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Descrever para não explicar: o papel fundador de Anamorfas para a pesquisa em Poéticas Visuais

Describe so as Not to Explain: The Founding Role of Anamorfas for Research in Visual Poetics

Describir en lugar de explicar: el papel fundador de Anamorfas para la investigación en Poéticas Visuales

RESUMO

Por meio da análise de seu posicionamento e de suas estratégias de inserção na Universidade, o presente artigo coloca em perspectiva o papel fundador do trabalho de mestrado Anamorfas, da Profa. Dra. Regina Silveira, em relação à pesquisa em Poéticas Visuais na ECA-USP, como referência metodológica fundante para o programa de pós-graduação em Artes Visuais e seu desenvolvimento posterior, bem como para a problematização das formas de arquivo e circulação de produção acadêmica.

PALAVRAS-CHAVE
Universidade; Poéticas Visuais; Perspectiva; Programa; Anamorfose

ABSTRACT

Through the analysis of its positioning and its insertion strategies at the University, this article puts in perspective the founding role of the master’s work Anamorfas, by Prof. Dr. Regina Silveira, in relation to research in Visual Poetics at ECA-USP as a grounding methodological reference for the postgraduate program in Visual Arts and its subsequent development, as well as for problematizing the forms of archive and circulation of academic production.

KEYWORDS
University; Visual Poetics; Perspective; Program; Anamorphosis

RESUMEN

A través del análisis de su posición y estrategias de inserción en la Universidad, este artículo pone en perspectiva el papel fundador del trabajo de maestría Anamorfas, de la Profesora Dra. Regina Silveira, en relación con la investigación de Poéticas Visuales en ECA-USP, como referencia metodológica fundacional para el programa de posgrado en Artes Visuales y su posterior desarrollo, así como para problematizar las formas de archivo y circulación de la producción académica.

PALABRAS CLAVE
Universidad; Poéticas visuales; Perspectiva; Programa; Anamorfosis

“Trabalho equivalente à dissertação de mestrado”.1 1 Para uma contextualização do PPGAV-ECA, área de poéticas visuais, cf. PRADO (2009). Disponível em: https://www.scielo.br/j/ars/a/bRKKHXhdcmhK9p59b7pVFnt/?lang=pt. Acesso em: 30 mai. 2023. O subtítulo que acompanha Anamorfas, da Profa. Dra. Regina Silveira, anuncia desde o início de sua leitura uma ausência, em função da qual o trabalho referido se constitui. Como uma espécie de arquivo para memória de algo que se coloca para além do programa em que se insere.

Um livro-emblema da ausência que teria marcado a pesquisa em Poéticas Visuais em sua identidade, e que a determina de modo fundamental: a negação do volume presente em razão de algo que ali não pode ser encontrado. Tal identidade pode ser reconhecida ainda hoje ao perfilarmos uma série de procedimentos que chegam a funcionar para alguns pesquisadores da área quase como um conjunto de instruções: escolher certo número de realizações registradas no sistema/circuito da arte; investir na escrita como espaço de reconstituição de memória dessas realizações; organizar uma espécie de compêndio em que se deposita o conteúdo (este, geralmente, se crê à parte da forma final do trabalho). Um conjunto de registros que alimentará o arquivo e dará lastro acadêmico ao que houver sido realizado em outros circuitos, comunicantes entre si e, agora, extensivos à Universidade.

Pode parecer que a fórmula descrita acima sentenciaria Anamorfas à dicotomia entre o realizado e o registro. No entanto, esse procedimento, que deu molde a muitas formalizações de pesquisa em Poéticas Visuais, despreza as características específicas de Anamorfas em particular – um molde cego que serve de base a uma estratégia que se aproveita dele para permanecer oculta –, e o que há de criticidade na proposição feita por Anamorfas acaba não se desdobrando na maior parte dos trabalhos de pesquisa que o tem como referência.

A começar pela problematização da imagem fotográfica.2 2 Em um de seus primeiros parágrafos: “‘Anamorfas’ é um estudo sobre as aparências representadas por códigos projetivos. Trata do problema das distorções de imagens desenhadas em perspectiva, quando, por uma ação gráfica arbitrária, contrariam-se as normas que condicionam este sistema de representação” (SILVEIRA, 1980, p. 1). Pode-se dizer que Anamorfas nasce de um questionamento acerca da imagem reproduzida, codificada da fotografia e, portanto, da problematização do registro. Deste modo, carrega consigo, no mínimo, duas valiosas contradições:

  1. Se por um lado o trabalho se anuncia portador de uma memória de algo que se ausenta, por outro, ao problematizar o modo mais típico desta ausência, inerente à dinâmica que constitui a imagem fotográfica, recusa-se a entregar o que se esperaria de qualquer reprodução;

  2. Se por um lado abraça um procedimento lógico quanto à sua própria organização que não corresponderia a suas demandas internas enquanto trabalho artístico, sendo estas: o formato da dissertação, a divisão em itens, a categorização, as referências históricas, o imposto pago à teoria, a forma descritiva, por outro se nega a entregar seu significado ou a apresentar de forma didática seus desdobramentos interpretativos: oferece uma forma previsível na qual se leva algo do inexplicável e do insubordinado.

Anamorfas se encapsularia nessa forma, dourado por seu invólucro, simultaneamente convidado e anfitrião, estudo e programa, em relação fantasmática. Um partido que planeja sua fuga, que racionaliza a ponto de proteger o que não se deve explicar, uma estratégia de produção de discurso para que o não dito possa prevalecer. Neste sentido, trata-se de uma inserção, que de forma ambivalente investe tanto no sentido de negação de suas intenções – como em um Eppur si muove3 3 Refiro-me tanto à frase atribuída a Galileu Galilei quanto ao título do trabalho de Cildo Meireles que a ela faz referência, em que, por determinado procedimento, um sinal de contradiscurso permanece implícito na tomada de posição apesar de escolher não confrontar frontalmente determinada norma vigente. – quanto no de um esforço de inclusão para a produção artística no campo acadêmico, ainda que de forma estranhada, como se negociasse com o falante de outra língua um contrato em país estrangeiro. O domínio dessa língua estranha, neste caso, corresponde ao domínio da descrição objetiva, aceita como procedimento normativo para determinados discursos na Universidade. Descrever, nesse arranjo, pode desobrigar a arte ingressante nesse campo de oferecer explicações à ciência que nele se estabeleceu.

Se há uma estratégia de inserção em um circuito, ela se dá tanto pela escrita como pelo desenho. Mas quais prerrogativas se colocam para essa inserção?

Competir

Estabelecer um campo estruturado de saber competente na Universidade corresponde, em primeiro lugar, a estabelecer um domínio que se entende excludente quanto a outros saberes estruturados ou sistematizados.

Indagar sobre a competência das Artes Visuais enquanto campo organizado de saberes é já demandar destes saberes uma postura de adaptabilidade quanto à estrutura disciplinar da Universidade. Significa indagar se, como operam outros campos de saber, outros domínios, isto a que chamamos de Artes Visuais poderia, do próprio campo, sustentar uma enunciação que se dirigisse a outros campos enquanto seus objetos e apêndices, com a mesma força e potência questionadora e, ainda, com a mesma autonomia com que essas outras áreas ou campos se dirigem a ela.

Questão que parece ser fundamental para a tomada de posição quanto à sistematização de saberes na fundação de um programa de Artes Visuais: como se inserir nesse território dominado pela ciência, ou criar nele um espaço, de modo a evitar a demanda por um desempenho funcional que caracteriza um objeto de estudo?

Ora, em termos da minha competência em filosofia, pude conceber [...] uma certa matriz de investigação, que me permite começar colocando a questão da competência em termos gerais – quer dizer, investigar como a competência se formou, o processo de legitimação, de institucionalização, e assim por diante [...]. Cada vez que me confronto com um domínio que me é estranho, um dos meus interesses ou investimentos concerne precisamente à legitimidade do discurso, com que direito se fala como o objeto é constituído [...]. [...] Ou seja, aprendi com a filosofia que ela é um campo hegemônico, estruturalmente hegemônico, que considera todas as regiões discursivas como dependentes dela [...]. Então, cada vez que eu abordo uma obra literária, uma obra pictórica ou arquitetural, o que me interessa é a mesma força desconstrutiva com relação à hegemonia filosófica. É como se fosse isso que levasse minha análise adiante. Como resultado, pode-se sempre encontrar o mesmo gesto de minha parte, mesmo que cada vez eu tente respeitar a singularidade da obra. O gesto consiste em encontrar, ou, em todo caso, em procurar, tudo o que na obra representa a sua força de resistência à autoridade filosófica, e ao discurso filosófico sobre ela. (DERRIDA, 2012, p. 20–21DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.)

Este excerto da fala de Jacques Derrida se refere a uma postura no trabalho de análise para a qual podemos propor um desdobramento visando à especificidade da situação: o visível produz também discurso, e este deve se firmar como lugar de produção de leituras “incompetentes” de si e de outrem, no campo de disputas de poderes/saberes no qual e para o qual trabalhamos.

Embora o mesmo autor decrete, resultante de sua reflexão anterior, a necessidade de uma ruptura radical: “Chega de competência: é uma incompetência que dá ou tenta se dar uma certa prerrogativa de falar de dentro do espaço de sua própria incompetência” (DERRIDA, 2012, p. 21DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.). Esta inflexão, que se abre para a contradição, pelo oposto da ideia de competência, talvez delimite de modo mais pertinente o método de Anamorfas.

Escrever

Em nota, Didi-Huberman resvala em uma discussão importante para o contexto do trabalho de pesquisa realizado em Poéticas Visuais:

Situação estranha e falsa: os artistas com freqüência são criticados por seus contemporâneos por escreverem ‘acerca de sua obra’, e isto em nome de uma ideal suficiência do estilo que legitimaria em silêncio a obra em questão; por outro lado, os escritos de artistas se tornam progressivamente o objeto de atenções tão sacralizadas quanto esquecidas das condições formais da própria obra [...]. Num caso, rejeitam-se as palavras quando são portadoras de incontestáveis efeitos de ‘recognoscibilidade’; no outro, apela-se às palavras para que subjuguem todo efeito de ‘legibilidade’. É esquecer, em ambos os casos, que a ligação das palavras com as imagens é sempre dialética, sempre inquieta, sempre aberta, em suma: sem solução. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 183DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.)

Aponta-se aqui a questão da forma e sua relação com o conhecimento, e para além disso, questiona-se a exclusividade que uma certa crítica parece querer garantir sobre o direito à palavra. Mas uma distinção importante faz falta: “trabalho de arte” difere de “imagem”. Estabelecida esta diferença, podemos perguntar se a imagem que participa desse trabalho (a forma visual que é usada pela edição dos meios em que “texto crítico” e “arte” são justapostos) participa desse diálogo em seus próprios termos.

Desde o campo de trabalho/atuação em Poéticas Visuais, perde-se a prerrogativa de uma tomada estratégica de posição se a escrita for exigência de uma concepção que a entenda como o único lugar propício para reflexão, ou seja, se a escrita for, além de normatizada, ela mesma a norma a valer para toda e qualquer proposição. E mesmo que uma escrita carregada de reflexão evite participar de tal arranjo, é preciso reconhecer que falhamos: a linguagem nos obriga a dizer até o que não pretendemos (BARTHES, 2004BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.).

Teria sido necessário abraçar a ilusão de uma postura científica nas humanidades que nos garantisse distância da forma literária. Contudo, inevitavelmente, ao se escrever a primeira palavra, com o máximo de cuidado, talhando sua frigidez com precaução, anuncia-se algo que desde então passa a falsear sua presença. O discurso, entroncamento entre linguagem e ideologia, aquece os afetos em poucos fonemas. A objetividade demanda um sacrifício que a escrita não tem condições de honrar. Esta contradição está à luz do dia no desafio implicado pela inserção das Artes no campo acadêmico.

Recoloca-se a questão acerca da escrita, ou talvez da escritura, segundo Derrida:

Mas é igualmente isso que liga fundamentalmente a Universidade, e por excelência as humanidades, ao que se chama literature, no sentido europeu e moderno do termo, como direito de tudo dizer publicamente, até mesmo de guardar um segredo, ainda que sob a forma de ficção. (DERRIDA, 2003, p. 19DERRIDA, Jacques. A Universidade sem condição. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2003.)

Não é à toa que diversas concepções para o termo “ficção” passaram a figurar no arsenal de abordagens de tantas pesquisas desenvolvidas no programa de Poéticas Visuais: torna-se um alento para muitos artistas a possibilidade de desenvolver uma escrita em formatos que se mostrariam como alternativos à rigidez da escrita acadêmica. O desafio, no entanto, se encarado com rigor, não se mostra menor do que produzir artigos a partir de formatos pré-determinados. A ideia de ficção em Anamorfas não se apoia em narrativas novelescas e tem outra relevância, a começar pela consciência que apresenta em relação ao caráter ficcional compartilhado entre arte e ciência.

Descrever/Inscrever

Uma descrição pode remeter à metodologia científica por recorrer a termos que especificam procedimentos controlados, por uma suposta objetividade, além de satisfazer um interesse acerca de características verificáveis. Uma circunscrição de objeto em que se definem algumas características laterais que em seguida sejam lidas como partes de um contorno e, assim, passem por definição, sem que se abra para o interlocutor a chance de insistir na conceituação do trabalho de arte, muitas vezes satisfazendo um tipo de curiosidade que prioriza o fazer. O texto em Anamorfas divide e apresenta o conjunto de decisões, trabalho conceitual íntegro, em uma série pedagógica, quase didática e um tanto ilusória de procedimentos que são vistos como método estrutural ou constitutivo por conta apenas de sua ordenação. Produções e processos, se anunciados em itens, terão a atenção desse interlocutor acadêmico:

Para os desenhos operei por dois recursos básicos: o estabelecimento de uma quadrícula perspectivada, como malha para mensuração harmonizada com o espaço virtual da fotografia, e a determinação das silhuetas dos objetos nestas quadriculas, depois de abandonadas todas as indicações de volume por claro-escuro que excedessem a simples identificação dos objetos por seus contornos. (SILVEIRA, 1980, p. 11SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.)

Está claro que a apropriação e distorção sofrida pela perspectiva e pelas figuras ocorre também com o próprio discurso acadêmico.

Para os desenhos busquei uma visualidade determinada, aquela que permitisse classificá-los como ‘exercícios de desenho’. Terminei optando por um grafismo granular, mais ou menos incerto, que pudesse remeter ao “difícil” desenho de um contorno contínuo, sem interrupções. (SILVEIRA, 1980, p. 14SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.)

Os adjetivos colocados entre aspas, como “normal” ou “difícil”, fundamentais para a compreensão das operações conceituais por meio das quais o trabalho se posiciona ante à expectativa (ideologia) do espectador/interlocutor, são apresentados de forma clara, mas nunca explorados. Deixados ali como pistas, escondem-se da análise do leitor por remeterem, pelo tom, a eventualidades de processo, como se marcações para os momentos de inflexão subjetiva, ou em que coube à artista uma decisão fortuita frente aos caminhos possíveis. As aspas, contrariamente ao seu sinal de respeito a algo que foi trazido para dentro do texto e cujo sentido se manteria intacto, funcionam tal qual um “como se”, de modo a guardar o inexplicável, o fora de lugar, principalmente quando se trata daquilo sobre o que se evita discorrer. Evidencia-se a tática dispersiva que oferece dados justamente ao se furtar uma explicação do jogo.

Conhecer

Em Anamorfas, a questão da forma é evocada duplamente como tema e forma mesma – a ação do desenho (deformação) que se mostra de início como exercício, vai se revelando como uma condição a que estão submetidos os objetos de nossa visão. figuras 1 e 2. Não à toa, é Leonardo da Vinci uma referência histórica explorada aqui. Um nome que se presta ao papel, e como tudo mais, mostra-se de uma ambivalência precisa, fazendo-se, em primeira leitura, de lugar comum, conferindo lastro de autoridade à pesquisa, e abrindo, por outro lado, em função da própria dissertação, um espaço a ser explorado entre Arte e Ciência, que se recusa a escolher entre uma postura ensaística do desenho investigativo e outra que produz postulados de modo assertivo, como é próprio do tratado científico. Sobre a ambiguidade dessa relação com o método científico, Merleau-Ponty escreve:

A ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las. Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de longe em longe se confronta com o mundo real. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como ‘objeto em geral’, isto é, ao mesmo tempo como se ele nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 15MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naif, 2004.)

A ênfase na figura de Leonardo se coloca por conta do reconhecimento de uma ciência que prescinde da palavra, e em que o visível não se limita a ilustrar o dizível.

Os pintores sempre souberam. Da Vinci invoca uma ‘ciência pictórica’ que não fala por palavras [...] mas por obras que existem no visível à maneira das coisas naturais, e que no entanto se comunica por elas ‘a todas as gerações do universo’. Essa ciência silenciosa [...] vem do olho e se dirige ao olho. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 51MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naif, 2004.)

Figura 1.
Regina Silveira, Desenho preparatório para a Série Anamorfas, 1980. Desenho a nanquim sobre papel opaline, 48 x 66 cm.

Figura 2.
Regina Silveira, Desenho preparatório para a Série Anamorfas, 1980. Desenho a nanquim sobre papel opaline, 48 x 66 cm.

Um saber que tem por prova ou verificação o olhar (de forma sistemática e matematicamente previsível) é capaz de presumir-se portador da objetividade requerida pelo método científico e ao mesmo tempo oferece a experiência estética que pode convencer o espectador de sua subjetivação por meio de sua aderência ao ponto de vista: a perspectiva. Segundo Derrida:

O ponto de vista é a perspectiva, isto é, a visão do olhar que, ao pôr em perspectiva, seleciona. Falar de perspectivismo é dizer que vemos as coisas, que sempre interpretamos as coisas de certo ponto de vista, segundo o interesse, recortando um esquema de visão organizado, hierarquizado, um esquema sempre seletivo que, consequentemente, deve tanto ao enceguecimento quanto à visão. A perspectiva deve ficar cega a tudo que está excluído da perspectiva; para ver em perspectiva, é preciso negligenciar, é preciso ficar cego a todo resto; o que acontece o tempo todo [...]. A perspectiva é cega tanto quanto vidente. (DERRIDA, 2012, p. 73DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.)

Enquadrar

O nome de Anamorfas se faz também de enunciado ao derivar de anamorfose, procedimento que distorce figuras cuja especificidade depende estruturalmente da sistematização espacial produzida pela perspectiva. A estratégia é anunciada no texto:

As anamorfoses são, como ‘Anamorfas’, jogos com a aparência, ou melhor, com a ‘forma aparente da aparência’“. (SILVEIRA, 1980, p. 6SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.)

A associação previsível aqui, para se buscar um exemplo histórica e academicamente recorrente de anamorfose, seria o quadro de Holbein Os embaixadores (1533), citado em Anamorfas e referenciado por Lacan, no qual o procedimento pode ser verificado, e em que o objeto se reafirma como significado da operação por se dar a ver assim que o observador abandona a posição que o quadro demandava inicialmente e assume um novo ponto de vista. Ao reconhecer os contornos de um crânio humano no lugar em que antes parecia haver uma mancha informe, o espectador terá descoberto o que permanecia oculto. Ou, se compreendido de outra forma, terá sido levado até o ponto que reconhece como revelador, não pela novidade que este oferece, mas por ter lhe devolvido alguma estabilidade.

Constituídas por representações deformadas e possíveis de corrigir desde determinados ângulos de visualização, as anamorfoses, quando corrigidas, dão à percepção suas superfícies que não coincidem: a superfície real da representação (seu suporte concreto) e a superfície virtual da ilusão, organizada por um ponto de vista. Mas não é o mecanismo de correção a ponte para conectar “Anamorfas” e anamorfoses, pois em meu trabalho a correção nunca é possível; a conexão é a intenção comum de manipular uma experiência visual centrada na relação espectador-representação. (SILVEIRA, 1980, p. 6SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.)

A pintura de Holbein não pode ser considerada resultante de uma associação pontual e limitada, neste caso, nas formulações teóricas de Lacan. Já no primeiro livro de seu Seminário, Lacan propõe como fundante para a relação de inclusão mútua entre real e imaginário uma condição que se refere diretamente ao funcionamento ótico da estrutura de representação sistematizada pela perspectiva: “o olho deve estar no interior do cone” (LACAN, 1975LACAN, Jacques. O Seminário Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. São Paulo: Zahar, 1975.). Ou seja, a estrutura coniforme que situa o espectador do renascimento frente aos sucessivos planos que suportam a percepção da distância (perspectiva) volta-se ao olho de modo a sobredeterminar sua subjetividade, construída a partir de sua tomada de posição.

A partir de Lacan, é possível compreender a perspectiva como assinalando na pintura um locus no espaço não primordialmente referente ao Ego, mas ao registro simbólico do sujeito. [...] O fato é que, a partir da sua identificação com o ponto fixo, um efeito de solidificação do sujeito é comum a dois registros, o do pensamento e o do olhar. (SILVA Junior, 1999, p. 18SILVA Junior, Nelson da. O abismo fonte do olhar. Revista Percurso, São Paulo, n. 23, 2/1999, p. 16-26.)

Essa tomada de posição, que depende a um só tempo de estrutura pré-determinada e deliberação pelo sujeito, talvez possa conferir à palavra “situação” a simultaneidade de determinações de que parece estar revestida.

A anamorfose é uma figura em perspectiva deformada que, para ser reconhecida, exige do espectador um deslocamento, um abandono da sua posição convencional, e uma busca de um novo ponto de vista” [...] “A exigência que a anamorfose faz ao espectador é da ordem de um jogo: ele deve buscar seu lugar a partir de, levando em conta o outro. (SILVA Junior, 1999, p. 23SILVA Junior, Nelson da. O abismo fonte do olhar. Revista Percurso, São Paulo, n. 23, 2/1999, p. 16-26.)

Ora, Anamorfas, ao dispor esta situação, inicia, por meio de um deslocamento contínuo, o desvelar de uma série de outras dimensões e instâncias em que nos situamos, dentre elas a Universidade, enquanto enquadre e sistema. O item da apresentação que se refere às concepções teóricas acerca da representação por anamorfoses já reconhece em seu objeto esta característica metalinguística seminal: “Enquanto aparentemente funcionam como visão–espetáculo e trucagem óptica, é justamente em sua condição de imagem artificiosa que reside sua verdadeira função: a de ser metalinguagem, isto é, código focalizando em si mesmo” (SILVEIRA, 1980, p. 7SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.).

Mas em que medida a subversão da perspectiva colocada pelo trabalho Anamorfas implica uma intervenção no campo da Universidade, seu funcionamento, seu método? É preciso retornar ao papel desempenhado pela fotografia nesse jogo, já apontado no início deste texto.

Grafar

O deslocamento operado por Anamorfas já leva em conta a especificidade da fotografia enquanto meio, evidente que está no seu contexto de criação o caráter de produção de discurso e lugar de trabalho da fotografia. O texto declara habilmente que a fotografia foi trabalhada de modo a evitar grandes “expressionismos”. Mesmo assim, e por isso mesmo, uma foto é uma foto: o resultado dessa tomada de posição em que o ato fotográfico se impõe, por seu próprio disparo, enquanto procedimento maquinal criador de um espaço para a formação e reforço de determinada subjetividade. Ao mesmo tempo que o problema se impõe quase como obstáculo, pelo mero uso da imagem fotográfica, o que ocorre é diverso: o que se vê como suposto material visual reproduzido como fotografia, antes de uma representação de figura alhures, realiza a si mesmo, trazendo consigo sua definição (BURGIN, 2006, p. 389–400BURGIN, Victor. Olhando fotografias. In FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecilia. Escritos de artistas: anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2006, p. 389-400. ).

De volta a Lacan:

O que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito. Donde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual – se vocês me permitem servir-me de um termo, como faço frequentemente, decompondo-o – sou foto-grafado. (LACAN, 1975, p. 107LACAN, Jacques. O Seminário Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. São Paulo: Zahar, 1975.)

A luz, ao grafar, marca e demarca. Se a perspectiva é tomada em Anamorfas como código comum referente ao olhar científico universalista, sendo a fotografia o desdobramento tecnológico desse lugar comum, em um acirramento da naturalização de sua suposta objetividade. Ambas são articuladas por Anamorfas em uma chave subversiva de apropriação. Apoia-se na expectativa de inserção depositadas no ato e leitura fotográficos. Na fotografia que nos dita e reconforta quanto a um espaço comum de percepção, universal como o conhecimento posto em xeque, lugar onde o senso comum e a ciência frequentemente se encontram travestidos, consecutivamente, de normalidade e observação distanciada.

Ordenar

Ordenadas mecanicamente (em acordo, portanto, com a postura que deixa trabalhar o sentido dado pela ação repetitiva), as páginas de Anamorfas têm a autonomia de seu espaço de realização; não por serem únicas e irrepetíveis, mas, pelo contrário, por serem fruto de uma abstração que se sobrepõe a elas e às coisas representadas, e que pode novamente e em outros planos fazer surgir uma faca, uma colher ou um revólver. Tanto da mídia quanto dos procedimentos acadêmicos, Anamorfas retira algo e explora-os apesar de sua vontade ou funcionalidade figuras 3 e 4.

Figura 3.
Regina Silveira, Desenho preparatório para a Série Anamorfas, 1980. Desenho a nanquim sobre papel opaline, 48 x 66 cm.

Figura 4.
Regina Silveira, Desenho preparatório para a Série Anamorfas, 1980. Desenho a nanquim sobre papel opaline, 48 x 66 cm.

Anamorfas funciona a um só tempo como um múltiplo e uma série, e esse duplo posicionamento depende de uma postura dialógica entre suas proposições e o meio em que estão criticamente inseridas, a saber, o livro e seus sistemas de arquivo e circulação – a biblioteca e, por conseguinte, a Universidade. Não se referem as figuras deformadas em Anamorfas ao próprio discurso iluminista em sua visualidade e desdobramento midiático, técnico? Talvez ao desenho como esquema para um pensamento que ainda se quer fora de seu próprio sistema de conhecimento. A deformação que se apresenta como estratégia em Anamorfas só é possível por meio do mesmo ponto de vista único estruturante de um espaço comum que define e valida a forma ideal, ou um ideal de forma, própria dos procedimentos sistematizados na perspectiva quando postos como utilitários.

Essa relação de inversão ideológica (no sentido de que causa e efeito se mostram invertidos) se mostra como paradigma da concepção vigente quanto às últimas tecnologias. Estas reordenam a linha progressiva de feitos e invenções a partir de seu próprio referencial: é a partir do pensar programático do computador que entendemos agora as possibilidades das tecnologias que já não exercem hegemonia sobre os procedimentos que desenham os discursos de autoridade, como ora ocorre nesta ordenação textual. Associam-se inevitavelmente os programas fotográfico e acadêmico. É do senso comum pensar o computador como uma biblioteca – essa imagem nos conforta em relação à máquina, que assim seria um enquadre que não atua além de seus limites, e que apenas carrega e protege objetos, mantendo-os a salvo de sua degeneração.4 4 Em Flusser, a fotografia se deixa ver como um modo de pensar e atuar: câmera e computador se revelam conectados em um sistema comum que, magicamente, nos convoca a um jogo no qual se dá a exploração programada de possibilidades que perfazem um conjunto finito. “O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo. As novas situações se tornarão reais quando aparecerem na fotografia. Antes, não passam de virtualidades. [...] Inversão do vetor da significação: não o significado, mas o significante é a realidade. Não o que se passa lá fora, mas o que está inscrito no aparelho; a foto-grafia é a realidade. Tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial e todo seu funcionamento” (FLUSSER, 2002, p. 32).

Contudo, o Livro, pensado como meio, mídia, também contém em sua forma um programa: combinando linearidade e alternância, carrega seu conteúdo como se fosse um discurso expresso, embora o articule e o determine pela forma, sendo deste modo seu próprio suporte. Não são o programa de pós-graduação em Artes Visuais, a área de Poéticas Visuais, nem a linha de pesquisa em processos de criação em Artes Visuais que produzem livros resultantes de suas proposições. É antes o programa disparado pelo livro, enquanto mídia, a produzir uma linha de pesquisa em processos de criação em Artes Visuais, uma área de Poéticas Visuais e um programa de pós-graduação em Artes Visuais. O arquivo é o produtor de seu próprio conteúdo. A partir da realização dessa inversão, não parece importante que a pesquisa que procure abrigar-se nesse campo ao menos se pergunte o que nos reservam as demandas dos programas de edição, dos arquivos digitais, e a que tipo de jogo nos desafiam?

Situar

A partir de um enquadre inicialmente acadêmico, Anamorfas propõe um deslocamento que rebate ao invólucro pelo qual se nos apresenta no ato de ver. A visão normativa, que não demonstra nada além do resultado de sua própria organização, é revelada como método. A visão que planifica e unifica para o olho o que for multidimensional e fragmentário, fazendo coincidir o olhar com o ponto de vista que organiza a visão, o ponto fixo a partir do qual se posiciona e estrutura a própria subjetividade. Uma amarração ponto a ponto do objeto sensível o faz previsível. Daí a escala precisa desses desenhos em Anamorfas: é o próprio sujeito, afinal, – o leitor, o estudante, o pesquisador – que se vê confrontado com os limites que edificam seu ponto de vista.

O que parecia uma solução talvez honrosa ou simplesmente pragmática – e que não deixa de investir em uma negociação quanto ao falso problema da distância entre as linguagens “artística” e “acadêmica” – mostra-se seminal: um momento em que esta suposta distância é questionada radicalmente. Uma forma autora de sua própria dinâmica, que ocupa o espaço que desenhou para si.

Referências

  • BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • BURGIN, Victor. Olhando fotografias. In FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecilia. Escritos de artistas: anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2006, p. 389-400.
  • DERRIDA, Jacques. A Universidade sem condição. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2003.
  • DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
  • FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002
  • LACAN, Jacques. O Seminário Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. São Paulo: Zahar, 1975.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naif, 2004.
  • PRADO, Gilbertto. Breve relato da Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-USP. ARS (São Paulo), vol. 7, n. 13, p. 88-101, 2009.
  • SILVA Junior, Nelson da. O abismo fonte do olhar. Revista Percurso, São Paulo, n. 23, 2/1999, p. 16-26.
  • SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.

NOTAS

  • 1
    Para uma contextualização do PPGAV-ECA, área de poéticas visuais, cf. PRADO (2009)PRADO, Gilbertto. Breve relato da Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-USP. ARS (São Paulo), vol. 7, n. 13, p. 88-101, 2009.. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ars/a/bRKKHXhdcmhK9p59b7pVFnt/?lang=pt. Acesso em: 30 mai. 2023.
  • 2
    Em um de seus primeiros parágrafos: “‘Anamorfas’ é um estudo sobre as aparências representadas por códigos projetivos. Trata do problema das distorções de imagens desenhadas em perspectiva, quando, por uma ação gráfica arbitrária, contrariam-se as normas que condicionam este sistema de representação” (SILVEIRA, 1980, p. 1SILVEIRA, Regina. Anamorfas: texto descritivo e apresentação. V. Dissertação (Mestrado em Artes Plásticas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980.).
  • 3
    Refiro-me tanto à frase atribuída a Galileu Galilei quanto ao título do trabalho de Cildo Meireles que a ela faz referência, em que, por determinado procedimento, um sinal de contradiscurso permanece implícito na tomada de posição apesar de escolher não confrontar frontalmente determinada norma vigente.
  • 4
    Em Flusser, a fotografia se deixa ver como um modo de pensar e atuar: câmera e computador se revelam conectados em um sistema comum que, magicamente, nos convoca a um jogo no qual se dá a exploração programada de possibilidades que perfazem um conjunto finito. “O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo. As novas situações se tornarão reais quando aparecerem na fotografia. Antes, não passam de virtualidades. [...] Inversão do vetor da significação: não o significado, mas o significante é a realidade. Não o que se passa lá fora, mas o que está inscrito no aparelho; a foto-grafia é a realidade. Tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial e todo seu funcionamento” (FLUSSER, 2002, p. 32FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Sept-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2020
  • Aceito
    12 Abr 2023
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