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A PINTURA COMO RESISTÊNCIA: GILLES DELEUZE INTÉRPRETE DO PINTOR IRLANDÊS FRANCIS BACON

LA PEINTURE COMME RÉSISTANCE: GILLES DELEUZE INTERPRÈTE DU PEINTRE IRLANDAIS FRANCIS BACON

LA PINTURA COMO RESISTENCIA: GILLES DELEUZE INTÉRPRETE DEL PINTOR IRLANDÉS FRANCIS BACON

RESUMO

O presente ensaio procura mostrar, em caráter introdutório, como a recusa à figuração, na pintura de Francis Bacon, cuja principal consequência pode ser vista na deformação de suas Figuras, pode vincular-se à noção de criação deleuziana como um ato de resistência. Para tanto, num primeiro momento, apresentam-se algumas interpretações fenomenológicas elaboradas por Gilles Deleuze e aplicadas às pinturas do pintor irlandês. Num segundo momento, ao apontar o limite destas interpretações frente aos retratos histéricos pintados por Bacon, busca-se aprofundar a ideia de uma interpretação alternativa que o próprio filósofo francês propõe por meio do conceito de corpo sem órgãos (CsO). Por fim, num terceiro momento, aproximando-se das técnicas pictóricas de Bacon, tenta-se trazer à luz o problema da deformação como um ato de resistência.

PALAVRAS-CHAVE
Deformação; Francis Bacon; Gilles Deleuze; Pintura; Resistência

RESUME

Cet essai cherche à montrer, de manière introductive, comment le refus de la figuration, dans la peinture de Francis Bacon, dont la principale conséquence se manifeste dans la déformation de ses Figures, peut être lié à la notion deleuzienne de la création comme un acte de résistance. En premier lieu, quelques interprétations phénoménologiques sont présentées, élaborées par Gilles Deleuze et appliquées aux peintures du peintre irlandais. Alors, en pointant la limite de ces interprétations, face aux portraits hystériques peints par Bacon, nous cherchons à approfondir l’idée d’une interprétation alternative que le philosophe français lui-même propose à travers le concept du corps sans organes (CsO). Enfin, abordant les techniques picturales de Bacon, nous tentons de mettre au jour le problème de la déformation comme un acte de résistance.

MOTS-CLÉS
Déformation; Francis Bacon; Gilles Deleuze; Peinture; Résistance

RESUMEN

El presente ensayo busca mostrar, en carácter introductorio, cómo el rechazo a la figuración en la pintura de Francis Bacon, cuya principal consecuencia vemos en la deformación de sus figuras, puede relacionarse con la noción de creación deleuziana como un acto de resistencia. En un primer momento, se presentan algunas interpretaciones fenomenológicas elaboradas por Gilles Deleuze y aplicadas a las pinturas del pintor. Después, al señalar el límite de estas interpretaciones frente a los retratos histéricos pintados por Bacon, se busca profundizar en la idea de una interpretación alternativa que el propio filósofo francés propone a través del concepto de cuerpo sin órganos (CsO). Finalmente, en un tercer momento, acercándonos a las técnicas pictóricas de Bacon, intentamos arrojar luz sobre el problema de la deformación como un acto de resistencia.

PALABRAS CLAVE
Deformación; Francis Bacon; Gilles Deleuze; Pintura; Resistencia

Ao nosso Mestre em Estética,

Luís F. S. Nascimento (in memoriam).

Em seu estudo Deleuze, a arte e a filosofia (2009)Machado, Roberto. Parte 7: Deleuze e a pintura. In: Deleuze, a arte e a filosofia 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 221-242. (Coleção ESTÉTICAS), ao debruçar-se sobre a única obra que Gilles Deleuze (1925-1995) consagrou à pintura, a saber, Francis Bacon: lógica da sensação1 1 Doravante FB:LS. , Roberto Machado sintetiza-a como sendo um duplo esforço analítico complementar.

Em Francis Bacon: lógica da sensação, Deleuze faz dois tipos de análise complementares: uma análise estrutural, que explica a composição dos quadros de Bacon, e uma análise genética, que reconstrói o processo pictural, o ato de pintar.

(Machado, 2009, p. 222)Machado, Roberto. Parte 7: Deleuze e a pintura. In: Deleuze, a arte e a filosofia 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 221-242. (Coleção ESTÉTICAS)

À análise estrutural, Machado refere-se à tripartição elementar das pinturas de Bacon, por Deleuze, em Figura, contorno (ou área redonda) e grande superfície plana, reportando-os, sobretudo, ao problema do movimento duplo da sensação: o centrípeto, que vai da Figura para a grande superfície plana, e o centrífugo, que vai dessa superfície para a Figura. Por exemplo, em Três estudos de Lucian Freud, de 1969 (ver Figura 1, a qual tomaremos como modelo para as questões a serem desenvolvidas no presente texto), podemos observar esses três elementos (a Figura humana sentada em uma cadeira, a área redonda acinzentada e a grande superfície plana amarela), bem como acompanhar o duplo movimento da sensação proposto por Deleuze: da Figura à superfície, e vice-versa.

Figura 1.
Francis Bacon: Três estudos de Lucian Freud, (1969b). Óleo sobre tela, 198 x 147,5 cm

Fonte: https://www.francis-bacon.com/art/influence-inspiration/contemporaries/lucian-freud.

Quanto à análise genética, Machado refere-se à primazia no ato de pintar de Bacon, de acordo sempre com Deleuze, uma “manipulação do acaso”, discutindo a relação das manchas livres com o controle (a própria autocrítica do pintor); relação inclusive que se associa à discussão do diagrama ao mesmo tempo como caos e ordem em suas pinturas. Retomaremos detalhadamente essa abordagem mais adiante, mas, à guisa de introdução, importa considerar que se trata aqui de um procedimento pictórico paradoxal, ou seja, em que se põe em jogo ao mesmo tempo o caótico e o ordenado, em alguma parte do quadro, pelo diagrama; em suma, um exercício pictórico que busca criar um acontecimento, uma “possibilidade de fato”, vivas Figuras, como acreditamos ver, por exemplo, no movimento da Figura sugerido no tríptico de Lucian Freud (ver Figura 1).

A exposição de Machado torna, de certo modo, mais clara e organizada uma linha de pensamento seriada e gradativamente complexa sobre a interpretação deleuziana das pinturas de Francis Bacon. Por isso, longe de apresentar toda a “ordem relativa” de Deleuze dessa “lógica geral da sensação”, tão bem esquematizada pelo estudo de Machado, façamos antes um recorte neste plano — enquanto um exercício introdutório — e tentemos ver como, para Deleuze, nas pinturas de Bacon, podemos encontrar uma crítica à representação, passando de algumas interpretações fenomenológicas da sensação para outra mais apropriada, a saber, uma interpretação histérica. Nossa proposição principal é a de que essa crítica deleuziana aponta para o caráter de resistência na criação pictórica de Bacon, justificando positivamente, inclusive, a deformação em suas Figuras.

Como podemos interpretar as Figuras de Francis Bacon?

Para Deleuze, existem duas maneiras de se contrapor à representação ou à figuração na história da pintura: pela forma abstrata ou pelo figural. Segundo o filósofo francês, o pintor Francis Bacon — como veremos — escolheu essa última maneira. Há uma diferença terminológica entre “figuração” (ou figurativo) e “Figura” (ou figural) que precisamos esclarecer de início. Tendo Bacon escolhido a Figura, não significa que ele compactue com a figuração, antes disso, argumenta Deleuze, é para opor-se de modo mais direto e sensível do que a via da abstração, forma pura, a qual “se dirige ao cérebro e age por intermédio do cérebro”, que Bacon caminha para o figural (Deleuze, 2007, p. 42)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Contudo, essa via “em direção à Figura”, nerval, se quisermos assim nomeá-la, em oposição à neural, não é uma marca genuinamente baconiana. Na verdade, ela manifesta “o fio” nervoso que liga Bacon a outro pintor. De acordo com Deleuze, foi Cézanne quem, embora não tenha sido o inventor, “deu a essa via da Figura um nome simples: a sensação”. Há duas aproximações entre Bacon e Cézanne no tocante à sensação: em primeiro lugar, “a forma referida à sensação (Figura) é o contrário da forma referida a um objeto que ela deveria representar (figuração)”. Isto é, a Figura ou sensação não passa pelo cérebro, como uma história a ser narrada. Em segundo lugar, “a sensação é o que passa de uma ‘ordem’ a outra, de um ‘nível’ a outro, de um ‘domínio’ a outro”. Ou seja, ela opera — como tentaremos demonstrar ao longo de nosso texto — deformações. Em síntese, enquanto a pintura figurativa (ilustrativa, narrativa, representativa) e a pintura abstrata “passam pelo cérebro” e permanecem “num mesmo nível(Deleuze, 2007, p. 42–44)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS), a saber, o cognoscível, a pintura “figural” age diretamente sobre o nosso sistema nervoso, sobre a carne, movimentando-se em vários níveis de sensação.

Mas, como podemos interpretar as pinturas de Bacon? Indo mais além da mera interpretação de que cada nível corresponderia a uma sensação específica, Deleuze sustenta que cada Figura, cada quadro de Bacon, possui diferentes níveis ou ordens de uma mesma sensação, ou seja, a sensação em uma Figura já está em uma sequência, em uma pluralidade; acontecendo de a sensação sintetizar essas ordens, níveis ou domínios: uma Figura, vários níveis de uma sensação. Atento ao vocabulário de Bacon em entrevistas que o pintor concedeu ao crítico de arte inglês David Sylvester, Deleuze levanta algumas hipóteses sobre o que seriam as “ordens de sensação”, os “níveis sensitivos”, os “domínios sensíveis” ou as “sequências moventes”, e o que produziria o caráter sintético da sensação em Bacon. Para o que nos interessa discutir no momento, vejamos quatro dessas interpretações. As duas primeiras, que, antecipamos, serão rejeitadas por Deleuze, sustentam, respectivamente, que (a) é o objeto representado que produz a unidade da sensação, bem como (b) os níveis de sensação são vistos como sentimentos contraditórios.

No primeiro caso, sendo a Figura oposta à figuração, em Bacon seria “teoricamente impossível” um objeto representado produzir a unidade da sensação. Não é a intenção de Bacon representar, insiste em dizer-nos Deleuze. No entanto, mesmo quando secundariamente se figura algo, pois, na prática, “qualquer coisa é ainda figurada”, como um papa que grita (ver, por exemplo, o quadro Figura com carne,2 2 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/figure-meat. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. de 1954), “essa figuração segunda se baseia na neutralização de qualquer figuração primária” (Deleuze, 2007, p. 45)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Para negar essa “figuração primária”, “espontânea”, “sensacional”, “clichê”, na qual um quadro contaria uma história, e atingir o figural, Bacon tem de enfrentar um grande desafio.

É preciso às vezes se voltar contra seus próprios instintos, renunciar à sua experiência. Bacon traz consigo toda a violência da Irlanda, a violência do nazismo, a violência da guerra. Ele passa pelo horror das Crucificações, sobretudo do fragmento de Crucificação, da cabeça-vianda, ou da mala ensanguentada. Mas quando julga seus próprios quadros, se afasta de todos os que são muito “sensacionais”, pois a figuração que aí subsiste reconstitui, mesmo que secundariamente, uma cena de horror, reintroduzindo assim uma história a ser contada: até mesmo as touradas são dramáticas demais. Desde que haja horror, uma história se reintroduz, e perde-se o grito.

(Deleuze, 2007, p. 45–46)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)

Assim, essa primeira interpretação representativa deve ser descartada, porque considera erroneamente o fato de Bacon em suas pinturas representar, ilustrar ou narrar por objetos e nesses encontrar aquilo que produziria a síntese da sensação. Pelo contrário, contra a figuração, rompendo com a ilustração, Bacon quer pintar, por exemplo, o grito do Papa, o figural, o fato mais do que o horror (figuração primária, sensacional, clichê) que introduziria uma história no quadro. Tal tarefa é complexa, pois requer do pintor, por exemplo, como vimos, certa recusa de sua experiência pessoal e histórica.

Já a segunda explicação, a qual poderíamos chamar de interpretação psicanalítica, também deve ser rejeitada, segundo Deleuze, porque confunde os níveis ou as valências de uma sensação com uma ambivalência do sentimento. A interpretação de que em uma única Figura se “exprimiria amor e hostilidade pela pessoa”, por exemplo, é sugerida por Sylvester, em entrevista, mas rebatida por Bacon como sendo uma explicação demasiadamente lógica de seu fazer pictórico. Mais que isso, escreve Deleuze, essa ambivalência da Figura suporia “sentimentos que a Figura teria em relação às coisas representadas, em relação a uma história contada” (Deleuze, 2007, p. 47)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Entretanto, nas pinturas de Bacon não há sentimentos representados, mas sim a presença de afetos, de sensações.

Já a terceira e a quarta interpretações, quais sejam, (c) a motriz e (d) a “mais ‘fenomenológica’”, são mais interessantes a Deleuze para tentar explicar os níveis de sensação e a sua unidade ou síntese nas pinturas de Bacon, embora, como veremos no tópico seguinte de nosso texto, sejam ainda insuficientes. Senão analisemos.

A interpretação motriz propõe, de início, que os níveis de sensação sejam explicados por um movimento sintético, como atestam sua fascinação “pelas decomposições de movimento de Muybridge” , pelos “movimentos violentos de grande intensidade” (Deleuze, 2007, p. 48)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS), como vemos, por exemplo, em Retrato de George Dyer e Lucian Freud3 3 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/portrait-george-dyer-and-lucian-freud. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1967, ou pelo “estranho passeio”, por exemplo, de Homem carregando uma criança4 4 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/man-carrying-child. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1956. Mas, justamente esse “passeio” leva Deleuze ao “estatuto do movimento em Bacon”, aproximando-o de Samuel Beckett (1906-1989), Karl Philipp Moritz (1756-1793) e Franz Kafka (1883-1924), invertendo a suposição inicial de que os níveis de sensação se explicam por um movimento sintético, ao afirmar que “são os níveis de sensação que explicam o que subsiste de movimento” (Deleuze, 2007, p. 48)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

O “estranho passeio” de Bacon pode ser explicado, segundo Deleuze, da mesma forma que o passeio dos personagens de Beckett5 5 Os personagens de En attendant Godot, de 1952, por exemplo, movem-se sempre no mesmo espaço e, paradoxalmente, não se movem, como atesta o angustiante final da peça, pois, justo no momento em que as duas personagens centrais dialogam: (Vladimir) — “Então, vamos lá? (Estragon) — Vamos lá!”, lemos na sequência e, como arremate final do ato, a seguinte frase: “Eles não se movem” (Beckett, 2011, p. 134), tradução nossa. , cujas caminhadas não deixam “sua área redonda ou seu paralelepípedo” (Deleuze, 2007, p. 48)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS), assim como vemos na pintura da criança paralítica e sua mãe, de 1965 (ver a pintura À maneira de Muybridge, mulher esvaziando tigela de água e criança paralítica de quatro6 6 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/after-muybridge-woman-emptying-bowl-water-and-paralytic-child-all-fours. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. ); ou ainda à maneira da “lei de Beckett e Kafka” de que “para além do movimento há a imobilidade, para além do ser em pé há o ser sentado; e para além do ser sentado, o ser deitado, para finalmente se dissipar” (Deleuze, 2007, p. 48)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Esse “passeio estranho” atesta que o estatuto do movimento em Bacon é, paradoxalmente, o imóvel, a imobilidade, o movimento num mesmo lugar, o espasmo. Assim sendo, a interpretação motriz aponta para uma “elasticidade da sensação”, isto é, antes do movimento explicar os níveis ou as ordens da sensação, são estes “níveis” ou estas “ordens” que explicam o movimento.

Por fim, é possível interpretar os níveis, as ordens ou os domínios da sensação como se referissem a distintos órgãos dos sentidos, sendo que “cada nível, cada domínio, teria uma maneira de remeter aos outros, independentemente do objeto comum representado” (Deleuze, 2007, p. 49)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Essa interpretação “mais ‘fenomenológica’” veria nas pinturas de Bacon o “momento ‘pático’ (não representativo) da sensação”, em que ouviríamos os cascos do touro, por exemplo, em Estudo para tourada nº1,7 7 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/study-bullfight-no-1. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. de 1969; ou tocaríamos como se toca “o estremecimento do pássaro enfiando-se no lugar da cabeça”, no Tríptico8 8 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/triptych-1. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1976; ou, ainda, sentiríamos todos os sentidos ao mesmo tempo, como no tríptico Três estudos de Lucien Freud (ver Figura 1), de 1969, ou como na pintura Estudo de Isabel Rawsthorne9 9 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/study-isabel-rawsthorne. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1966, em que “o retrato de Isabel Rawsthorne faz aparecer uma cabeça à qual são acrescentados ovais e traços para arregalar os olhos, dilatar as narinas, prolongar a boca, mobilizar a pele [...]” (DELEUZE, 2007, p. 49)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Essa interpretação, portanto, indica que a tarefa do pintor é “fazer ver” uma “unidade” dos sentidos e “fazer aparecer” uma Figura com todos os sentidos, de que o ritmo musical seria um paradigma.

Uma interpretação histérica do corpo: o corpo sem órgãos

No entanto, essa última interpretação fenomenológica10 10 Em O que é a filosofia?, de 1991, dez anos após a análise de Deleuze sobre as pinturas de Bacon, Deleuze e Guattari levantam uma complexa discussão com a fenomenologia, notadamente a de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que “encontra a sensação em ‘a priori materiais’, perceptivos e afectivos, que transcendem as percepções e afecções vividas, por exemplo, o amarelo de Van Gogh, ou as sensações inatas de Cézanne”. Segundo os autores, esta concepção inspirar-se-ia num “curioso ‘Carnismo’”, um ideal: pois “é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo vivido, do mundo percebido, e da intencionalidade de um ao outro, ainda muito ligada à experiência […]. Carne do mundo e carne do corpo, como correlatos que se trocam, coincidência ideal” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 210-211). Sem podermos nos alongar, por ora, nesta crítica, vale ressaltar, no entanto, que, para Deleuze e Guattari, a carne é apenas o primeiro elemento, aquele que revela apenas a sensação, mas que não a constitui: é necessário um segundo elemento que dê “consistência à carne”, a saber, “a casa sensação”, finita, que possibilita que a sensação se mantenha autônoma na moldura e participe do devir, bem como um terceiro elemento, o “universo-cosmos”, como o fundo da tela, o “infinito monocromático”, que suporta a casa, na qual a carne habita. É bem essa tensão imanente entre finito e infinito, por exemplo, que vemos nas pinturas de Bacon entre a Figura e o fundo. como unidade dos níveis de sensação ainda não basta, de acordo com o filósofo francês, porque ela apenas dá conta do “corpo vivido”, do corpo organizado, do organismo ritmado. É preciso ir além (ou seria aquém?) da imaterialidade, da desencarnação dos sentidos que a música promove, e procurar no corpo encarnado a sua própria explicação. Daí a necessidade de uma interpretação que abarque a carne, a cabeça-vianda de Bacon retratista, em que, nas entrevistas a Sylvester, o vemos relatar: “Sempre me tocaram muito os quadros que mostram matadouros e carnes...” (Bacon apud Sylvester, 2007, p. 23)Sylvester, David. Entrevistas com Francis Bacon / Tradução Maria Teresa Resende Costa. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.; ou ainda revelar: “Bem, claro, nós somos carne, somos carcaça em potencial. Sempre que entro num açougue penso que é surpreendente eu não estar ali no lugar do animal” (Bacon apud Sylvester, 2007, p. 46)Sylvester, David. Entrevistas com Francis Bacon / Tradução Maria Teresa Resende Costa. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007., grifo nosso.

Há nas pinturas de Bacon uma violência que as interpretações que vimos, até aqui, não são capazes de resolver. Nessa perspectiva violenta, de ultrapassagem do que está ordenado, Deleuze põe-se ao lado do poeta Antonin Artaud (1896-1948) que luta contra o organismo, contra a organização dos órgãos no corpo. Para Deleuze, foi Artaud que “descobriu e nomeou” de corpo sem órgãos11 11 Doravante CsO. esse movimento ou mergulho “para além do organismo” (Deleuze, 2007, p. 51)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)12 12 Esta não é a primeira vez que Deleuze associa seu pensamento ao de Artaud, tomando emprestado o conceito de CsO. Em Lógica do sentido, de 1969, na “Décima Terceira Série: Do Esquizofrênico e da Menina” — sendo o esquizofrênico Artaud, o poeta, e a menina Alice, a personagem de Lewis Carrol —, Deleuze já considerava ser um mérito de Artaud a noção de CsO (Deleuze, 1974, p. 96). .

Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, em parceria com Félix Guattari, no platô de número 6, intitulado “28 de novembro de 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos”, ambos os filósofos franceses articulam o CsO de Artaud ao projeto deles contra a psicanálise, ou melhor, contra a noção de desejo como falta, propondo uma esquizoanálise13 13 Ver, nesse sentido, sobretudo Deleuze e Guattari (2010). . No entanto, um dos maiores problemas que os autores enfrentam nesse texto, se não estamos redondamente enganados, é o da possibilidade de criar um CsO “em nós” que não seja nem canceroso, como o de um fascista, nem vazio, como o “de um drogado, de um paranoico ou de um hipocondríaco” (Deleuze e Guattari, 1999, p. 24)Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 28 de novembro de 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. 1ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999, p. 8-27. (Coleção TRANS). Ou seja, o problema de criar um terceiro CsO, problema que, segundo os autores, Artaud, aliás, “não para de enfrentar”.

A respeito disso, a resposta que Deleuze e Guattari dão de CsO como “ovo tântrico” nos ajuda a entender melhor como Deleuze reencontra em Bacon, isto é, em outro registro, não mais o literário, mas o pictórico, o mesmo problema do CsO de Artaud.

O CsO é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação, seu meio associado. O ovo é o meio de intensidade pura, o spatium e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção. Existe uma convergência fundamental entre a ciência e o mito, entre a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou cósmico: o ovo designa sempre esta realidade intensiva, não indiferenciada, mas onde as coisas, os órgãos, se distinguem unicamente por gradientes, migrações, zonas de vizinhança. O ovo é o CsO. O CsO não existe “antes” do organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer.

(Deleuze e Guattari, 1999, p. 25)Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 28 de novembro de 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. 1ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999, p. 8-27. (Coleção TRANS)

A ideia de intensidade que o ovo aqui nos permite reter do CsO é primordial. O que ocupa o CsO ou o povoa são as intensidades que passam e circulam, e que se distinguem nele, no CsO, por vetores, “gradientes”: os órgãos como “intensidades puras”, sem uma localização ou uma função constantes. Como questionam os dois pensadores franceses: “Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o ânus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação” (Deleuze e Guattari, 1999, p. 10)Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 28 de novembro de 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. 1ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999, p. 8-27. (Coleção TRANS).

Ora, nesse sentido, CsO não significa em Artaud e, por conseguinte, em Deleuze e Guattari, a inexistência de órgãos, mas sim que esses não se encontram “localizados” ou “organizados” no corpo ainda: eles são intensidades. Em FB:LS, diz Deleuze (2007, p. 51)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS): “O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que à organização dos órgãos que se chama organismo”. Isso, em conformidade com o exemplo do ovo tântrico, também nessa última obra evocado, leva Deleuze a considerar o corpo como percorrido por “níveis ou limiares” de sensações e a aproximar Bacon de Artaud.

Bacon se aproxima de Artaud em muitos pontos: a Figura é o corpo sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o rosto em proveito da cabeça); o corpo sem órgãos é carne e nervo; uma onda o percorre delineando níveis; a sensação é como o encontro da onda com Forças que agem sobre o corpo, “atletismo afetivo”, grito-sopro; quando é assim referida ao corpo, a sensação deixa de ser representativa e se torna real; e a crueldade estará cada vez menos ligada à representação de alguma coisa horrível, ela será apenas a ação das forças sobre o corpo, ou a sensação (o contrário do sensacional).

(Deleuze, 2007, p. 52)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)

Contra um organismo que prende ou aprisiona a vida, o CsO é o corpo vivo, por isso a interpretação “mais fenomenológica” dos quadros de Bacon não dá conta desse corpo, pois segundo essa leitura as sensações se remetem aos órgãos dos sentidos dos corpos vividos. Em contrapartida, a nova interpretação pelo CsO, que ultrapassa o organismo por meio de vetores ou linhas de intensidades, permite ver nas Figuras pintadas por Bacon este novo fenômeno: “o fato intensivo do corpo”, como, por exemplo, em Três estudos de Isabel Rawsthorne, de 1966, ou no Retrato de Michel Leiris14 14 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/portrait-michel-leiris. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1976, além de Três estudos de Lucian Freud* (Figura 1), de 1969.

Trata-se, em última análise, de uma sutil e cara diferença entre o corpo vivido (organizado) e o corpo vivo (“contemporâneo”, em devir). Esse último é desorganizado como a linha pictural gótica de Wilhelm Worringer (1881-1965), “uma linha que não para de mudar de direção, interrompida, quebrada, desviada, voltada sobre si, enrolada ou até prolongada para fora de seus limites naturais, morrendo em ‘convulsão desordenada’” (Deleuze, 2007, p. 53)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Ela se assemelha a um animal, uma linha animalesca, à medida que procede por “movimento violento”, um dos aspectos pelos quais a crueldade aparece nas Figuras de Bacon como provinda da ação de forças contra o corpo, e não de uma suposta representação, figuração ou narração de uma história horrível.

Por desorganização poderíamos, em consonância a Deleuze, dizer também CsO, pois esse se define como “um órgão indeterminado”, “um orifício polivalente” ou “uma zona de indiscernibilidade”, ou seja, enquanto os órgãos determinados definem o organismo, os órgãos indeterminados ou indiscerníveis definem o CsO. No limite, como escreve Deleuze (2007, p. 54)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS): “a onda percorre o corpo; um órgão será determinado num certo nível, de acordo com a força encontrada; e esse órgão mudará se a força também mudar, ou quando se passar de um nível a outro”.

Dito de outro modo, o CsO “se define, enfim, pela presença temporária e provisória dos órgãos determinados” (Deleuze, 2007, p. 54)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Temporária nos remete à discussão do tempo. Em Bacon “o tempo é pintado”: a força do tempo, e a força do tempo eterno, nos trípticos. O Tríptico, Três estudos de dorso masculino,15 15 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/three-studies-male-back. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. de 1970, por exemplo, mostra a “variação do corpo” que, segundo o filósofo francês, evidencia “um cronocromatismo do corpo por oposição ao monocromatismo da grande superfície plana” (Deleuze, 2007, p. 55)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Vemos, seguindo esse exemplo, como em cada painel a variação de cor do dorso masculino não pode ser resolvida pela “unidade fenomenológica” dos órgãos dos sentidos, já que as diferenças de níveis das sensações estão misturadas pela ação violenta das forças sobre o corpo, deformando o dorso masculino. Sendo assim, o CsO de Artaud, ou melhor, “a série completa: sem órgãos — com órgão indeterminado polivalente — com órgãos temporários e transitórios”, torna possível uma explicação “lógica da sensação”, que Deleuze chega a aproximar a pintura de Bacon à histeria, à “realidade histérica do corpo”: “Se nos reportarmos ao ‘quadro’ da histeria tal como se forma no século XIX, na psiquiatria e em outras áreas, encontraremos um certo número de características que não param de animar os corpos de Bacon” (Deleuze, 2007, p. 55)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Deleuze analisa ao menos cinco características da histeria que se assemelham às Figuras de Bacon: 1) as contraturas e as paralisias (as Figuras que se contraem na área redonda); 2) os fenômenos de precipitação e de posterioridade (referentes à “maneira” de Bacon romper a figuração16 16 Essa aproximação apenas se tornará mais evidente, acreditamos, com o desenvolvimento do conceito de diagrama apresentado no tópico subsequente. ; 3) a transitoriedade do órgão (o corpo que escapa ora pela boca ou pelo ânus, ora pelo ralo da pia ou pela ponta do guarda-chuva); 4) a ação direta de forças sobre o sistema nervoso provocando o sonambulismo (as Figuras em pequenos passeios circulares pela área redonda ou contorno); e 5) os fenômenos de “autoscopia” interna e externa (a testemunha que não vê, mas sente…) (Deleuze, 2007, p. 55–57)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Essa analogia da pintura de Bacon com o “quadro” clínico da histeria do século XIX leva Deleuze a conjecturar se se trata de uma histeria do “modelo” que se pinta, de uma “histeria do próprio Bacon”, de uma histeria do pintor em geral, ou, ainda, de uma histeria da pintura. A que ele mesmo responde:

Queremos dizer, com efeito, que há uma relação especial entre a pintura e a histeria. É muito simples. A pintura propõe-se a extrair diretamente as presenças sob a representação, além da representação. O sistema de cores é um sistema de ação direta sobre o sistema nervoso. Não é uma histeria do pintor, é uma histeria da pintura. Com a pintura, a histeria se torna arte. Ou melhor, com o pintor, a histeria se torna pintura. O que o histérico é incapaz de fazer, um pouco de arte, a pintura faz.

(Deleuze, 2007, p. 58)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS), grifo nosso

Cintia Vieira da Silva assinala que no histérico “a onda nervosa não se faz obra, mas patologia” e, seguindo a consideração de Rancière sobre esse aspecto em Deleuze e Bacon, a comentadora afirma que “‘a histeria’ seria ‘propriamente a antiobra’”(Silva, 2014, p. 164)Silva, Cintia Vieira. Pintura e histeria: lógica da sensação e figuras não representativas em Bacon e Deleuze. Doispontos, Curitiba; São Carlos, v. 11, n. 1, p. 145-166, abr., 2014.. Em contrapartida, a histeria torna-se pintura, sobretudo nos quadros de Bacon, quando a pintura “se apodera do olho”, como escreve Deleuze, não “como um olho fixo”, mas como um órgão indeterminado polivalente: “A pintura coloca olhos por todos os lados: na orelha, na barriga, nos pulmões (o quadro respira...)” (Deleuze, 2007, p. 58)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Uma visita ao ateliê do pintor: os processos a priori e pictural da criação artística

Consideramos importante um desenvolvimento final sobre a via própria de Bacon, defendida pelo filósofo francês, qual seja, a háptica, a qual esclarece, a nosso ver, a pintura contemporânea; afinal, como se pergunta Deleuze: “[…] por que pintura ainda hoje?” (Deleuze, 2007, p. 105)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Mas também, e sobretudo, porque ela nos permite compreender tecnicamente como funciona o processo pictórico que faz suas Figuras serem o que são: inquietantes, mutiladas, amputadas, trituradas, alcoolizadas, dopadas, histéricas.

Na rubrica 11, “A pintura antes de pintar”, em FB:LS, Deleuze nos adverte que o “trabalho preparatório” do pintor começa antes mesmo de ele traçar a primeira linha na tela que tem diante de si:o pintor tem consigo “várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no ateliê” que inundam a tela, de modo que “o pintor não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la” (Deleuze, 2007, p. 91)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Esses dados que já estão na tela são “dados figurativos”: clichês psíquicos (lembranças, fantasmas, percepções pré-formadas) e clichês físicos (fotografias, jornais, cenas cinematográficas ou televisivas).

Assim sendo, antes de lutar contra tais dados figurativos, o que Deleuze observa no ato de pintar de Bacon é uma “total adesão” a eles, que, num segundo momento, permite-lhe rejeitá-los e, aí então, começar a pintar. Por exemplo, a relação de Bacon com a fotografia, de acordo com Deleuze, pode funcionar como modelo desse procedimento paradoxal de adesão e rejeição dos dados figurativos. Diante das fotografias, especialmente das do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), Bacon se sente “fascinado”, e adere ao movimento das fotografias à medida que “elas são alguma coisa, elas existem em si mesmas: não são apenas modos de ver, são elas que são vistas, e finalmente vemos apenas elas” (Deleuze, 2007, p. 95)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Contudo, Bacon recusa inserir a fotografia ao seu processo criador, por isso a convoca apenas antes de começar a pintar, neste seu processo preparatório, pré-pictural. Se, primeiramente, havia uma “adesão sem resistência” à fotografia, era para, em seguida, rejeitá-la completamente. Trata-se, afirma Deleuze, de “uma astúcia, uma armadilha” de Bacon: ele entra na tela pelos clichês, pelos dados figurativos, com “adesão sem resistência”, “porque sabe o que quer fazer(Deleuze, 2007, p. 99–100)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Mas a dificuldade é sair desses clichês: “O problema do pintor não é entrar na tela, pois ele já se encontra nela (tarefa pré-pictural), mas sair da tela e, deste modo, sair do clichê, sair da probabilidade (tarefa pictural)” (Deleuze, 2007, p. 100)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Temos, de um lado, que o pintor sabe o que ele quer fazer, porém, de outro lado, ele ainda não sabe como conseguir o que quer. Em meio a essa oscilação, ou “histeria de pintar”, Bacon luta; luta “com muita astúcia, obstinação e prudência” contra o clichê, contra o figurativo pela via da Figura que aparece como “uma chance”, e não como uma certeza, por meio das “marcas manuais ao acaso” que arrancam “o conjunto visual pré-pictural de seu estado figurativo para constituir a figura, finalmente pictural” (Deleuze, 2007, p. 100)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Aos olhos deleuzianos, por intermédio da sugestão das “marcas manuais ao acaso”, Bacon constitui outra via, na história da pintura, que não segue nem a clássica nem a abstrata. Nas rubricas 12 e 13, respectivamente intituladas “O diagrama” e “A analogia”, em FB:LS, Deleuze busca definir esse momento do ato de pintar que é o próprio ato pictural em relação ao ato pré-pictural, este último, como vimos, sendo a priori, se quisermos assim denominá-lo, em que o pintor tem de lidar, já nele e na tela, com os dados figurativos (fotos, jornais, esboços etc.) para, posteriormente, começar a pintar.

Conforme afirma Deleuze, Bacon define que seu ato de pintar consiste em “fazer marcas ao acaso (traços-linhas); limpar, varrer ou esfregar regiões ou zonas (manchas-cor); jogar a tinta, de diversos ângulos e em velocidades variadas” (Deleuze, 2007, p. 102)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Tais procedimentos agem com precisão sobre os dados figurativos pré-picturais, quer com a própria mão ou pano, quer com “vassoura, escova ou esponja”, rompendo-os, destruindo-os, limpando-os, deformando-os.

Na verdade, o diagrama funciona como se fosse “uma catástrofe, um caos” em uma parte da tela. Ele é operado pelas mãos do pintor que “desorganiza” os dados ilustrativos, narrativos, borrando a “organização ótica” da pintura, organização característica, por exemplo, na abstração dos quadros do neerlandês Piet Mondrian (1872-1944), do russo Wassily Kandinsky (1866-1944) ou do francês Auguste Herbin (1882-1960). Mas, de acordo com Deleuze, deve-se tomar o cuidado para não tornar o diagrama “inoperante”, isto é, torná-lo exclusivamente manual, puro caos ou catástrofe, “subordinando a mão ao olho”, como fazem os artistas do expressionismo abstrato ou da arte informal (a Action Painting) dos norte-americanos Jackson Pollock (1912-1956) e Morris Louis (1912-1962).

Segundo Deleuze, Bacon não segue nenhuma dessas duas “correntes”: uma que substitui o diagrama por um código visual, visto que: “O código é necessariamente cerebral, faltando-lhe a sensação, a realidade essencial da queda, ou seja, a ação direta sobre o sistema nervoso”; outra que assimila o diagrama à tela inteira, “pintura-catástrofe”, em que a sensação “permanece em um estado irremediavelmente confuso” (Deleuze, 2007, p. 111)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Para Bacon, importa a “precisão da sensação”, “a clareza da Figura”, “o rigor do contorno”: a abstração age cerebralmente por códigos figurativos não atingindo a sensação, e o expressionismo abstrato age manualmente descontrolado e “faz um verdadeiro ‘estrago’” na pintura, perdendo em clareza e em rigor.

Para utilizarmos, ainda, outra terminologia empregada por Deleuze, próxima à do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), a função do diagrama na pintura de Bacon é “introduzir possibilidades de fato”, isto é, ele deve “sugerir”, mediante os traços irracionais, as linhas involuntárias, as zonas livres, as marcas acidentais e as manchas assignificantes, aquilo que ele ainda não é: o fato.

Com efeito, no processo pictórico wittgensteiniano de Bacon, o diagrama funciona como uma “possibilidade de fato” e não como “fato em si mesmo”. Aproximando Bacon a Cézanne, Deleuze afirma que, antes de uma “via intermediária” ou um “uso temperado” entre a ordem (ótica) e o caos (manual), o pintor irlandês inventa, assim como fez Cézanne, uma “via específica”, que, paradoxalmente, abarca esses dois momentos, a geometria e a sensação, em um “diagrama temporal”:

Tornar a geometria ao mesmo tempo concreta ou sentida, e dar à sensação a duração e claridade. Então, alguma coisa surge do motivo ou diagrama. Ou melhor, essa operação que remete a geometria ao sensível, e a sensação à duração e à claridade, já é isso, o surgimento, o resultado.

(Deleuze, 2007, p. 114)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Mas como descrever esse “sistema” paradoxal em que “a geometria se torna sensível” e a sensação “clara e durável”? Talvez pudéssemos descrever esse processo levando em consideração três coisas. A primeira delas é a dimensão tripartite da pintura de Bacon em planos, cor e corpo: o plano vertical e o plano horizontal que se juntam e substituem a perspectiva; a modulação da cor em detrimento da relação de valor claro-escuro e sombra e luz; e o corpo que ultrapassa o organismo, CsO, e que elimina a relação forma-fundo. A segunda coisa é a necessidade desses planos, cores e corpos passarem pelo diagrama, ou melhor, pela catástrofe ou caos: tudo tende a cair para se romper a figuração. E a terceira e última coisa são os esforços para que não se permaneça nesse caos, mas sim o atravesse criando semelhanças por meios dessemelhantes ou, como escreve Deleuze, “[…] assemelhar, mas por meios acidentais, e não semelhantes” (Deleuze, 2007, p. 101)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Com efeito, àquela primeira figuração, a pré-pictural, a priori, que preenche a tela e a “cabeça” do pintor, e que ele busca subtrair por meio da deformação manual, subsiste uma segunda figuração, a qual, por intermédio dessa recriação da literalidade que passa pelo diagrama, faz surgir a Figura, o fato, o acontecimento que não se assemelha com a primeira e que é tão mais profunda que ela.

Além disso, podemos também dizer que o diagrama constitui uma linguagem analógica, ou seja, o diagrama funciona como um modulador, como observa Deleuze, ao comparar o diagrama aos sintetizadores analógicos: “eles põem elementos heterogêneos em conexão imediata, introduzem entre esses elementos uma possibilidade de conexão propriamente ilimitada, em um campo de presença ou sobre um plano finito em que todos os momentos são atuais e sensíveis” (Deleuze, 2007, p. 117–118)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

A linguagem analógica, aliás, é a marca, para Deleuze, de que Bacon permanece cézanianno, pois Bacon levou “ao extremo a pintura como linguagem analógica”, embora as distinções entre ambos os pintores sejam manifestas: nos planos, “a profundidade profunda” de Cézanne e “a profundidade ‘magra’” de Bacon; nas cores, “as manchas achatadas coloridas e moduladas” de Cézanne e as grandes superfícies planas monocromáticas de Bacon; nos corpos, a deformação por forças do mundo aberto em Cézanne (Natureza) e por forças de um mundo fechado em Bacon (Artifício) (Deleuze, 2007, p. 121)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Enquanto moduladora de linhas e cores, a linguagem analógica do diagrama nas pinturas de Bacon atinge direta e imediatamente o sistema nervoso — e não o cérebro, campo do código que exige uma decifração pelo intelecto (“linguagem digital”, se quisermos, que precisa ser aprendida, refletida, intelectualizada). O diagrama e suas operações manuais involuntárias, acidentais, assignificantes, livres, operam como “possibilidades de fato” com as quais o pintor — com pano, vassoura, escova, com as próprias mãos, ou mesmo com um pincel, limpa e varre os dados figurativos da tela — produz uma “nova semelhança”: um fato.

“Fato” significa, antes de tudo, que várias formas são efetivamente apreendidas numa mesma Figura, indissoluvelmente, tomadas numa espécie de serpentina, como acidentes necessários que subiriam na cabeça ou nas costas uns dos outros.

(Deleuze, 2007, p. 160–161)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)

Disso não decorre, porém, que em Bacon se trate de uma negação do “espaço ótico puro” e adesão de um “espaço manual violento” (Deleuze, 2007, p. 131)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Pois, se assim fosse, teríamos não uma obra de arte, mas, como vimos em Silva (2014)Silva, Cintia Vieira. Pintura e histeria: lógica da sensação e figuras não representativas em Bacon e Deleuze. Doispontos, Curitiba; São Carlos, v. 11, n. 1, p. 145-166, abr., 2014., uma antiobra17 17 Vale lembrar que a ideia de “antiobra” utilizada por Cintia Vieira da Silva (2014), como a própria autora informa, surge em Jacques Rancière (2000), em seu texto “Existe uma estética deleuzeana?”, a partir do poema em prosa Saint Antoine, de Gustave Flaubert (1821-1880). . Assim sendo, existem várias maneiras em pintura de combinar essas duas tendências e, uma delas, a qual mais nos interessa aqui, por se tratar do modo como Bacon as correlaciona, é pela modulação da cor que recria, para Deleuze, “uma função propriamente háptica, em que a justaposição de tons puros ordenados sequencialmente na superfície plana forma uma progressão e uma regressão em torno de um ponto culminante de visão próxima” (Deleuze, 2007, p. 132–133)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

Falamos em recriar, já que, como observa Deleuze, a arte egípcia antes de Bacon, como reconhece e admira esse, opera com a correlação do olho com a mão na superfície plana, permitindo “ao olho proceder como o tocar; bem mais, ela [a superfície plana] lhe confere [ao olho], lhe impõe uma função táctil, ou melhor, háptica […]” (Deleuze, 2007, p. 123)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Bacon recria pela modulação da cor essa disputa não da mão sobre o olho, nem desse sobre aquela, mas sim “na própria visão que um espaço háptico disputa com o espaço ótico” (Deleuze, 2007, p. 133)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). Em linhas mais pictóricas do que filosóficas, não se trata mais de um espaço ótico claro-escuro, luz-sombra; pelo contrário, agora o que está em jogo são as oposições de quente-frio, expansão-contração, bem como, e principalmente, as relações entre os regimes de cores.

Tentemos esclarecer esse último ponto, seguindo um exemplo concreto dado pelo próprio Deleuze de uma pintura de Bacon analisada pelo crítico de arte francês Marc Le Bot (1921-2001). No quadro Figura na pia18 18 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/figure-washbasin. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , de 1976, o citado crítico aponta uma dinâmica do espaço “que faz o olhar deslizar do ocre ao vermelho”. Deleuze enfatiza essa dinâmica que, segundo ele, permite perceber a divisão da superfície monocromática (ocre), do contorno da almofada (vermelho) e da Figura policromática (filetes de ocres, vermelhos e azuis), acrescentando à análise “elementos secundários e, no entanto, indispensáveis”, como a pia, o cano e a persiana.

A pia é como um segundo contorno autônomo, que está para a cabeça da Figura assim como o primeiro estava para o pé. E o próprio cano é um terceiro contorno autônomo, cuja parte superior divide a grande superfície plana em duas. Quanto à persiana, seu papel é ainda importante pelo fato de estar, segundo um procedimento caro a Bacon, entre a grande superfície plana e a Figura, de forma a preencher a profundidade rasa que os separava e remeter o conjunto a um mesmo plano.

(Deleuze, 2007, p. 145)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)

Ora, esse exemplo parece, a nosso ver, confirmar a tese de Deleuze da convergência de todos os elementos da pintura de Bacon, mas principalmente da superfície, do contorno e da Figura, na cor. No limite, para nosso filósofo francês, Bacon pinta o tempo, sendo que a situação mais pura desse acontecimento ocorre quando a superfície plana cobre o quadro por inteiro, possuindo apenas um pequeno contorno (ver Tríptico, Estudos do corpo humano19 19 Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/triptych-studies-human-body-0. Acesso em: 28 de janeiro de 2023. , Coleção particular, de 1970, painel central). Segundo Deleuze, “é nessas condições que o quadro se torna verdadeiramente aéreo e atinge um máximo de luz, assim como a eternidade de um tempo monocromático, ‘Cromocronia’” (Deleuze, 2007, p. 148)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS).

A modulação da cor ocorre, de acordo com Deleuze, por “filetes de cor, sob a forma de tons matizados” na carne da Figura, opondo-se à superfície plana, quer pelo mesmo tom que essa, só que mais “vivo, puro ou inteiro”, quer empastado ou policromático. Em geral, Deleuze percebe que na Figura predomina sobre a carne a dominante azul-vermelha, enquanto a roupa conserva os valores de claro e de escuro e a sombra recebe tons vivos e puros (ver Figura 1). Diferente do tempo eterno da superfície plana monocromática, a Figura contém em sua carne “as variações milimétricas” do tempo (rever sobretudo o Tríptico, Três estudos de dorso masculino, de 1970); diferente da cor-estrutura da superfície plana, a Figura é “cor-força”: “cada tom matizado indica o exercício imediato de uma força na zona correspondente do corpo ou da cabeça, torna imediatamente visível uma força” (Deleuze, 2007, p. 151)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). E a modulação da cor no contorno pode ocorrer de diversas formas também. Ele se multiplica muitas vezes em um mesmo quadro, como os três contornos — pia, tapete vermelho e área redonda — da já citada Figura na pia, de 1976. Em suma, o sentido das cores é, para Deleuze, o que se chama de visão háptica, um “tato propriamente visual”.

Considerações finais

Como dissemos inicialmente, a interpretação de Roberto Machado (2009)Machado, Roberto. Parte 7: Deleuze e a pintura. In: Deleuze, a arte e a filosofia 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 221-242. (Coleção ESTÉTICAS) ordena a análise deleuzeana sobre as pinturas de Bacon em estrutural e em genética, repassando uma e outra em separado. No entanto, arriscamos aqui um caminho diferente. Tentamos mostrar, a partir do recorte que fizemos, em concordância com Machado, como o pensamento pictórico “mergulha no caos” e o enfrenta, não só tentando deixar mais “embaralhados” os elementos estruturais e genéticos, como também, quando coube, recorrendo a outros textos de Deleuze (muitas vezes com Félix Guattari).

No limite de algumas interpretações, vimos que outra interpretação, histérica talvez, a partir do conceito de CsO, tornou-se mais “adequada” para a compreensão da lógica da sensação das Figuras do pintor irlandês Francis Bacon. Em suas pinturas, os elementos artísticos passam pelo diagrama-catástrofe ou diagrama-caos, no qual as Figuras tendem a cair para que se rompa a figuração que se insinua, e atravessam-no formando Figuras semelhantes por meios acidentais. Essa exigência de ultrapassagem, de não permanência no caos, portanto, resultando na deformação.

As Figuras de Bacon sofrem deformações pelo fato de enfrentarem o caos. Elas resistem às forças invisíveis e, por isso, a queda é passagem que adquire, no seu fazer pictórico, um novo sentido: a queda torna-se uma força ativa, positiva20 20 Como escreve Deleuze (2007, p. 85–86) acerca dos três ritmos, ativo, passivo e testemunha, presentes nos trípticos: “Estranhamente, o ativo é aquilo que desce, que cai. O ativo é a queda, mas não se trata necessariamente de uma descida no espaço, em extensão. É a descida como passagem da sensação, como diferença de nível compreendida na sensação […]. […] a carne desce dos ossos, o corpo desce dos braços ou das coxas erguidas. A sensação se desenvolve por queda, caindo de um nível a outro. A ideia de uma realidade positiva, ativa, da queda é aqui essencial”. . Por meio dessa perspectiva diferente, as Figuras aparentemente sádicas[^21] de Bacon — homens e mulheres com pernas ou braços levantados, histéricos, esquizofrênicos, “malabaristas” bêbados, “contorcionistas” drogados etc. — que caem, escapam ou fogem por ralos, pontas de seringas, pontas de guarda-chuvas, buracos de fechaduras, não são torturas, mas atos renovados de resistência, ou antes, como escreve Deleuze: “[…] são as posturas mais naturais de um corpo que se reagrupa em função da força simples que se exerce sobre ele, vontade de dormir, de vomitar, de se virar […]” (Deleuze, 2007, p. 65)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS). É neste sentido, talvez, que David Lapoujade, no ensaio “O corpo que não aguenta mais”, pode afinal escrever que: “Cair, ficar deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência” (Lapoujade, 2011, p. 90)Lapoujade, David. O corpo que não aguenta mais / Tradução Tiago Seixas Themudo. Revista Polichinelo, [n.p.], 29 abr. 2011. Disponível em: https://revistapolichinelo.blogspot.com/2011/04/o-corpo-que-nao-aguenta-mais.html. Acesso em: 11 jun. 2022.
https://revistapolichinelo.blogspot.com/...
.

Durante os últimos anos, vivemos um horror político de consequências nefastas, sobretudo para com os povos originários e quilombolas, no Brasil. Frente a isso, partindo da interpretação de Deleuze sobre as pinturas de Bacon, talvez não fosse ingenuidade nossa ousarmos, também nós, atravessar esse caos de intermitentes atentados à democracia, isto é, pensar, criar, resistir, menos como cidadãos “defensores” inveterados dessa pretensa “democracia” do que animais diante à iminência da morte, lutando por uma nova “torção da linha”, e assumindo, enquanto sobreviventes, as deformações oriundas dessa travessia, ou melhor, desse ato de resistência.

E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil: o pensamento mesmo está por vezes mais próximo de um animal que morre do que de um homem vivo, mesmo democrata.

(Deleuze e Guattari, 2010a, p. 130)Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS)

Referências

  • Beckett, Samuel. En attendant Godot. Paris: Les Éditions De Minuit, 2011.
  • Deleuze, Gilles. Décima Terceira Série: Do Esquizofrênico e da Menina. In: Lógica do sentido / Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Editora Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p. 85-96.
  • Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS)
  • Deleuze, Gilles. Sobre a Filosofia. In: Conversações, 1972-1990 / Tradução Peter Pál Pelbart. 7ª Reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 169-193. (Coleção TRANS)
  • Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 28 de novembro de 1947 — Como criar para si um corpo sem órgãos. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. 1ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999, p. 8-27. (Coleção TRANS)
  • Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS)
  • Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS)
  • Lapoujade, David. O corpo que não aguenta mais / Tradução Tiago Seixas Themudo. Revista Polichinelo, [n.p.], 29 abr. 2011. Disponível em: https://revistapolichinelo.blogspot.com/2011/04/o-corpo-que-nao-aguenta-mais.html Acesso em: 11 jun. 2022.
    » https://revistapolichinelo.blogspot.com/2011/04/o-corpo-que-nao-aguenta-mais.html
  • Machado, Roberto. Parte 7: Deleuze e a pintura. In: Deleuze, a arte e a filosofia 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 221-242. (Coleção ESTÉTICAS)
  • Rancière, Jacques. Existe uma estética deleuzeana?. In: Alliez, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica / Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 505-516. (Coleção TRANS)
  • Silva, Cintia Vieira. Pintura e histeria: lógica da sensação e figuras não representativas em Bacon e Deleuze. Doispontos, Curitiba; São Carlos, v. 11, n. 1, p. 145-166, abr., 2014.
  • Sylvester, David. Entrevistas com Francis Bacon / Tradução Maria Teresa Resende Costa. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
  • 1
    Doravante FB:LS.
  • 2
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/figure-meat. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 3
  • 4
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/man-carrying-child. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 5
    Os personagens de En attendant Godot, de 1952, por exemplo, movem-se sempre no mesmo espaço e, paradoxalmente, não se movem, como atesta o angustiante final da peça, pois, justo no momento em que as duas personagens centrais dialogam: (Vladimir) — “Então, vamos lá? (Estragon) — Vamos lá!”, lemos na sequência e, como arremate final do ato, a seguinte frase: “Eles não se movem” (Beckett, 2011, p. 134)Beckett, Samuel. En attendant Godot. Paris: Les Éditions De Minuit, 2011., tradução nossa.
  • 6
  • 7
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/study-bullfight-no-1. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 8
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/triptych-1. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 9
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/study-isabel-rawsthorne. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 10
    Em O que é a filosofia?, de 1991, dez anos após a análise de Deleuze sobre as pinturas de Bacon, Deleuze e Guattari levantam uma complexa discussão com a fenomenologia, notadamente a de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que “encontra a sensação em ‘a priori materiais’, perceptivos e afectivos, que transcendem as percepções e afecções vividas, por exemplo, o amarelo de Van Gogh, ou as sensações inatas de Cézanne”. Segundo os autores, esta concepção inspirar-se-ia num “curioso ‘Carnismo’”, um ideal: pois “é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo vivido, do mundo percebido, e da intencionalidade de um ao outro, ainda muito ligada à experiência […]. Carne do mundo e carne do corpo, como correlatos que se trocam, coincidência ideal” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 210-211Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz. 3ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS)). Sem podermos nos alongar, por ora, nesta crítica, vale ressaltar, no entanto, que, para Deleuze e Guattari, a carne é apenas o primeiro elemento, aquele que revela apenas a sensação, mas que não a constitui: é necessário um segundo elemento que dê “consistência à carne”, a saber, “a casa sensação”, finita, que possibilita que a sensação se mantenha autônoma na moldura e participe do devir, bem como um terceiro elemento, o “universo-cosmos”, como o fundo da tela, o “infinito monocromático”, que suporta a casa, na qual a carne habita. É bem essa tensão imanente entre finito e infinito, por exemplo, que vemos nas pinturas de Bacon entre a Figura e o fundo.
  • 11
    Doravante CsO.
  • 12
    Esta não é a primeira vez que Deleuze associa seu pensamento ao de Artaud, tomando emprestado o conceito de CsO. Em Lógica do sentido, de 1969, na “Décima Terceira Série: Do Esquizofrênico e da Menina” — sendo o esquizofrênico Artaud, o poeta, e a menina Alice, a personagem de Lewis Carrol —, Deleuze já considerava ser um mérito de Artaud a noção de CsO (Deleuze, 1974, p. 96)Deleuze, Gilles. Décima Terceira Série: Do Esquizofrênico e da Menina. In: Lógica do sentido / Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Editora Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p. 85-96..
  • 13
    Ver, nesse sentido, sobretudo Deleuze e Guattari (2010)Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS).
  • 14
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/portrait-michel-leiris. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 15
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/three-studies-male-back. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 16
    Essa aproximação apenas se tornará mais evidente, acreditamos, com o desenvolvimento do conceito de diagrama apresentado no tópico subsequente.
  • 17
    Vale lembrar que a ideia de “antiobra” utilizada por Cintia Vieira da Silva (2014)Silva, Cintia Vieira. Pintura e histeria: lógica da sensação e figuras não representativas em Bacon e Deleuze. Doispontos, Curitiba; São Carlos, v. 11, n. 1, p. 145-166, abr., 2014., como a própria autora informa, surge em Jacques Rancière (2000)Rancière, Jacques. Existe uma estética deleuzeana?. In: Alliez, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica / Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 505-516. (Coleção TRANS), em seu texto “Existe uma estética deleuzeana?”, a partir do poema em prosa Saint Antoine, de Gustave Flaubert (1821-1880).
  • 18
    Disponível em: https://www.francis-bacon.com/artworks/paintings/figure-washbasin. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
  • 19
  • 20
    Como escreve Deleuze (2007, p. 85–86)Deleuze, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação / Tradução Roberto Machado et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (ESTÉTICAS) acerca dos três ritmos, ativo, passivo e testemunha, presentes nos trípticos: “Estranhamente, o ativo é aquilo que desce, que cai. O ativo é a queda, mas não se trata necessariamente de uma descida no espaço, em extensão. É a descida como passagem da sensação, como diferença de nível compreendida na sensação […]. […] a carne desce dos ossos, o corpo desce dos braços ou das coxas erguidas. A sensação se desenvolve por queda, caindo de um nível a outro. A ideia de uma realidade positiva, ativa, da queda é aqui essencial”.
  • 21
    Em “Sobre a filosofia”, de 1988, Deleuze também diz: “Por que Masoch dá seu nome a uma perversão tão antiga quanto o mundo? Não porque ‘sofra’ dela, mas porque ele lhe renova os sintomas, traçando dela um quadro original ao fazer do contrato o signo principal, e também ao ligar as condutas masoquistas à situação das minorias étnicas e ao papel das mulheres nessas minorias: o masoquismo torna-se um ato de resistência inseparável de um humor de minorias” (Deleuze, 1972, p. 178)Deleuze, Gilles. Sobre a Filosofia. In: Conversações, 1972-1990 / Tradução Peter Pál Pelbart. 7ª Reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 169-193. (Coleção TRANS).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sept-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
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