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O FUNERAL DE GIRODET E A DERIVA ROMÂNTICA

GIRODET’S FUNERAL AND THE ROMANTIC DRIFT

EL FUNERAL DE GIRODET Y LA DERIVA DEL ROMANTICISMO

RESUMO

O funeral de Girodet é tomado como ponto de inflexão no advento do romantismo, marcado por embates que envolveram Delécluze, Stendhal, Auger, Gros, Ingres, Delacroix. Busca-se demonstrar a centralidade do ateliê de David na emergência da nova orientação. Até 1824, os termos estavam embaralhados e, só então, houve um esforço para distinguir as correntes, que foram de fato infladas no processo político que culminou na Monarquia de Julho. Menos do que a afirmação de um estilo ou de um ideário, o que estava em jogo era a multiplicação de escolhas ao sabor dos caprichos dos indivíduos, que tendiam a colocar em xeque o sistema hierárquico dos fazeres artísticos, como foi bem observado nas críticas de Baudelaire, Heine e Thoré.

PALAVRAS-CHAVE
Crítica de arte; Romantismo; Classicismo; Girodet; Delécluze

ABSTRACT

Girodet’s funeral is seen as a turning point in the advent of romanticism, marked by clashes involving Delécluze, Stendhal, Auger, Gros, Ingres, Delacroix. We seek to demonstrate the centrality of David’s studio in the emergence of a new orientation. Until 1824 the terms were mixed up and only then there was an effort to distinguish the currents, which were in fact inflated in the political process that culminated in the July Monarchy. Less than the affirmation of a style or a thought, what was at stake was the multiplication of choices at the whim of individuals, which tended to call into question the hierarchical system of artistic practices, as observed in the criticism of Baudelaire, Heine, and Thoré.

KEYWORDS
Art Criticism; Romanticism; Classicism; Girodet; Delécluze

RESUMEN

El funeral de Girodet es tomado como punto de inflexión del advenimiento del romanticismo, señalado por disputas que involucraron a Delécluze, Stendhal, Auger, Gros, Ingres y Delacroix. Se busca demostrar la centralidad del taller de David en lo nacimiento de una nueva orientación. Hasta 1824 los términos estaban confusos y solo entonces hubo un esfuerzo por distinguir las corrientes, un proceso político que culminó en la Monarquía de Julio. Menos que la afirmación de un estilo o una ideología, lo que estaba en juego era la multiplicación de estilos y elecciones a gusto de los caprichos de los individuos, que tendían a cuestionar el sistema jerárquico de los oficios artísticos, como observado en las críticas de Baudelaire, Heine e y Thoré.

PALABRAS CLAVE
Crítica de arte; Romanticismo; Clasicismo; Girodet; Delécluze

O artigo trata do cenário artístico francês em 1824, ano da morte de Girodet. Seu objetivo é examinar o ocaso de uma grande escola por meio de um olhar cruzado sobre dois personagens aparentemente secundários, em face da grandeza histórica e da fortuna crítica de Jacques-Louis David, o mestre. Girodet foi um aluno muito talentoso, mas de trajetória conturbada, que, já no Império, buscou afastar-se de David; e Delécluze, um aluno que logo trocou o pincel pela pena e se firmou como crítico de grande influência e, como tal, produziu um documento incontornável para o conhecimento das artes na França, entre as décadas de 1780 e 1820: o livro Louis David, son école et son temps (1855).

A escolha por esse momento respondeu à pretensão de produzir um corte sincrônico, pois a hipótese que conduziu a pesquisa era de que nele estava se produzindo uma mutação. 1824 correspondeu à entrada em cena daqueles que foram ditos ou já se diziam românticos; e o salão de então foi o início de uma escalada que culminaria em 1831, data do apogeu dos românticos, no primeiro salão depois da revolução de julho de 1830, que ficaria marcada pela pena de Victor Hugo e pelo pincel de Eugène Delacroix. 1824 foi também o ano em que Jean-Auguste Dominique Ingres, depois de um início de carreira heterodoxo, aos olhos de muitos, apresentou um quadro convencional, O voto de Luís XIII, e se preparou para assumir o comando da arte acadêmica francesa, que começava a se definir como clássica. Com isso, pode-se dizer que a oposição entre clássicos e românticos – que, de forma simplificada, correspondia à disputa entre os adeptos do linearismo por oposição ao colorismo ­– estava configurada, mas não a ponto de formar escolas rivais, por mais que Ingres e Delacroix tenham se comportado como líderes e produzido obras de forte carga simbólica, demarcando posições.

O problema residia no fato de que a mutação em curso não era apenas estética, mas dizia respeito também à relação social que se trava entre a arte e outras ordens da vida e, de forma mais prosaica, do artista com seu cliente. Liberando-se dos limites e dos ditames da política e da religião, dominando a matéria artística por meio de técnicas cada vez mais refinadas, conhecendo como nunca as tradições das velhas escolas, o artista podia se rebelar contra a ideia de um sistema único ou mesmo de um sistema polarizado – contre l’esprit de système era uma palavra de ordem tanto de Quatremère de Quincy como de Chateaubriand, de Degerando, de M me. de Staël, de Cousin – e, senhor de sua técnica, podia frequentar as mais variadas tendências da arte.

O romantismo deslizou dessa forma para um acentuado individualismo nos fazeres artísticos, que seguiu par a par à deriva do gosto dos clientes, não mais presos a padrões estáveis, como foi observado por Étienne-Jean Délecluze em 1826 (a partir de um comentário de François Gérard), por Heinrich Heine em 1831 e, mais tarde, em 1846, por Charles Baudelaire. Nos termos deste, o que havia acontecido era o fim das grandes tradições e de suas escolas, acompanhado do advento do ouvrier émancipé, com pretensões de originalidade. É nessa senda que o artigo encontra e propõe uma nova definição de romantismo, que foi intuída por Théophile Thoré também no comentário do salão de 1846.

Girodet, o morto

Anne Louis Girodet de Roussy-Trioson morreu em dezembro de 1824, aos 57 anos. Acadêmico, coberto de glórias, pertencia ao seleto grupo dos três grandes artistas em G, Gros (1771-1835), Gérard (1770-1837), Girodet (1767-1824), os melhores discípulos de Jacques-Louis David (1748-1825), que de tão bons rivalizavam com o mestre, aos quais se pode agregar um quarto, Guérin (1774-1833), que, apesar de não ter sido formado diretamente por David, gravitou em torno do grupo.

A rivalidade entre artistas e escolas é parte constitutiva da história social da arte. Desde que as vidas de artistas começaram a ser narradas, na Itália do século XVI, constituindo-se subgênero retórico derivado de viris illustribus da Antiguidade, o tema da rivalidade lhe é consubstancial. O que parece característico da escola de David é que a rivalidade foi incorporada no ateliê não apenas no âmbito do jogo entre os discípulos, no qual é parte da rotina formativa, mas também no relacionamento do mestre com seus alunos.

Sem abdicar de sua posição de ascendente, David operava uma diminuição da distância face aos discípulos. Ao obrigá-los a realizar cópias em formato menor de suas obras mais destacadas, os mantinha em posição servil, na tarefa de apurar suas maneiras no espelho do estilo do mestre; ao chamá-los para executar trechos importantes de seus próprios quadros, em que se exigia não apenas trabalho mecânico, David incorporava as virtudes dos alunos nos projetos que impulsionaram sua própria glória. Ao permitir que dentro de seu ateliê se formassem círculos de cúmplices, ou mesmo pequenas seitas, 1 1 A que produziu mais ruído foi a dos Barbus, também conhecidos como Penseurs ou Primitifs, que girava em torno do carismático Maurice Quaï, de quem pouco se conhece além do anedotário gerado no próprio ateliê. Sobre a seita, cf. DELÉCLUZE ( 1983). beneficiava-se do debate ou das novidades que surgiam no entrechoque dos talentos.

No interior de sua escola, David foi capaz de sustentar a ideia de destino comum, fortemente ancorada em um conjunto de opções estéticas e políticas, amarrada em sólida teia de relações afetivas viris, tendo a disputa como alimento cotidiano. 2 2 Sobre rivalidade e emulação no ateliê de David, cf. CROW ( 1997). Mesmo que as opções estéticas tenham sofrido inúmeras torções, e as opções políticas tenham sido desmentidas nos processos de acomodação às sucessivas realidades do poder, a ideia de que aqueles artistas formavam um grupo sobreviveu por várias décadas. Essa característica da escola, espécie de comunidade afetiva de guerreiros em disputa generalizada, convida a pensar que Gros, Gérard e Girodet foram tão bons porque, instigados por David, rivalizavam com o mestre.

Girodet possuía trunfos que não eram comuns a todos os discípulos de David, particularmente aqueles relacionados à origem social e à formação letrada. Era herdeiro de uma família burguesa, medianamente enriquecida e nobilitada no serviço da administração dos bens do duque de Orleans, o que lhe propiciou ensino particular de retórica desde a infância, em Montargis, que se completou no Colégio Mazarin, em Paris. Transferido muito jovem para a capital, ficou sob os cuidados de um amigo da família, o doutor Benoit Trioson, médico muito bem-posicionado na corte, que dele cuidou como um filho e o adotou após a morte do pai, quando Girodet completou 22 anos. No período de formação, Trioson não permitiu que faltasse a Girodet a educação clássica letrada, apesar de sua precoce vocação para as artes do desenho, orientada inicialmente para a arquitetura. Foi por indicação do arquiteto Boullée que Girodet ingressou, em 1784, no ateliê de David.

Como observou Delécluze, para David, no ensino da arte, mais do que a transmissão de uma habilidade, o que contava, sobretudo, era “o desenvolvimento da inteligência artística do aluno” ( DELÉCLUZE, 1983, p. 292DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Louis David, son école et son temps. Paris : Macula, 1983.). Dentro desse princípio, o bom domínio do latim, o conhecimento do grego e a familiaridade com os autores clássicos, que eram vantagens de Girodet, constituíam sólida base para o sucesso no interior da escola. A utilizar uma expressão do próprio Girodet, pode-se dizer que sua formação letrada o habilitava para enfrentar o problema da “ordenação poética”, que é parte da invenção e precede a “ordenação pitoresca”. 3 3 “L’ordonnance poétique, que l’on doit considerer comme une partie de l’invention, si ce n’est l’invention elle-même, doit toujours précéder l’ordonnance pittoresque […]. L’ordonnance poétique se réglera donc sur les convenances du sujet: elle se conformera aux temps, déterminera les lieux, observera les moeurs et les usages, elle conservera les costumes. D’après les donnes de l’histoire et de la mythologie (...).” ( GIRODET, 1829b, p. 209–210) Na pedagogia da escola de David, que seguia uma característica do próprio mestre, importava menos a facilidade do pincel e valorizava-se muito o lento e meditado processo de elaboração do conceito que preside a fatura da obra.

Se Girodet possuía muitas qualificações, próprias do modelo de formação neoclássica, no entanto, por seu temperamento e pela época em que viveu não pôde moldar sua personalidade conforme aqueles ideais de calma e grandeza, aquele aristocratismo do tipo humano, afeito ao belo e à graça, projetado por Johann Joachim Winckelmann em seus escritos.

Girodet teve que lidar com a sombra de Jean-Germain Drouais, o discípulo predileto de David, falecido aos 25 anos, em 1788, e transformado em motivo de culto por toda a escola (cf. CROW, 1997CROW, Thomas. L’atelier de David: émulation et révolution. Paris: Gallimard, 1997.); 4 4 Ver capítulo 3. teve que lidar com a rivalidade direta de François-Xavier Fabre, que arrebatou o Grande Prêmio de 1787, depois de ter acusado Girodet de burlar as regras do concurso causando uma humilhante desclassificação. 5 5 Girodet realizou estudos preparatórios e os introduziu escondido no ateliê a ele reservado para pintar o quadro que concorreria ao prêmio. Essa prática era proibida, e François-Xavier Fabre (1766-1837), seu colega no ateliê de David, o denunciou. Cf. Crow ( 1997, p. 112). E, sobretudo, teve que suportar a falta de entusiasmo de David, mesmo depois de ter colaborado em duas de suas obras mais notáveis com soluções de grande originalidade. 6 6 Girodet foi responsável por parte do corpo e do rosto da mulher de Brutus e contribuiu no tratamento final do claro-escuro de Les licteurs rapportent à Brutus les corps de ses fils. É dele também a solução para o fundo (o túnel em arco e a escadaria) de La mort de Socrates. Cf. Crow ( 1997, p. 126–132). Mesmo assim, depois de quatro anos no ateliê de David, Girodet obteve o Grande Prêmio, em 1788, e pôde então seguir para Roma, tendo deixado Paris nas vésperas da Revolução.

Girodet permaneceu em Roma até 1793, quando foi obrigado a refugiar-se em Nápoles, depois do saque e do incêndio da Academia Francesa, que em época de radicalização jacobina viveu um conflito aberto com a Santa Sé. Sua participação na oposição republicana na Itália não é indício suficiente para se pensar nele como um radical. Passado o 18 Brumário, adaptou-se às novas circunstâncias assim como, mais tarde, na volta dos Bourbons.

No que diz respeito à sua relação com Bonaparte, há elementos que aparentam um distanciamento no que tange ao culto de sua personalidade e à celebração das glórias imperiais, a que toda Escola se entregou. A comovente figura de um paxá morrendo nos braços de um escravo mouro, representada por Girodet em La révolte du Caire (1798), foi interpretada como demonstração de simpatia pelos vencidos ( BELLENGER, 1999BELLENGER, Sylvain. Girodet et la littérature, Chateaubriand et la peinture. In FUMAROLI, Marc (org.). Chateaubriand et les Arts. Paris: Fallois 1999, p. 111-135.). Mas, de fato, isso não estava de todo longe da própria propaganda imperial, que buscava quase sempre figurar o general em atitude benevolente para com os derrotados, na tentativa de mostrar que a guerra era seu último recurso e que, depois da vitória, sempre haveria sua mão estendida.

Antes de o romantismo ser um problema para a Academia, Girodet já havia retratado François-René de Chateaubriand (1768-1848), naquela que se tornou a imagem mais conhecida deste, e representado Atala, personagem do escritor; havia também convivido com Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814), para quem ilustrou uma nova edição de Paul et Virginie; e aderido ao culto a Ossian. 7 7 Na Itália, Girodet conviveu em um círculo em que se destacavam vários artistas envolvidos no culto de Ossian: o inglês Flaxman, o escocês Wallis, os alemães Carstens e Rehberg, a suíça anglófila Angélica Kaufmann e o crítico Amaury Pineu-Duval (cf. LEMEUX-FRAITOT, 2005, p. 135). Sobre o quadro dedicado ao bardo escocês (encomenda do Imperador), que além do tema setentrional já revelava diálogo com o colorismo de Rubens, David teria dito diretamente a Girodet: “eu não me reconheço nessa pintura; não, meu caro Girodet, de forma alguma eu me reconheço”. 8 8 No original: “(...) je ne me connais pas à cette peinture-là; non, mon cher Girodet, je ne m’y connais pas du tout”. Todas as traduções do francês são do autor deste texto. E depois, reservadamente a Delécluze, teria sido mais enfático: "O que é isso! Girodet perdeu o juízo... Ou ele é louco ou eu não entendo mais nada da arte da pintura" 9 9 No original: “Ah ça! il est fou, Girodet!... il est fou, ou je n’entends plus rien à l’art de la peinture”. ( DELÉCLUZE, 1983, p. 266DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Louis David, son école et son temps. Paris : Macula, 1983.).

Se David expressou tamanha estranheza com o estilo de seu aluno, Girodet, por seu lado, não deixou de manifestar a diferença que julgava haver entre sua arte e a do antigo mestre. Em carta ao seu padrasto, confessou o deliberado esforço para se afastar ao máximo do gênero de David, e não se furtou em declarar a satisfação de saber que começava a formar-se uma opinião geral em torno da ideia de que sua arte em nada se assemelhava à arte de David (cf. GIRODET, 1829bGIRODET, Anne-Louis. De l’ordonnance en peinture. In COUPIN, Pierre Alexandre; GIRODET, Anne-Louis. Oeuvres Posthumes de Girodet-Trioson. Tome II. Paris: Jules Renouard, 1829b, p. 209-223.).

O estranhamento e a disputa entre ambos culminaram no episódio dos prêmios decenais. Napoleão pretendia, em 1810, envolver todas as Classes do Instituto de França na tarefa de julgar e premiar as mais importantes obras realizadas depois de 1800; e a Classe das Belas Artes foi incumbida de selecionar 20 quadros entre as mais destacadas obras da Escola Francesa. O concurso dividia-se em duas categorias: “Pintura de História” e “Pintura representando um assunto honorável para o caráter nacional”. Foi na primeira que David e Girodet rivalizaram. No processo que envolveu a escolha das obras e a destinação do prêmio, a Classe das Belas Artes se viu em uma situação bastante delicada já que os candidatos eram, quase todos, membros da própria classe, e as obras que mereceram maior destaque foram Les sabines (1799), de David, e Scène de déluge (1806), de Girodet. Apesar da tarefa de realizar um parecer qualitativo das obras e indicar a melhor, os acadêmicos foram evasivos, como se a situação resvalasse no empate, mas não deixaram de colocar o quadro de Girodet no topo da lista, o que foi entendido como a vitória do discípulo sobre o mestre para muitos que acompanhavam o processo com entusiasmo. 10 10 Os dez quadros de história selecionados foram Cena de dilúvio (Girodet), As Sabinas (David), A consternação da família de Príamo (Garnier), Os três anjos (Gérard), Atala (Girodet), Marcus Sextus (Guérin), Fedra e Hipólito (Guérin), Os remorsos de Orestes (Hannequin), Telêmaco na ilha de Calipso (Meynier), A Justiça e a Vingança divina (Prudhon), Dois tetos alegóricos do Louvre (Barthélemi) (cf. DELÉCLUZE, 1983, p. 320–327).

Mas, apesar do afastamento e da rivalidade, David buscou preservar um canal de ligação com seu aluno, o que é visível nas manifestações de admiração e carinho que se encontram em cartas a ele enviadas, principalmente no que diz respeito à qualidade de savant, demonstrada por Girodet que, entre os membros da escola, foi um dos poucos que, além do pincel, cultivou a poesia e a reflexão sobre a pintura. Em carta de 1822, David assim o elogia:

Antigamente, você chamou a minha atenção em razão de seu imenso talento para a arte, hoje, meu caro aluno, a essa terna afeição que em silêncio tenho dentro de mim, se agrega minha admiração por sua grande sabedoria”. 11 11 No original: “Autrefois c’était en raison de vos immenses dispositions pour un art que vous deveniez sous mes yeux; aujourd’hui, mon cher élève, à cette tendre affection qui paraissait dormir dans mon sein, se joint mon admiration pour votre grand savoir”. (GIRODET, 1829b, p. 315)

Mas, a despeito do elogio à sabedoria, na trajetória de Girodet parece ter faltado a constância. Tanto na vida como na obra ele oscilou entre a meditada calma e a intempestiva fúria. É da pena do mesmo artista a etérea e sensual placidez de Le sommeil d’Endymion (1791) e a violência e tensão de La révolte du Caire (1810); a suavidade e delicadeza das Les quatre saisons (1801-1802), pintadas para o castelo de Aranjuez na Espanha, e as patéticas contorções e a grandiosidade agônica de Scène de déluge (1802-1806). Foi o mesmo artista que se autorretratou como um belo e sereno camponês italiano e como um revolucionário francês de barrete frígio e olhos penetrantes. E foi o mesmo artista que pintou o altivo retrato de Jean-Baptiste Belley (deputado negro, representante de São Domingos na Convenção) apoiado em um pedestal com o busto do abade Raynal (1797) e o retrato de Cathelineau, general católico e realista, herói da contrarrevolucionária guerra da Vendéia (1816-1824).

Girodet costumava alternar sua característica básica, marcada por introversão e hábitos reservados, com gestos temperamentais, mas era, no entanto, querido. Seu mestre, David, sobreviveu um ano ao discípulo, mas, em razão de seu exílio na Bélgica, não estava em seu enterro, onde se viu uma verdadeira comoção. Girodet não morreu tão jovem, mas não faltaram comparações com Le Sueur (1617-1655) e Rafael (1483-1520), que morreram cedo; e o fato de ter deixado um quadro inacabado em seu ateliê foi mais um motivo de aproximação com o pintor italiano, cuja Transfiguração (1520) ainda estava em curso quando expirou. Tudo isso foi lembrado no comovido discurso de Garnier (1824)GARNIER, M. Funérailles de M. Girodet-Trioson (13 décembre 1824). In Discours de M. Garnier. Paris, Institut Royal de France. Académie des Beaux Arts, 1824., o presidente da Academia, que foi incumbido do elogio fúnebre, na primeira sessão após a morte do artista. Mas, no cemitério, quem discursou foi Antoine Gros que, segundo Delécluze, chorou copiosamente a perda do amigo.

Delécluze, o crítico

Delécluze (1781-1863) tinha 15 anos quando ingressou no Louvre, em 1796, onde frequentou o ateliê de David, época em que uma das alas do grande palácio era uma espécie de albergue de artistas, com diversos ateliês funcionando simultaneamente. Enquanto lá esteve, preparando-se para a carreira de pintor de história, conviveu com os membros mais notáveis da escola francesa, com os quais teve relações de amizade. Frequentou também o antigo convento dos Capuchinhos, outro espaço que foi adaptado para o funcionamento de ateliês de artistas.

Delécluze teve participação nos salões de 1808, 1810, 1812 e 1814, tendo obtido uma medalha de ouro de primeira classe apenas no primeiro. Depois disso, viveu uma época de indefinição no que diz respeito a seu rumo; deu aulas particulares de pintura até inclinar-se para as letras e começar a atuar na imprensa como crítico de artes, por volta de 1819. Foi a partir de 1822 que ficou mais conhecido, quando assumiu a crítica rotineira do Journal des Débats, a convite de seus diretores, os irmãos Bertin. Nesse periódico, escreveu mais de 1000 artigos em quatro décadas de colaboração.

A longa vida, a persistência, a clareza no que diz respeito às ideias que defendia e sua atuação regular fizeram dele um homem da rotina em época bastante turbulenta da história das artes na França. Em 1824 já era conhecido nos lugares mais importantes: ateliês de artistas; salões, como o de M me Récamier e do barão Gérard; já tinha viajado pela Itália e Inglaterra e firmava sua reputação na imprensa parisiense. Nessa mesma época, animou em sua própria residência uma espécie de cenáculo por onde circularam figuras notáveis de sua geração. Tudo isso fez dele um testemunho privilegiado do universo artístico francês e mesmo europeu.

Enterros são momentos especiais por vários motivos: para se atestar a glória do morto, por quem lá se reúne, por aquilo que propiciam como catarse e acerto de contas, para ver e ser visto. Foi uma honra para Stendhal ter sido levado por Denon às exéquias de Haydn, na Viena de 1809; foi um dado bastante curioso a atitude de Ingres no funeral de Denon, onde estava toda Paris e parte da Europa, em 1825. Nas palavras de um biógrafo, Ingres teria se aproximado da cova, inclinado-se, observado o caixão onde haviam jogado flores, murmurado algumas palavras e depois se retirado satisfeito, seguro de que Denon estava bem morto. Descobriu-se então um inimigo do gentil e amável Denon (cf. LELIÈVRE, 1993, p. 12LELIÈVRE, Pierre. Vivant Denon: Homme des Lumièrres, ’Ministre des Arts’de Napoléon. Paris: Picard, 1993.). 12 12 Pouco tempo depois, Ingres concorreu à cadeira que era de Denon na Académie de Beaux Arts, para a qual foi indicado.

Delécluze, no enterro de Girodet, pelo que conta em seu diário íntimo, parece ter passado a maior parte do tempo observando Chateaubriand, que estava próximo dele, acompanhado de Humboldt, e não permaneceu até o fim. Pode-se dizer que por pouco não se esqueceu do morto, fascinado pela figura do grande escritor, o que esteve na origem de um duplo retrato que fez dele, um, propriamente dito, outro, com palavras, em seu diário:

Há na figura desse homem uma expressão magnífica de calma e grandeza. Seus cabelos esbranquiçados, que se tornam raros, dão um ar majestoso aos seus traços, que exprimem tanto força como muita ternura (...). Em grande medida, reina em sua feição alguma coisa de romanesco, o que deve torná-lo, senão inimigo, ao menos estrangeiro às ideias positivas por meio das quais os homens são governados, principalmente aqueles de hoje em dia. 13 13 O Journal de Delécluze e seu Carnet de route d’Italie (1823-1824) permaneceram inéditos até a década de 1940, quando foram editados por Robert Baschet. Os manuscritos pertenciam a Georges Viollet-le-Duc, sobrinho-bisneto de Delécluze e neto do arquiteto Viollet-le-Duc. 14 14 No original: “Cet homme a une expression magnifique de grandeur et de calme dans la figure. Ses cheveux grisonants et qui deviennent rares donnent quelque chose de majestueux à ses traits qui expriment à la fois la force et beaucoup de douceur (...). Il règne dans son air quelque chose de romanesque pris en bonne part, qui doit le rendre, sinon ennemi, au moins étranger aux idées positives avec lesquelles on gouverne en géneral les hommes, mais plus particulièrement ceux d’aujourd’hui”. (DELÉCLUZE, 1948, p. 58)

Delécluze foi definitivamente uma figura transitória. Descreveu aquele que já era um símbolo da constelação romântica, captando o romanesco que havia nele, mas as primeiras palavras parecem saídas de Winckelmann a refletir sobre a graça, característica do belo estilo. A dor da perda do amigo não produzia em Chateaubriand expressões crispadas, sua grandeza não estava em afetar no exterior seus sentimentos íntimos, o que faz lembrar a metáfora líquida de Winckelmann:

Como as profundezas do mar, que permanecem calmas todo o tempo, independente das vagas que agitam a superfície, a expressão dos semblantes Gregos revela uma alma grande e serena, mesmo quando estão tomados pelas paixões mais violentas. 15 15 No original: “De même que les profondeurs de la mer restent calmes en tout temps, si déchaînés que soit la surface, de même l’expression dans les figures des Grecs révèle, même quand elles sont en proi aux passions les plus violentes, une âme grande et sereine”. ( WINCKELMANN, 1991WINCKELMANN, Johann-Joachim. Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture / Tradução Marianne Charrière. Paris: Éditions Jacqueline Chambon, 1991.) (WINCKELMANN, 1991, p. 34)

No relato de Delécluze do funeral de Girodet, Chateaubriand ocupou assim o polo oposto a Antoine Gros, que era pura expressão dos sentimentos turbulentos que vivia, e não perdeu a oportunidade de fazer um apaixonado discurso. Mas Delécluze já tinha partido quando isso aconteceu e o que conta em seu diário foi aquilo que ouviu do amigo Armand Bertin, um dos diretores do Journal des Débats.

Fez-se silêncio, enquanto entre lágrimas Gros resgatou a memória do amigo e a história que lhes era comum. Falou da escola de David como a única digna de ser pranteada no momento da morte de um homem como Girodet, “o único pintor cujo talento e autoridade poderia atuar como contrapeso para conter a escola na sua marcha para o abismo”. 16 16 No original: ” (...) le seul peintre dont le talent et l’autorité pût faire contrepoids et arrêter l’École qui est sur une pente qui la conduit à sa perte”. E, aos poucos, a dor foi se transformando em animação, e ele falou com veemência contra aqueles que, “abusando de uma facilidade enganadora, não contribuem em nada para o estudo, que é negado em nome do amor à celebridade passageira e à fortuna adquirida sem esforço”. 17 17 No original: ” (...) abusant d’une facilité trompeuse, ne donnent rien à l’étude et tout au contraire à l’amour d’une célébrité passagère et d’une fortune acquise sans peine.” E não deixou mesmo de citar nomes antes de vaticinar: “Tão logo nos farão acreditar que um pedaço de tela, sobre o qual cores foram borradas durante 15 dias, é uma obra-prima digna de ser consagrada à memória de um príncipe” 18 18 No original: “Bientôt on voudra nous faire croire qu’un morceau de toile sur lequel on a barbouillé de la couleur pendant quinze jours est un chef-d’oeuvre digne de consacrer la mémoire d’un prince!” (Delécluze, 1948, p. 63). Referência que, de imediato, diz respeito à conhecida demora com a qual Girodet realizava seus quadros, por meses oculto em seu ateliê, mas que também remete à tópica da lentidão neoclássica oposta à facilidade barroca, tão bem expressa por Winckelmann:

Tiepolo executa mais em um dia do que Mengs em toda uma semana, mas nós esquecemos as obras do primeiro tão logo as perdemos de vista, enquanto as obras-primas de Mengs produzem uma impressão tão profunda quanto durável. 19 19 No original: “Tiepolo exécute plus en un jour que Mengs dans toute une semaine, mais on a oublié les ouvrages du premier aussitôt qu’on les a perdu de vue; tandis que les chefs-d’oeuvre de Mengs font une impression aussi profonde et durable”. ( WINCKELMANN, 2006, p. [1763]WINCKELMANN, Johann-Joachim. Sur la faculté de sentir le beau dans l’art et sur son enseignement [1763] In De la description. Édition d’Élisabeth Décultot. Paris: Macula, 2006, p. 67-108., p. 102)

Naquele contexto, o alvo era outro: os jovens ditos românticos que expunham, no salão recém-inaugurado, as novas facilidades. Resultado do discurso: por um lado, muitos aplausos; por outro, o pequeno grupo dos dissidentes, entre os quais se encontravam Scheffer, Sigalon e Delacroix, demonstrou seu descontentamento.

Gros, substituto de David

Que tenha sido Gros o autor do discurso é inteligível, afinal de contas foi a ele que David transferiu a direção de seu ateliê, em 1816, quando de seu exílio. O que fez dele o líder da escola na França, mesmo que para isso tenha tido que abdicar de elementos dissidentes característicos de sua própria trajetória como pintor, que já eram evidentes para todos desde o salão de 1799, quando expôs o retrato de Napoleão atravessando a ponte de Arcole, com cabelos e bandeira ao vento, obra de inquietante colorismo para a ortodoxia reinante. E não há como também deixar de lembrar o que Delécluze narra a propósito do próprio método de Gros, que ficou bem conhecido do crítico quando frequentou o convento dos Capuchinhos entre 1801 e 1805: a incomum “facilidade do pincel” e a balbúrdia de seu ateliê, onde trabalhava cercado de gente, “quase como se estivesse brincando”. Tudo isso fez de Gros uma verdadeira novidade nos hábitos da escola:

O colorido brilhante, a valentia do pincel, e até uma espécie de desordem que reinava em suas composições, feitas sempre com tamanho desembaraço e mesmo audácia, pintadas de alguma maneira em pleno ar e diante de todo mundo; seus hábitos e suas qualidades, tão diferentes daqueles que imperavam nas escolas de Paris nos últimos dez anos, apareceram imediatamente para um grande número de artistas como aqueles que deveriam ser preferidos e cujos resultados seriam os mais satisfatórios para o exercício da arte. 20 20 No original: “Le coloris brillant, la hardiesse de pinceau, et jusqu’à l’espèce de désordre qui régnait dans ces compositions faites tout à la fois avec tant d’aisance et même d’audace, peints en quelque sorte en plein air et devant tout le monde; ces habitudes et ces qualités si différentes de celles qui regnaient depuis dix ans dans les écoles de Paris, parurent tout à coup à un grand nombre d’artistes celles qui devaient être préférées et dont les résultats seraient les plus satisfaisants pour l’exercice de l’art”. ( DELÉCLUZE, 1983, p. 298DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Louis David, son école et son temps. Paris : Macula, 1983.)

Em 1824, Gros, na testa da escola, parecia estar obrigado a ser o contrário do que prometera. Mas essa liderança já se esvaía.

Nas memórias de Amaury-Duval 21 21 Amaury-Duval (1808-1885) foi fiel discípulo de Ingres. Pertenceu a uma das famílias influentes no Instiut de France; seu pai, o advogado Claude-Alexandre Amaury-Duval (1760-1838), foi diplomata em Nápoles e Roma nas vésperas da Revolução e um dos fundadores de La Décade, revista de filosofia, letras e artes que circulou na França entre 1794 e 1806; foi diretor do Bureau des Beaux-Arts do Ministério do Interior e membro do Institut, eleito em 1816. Em sua estadia na Itália, Girodet frequentou o mesmo círculo de Amaury-Duval, o pai. Cf. Lemeux-Fraitot ( 2005, p. 135). há um dado significativo sobre essa história. O jovem pintor estava destinado a ingressar no ateliê então dirigido por Gros, amigo de seu pai, mas, por interferência de Michel Varcolier, foi orientado a procurar Ingres, recém-chegado da Itália e bastante em evidência por seu Voeau de Louis XIII (1824), quadro que obteve grande sucesso no salão de 1824, e que abriu a ele as portas da Academia. Na lembrança de Amaury-Duval, Varcolier teria dito:

Por que Gros? Ele é velho e não se ocupa mais de seus alunos; é melhor entrar no ateliê que Ingres está para abrir; ele é o único homem hoje capaz de ensinar e de recolocar no caminho nobre e elevado nossa escola que degenera. 22 22 No original: “Porquoi Gros? Il est vieux, ne s’occupe plus de ses élèves; entrez donc chez Ingres, qui va ouvrir un atelier, et qui est e seul homme aujourd’hui capable d’enseigner et de remettre dans la voie noble et élevée notre école qui dégénère”. ( AMAURY-DUVAL, 1993, p. 61AMAURY-DUVAL, Eugène Emmanuel. L'atelier d'Ingres / Introduction et notes, postface et documents par Daniel Ternois. Paris: Arthena, 1993.)

O clima de conflito, expresso no discurso de Gros, não foi exclusivo do funeral de Girodet. Stendhal, na crítica do Salão de 1824, trata de sua repercussão nos jornais nos seguintes termos:

A guerra já começou. Os Débats vão ser clássicos, o que significa fazer profissão de fé a David, e bradar: Toda a figura pintada deve ser cópia de uma escultura, e o espectador ficará admirado, se não tiver sono. Le Constitutionnel, por seu lado, faz belas frases um tanto vagas, é o defeito do século, mas, enfim, ele defende as ideias novas. 23 23 No original: “La guerre est déjà commencée. Les Débats vont être classiques, c’est-à-dire ne jurer que par David, et s’écrier: Toute figure peinte doit être la copie d’une statue, et le spectateur admirera, dût-il dormir debout. Le Constitutionnel, de son côté, fait des belles phrases un peut vagues, c’est le défaut du siècle; mais enfin il défend les idées nouvelles” 24 24 O Journal des Débats foi caracterizado por Delécluze como “royaliste constitutionnel qui s’adresse particulièrement aux lecteurs dont l’esprit est cultivé et qui ont l’habitude de soummettre les questions à la coupelle du raisonnement; le journal dit le Constitutionnel, dont les doctrines libérales sont tant soit peut douteuses, puisqu’il a regretté longtemps le systeme imperial, et qu’il vante encore la forfanterie militaire. Cependant, ce journal qui parle surtout aux passions a cela de bon qu’il répend les doctrines de la liberté chez des gens qui ne comprennent que par les sens et les passions. Il est nécessaire à une grande portion de la France qui ne peut pas encore comprendre le Journal des Débats. Le Constitutionnel est le plus généralement lu en France, et cela doit être” ( DELÉCLUZE, 1948, p. 391). ( STENDHAL, 2002, p. 59STENDHAL. Critique amère du Salon de 1824 par M. Van Eube de Molkirk. Salons. Paris, Gallimard, 2002, p. 55-148.)

Aquelas ideias que foram protagonizadas no salão pelos nomes citados no relato de Delécluze sobre o enterro: Horace Vernet, Scheffer, Sigalon, Delacroix, que expôs Scène des massacres de Scio (1824) no mesmo salão.

Auger, diretor da Academia Francesa

A guerra já tinha sido também declarada no austero ambiente do Instituto de França, no âmbito da literatura. É isso que se depreende do discurso de Louis Simon Auger, diretor da Academia Francesa, pronunciado naquele mesmo ano: 25 25 Sainte-Beuve dá grande destaque a esse episódio e afirma que o discurso de Auger teve de imediato um efeito contrário ao esperado: “Ce discours eut un grand retentissement: il fit le bonheur et la jubilation des adversaires. Le spirituel escarmoucheur Henri Beyle (Stendhal), dans ses hardies brochures allait redissent avec gaieté: M. Auger l’a dit, je suis un sectaire” ( SAINTE-BEUVE, 1867, p. 97).

Um novo cisma literário hoje se manifesta. Muitos homens, educados no respeito religioso pelas antigas doutrinas, consagradas por inúmeras obras-primas, se inquietam, se espantam com os projetos da seita nascente, e esperam ser tranquilizados. A Academia Francesa ficará indiferente aos seus apelos?“ 26 26 No original: “Un nouveau schisme littéraire se manifeste aujourd’hui. Beaucoup d’hommes, élevés dans un respect religieux pour d’antiques doctrines, consacrées par d’innombrables chefs-d’oeuvre, s’inquiètent, s’effrayent des projets de la secte naissante, et semblent demander qu’on les rassure. L’Académie française restera-t-elle indifférente à leurs alarmes?” ( AUGER, 1824, p. 2–3AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20)

É interessante observar que o cisma era considerado novo em 1824, quatro anos depois de Méditations poétiques, de Lamartine, seis anos depois de “Qu’est-ce-que le romanticisme?”, de Stendhal, dez anos de De l’Allemagne, de M me. de Staël, mais de 20 depois de Atala (1801) e de Le Génie du Christianisme (1802), de Chateaubriand, 37 anos passados da primeira publicação de Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre.

A Academia então se deu conta do perigo:

Talvez o perigo não seja tão grande ainda, e há o risco de que aumente se atribuirmos a ele muita importância. Mas será necessário esperar que a seita do romantismo (já que é desta forma que ela se nomeia) (...) coloque em questão todas as nossas regras, insulte todas as nossas obras-primas, e perverta, por um sucesso ilegítimo, a massa flutuante de opiniões que está sempre ao acaso disponível? 27 27 No original: “Le danger n’est peut-être grand encore; et l’on pourrait caindre de l’augmenter en y attachant trop d’importance. Mais faut-il donc attendre que la secte du romantisme (car c’est ainsi qu’on l’appelle) (...) qu’elle mette en problême toutes nos règles, insulte à tous nos chefs-d’oeuvre, et pervertisse, par d’illégitimes succès, cette masse flottante d’opinions dont toujours la fortune dispose?” ( AUGER, 1824, p. 3AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20)

E o discurso retoma monotonamente o velho lugar-comum francês da crítica a Shakespeare (“gênio sublime e inculto” [“ génie sublime et inculte”]) e Lope de Vega (“dotado da mais rica imaginação”, “condenado à extravagância” [“ doué de la plus riche imagination”, “ condamné à l’extravagance”]), 28 28 As palavras de Voltaire sobre Shakespeare talvez sejam as mais emblemáticas: “Il avait un génie plein de force et de fécondité, de naturel et de sublime, sans la moindre étincelle de bon goût et sans la moindre connaissance des règles” ( VOLTAIRE, \bibstring{nodate}, p. 104). que começaram a invadir o bastião clássico do teatro com seu Falstaff e seu gracioso que, no início, não foram vistos pela gente de gosto como sinal de perigo. Auger ( 1824, p. 4AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20) desenha um quadro no qual a França parece estar sitiada, agora também pelas ameaças que chegam da Alemanha:

Aquilo que Shakespeare e Lope de Vega fizeram em um século de barbárie, um por ignorância e o outro por necessidade, os alemães, numa época de luzes universais, fizeram por escolha e sistematicamente. Compuseram tragédias em que a irregularidade do Ésquilo britânico e do Eurípedes castelhano foram largamente imitadas, sem, no entanto, chegarem próximos de seu gênio”. 29 29 No original: “Ce qu’en un siècle de barbarie avaient fait Shakespeare et Lope de Vega, l’un par ignorance, et l’autre par nécessité, les Allemands, à une époque de lumières universelles, le firent avec choix et systématiquement. Des tragédies furent composées par eux, dans lesquelles l’irregularité de l’Eschyle britanique et de l’Euripede castillan était largement imitée, mais où leur génie était un peu plus reproduit”. ( AUGER, 1824, p. 4AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20)

O Diretor da Académie française demonstra então consciência da antiguidade do problema, e faz até uma “boa história” dos passos do “romantismo” na literatura francesa. Fala das narrativas de viagem e das traduções dos românticos alemães aparecidas três décadas antes. Sem citar o nome, fala de M me. de Staël, “uma mulher merecidamente célebre, toda francesa em seus sentimentos, seus afetos e seus gostos, mas que em virtude das vicissitudes de seu destino se tornou cosmopolita”; 30 30 No original: “(...) une femme justement célèbre, toute française par ses sentiments, ses affections et ses goûts, mais que les vicissitudes de sa destinée avaient rendue cosmopolite”. que teria introduzido o sistema germânico e revelado “a famosa distinção de clássico e de romântico, que, segundo ela, dividiria todas as literaturas” 31 31 No original: “(...) la fameuse distinction de classique et de romantique, qui divisait, à leur insu, toutes littératures”. ( AUGER, 1824, p. 8AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20). Reconhece o papel da Revolução que tudo mudou e que tornou natural a ideia de que as produções do espírito deveriam acompanhar essas mudanças nas instituições e nos costumes. Mas contradiz imediatamente esta ideia, sugerindo que o período das mudanças acabou, e que à sociedade então reconstituída deve corresponder também uma literatura de novo consciente de suas regras. E tenta mostrar o quanto o romantismo é inadequado aos princípios morais e à razão: “O romantismo não tem a pretensão de instruir, desdenha agradar e não pretende nada além de emocionar”. 32 32 No original: “Le romantisme n’a pas la pretention d’instruire; il dédagne d’amuser; il n’aspire qu’à émouvoir”. E, se os românticos se defendem com a ideia de que buscam a verdade, Auger contrapõe com Boileau: “Nada é belo além da verdade” (“Rien n’est beau que le vrai”), o que é a senha para resgatar então a tradição dos autores franceses: Corneille, Racine, Voltaire, para concluir com a ideia de que as emoções confusas e a obscuridade dos românticos são estranhas ao gênio da língua francesa: “o que não é claro não é francês” (““ce qui n’est pas clair n’est pas français”). E estranhas também ao clima, já que o discurso opõe a França, com seu clima suave e variado, às brumas inglesas e germânicas. O que remete mais uma vez à teoria da influência do clima na linguagem e nas artes que Winckelmann reciclou em Histoire de l’Art chez les Anciens e que, devido à sua enorme autoridade, causou tantos problemas aos que pretendiam experiências neoclássicas mais ao norte da Grécia e da Itália meridional. 33 33 Ao definir as causas essenciais que condicionam as artes, Quatremère de Quincy coloca entre elas o clima, e por pouco não duvida da possibilidade do florescimento das artes do desenho na França, por estar situada entre 42 e 51 graus de latitude, com boa parte de seu território em condições climáticas não tão favoráveis como a Grécia e a Itália do sul. Cf. Quatremère de Quincy ( 1791, p. 22–23, 38–39)

A associação de Shakespeare aos românticos, presente no discurso de Auger, não era nova, mas estava prestes a tornar-se um verdadeiro dístico, que, estabelecido por Delécluze, ingressou rapidamente no vocabulário da crítica. Homéristes opostos a shakespeariens, o que veio a perfazer no discurso de Delécluze sobre arte a oposição entre as literaturas Meridionais e do Norte, de M me. de Staël. O interesse por Shakespeare era intenso em todos os ambientes, e a crítica de Delécluze aos pintores que associou ao dramaturgo inglês pode dar a entender que ele não apreciava seu teatro. Muito ao contrário, desde 1820 Delécluze reunia semanalmente em sua casa um grupo seleto de amigos, 34 34 Foram frequentadores assíduos dessas reuniões, que aconteciam às terças-feiras e aos domingos, J.-J. Ampère, Albert Stapfer, Auguste Santelet, Édouard Monod, todos eles alunos de Victor Cousin, além de Paul Louis Courier, do barão Mareste, de Stendhal, de Cerclet, de Duvergier de Hauranne, de Ludovic Vitet e de Emanuel Louis Viollet-le-Duc, cunhado de Delécluze; e também Charles Rémusat, P. F. Dubois, o naturalista Victor Jacquemont, Adrien de Jussieu, Mignet, Aubernon, o helenista Henri Patin, e Prosper Mérimée. Cf. Baschet ( 1942, p. 1). com os quais tratava variados assuntos de artes e letras, e Shakespeare (e também Byron) foi tema constante entre eles, de leitura e discussão. Foi por esse interesse que o crítico estudou inglês e pôde chegar a um entendimento mais consistente da obra do dramaturgo e até escrever Romeo et Juliette, nouvelle de Luigi da Porto traduit en français et suivis de quelques scènes traduits de la Juliette de Shakespeare ( BASCHET, 1942, p. 113BASCHET, Robert. Introduction. In DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Carnet de Route d’Italie (1823-1824). Impressions Romaines. Paris: Boivin éditeurs, 1942, p. 1-17.). A avaliação de Delécluze sobre Shakespeare era, portanto, bastante distinta daquela manifesta por Auger em seu discurso na Academia. Transitório e dividido, inclusive sobre Shakespeare, Delécluze se entusiasmava ao assistir Hamlet junto com seu velho amigo Charles Nodier, 35 35 Nodier, então francamente adepto do “partido romântico”, foi também aluno de David e abandonou as artes do desenho em favor de uma carreira literária. Nodier pertenceu à pequena facção que se formou no ateliê de David, por volta de 1800, conhecida como Les Primitfs, liderada por Maurice Quaï. Delécluze anexa em Louis David son École et son Temps uma pequena memória de Nodier sobre a pequena seita. Charles Nodier foi o primeiro animador de Le Cénacle (1823-1828), grupo de românticos que se reunia em sua residência e depois chez Victor Hugo. em 1827, mas continuava a utilizar o dramaturgo inglês como sinal negativo em suas críticas rotineiras no Journal des Débats, a ponto de criar confusão entre seus leitores, o que o obrigou a realizar verdadeiras piruetas de raciocínio para justificar sua ambiguidade. 36 36 Um deles, admirador do bardo inglês, em encontro circunstancial, indagou se Delécluze não o apreciava: “Je lui ai répondu que je ne l’estimais pas moins que lui, mais que j’avais opposé l’école littéraire de Shakespeare, stérile pour les arts d’imitation, à celle d’Homère qui aide singulièrement les artistes.” (Cf. DELÉCLUZE, 1948, p. 335)

Pode-se dizer que o sistema assim o exigia, já que, desde a criação da Academia Francesa, nos tempos de Richelieu, seu destino foi ser contra Shakespeare e os extravagantes espanhóis, Lope ou Calderón. E a Academia de Belas Artes, desde Mazarin, estava fadada a construir o discurso sobre sua história como se tivesse sido sempre adepta da linha e tivesse permanecido alerta contra a cor, que vinha de Veneza ou Antuérpia, a despeito de todo o esforço de Roger de Piles, que pregava o contrário; e fadada, portanto, a considerar lastimáveis os Van Loo, Boucher, Wateau que degeneraram a escola de Poussin.

Ingres e Delacroix, Homero e Shakespeare

É de interesse lembrar aqui um conselho que Roger de Piles ( 1673, p. 66PILES, Roger de. Dialogue du coloris. Paris: chez Nicolas Langlois, 1673.) dava aos pintores em Dialogue du Coloris, que consistia em visitar

durante um ano, uma vez a cada oito dias, a galeria do Luxemburgo [onde estava exposta a série de quadros de Rubens sobre a vida de Maria de Médicis], de deixar de lado todas as coisas e não desperdiçar sequer uma vez essa oportunidade. Esse dia será sem dúvida o mais utilmente empregado durante a semana. Entre todos os Pintores, Rubens me parece ser aquele que abriu o caminho mais fácil e certeiro para o Colorido. E a obra a que me refiro é a mão segura que pode evitar o naufrágio para o qual o Pintor ingênuo pode ser conduzido. 37 37 No original: “(...) pendant un an tout les huit jours une foi, la galerie du Luxembourg, de quiter toutes les choses, & de rien épargne pour cela. Ce jour seroit sans doute le plus utilement employé de la semaine. Rubens est ce me samble celuy de tous les Peintres, qui a rendu le chemin qui conduit au Coloris, plus facile & plus debarassé: Et l’ouvrage dont je vous parle, est la main secourable que peut tirer le Peintre du naufrage où il se seroit innocemment engagé”. ( PILES, 1673, p. 66PILES, Roger de. Dialogue du coloris. Paris: chez Nicolas Langlois, 1673.)

E cabe também articular este conselho a uma anedota contada por Amaury-Duval sobre um episódio envolvendo Delacroix e Ingres na Exposição Universal de 1855. Nessa ocasião, o Plafond d’ Homère havia sido exposto em posição vertical (como está hoje na grande sala da pintura francesa do século XIX) e Delacroix, ao visitar a Exposição, observou atentamente o quadro de seu ilustre rival, o que teria gerado o seguinte comentário: “Eu pude examinar de perto, no solo, o Teto de Homero; nunca vi semelhante execução, ela é feita à maneira dos mestres, com nada, e no entanto tudo está lá”. 38 38 No original: “J’ai pu examiner de près, par terre, le plafond d’Homère; je n’ai jamais vu execution pareille, c’est fait comme les maîtres, avec rien; et de loin tout y est”. Mas, depois de sair furtivamente da sala, assim como tinha entrado, teria pedido a um funcionário que abrisse para ele a grande galeria, onde passou “uma hora diante dos Rubens para me recuperar” (“une heure devant les Rubens, pour se retremper” (a série dedicada a Maria de Médicis já estava então no Louvre)). Essa foi a versão do episódio que Delacroix teria narrado a Amaury-Duval, que ouviu também outra versão, atribuída a Ingres: os dois teriam se encontrado na saída da sala, e, depois de um frio cumprimento, Ingres teria solicitado a um jovem lá presente: “Abram todas as janelas, ele gritava, há cheiro de enxofre aqui” (“Ouvrez toutes les fenêtres, lui cria-t-il; ça sent le soufre ici”) ( AMAURY-DUVAL, 1993, p. 231AMAURY-DUVAL, Eugène Emmanuel. L'atelier d'Ingres / Introduction et notes, postface et documents par Daniel Ternois. Paris: Arthena, 1993.).

Aparentemente tardio para minha discussão aqui, esse episódio – não importa se verdadeiro ou falso – é, no entanto, emblemático da grande dualidade que se criou nos idos de 1824, que praticamente realinhou aquilo que estava totalmente embaralhado. Ingres, antes de 24, era admirado, tinha entre seus defensores os que seriam ditos românticos e era condenado pela ortodoxia acadêmica por seu gosto bizarro. Seu Oedipe (1808), no dizer de Louis Gilet, “provocou indignação. Foi considerado ‘gótico’!” (“avait soulevé un tollé. On le trouvait ‘gothique’!”), e seu Jupiter et Thétis (1811) foi mal-recebido no Salão e foi devolvido ao autor, permanecendo em seu ateliê por mais de 20 anos, antes de ser adquirido pelo museu de Aix-en-Provence ( GILET, 1934, p. 102GILET, Louis. Le Trésor des Musées de Province: le Midi. Paris : Firmin Didot, 1934.).

Joachim Lebreton, que ocupava a secretaria perpétua da Classe de Belas Artes do Instituto nos idos de 1808, havia alertado contra os perigos da corrupção do gosto que se insinuava na escola, particularmente entre os artistas que eram pensionistas na Itália. Apesar de não nomear, seu alvo era Ingres, cujo Oedipe, executado em Roma, acabara de ser enviado a Paris. O relatório condenava os jovens artistas dotados de talento que não se contentavam em seguir os passos de Rafael, Michelangelo, Dominiquin, Poussin, e que apresentavam uma maneira de desenhar mesquinha e fria, exagerada do ponto de vista do acabamento, le fini, demonstrando um estilo pleno de rigidez e pretensão à originalidade, que se aproxima do bizarro. Nesse momento, o primitivismo de Ingres entrava em cena, e Lebreton, no papel de legislador do gosto, acusava e preparava a reação, alertando particularmente o diretor da escola francesa em Roma para o perigo ( LEBRETON, 1808, p. 113LEBRETON, Joachim. Rapport sur les Beaux-Arts [séance du Conseil d’État de 5 mars 1808]. Paris: Institut de France, Académie des Beaux-Arts, 1808.).

No entanto, Ingres, anos mais tarde, reconciliou-se com a Academia por meio do rafaelesco Voeau de Louis XIII e, depois de árduas provas, nas quais não deixou de ser contestado, foi nela admitido, na cadeira que era de Denon, que faleceu pouco depois de Girodet. E, quase imediatamente, Ingres recebeu encomenda do governo para um quadro, de assunto não especificado. É desta encomenda que teve origem o Plafont d’Homère (1824), dito também Homère déifié, e agora L’apotheose d’Homère. Foi exatamente em 1824 que Delécluze, no Journal des Débats, dirigido por Bertin, começou a fazer circular a oposição entre homéristes e shakespeariens. Ingres era amigo de ambos e fez deles belos retratos. O Plafont d’Homère, foi, no entanto, motivo de certo desgosto para seu autor, por dois motivos. Em primeiro lugar, em razão de um episódio no momento da abertura do Musée Charles X, numa das dependências do Louvre: ao inaugurar as salas em sua homenagem, o rei nem ao menos parou para ver o quadro. Segunda decepção: Delécluze não foi suficientemente caloroso em sua crítica na imprensa. De qualquer forma, o quadro funcionou como uma espécie de manifesto dos homéristes. Daí em diante, Ingres ocupou com orgulho a posição vaticinada por Varcolier no diálogo com o jovem Amaury-Duval transcrito acima: tomou para si a tarefa de ser “o único homem (...) capaz de ensinar e de recolocar no caminho nobre e elevado nossa escola que degenera”. 39 39 No original: “le seul homme (...) capable d’enseigner et de remettre dans la voie noble et élevée notre école qui dégénère”. Bem Ingres, cujas pinturas posteriores a 1824 não deixaram de ser bizarras; 40 40 “Bizarrerie, terme qui designe un goût contraire aux principes reçus, une recherche affectée des formes extraordinaires, et dont le seul mérite consiste dans la nouveauté même qui en fait le vice” (Cf.MILLIN, 1806). Os críticos do primeiro Ingres deviam ter em mente este conteúdo ao utilizarem tal palavra. E é razoável dizer que mesmo em sua busca dos modelos antigos, em seu arcaísmo, tão coerente com a ortodoxia neoclássica, Ingres continuou a ser magnificamente bizarro. e que continuou a ser admirado pelo shakespearian Stendhal, que já havia desafiado “todos os clássicos do mundo a encontrar em todo Racine um balé como o sublime balé de Otelo” 41 41 No original: “tous les classiques du monde de tirer de tout Racine un ballet comme le sublime ballet d’Otello”. ( STENDHAL, 1854, p. 232STENDHAL. Qu’est-ce-que le romanticisme? Racine et Shakspeare : études sur le romantisme (Nouvelle édition). Paris, Michel Lévy frères (Paris), 1854, p. 229-257.); e admirado também, mais tarde, por Baudelaire.

Delécluze cumpriu seu papel. Bem ele que gostava de Shakespeare, que realizou “viagens pitorescas” pelo interior da França, que antes de abandonar a pintura pelas letras frequentou e fez estudos na galeria do Louvre onde estavam os quadros de Rubens, que recebeu bem Le radeau de la Méduse (1819) de Géricault, no início de sua atividade crítica e que fez de seu cenáculo um dos mais significativos polos do “romantismo liberal” francês. 42 42 Em seu Journal, Delécluze parece sempre afirmar que as ideias românticas discutidas nas reuniões semanais em sua casa eram defendidas exclusivamente por seus jovens amigos, “mes jeunes antagonistes” (Delécluze 1948: 130). O romantismo do círculo de Delécluze é definido por Robert Baschet nestes termos: “[...] en face du romantisme lyrique, catholique et royaliste de 1820, s’élabore dans le Cénacle un romantisme prosaïque, rationaliste et libéral; et en face du romantisme de la sensibilité, un romantisme intelectuel.” (Cf. BASCHET, 1942, p. 1)

Stendhal chez Delécluze

Por ter assumido a posição de homem do partido da ordem na época de grandes transformações em que atuou, Delécluze atraiu para si toda espécie de anátema. De um modo geral, fala-se mal dele, desde que era muito feio (Stendhal); “homem excelente, tipo honesto, modelo de probidade, muito instruído e, a despeito disso, muito ignorante” 43 43 No original: “(...) excellent homme, type honnête, modèle de probité, très instruit et à côté de cela assez ignorant”. (Saint-Beuve); “larva, pousada sobre as folhas de Débats” (“larve, posée sur les feuilles des Débats”) (Paul Huet) e invariavelmente aquela constatação, que não é apenas descritiva, que fala dele como o típico representante da burguesia do “juste milieu” (“meio termo”) ( MOUILESEUX, 1983, p. VIII–XMOUILESEUX, Jean-Pierre. Préface. In DELÉCLUZE, Etienne-Jean, Louis David son école & son temps. Paris: Macula. 1983, p. VIII-X.). Mas, entre tudo isso, pode-se antever muita ambiguidade. O caso mais notável é o de Stendhal, que não deixou de registrar em suas lembranças a dívida que teve com ele, e o quanto foi importante em sua formação participar de seu cenáculo:

Eu encontrei na casa do Sr. de l’Étang [Delécluze], diante de uma lareira medíocre (...), oito ou dez pessoas que falavam de tudo. Fiquei admirado com seu bom senso, com seu humor e, sobretudo, com o fino trato do anfitrião que, sem demonstrar, dirigia a discussão de modo a que não caíssemos em tristes momentos de silêncio.

Eu não saberia exprimir, de forma suficiente, a estima que tive por essa sociedade. Jamais encontrei outra que possa ser dita superior, ou mesmo comparável. Fiquei tocado logo no primeiro dia, e talvez vinte outras vezes, durante os três ou quatro anos que perdurou, fiquei surpreso de sentir a mesma admiração. Uma tal sociedade não é possível senão na pátria de Voltaire, de Molière, de Courier.

Ela é impossível na Inglaterra, pois na casa do Sr. de l’Étang ridicularizaríamos tanto um duque como outro, e mais ainda de um outro, se ele tivesse sido ridículo.

Na Alemanha ela não poderia existir: lá, estão muito acostumados a acreditar com entusiasmo na ninharia filosófica da moda. De outra parte, fora de seu entusiasmo, os Alemães são muito ignorantes.

Os Italianos teriam dissertado, cada um com a palavra durante 20 minutos, para no fim tornarem-se inimigos mortais de seus antagonistas na discussão. Na terceira sessão, estariam fazendo sonetos satíricos uns contra os outros.

A discussão era firme e franca sobre tudo e com todos. Éramos polidos na casa do Sr. de l’Étang, mas por virtude sua. Quase sempre ele exercia o papel de resguardar o recuo dos imprudentes que, na busca uma ideia nova, tivessem avançado às custas de um absurdo notável. 44 44 No original: “Je trouvais chez M. de l’Étang, devant un petit mauvais feu (...) huit ou dix personnes qui parlaient de tout. Je fus frappé de leur bon sens, de leur esprit et surtout du tact fin du maître de la maison qui, sans qu’il y parût, dirigeait la discussion de façon à ce qu’on n’arrivât pas à des tristes moments de silence. Je ne saurais exprimer trop d’estime pour cette société. Je n’ai jamais rencontré, je ne dirai pas supérieur, mais même comparable. Je fus frappé le premier jour et, vingt fois peut-être pendant les trois ou quatre ans qu’elle a duré, je me suis surpris à faire le même acte d’admiration. Une telle société n’est possible que dans la patrie de Voltaire, de Molière, de Courier. Elle est impossible en Englaterre, car chez M. de l’Étang on se serait moqué d’un duc comme d’un autre, et plus que d’un autre s’il eût été ridicule. L’Allemagne ne pourait la fournir: on y est trop accoutumé à croire avec enthousiasme la niaiserie philosophique à la mode. D’ailleurs hors de leur enthousiasme, les Allemands sont trop bêtes. Les Italiens auraient disserté, chacun y eût gardé la parole pendant vingt minutes et fût resté l’ennemie mortel de son antagoniste dans la discussion. À la troisième séance, on eût fait des sonnets satiriques les uns contre les autres. Car la discussion était ferme et franche sur tous et avec tous. On était poli chez M. De l’Étang, mais à cause de lui. Il était souvent nécessaire qu’il protégeât la retrait des imprudents qui, cherchant une idée nouvelle, avaient avancé une absurdité trop marquant”. ( STENDHAL, 1927, p. 172–173STENDHAL. Souvenirs d'égotisme. Révision du texte et préface par Henri Martineau. Paris, Le Divan, 1927.)

A citação é longa, mas me parece rara pintura, e é inestimável como testemunho do que significou aquele ambiente para os que dele fizeram parte. Pouco adiante, no mesmo diário, em outra data, Stendhal ( 1927, p. 173STENDHAL. Souvenirs d'égotisme. Révision du texte et préface par Henri Martineau. Paris, Le Divan, 1927.) fala da feiura de Delécluze e de suas “mesquinharias de burguês” (“petitesses de bourgeois”). Curiosamente, os comentadores modernos costumam lembrar quase que exclusivamente destes pequenos insultos.

No coro anti-Delécluze, outra voz discordante é Baudelaire que, ao debutar na crítica de arte em 1845, após repetir a tópica retórica que invariavelmente constata a indigência do meio, faz uma ressalva:

Citemos uma bela e honrada exceção, o Sr. Delécluze, com quem nem sempre partilhamos a mesma opinião, mas que soube sempre salvaguardar sua independência, e que sem fanfarra ou ênfase teve muitas vezes o mérito de revelar talentos jovens e desconhecidos. 45 45 No original: “Citons une belle et honorable exception, M. Delécluze, dont nous ne partageons pas toujours les opinions, mais qui a toujours su sauvegarder ses franchises, et qui sans fanfares ni emphase a eu souvent le mérite de dénicher les talents jeunes et inconnus”. ( BAUDELAIRE, 1999a, p. 51BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1845. In Écrits sur l’Art. Paris: Librairie Générale Française, 1999a, p. 49-121.)

Não cabe aqui qualquer intenção de reabilitar Delécluze – o neoclassicismo, a Academia, o belo ideal –, mas é razoável atentar para o papel por ele desempenhado, que implicou a negação de muitas de suas inclinações, como foi o caso de Gros ou de Ingres. O que parece claro nessa história é que, antes de 1824, o romantismo, gestado que foi pelas melhores forças dentro do próprio ateliê de David, não era propriamente um problema estético. E, se havia quem o tratasse como tal, não parecia tão grave, o que deve ser colocado na cota das controvérsias rotineiras de toda escola. O que é notável na reação de 1824 é que, nesta data, o romantismo passa a ser tratado como um verdadeiro e decisivo problema estético. E, no discurso de Auger, até como um problema nacional. Mas o que estava mesmo em jogo naquele momento era a ameaça que os novos pintores traziam consigo. Não tanto por causa de seus temas ou maneiras, mas pelo efeito de proliferação de temas, maneiras e gostos, o que colocava em risco a ordenação de sentido e o monopólio que a Academia exercia sobre as artes. A troca de papéis, a negação das inclinações pessoais, são exemplos veementes de que os artistas não criavam ou escolhiam arbitrariamente suas posições, mas ocupavam aquelas que estavam disponíveis, mesmo tendo que pagar, em certos casos, um alto preço por isso. Talvez o suicídio de Gros em 1835, depois de sucessivos fracassos, possa ser contabilizado nessa fatura. Como exemplo inverso, chama atenção a virada fulminante de Ingres com seu Voeau de Louis XIII, que lhe valeu a cadeira de Denon, a liderança da escola e, mais tarde, a direção da Académie na Villa Médicis em Roma. Já Delécluze, por não ser figura de proa, equilibrado em discreta, mas eficaz, teia de relações, pôde manter uma posição relativamente constante, na qual, a despeito de suas ambiguidades, lutou pela permanência do velho sistema; sua crítica, por mais esclarecida que fosse, ficou esquecida, embaralhada nos pequenos insultos de sua fortuna póstuma.

O que é romantismo?

Numa passagem circunstancial, anotada por Delécluze em seu diário em 29 de março de 1826, talvez se encontre a chave das preocupações que orientaram sua atividade:

Saio da casa de Gérard (o pintor). Ingres, Pradier, Constantin (o pintor de porcelana), Sr. Thévenin, alguns outros artistas e eu, estávamos muito atentos ao que nos dizia o anfitrião sobre sua arte, sobre a qual ele discorre com muita agudeza. Ele concluía que desde que as artes deixaram de possuir um caráter de utilidade que as articule com a política e com a religião, não devemos mais ficar espantados com o fato de não se submeterem mais a um gosto, a um sistema único, e é até mesmo mais que necessário que os gostos diversos, tendo a pretensão de prevalecer, deem origem a uma espécie de anarquia, como essa que se pode observar atualmente em todas as escolas da Europa. 46 46 No original: “Je sors de chez Gérard (le peintre). Ingres, Pradier, Constantin (le peintre sur porcelaine), M. Thévenin, quelques autres artistes et moi nous étions fort attentifs à ce que nous disait le maître de la maison sur son art, dont il parle avec beaucoup d’esprit. Il concluiat que lors que les arts n’ont plus un objet d’utilité qui les rattache à la politique et à la réligion, on ne doit plus s’étonner de ce qu’ils ne se soumettent plus à un goût, à un système unique, et que même il est de tout nécessité que les goûts divers ayant la prétention de prévaloir constituent une espèce d’anarchie, comme celle que l’on peut observer aujourd’hui dans toutes les écoles de l’Europe”. ( DELÉCLUZE, 1948, p. 331DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Journal de Delécluze 1824-1828. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1948., grifos meus)

Esta lúcida constatação de Gérard, que Delécluze tomou para si, transformou-se pouco a pouco em apreciação generalizada. Repetida não só pelos egressos da cultura acadêmica do fim do século XVIII, mas também por gente formada em outras tradições, como foi o caso de um observador estrangeiro que escreveu sobre o Salão de 1831, quando os shakespeariens já dominavam a cena artística francesa. Logo no início de seu longo período parisiense, o poeta Heinrich Heine inquietava-se com um aspecto dessa corrente então triunfante na Monarquia de Julho, que diz respeito à completa pulverização das maneiras dos artistas que apresentaram suas obras no salão:

Cada pintor trabalha conforme seu gosto particular e por sua própria conta. Os assuntos são proporcionados pelo capricho do momento, a fantasia dos ricos ou de sua alma desocupada; a paleta fornece as mais brilhantes cores, e a tela suporta tudo. Além disso, o romantismo, mal compreendido, infectou os ateliês de pintura na França; em consequência de um princípio fundamental dessa doutrina, cada um se esforça para pintar diferentemente dos outros, ou, para usar a linguagem da moda, para ressaltar sua individualidade. 47 47 No original: “ Chaque peintre travaille selon son gôut particulier et pour son propre compte. Le caprice du moment, la fantasie des riches ou de son âme désoeuvrée lui donne le sujet; la palette fournit les couleurs les plus brillantes, et la toile souffre tout. De plus, le romantisme mal entendu a infecté les ateliers de peinture en France; en consequence du principe fondamental de cette doctrine, chacun s'efforce de peindre autrement que les autres, ou, pour parler le langage à la mode, de faire ressortir son individualité”. ( HEINE, 1980, p. 325HEINE, Heinrich. Salon de 1831. In De la France. Paris/Genève: Slatkine Reprints, 1980, p.324-381., grifos meus)

O brilho do Salão no qual Delacroix apresentou La Liberté guidant le peuple (1830) e Delaroche trouxe à luz uma expressiva série de telas – Cromwell (1831), Les enfants de Edouard IV (1830), Richelieu mourant (1829) e Le cardinal Mazarin mourant (1830) – não foi suficiente para desfazer o mal-estar que acometeu o poeta.

Os comentários de Gerard e Heine devem ser retirados de sua dimensão circunstancial ou idiossincrática; de fato, tornam perceptível a mudança qualitativa que se acentuaria nas décadas seguintes. O que disseram nos idos de 1826 e 1831 tem grande sintonia com as posições de Baudelaire, 15 anos mais trade, quando firma a sua dicção crítica nos comentários do salão de 1846. Esse é o momento em que, além do julgamento estético, o poeta começa a operar considerações morfológicas, e a mais importante me parece ser aquela na qual identifica uma mudança no regime de produção de arte, antes dominado por escolas, que representavam a grande tradição, e a entrada em cena do “trabalhador emancipado” (“ouvrier émancipé”). Não desapareceram os ateliês comandados por um mestre, mas a orientação deste perde eficácia quando os alunos são muitos e “deixados à sua própria sorte” (“chaqu’un est abandonné à soi-même”) ( BAUDELAIRE, 1999b, p. 234BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. In Écrits sur l’Art. Paris: Librairie Générale Française, 1999b, p. 135-242.). Avaliação que não é em nada diferente da de Gérard ou de Heine: o artista não mais atrelado à política ou à religião, no plano social, e a um sistema único, no plano estético, está entregue a uma liberdade anárquica. O que, para Baudelaire, era a característica mais comum daqueles que apresentaram suas obras no salão de 1846. Artistas com o desejo da liberdade, mas limitados por sua ignorância. E Baudelaire, no seu estilo enfático, parece glosar Heine ao confessar a sensação que teve ao sair do salão:

(...) turbulência, agitação estridente de estilos e cores, cacofonia de tons, trivialidades enormes, prosaísmo de gestos e atitudes, nobreza de convenção, toda sorte de clichês e, tudo isso, de forma evidente, não somente nos quadros justapostos, mas também em um mesmo quadro: em resumo – ausência completa de unidade, cujo resultado é uma fadiga para o espírito e para os olhos. 48 48 No original: “(...) turbulance, tohu-bohu de styles et de couleurs, cacophonie de tons, trivialités énormes, prosaïsme de gestes et d’attitudes, noblesse de convention, poncifs de toute sorte et tout cela visible et clair, non seulement dans les tableaux juxtaposés, mais encore dans le même trableau: bref, – absence complete d’unité, dont le résultat est une fadigue effroyable pour l’esprit et pour les yeux.” ( BAUDELAIRE, 1999b, p. 233BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. In Écrits sur l’Art. Paris: Librairie Générale Française, 1999b, p. 135-242.)

Parece claro que o mundo das regras que orientavam a pedagogia das escolas e dos ateliês, sob a égide da Academia, já não controlava as manifestações de originalidade e a tendência a atitudes caprichosas dos artistas, o que pressupunha também a deriva do gosto. As leis da arte, que orientavam o júri dos salões nas decisões sobre os prêmios aos melhores, já estavam sob franca contestação, dos críticos e dos próprios artistas, que começavam a contar com outras formas de consagração e com clientes que, nem sempre, estavam dispostos a ouvir os vereditos da Academia no momento de suas escolhas.

Curiosamente, é nesse mesmo salão de 1846 que surge uma ideia aparentemente bizarra sobre o romantismo, que não será examinada nos limites deste artigo, mas pode já ser adiantada. Trata-se da crítica de Theophile Thoré a Ingres. Diz o crítico:

No fundo, o Sr. Ingres é o artista mais romântico do século XIX, se o romantismo é o amor exclusivo da forma, a indiferença absoluta a respeito de todos os mistérios da vida humana, o ceticismo em filosofia e em política, o desapego egoísta de todos os sentimentos comuns e solidários. A doutrina da arte pela arte é, com efeito, um bramanismo materialista que absorve seus adeptos, não exatamente na contemplação de coisas eternas, mas na monomania da forma exterior perecível. É de se destacar que o romantismo, cuja boa influência no plano do estilo não pode ser contestada, não produziu um único homem de convicção social. 49 49 No original: “Au fond, M. Ingres est l’artiste le plus romantique du dix-neuvième siècle, si le romantisme est l’amour exclusive de la forme, l’indifférence absolue sur tous les mystères de la vie humaine, le scepticisme en philosophie et en politique, le détachement égoïste de tous les sentiments communs et solidaires. La doctrine de l’art pour l’art est, en effet, un brahmanisme matérialiste qui absorbe ses adeptes, non point dans la comtemplation de choses éternelles, mais dans la monomanie de la forme extérieure et périssable. Il est remarquable que le romantisme, dont on ne saurait contester la bonne influence quant au style, n’a pas produit un seul homme de conviction sociale”. ( THORÉ, 1846, p. 42THORÉ, Théophile. Le salon de 1846. Précédé d’une lettre À George Sand. Paris: Alliance des Arts, 1846.)

O contrassenso parece estar no fato de que Ingres, sempre oposto a Delacroix, como a linha à cor, era dito clássico, mas Thoré, que sabia disso, percebeu outra coisa: o que Ingres e o ingrisme representavam era, antes de tudo, uma soberba distância da agitação da vida, uma arte intocada pela vida, o que, no seu entender, foi o caminho do egotismo romântico. A diferença entre Thoré e Heine é que este julgava a pintura em 1831 como o resultado de um romantismo mal compreendido (“romantisme mal entendu”), enquanto em 1846 Thoré ia além, ao assimilar deliberadamente romantismo e arte pela arte.

Conclusão

Curiosamente, é também em 1824 que a expressão arte pela arte começa a entrar no vocabulário corrente. Suas primeiras manifestações aconteceram nos últimos anos do século anterior, mas tinham um sentido distinto do que viria a ganhar no segundo quartel do século XIX. Posso dizer que era algo relativo à ética do artesão ou do ator. O primeiro uso que identifiquei foi no elogio de uma atriz, que de tão concentrada em seu papel parecia se esquecer do entusiasmo do público. M lle. Raucourt, atriz da Comédie Française, famosa por dar vida a Emilie de Corneille, Hermione de Racine, Galathée de Rousseau, fazia arte pela arte, e não arte em busca dos aplausos e da glória: um belo começo para a expressão, que também deslizou para um aspecto formativo, para designar aquele momento no qual o aprendiz não mais depende do instrutor e faz a arte seguindo seus próprios mecanismos, sua própria lógica, como se a arte enredasse o artista na sua realização. Em 1824, na pena de um arqueólogo de grande fama, Champollion, arte pela arte passa a ser uma característica da arte grega por oposição à arte egípcia. Tal era o apreço dos gregos pela forma, que se despreocupavam com o conteúdo. “(…) na Grécia, a forma era tudo; a arte era cultivada pela própria arte. No Egito, era apenas um meio poderoso de pintar o pensamento” 50 50 No original: “(...) en Grèce la forme fut tout; on cultivait l'art pour l'art lui-même. En Égypte, il ne fut qu'un moyen puissant de peindre la pensée”. ( CHAMPOLLION, 1824, p. 364CHAMPOLLION. Jean-François. Précis du système hiéroglyphique des anciens Égyptiens, ou Recherches sur les éléments premiers de cette écriture sacrée, sur leurs diverses combinaisons, et sur les rapports de ce système avec les autres méthodes graphiques égyptiennes. Paris: Impr. Royale, 1824.).

Foi a partir desse sentido que se abriu o caminho que chegaria à campanha antiutilitarista que teve em Théophile Gautier o principal defensor, o que ficou explicitado no prefácio que escreveu para sua novela Mademoiselle Maupin em 1836 ( GAUTIER, 1836, p. 22GAUTIER, Theophile. Mademoiselle Maupin: double amour. Paris: Eugène Renduel, 1836.). Não era mais papel da arte carregar consigo alguma coisa que não fosse exclusivamente ela mesma, o que implicava assumir plenamente sua indiferença a outros aspectos da vida. Realizava-se assim, no plano do conceito, aquela situação identificada por Gérard e transmitida a Delécluze em 1826: “desde que as artes deixaram de possuir um caráter de utilidade que as articule com a política e com a religião, não devemos mais ficar espantados com o fato de não se submeterem mais a um gosto, a um sistema único” 51 51 No original: “lors que les arts n’ont plus un objet d’utilité qui les rattache à la politique et à la réligion, on ne doit plus s’étonner de ce qu’ils ne se soumettent plus à un goût, à un système unique”. . O que configurou o destino da arte no romantismo. Depois de se contorcer no ativismo da segunda revolução burguesa, da mesma forma que a Monarquia de Julho (1830-1848), o romantismo mostrou os seus limites. O que Baudelaire percebeu muito bem em comentário sobre poeta Pierre Dupont:

(...) por seu próprio princípio, a insurreição romântica está condenada a uma vida curta. A utopia pueril da escola da arte pela arte, ao excluir a moral e muitas vezes até a paixão, é necessariamente estéril. Ela se coloca em flagrante contravenção com o gênio da humanidade. ( BAUDELAIRE, 1851, p. 1BAUDELAIRE, Charles. Notice sur Pierre Dupont. In DUPONT, Pierre. Chants et chansons: (poésie et musique). Tome 1. Paris, L’écrivain et Toubon, 1851, p.1-8.)

Se em Salon de 1846 Baudelaire ainda reconhecia no romantismo uma potência, “(...) isto é, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração ao infinito, expressas por todos os meios compreendidos nas artes” 52 52 No original: “(...) c’est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration vers l’infini, exprimées par tous les moyens que contiènnent les arts”. ( BAUDELAIRE, 1999b, p. 145BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. In Écrits sur l’Art. Paris: Librairie Générale Française, 1999b, p. 135-242.) – frase que poderia ter saído também da pena de Gautier –, em 1851, embalado pela poesia revolucionária de Dupont, parecia estar mais próximo das convicções sociais de Thoré, ao declarar preferência pelo “poeta que se coloca em comunicação permanente com os homens de seu tempo, e com ele troca seus pensamentos e seus sentimentos, traduzidos em uma nobre linguagem suficientemente correta” ( BAUDELAIRE, 1851, p. 1BAUDELAIRE, Charles. Notice sur Pierre Dupont. In DUPONT, Pierre. Chants et chansons: (poésie et musique). Tome 1. Paris, L’écrivain et Toubon, 1851, p.1-8.), abdicando assim de aspirações ao infinito.

Para retomar alguma coisa de suas convicções sociais, como aquelas que vinham desde os tempos da escola de David, a arte demandava um outro programa: a negação da arte pela arte; o recurso à tradição, desde que reelaborada por uma individualidade; o compromisso com o próprio tempo e lugar. E o nome disso era outro: realismo.

  • AMAURY-DUVAL, Eugène Emmanuel. L'atelier d'Ingres / Introduction et notes, postface et documents par Daniel Ternois. Paris: Arthena, 1993.
  • AUGER, Louis-Simon. Recueil des Discours prononcés dans la séance publique annuelle de l’Institut Royal de France, le samedi 24 avril. Paris: L’ Imprimerie de Firmin Didot, 1824, p. 1-20
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  • SAINTE-BEUVE, Charles-Augustin. L’Académie Française - Paris-Guide. Par les principaux écrivains et artistes de la France. Paris: Lacroix et Verboeckhoven Éditeurs, 1867.
  • STENDHAL. Qu’est-ce-que le romanticisme? Racine et Shakspeare : études sur le romantisme (Nouvelle édition). Paris, Michel Lévy frères (Paris), 1854, p. 229-257.
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  • WINCKELMANN, Johann-Joachim. Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture / Tradução Marianne Charrière. Paris: Éditions Jacqueline Chambon, 1991.
  • WINCKELMANN, Johann-Joachim. Sur la faculté de sentir le beau dans l’art et sur son enseignement [1763] In De la description. Édition d’Élisabeth Décultot. Paris: Macula, 2006, p. 67-108.
  • 1
    A que produziu mais ruído foi a dos Barbus, também conhecidos como Penseurs ou Primitifs, que girava em torno do carismático Maurice Quaï, de quem pouco se conhece além do anedotário gerado no próprio ateliê. Sobre a seita, cf. DELÉCLUZE ( 1983DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Louis David, son école et son temps. Paris : Macula, 1983.).
  • 2
    Sobre rivalidade e emulação no ateliê de David, cf. CROW ( 1997CROW, Thomas. L’atelier de David: émulation et révolution. Paris: Gallimard, 1997.).
  • 3
    “L’ordonnance poétique, que l’on doit considerer comme une partie de l’invention, si ce n’est l’invention elle-même, doit toujours précéder l’ordonnance pittoresque […]. L’ordonnance poétique se réglera donc sur les convenances du sujet: elle se conformera aux temps, déterminera les lieux, observera les moeurs et les usages, elle conservera les costumes. D’après les donnes de l’histoire et de la mythologie (...).” ( GIRODET, 1829b, p. 209–210GIRODET, Anne-Louis. De l’ordonnance en peinture. In COUPIN, Pierre Alexandre; GIRODET, Anne-Louis. Oeuvres Posthumes de Girodet-Trioson. Tome II. Paris: Jules Renouard, 1829b, p. 209-223.)
  • 4
    Ver capítulo 3.
  • 5
    Girodet realizou estudos preparatórios e os introduziu escondido no ateliê a ele reservado para pintar o quadro que concorreria ao prêmio. Essa prática era proibida, e François-Xavier Fabre (1766-1837), seu colega no ateliê de David, o denunciou. Cf. Crow ( 1997, p. 112CROW, Thomas. L’atelier de David: émulation et révolution. Paris: Gallimard, 1997.).
  • 6
    Girodet foi responsável por parte do corpo e do rosto da mulher de Brutus e contribuiu no tratamento final do claro-escuro de Les licteurs rapportent à Brutus les corps de ses fils. É dele também a solução para o fundo (o túnel em arco e a escadaria) de La mort de Socrates. Cf. Crow ( 1997, p. 126–132CROW, Thomas. L’atelier de David: émulation et révolution. Paris: Gallimard, 1997.).
  • 7
    Na Itália, Girodet conviveu em um círculo em que se destacavam vários artistas envolvidos no culto de Ossian: o inglês Flaxman, o escocês Wallis, os alemães Carstens e Rehberg, a suíça anglófila Angélica Kaufmann e o crítico Amaury Pineu-Duval (cf. LEMEUX-FRAITOT, 2005, p. 135LEMEUX-FRAITOT, Sidonie. Le réveil d’Ossian. In Au-delà du maître: Girodet et l’atelier de David. Paris: Somogy, 2005, p. 16-27.).
  • 8
    No original: “(...) je ne me connais pas à cette peinture-là; non, mon cher Girodet, je ne m’y connais pas du tout”. Todas as traduções do francês são do autor deste texto.
  • 9
    No original: “Ah ça! il est fou, Girodet!... il est fou, ou je n’entends plus rien à l’art de la peinture”.
  • 10
    Os dez quadros de história selecionados foram Cena de dilúvio (Girodet), As Sabinas (David), A consternação da família de Príamo (Garnier), Os três anjos (Gérard), Atala (Girodet), Marcus Sextus (Guérin), Fedra e Hipólito (Guérin), Os remorsos de Orestes (Hannequin), Telêmaco na ilha de Calipso (Meynier), A Justiça e a Vingança divina (Prudhon), Dois tetos alegóricos do Louvre (Barthélemi) (cf. DELÉCLUZE, 1983, p. 320–327DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Louis David, son école et son temps. Paris : Macula, 1983.).
  • 11
    No original: “Autrefois c’était en raison de vos immenses dispositions pour un art que vous deveniez sous mes yeux; aujourd’hui, mon cher élève, à cette tendre affection qui paraissait dormir dans mon sein, se joint mon admiration pour votre grand savoir”.
  • 12
    Pouco tempo depois, Ingres concorreu à cadeira que era de Denon na Académie de Beaux Arts, para a qual foi indicado.
  • 13
    O Journal de Delécluze e seu Carnet de route d’Italie (1823-1824) permaneceram inéditos até a década de 1940, quando foram editados por Robert Baschet. Os manuscritos pertenciam a Georges Viollet-le-Duc, sobrinho-bisneto de Delécluze e neto do arquiteto Viollet-le-Duc.
  • 14
    No original: “Cet homme a une expression magnifique de grandeur et de calme dans la figure. Ses cheveux grisonants et qui deviennent rares donnent quelque chose de majestueux à ses traits qui expriment à la fois la force et beaucoup de douceur (...). Il règne dans son air quelque chose de romanesque pris en bonne part, qui doit le rendre, sinon ennemi, au moins étranger aux idées positives avec lesquelles on gouverne en géneral les hommes, mais plus particulièrement ceux d’aujourd’hui”.
  • 15
    No original: “De même que les profondeurs de la mer restent calmes en tout temps, si déchaînés que soit la surface, de même l’expression dans les figures des Grecs révèle, même quand elles sont en proi aux passions les plus violentes, une âme grande et sereine”.
  • 16
    No original: ” (...) le seul peintre dont le talent et l’autorité pût faire contrepoids et arrêter l’École qui est sur une pente qui la conduit à sa perte”.
  • 17
    No original: ” (...) abusant d’une facilité trompeuse, ne donnent rien à l’étude et tout au contraire à l’amour d’une célébrité passagère et d’une fortune acquise sans peine.”
  • 18
    No original: “Bientôt on voudra nous faire croire qu’un morceau de toile sur lequel on a barbouillé de la couleur pendant quinze jours est un chef-d’oeuvre digne de consacrer la mémoire d’un prince!”
  • 19
    No original: “Tiepolo exécute plus en un jour que Mengs dans toute une semaine, mais on a oublié les ouvrages du premier aussitôt qu’on les a perdu de vue; tandis que les chefs-d’oeuvre de Mengs font une impression aussi profonde et durable”.
  • 20
    No original: “Le coloris brillant, la hardiesse de pinceau, et jusqu’à l’espèce de désordre qui régnait dans ces compositions faites tout à la fois avec tant d’aisance et même d’audace, peints en quelque sorte en plein air et devant tout le monde; ces habitudes et ces qualités si différentes de celles qui regnaient depuis dix ans dans les écoles de Paris, parurent tout à coup à un grand nombre d’artistes celles qui devaient être préférées et dont les résultats seraient les plus satisfaisants pour l’exercice de l’art”.
  • 21
    Amaury-Duval (1808-1885) foi fiel discípulo de Ingres. Pertenceu a uma das famílias influentes no Instiut de France; seu pai, o advogado Claude-Alexandre Amaury-Duval (1760-1838), foi diplomata em Nápoles e Roma nas vésperas da Revolução e um dos fundadores de La Décade, revista de filosofia, letras e artes que circulou na França entre 1794 e 1806; foi diretor do Bureau des Beaux-Arts do Ministério do Interior e membro do Institut, eleito em 1816. Em sua estadia na Itália, Girodet frequentou o mesmo círculo de Amaury-Duval, o pai. Cf. Lemeux-Fraitot ( 2005, p. 135LEMEUX-FRAITOT, Sidonie. Le réveil d’Ossian. In Au-delà du maître: Girodet et l’atelier de David. Paris: Somogy, 2005, p. 16-27.).
  • 22
    No original: “Porquoi Gros? Il est vieux, ne s’occupe plus de ses élèves; entrez donc chez Ingres, qui va ouvrir un atelier, et qui est e seul homme aujourd’hui capable d’enseigner et de remettre dans la voie noble et élevée notre école qui dégénère”.
  • 23
    No original: “La guerre est déjà commencée. Les Débats vont être classiques, c’est-à-dire ne jurer que par David, et s’écrier: Toute figure peinte doit être la copie d’une statue, et le spectateur admirera, dût-il dormir debout. Le Constitutionnel, de son côté, fait des belles phrases un peut vagues, c’est le défaut du siècle; mais enfin il défend les idées nouvelles”
  • 24
    O Journal des Débats foi caracterizado por Delécluze como “royaliste constitutionnel qui s’adresse particulièrement aux lecteurs dont l’esprit est cultivé et qui ont l’habitude de soummettre les questions à la coupelle du raisonnement; le journal dit le Constitutionnel, dont les doctrines libérales sont tant soit peut douteuses, puisqu’il a regretté longtemps le systeme imperial, et qu’il vante encore la forfanterie militaire. Cependant, ce journal qui parle surtout aux passions a cela de bon qu’il répend les doctrines de la liberté chez des gens qui ne comprennent que par les sens et les passions. Il est nécessaire à une grande portion de la France qui ne peut pas encore comprendre le Journal des Débats. Le Constitutionnel est le plus généralement lu en France, et cela doit être” ( DELÉCLUZE, 1948, p. 391DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Journal de Delécluze 1824-1828. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1948.).
  • 25
    Sainte-Beuve dá grande destaque a esse episódio e afirma que o discurso de Auger teve de imediato um efeito contrário ao esperado: “Ce discours eut un grand retentissement: il fit le bonheur et la jubilation des adversaires. Le spirituel escarmoucheur Henri Beyle (Stendhal), dans ses hardies brochures allait redissent avec gaieté: M. Auger l’a dit, je suis un sectaire” ( SAINTE-BEUVE, 1867, p. 97SAINTE-BEUVE, Charles-Augustin. L’Académie Française - Paris-Guide. Par les principaux écrivains et artistes de la France. Paris: Lacroix et Verboeckhoven Éditeurs, 1867.).
  • 26
    No original: “Un nouveau schisme littéraire se manifeste aujourd’hui. Beaucoup d’hommes, élevés dans un respect religieux pour d’antiques doctrines, consacrées par d’innombrables chefs-d’oeuvre, s’inquiètent, s’effrayent des projets de la secte naissante, et semblent demander qu’on les rassure. L’Académie française restera-t-elle indifférente à leurs alarmes?”
  • 27
    No original: “Le danger n’est peut-être grand encore; et l’on pourrait caindre de l’augmenter en y attachant trop d’importance. Mais faut-il donc attendre que la secte du romantisme (car c’est ainsi qu’on l’appelle) (...) qu’elle mette en problême toutes nos règles, insulte à tous nos chefs-d’oeuvre, et pervertisse, par d’illégitimes succès, cette masse flottante d’opinions dont toujours la fortune dispose?”
  • 28
    As palavras de Voltaire sobre Shakespeare talvez sejam as mais emblemáticas: “Il avait un génie plein de force et de fécondité, de naturel et de sublime, sans la moindre étincelle de bon goût et sans la moindre connaissance des règles” ( VOLTAIRE, \bibstring{nodate}, p. 104VOLTAIRE. Sur la Tragédie. Lettres philosophiques ou lettres anglaises. Paris: Garnier, n.d.).
  • 29
    No original: “Ce qu’en un siècle de barbarie avaient fait Shakespeare et Lope de Vega, l’un par ignorance, et l’autre par nécessité, les Allemands, à une époque de lumières universelles, le firent avec choix et systématiquement. Des tragédies furent composées par eux, dans lesquelles l’irregularité de l’Eschyle britanique et de l’Euripede castillan était largement imitée, mais où leur génie était un peu plus reproduit”.
  • 30
    No original: “(...) une femme justement célèbre, toute française par ses sentiments, ses affections et ses goûts, mais que les vicissitudes de sa destinée avaient rendue cosmopolite”.
  • 31
    No original: “(...) la fameuse distinction de classique et de romantique, qui divisait, à leur insu, toutes littératures”.
  • 32
    No original: “Le romantisme n’a pas la pretention d’instruire; il dédagne d’amuser; il n’aspire qu’à émouvoir”.
  • 33
    Ao definir as causas essenciais que condicionam as artes, Quatremère de Quincy coloca entre elas o clima, e por pouco não duvida da possibilidade do florescimento das artes do desenho na França, por estar situada entre 42 e 51 graus de latitude, com boa parte de seu território em condições climáticas não tão favoráveis como a Grécia e a Itália do sul. Cf. Quatremère de Quincy ( 1791, p. 22–23, 38–39QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine. Considérations sur les Arts du Dessin en France. Paris: Devaux, 1791.)
  • 34
    Foram frequentadores assíduos dessas reuniões, que aconteciam às terças-feiras e aos domingos, J.-J. Ampère, Albert Stapfer, Auguste Santelet, Édouard Monod, todos eles alunos de Victor Cousin, além de Paul Louis Courier, do barão Mareste, de Stendhal, de Cerclet, de Duvergier de Hauranne, de Ludovic Vitet e de Emanuel Louis Viollet-le-Duc, cunhado de Delécluze; e também Charles Rémusat, P. F. Dubois, o naturalista Victor Jacquemont, Adrien de Jussieu, Mignet, Aubernon, o helenista Henri Patin, e Prosper Mérimée. Cf. Baschet ( 1942, p. 1BASCHET, Robert. Introduction. In DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Carnet de Route d’Italie (1823-1824). Impressions Romaines. Paris: Boivin éditeurs, 1942, p. 1-17.).
  • 35
    Nodier, então francamente adepto do “partido romântico”, foi também aluno de David e abandonou as artes do desenho em favor de uma carreira literária. Nodier pertenceu à pequena facção que se formou no ateliê de David, por volta de 1800, conhecida como Les Primitfs, liderada por Maurice Quaï. Delécluze anexa em Louis David son École et son Temps uma pequena memória de Nodier sobre a pequena seita. Charles Nodier foi o primeiro animador de Le Cénacle (1823-1828), grupo de românticos que se reunia em sua residência e depois chez Victor Hugo.
  • 36
    Um deles, admirador do bardo inglês, em encontro circunstancial, indagou se Delécluze não o apreciava: “Je lui ai répondu que je ne l’estimais pas moins que lui, mais que j’avais opposé l’école littéraire de Shakespeare, stérile pour les arts d’imitation, à celle d’Homère qui aide singulièrement les artistes.” (Cf. DELÉCLUZE, 1948, p. 335DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Journal de Delécluze 1824-1828. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1948.)
  • 37
    No original: “(...) pendant un an tout les huit jours une foi, la galerie du Luxembourg, de quiter toutes les choses, & de rien épargne pour cela. Ce jour seroit sans doute le plus utilement employé de la semaine. Rubens est ce me samble celuy de tous les Peintres, qui a rendu le chemin qui conduit au Coloris, plus facile & plus debarassé: Et l’ouvrage dont je vous parle, est la main secourable que peut tirer le Peintre du naufrage où il se seroit innocemment engagé”.
  • 38
    No original: “J’ai pu examiner de près, par terre, le plafond d’Homère; je n’ai jamais vu execution pareille, c’est fait comme les maîtres, avec rien; et de loin tout y est”.
  • 39
    No original: “le seul homme (...) capable d’enseigner et de remettre dans la voie noble et élevée notre école qui dégénère”.
  • 40
    “Bizarrerie, terme qui designe un goût contraire aux principes reçus, une recherche affectée des formes extraordinaires, et dont le seul mérite consiste dans la nouveauté même qui en fait le vice” (Cf.MILLIN, 1806MILLIN, Aubin-Louis. Dictionnaire des Beaux Arts. Paris: Desray, 1806.). Os críticos do primeiro Ingres deviam ter em mente este conteúdo ao utilizarem tal palavra. E é razoável dizer que mesmo em sua busca dos modelos antigos, em seu arcaísmo, tão coerente com a ortodoxia neoclássica, Ingres continuou a ser magnificamente bizarro.
  • 41
    No original: “tous les classiques du monde de tirer de tout Racine un ballet comme le sublime ballet d’Otello”.
  • 42
    Em seu Journal, Delécluze parece sempre afirmar que as ideias românticas discutidas nas reuniões semanais em sua casa eram defendidas exclusivamente por seus jovens amigos, “mes jeunes antagonistes” (Delécluze 1948: 130). O romantismo do círculo de Delécluze é definido por Robert Baschet nestes termos: “[...] en face du romantisme lyrique, catholique et royaliste de 1820, s’élabore dans le Cénacle un romantisme prosaïque, rationaliste et libéral; et en face du romantisme de la sensibilité, un romantisme intelectuel.” (Cf. BASCHET, 1942, p. 1BASCHET, Robert. Introduction. In DELÉCLUZE, Etienne-Jean. Carnet de Route d’Italie (1823-1824). Impressions Romaines. Paris: Boivin éditeurs, 1942, p. 1-17.)
  • 43
    No original: “(...) excellent homme, type honnête, modèle de probité, très instruit et à côté de cela assez ignorant”.
  • 44
    No original: “Je trouvais chez M. de l’Étang, devant un petit mauvais feu (...) huit ou dix personnes qui parlaient de tout. Je fus frappé de leur bon sens, de leur esprit et surtout du tact fin du maître de la maison qui, sans qu’il y parût, dirigeait la discussion de façon à ce qu’on n’arrivât pas à des tristes moments de silence.
    Je ne saurais exprimer trop d’estime pour cette société. Je n’ai jamais rencontré, je ne dirai pas supérieur, mais même comparable. Je fus frappé le premier jour et, vingt fois peut-être pendant les trois ou quatre ans qu’elle a duré, je me suis surpris à faire le même acte d’admiration. Une telle société n’est possible que dans la patrie de Voltaire, de Molière, de Courier.
    Elle est impossible en Englaterre, car chez M. de l’Étang on se serait moqué d’un duc comme d’un autre, et plus que d’un autre s’il eût été ridicule.
    L’Allemagne ne pourait la fournir: on y est trop accoutumé à croire avec enthousiasme la niaiserie philosophique à la mode. D’ailleurs hors de leur enthousiasme, les Allemands sont trop bêtes.
    Les Italiens auraient disserté, chacun y eût gardé la parole pendant vingt minutes et fût resté l’ennemie mortel de son antagoniste dans la discussion. À la troisième séance, on eût fait des sonnets satiriques les uns contre les autres.
    Car la discussion était ferme et franche sur tous et avec tous. On était poli chez M. De l’Étang, mais à cause de lui. Il était souvent nécessaire qu’il protégeât la retrait des imprudents qui, cherchant une idée nouvelle, avaient avancé une absurdité trop marquant”.
  • 45
    No original: “Citons une belle et honorable exception, M. Delécluze, dont nous ne partageons pas toujours les opinions, mais qui a toujours su sauvegarder ses franchises, et qui sans fanfares ni emphase a eu souvent le mérite de dénicher les talents jeunes et inconnus”.
  • 46
    No original: “Je sors de chez Gérard (le peintre). Ingres, Pradier, Constantin (le peintre sur porcelaine), M. Thévenin, quelques autres artistes et moi nous étions fort attentifs à ce que nous disait le maître de la maison sur son art, dont il parle avec beaucoup d’esprit. Il concluiat que lors que les arts n’ont plus un objet d’utilité qui les rattache à la politique et à la réligion, on ne doit plus s’étonner de ce qu’ils ne se soumettent plus à un goût, à un système unique, et que même il est de tout nécessité que les goûts divers ayant la prétention de prévaloir constituent une espèce d’anarchie, comme celle que l’on peut observer aujourd’hui dans toutes les écoles de l’Europe”.
  • 47
    No original: “ Chaque peintre travaille selon son gôut particulier et pour son propre compte. Le caprice du moment, la fantasie des riches ou de son âme désoeuvrée lui donne le sujet; la palette fournit les couleurs les plus brillantes, et la toile souffre tout. De plus, le romantisme mal entendu a infecté les ateliers de peinture en France; en consequence du principe fondamental de cette doctrine, chacun s'efforce de peindre autrement que les autres, ou, pour parler le langage à la mode, de faire ressortir son individualité”.
  • 48
    No original: “(...) turbulance, tohu-bohu de styles et de couleurs, cacophonie de tons, trivialités énormes, prosaïsme de gestes et d’attitudes, noblesse de convention, poncifs de toute sorte et tout cela visible et clair, non seulement dans les tableaux juxtaposés, mais encore dans le même trableau: bref, – absence complete d’unité, dont le résultat est une fadigue effroyable pour l’esprit et pour les yeux.”
  • 49
    No original: “Au fond, M. Ingres est l’artiste le plus romantique du dix-neuvième siècle, si le romantisme est l’amour exclusive de la forme, l’indifférence absolue sur tous les mystères de la vie humaine, le scepticisme en philosophie et en politique, le détachement égoïste de tous les sentiments communs et solidaires. La doctrine de l’art pour l’art est, en effet, un brahmanisme matérialiste qui absorbe ses adeptes, non point dans la comtemplation de choses éternelles, mais dans la monomanie de la forme extérieure et périssable. Il est remarquable que le romantisme, dont on ne saurait contester la bonne influence quant au style, n’a pas produit un seul homme de conviction sociale”.
  • 50
    No original: “(...) en Grèce la forme fut tout; on cultivait l'art pour l'art lui-même. En Égypte, il ne fut qu'un moyen puissant de peindre la pensée”.
  • 51
    No original: “lors que les arts n’ont plus un objet d’utilité qui les rattache à la politique et à la réligion, on ne doit plus s’étonner de ce qu’ils ne se soumettent plus à un goût, à un système unique”.
  • 52
    No original: “(...) c’est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration vers l’infini, exprimées par tous les moyens que contiènnent les arts”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    31 Mar 2023
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