de comunidade - seriam incompatíveis com a forma trágica.

A trajetória histórica do drama brasileiro, no entanto, vai de encontro a essas hipóteses ao nos oferecer a tragédia como ponto de partida de um incipiente modernismo, ainda interessado em registrar nossas mitologias e em compreender quais os aspectos arcaicos que persistiam em nosso acidentado processo modernizador. Dos anos 1940 aos 1970, notamos que a família burguesa se consolidou como material dramático de representação, embora não possamos dizer o mesmo sobre os conflitos de classe, fato que deu contornos especificamente brasileiros ao nosso teatro de influência brechtiana, cuja melhor síntese é o teatro do oprimido de Augusto Boal (2019BOAL, Augusto. Teatro do oprimido. São Paulo: Editora 34, 2019.). Em nosso modernismo maduro, a construção de heróis nacionais em formato épico, como aventado pelo Teatro de Arena, conviveu com o realismo de Vianinha e com o drama desbundado de Zé Vicente - narrativo sem ser épico -, ao mesmo tempo em que Nelson Rodrigues prosseguiu com a forma trágica até sua morte - e, nesse mesmo período, foi elaborando cada vez mais a matéria brasileira, retratando o carioca suburbano em suas desimportantes e sôfregas aventuras de vida e morte. Essa convivência entre teatro épico e tragédia, entre cosmopolitismo e reflexões sobre o genuinamente brasileiro, entre o tradicional e o experimental, entre o burguês e o caipira - nenhum menos relevante historicamente que o outro no panorama dramático brasileiro - é particularmente rica para se refletir em que medida as teorias sobre o drama produzidas na Europa dão conta de apreender as particularidades da modernidade literária da periferia.

Referências Bibliográficas

  • ARISTÓTELES. Arte poética. In ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2005.
  • BOAL, Augusto. Teatro do oprimido. São Paulo: Editora 34, 2019.
  • BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro: para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugália, 1957.
  • FREUD, Sigmund. Totem e tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
  • FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1984.
  • MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.
  • RODRIGUES Nelson. Álbum de família. In RODRIGUES, Nelson. Teatro completo de Nelson Rodrigues: peças psicológicas e míticas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. v. 1.
  • RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
  • SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras , 2014.
  • SHWARZ Roberto. Fim de século. In SHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • STEINER, George. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva , 2006.
  • SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
  • TRAGEDY e Conflict. Apresentado por Franco Moretti (University of Stanford). São Paulo: Laboratório de Estudos do Romance da USP, 2021. Duração 1h35m33s. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VkGRziaNdoI&t=4444s Acesso em: 9 nov. 2021.
    » https://www.youtube.com/watch?v=VkGRziaNdoI&t=4444s
  • VIANNA FILHO Oduvaldo. Em família. 2007. E-book (692 partes) (Coleção Vianninha Digital). v. 14.
  • VICENTE José. Hoje é dia de Rock. In VICENTE, José. O teatro de José Vicente: primeiras obras. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.

Notas

  • 1.
    O speaker, que para parte da crítica faz as vezes de coro em Álbum de família, conta-nos que o patriarca da família “havia passado um telegrama ao então presidente Artur Bernardes, tachando de reprovável e impatriótica a revolução de São Paulo. Nada lhe entibiava o civismo congênito. (…) Justamente se cogitava da eleição de Jonas para o Senado Federal na seguinte Legislatura” (Álbum, p. 407).
  • 2.
    Para melhor acompanhamento do leitor, as referências aos dramas citados neste trabalho seguirão o seguinte padrão: título do drama, seguido da paginação, na primeira menção, e palavras-chaves do título seguidas da paginação nas menções posteriores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    07 Jun 2022
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