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A DINÂMICA IDENTITÁRIA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UM ESTUDO NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS

THE IDENTITY DYNAMICS OF PEOPLE WITH DISABILITIES: A STUDY IN BRAZIL AND IN THE UNITED STATES

LA DINÁMICA IDENTITÁRIA DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD: UN ESTUDIO EN BRASIL Y ESTADOS UNIDOS

Resumos

A diversidade é um tema bastante complexo e controverso. Engloba as chamadas "minorias" não em termos numéricos, mas em termos do exercício do poder. Compõem as minorias os negros, pessoas com deficiência, mulheres, indígenas e outros. Embora haja avanços nessa discussão, inclusive na legislação, ainda se observam lacunas quando se fala do trabalho para essas minorias. Para o presente trabalho, escolheram-se, entre as minorias, as pessoas com deficiência (PCDs), pois, segundo a Organização Internacional do Trabalho (2010)Organização Internacional do Trabalho (2010). Disability and work. Brasília. Recuperado em 23 janeiro, 2011, de http://www.ilo.org/public/english/employment/skills/disability/index.htm.
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, elas representam 10% da população mundial, ou seja, cerca de 650 milhões de pessoas, dentre as quais aproximadamente 72% estão em idade produtiva. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo foi compreender a dinâmica identitária de PCDs inseridas em organizações de trabalho, localizadas no Brasil e nos Estados Unidos. Para isso, elaborou-se um arcabouço teórico com base na abordagem sociológica da identidade de Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.. Optou-se pela pesquisa qualitativa e exploratória, a partir de uma abordagem interpretativa. As técnicas de coleta de dados utilizadas foram: entrevista semiestruturada e pesquisa documental. Foram entrevistadas 12 PCDs no Brasil e oito nos Estados Unidos, entre homens e mulheres. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas por meio da análise de conteúdo. Constatou-se que, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, o trabalho das PCDs entrevistadas configura-se como um importante instrumento para dar sentido a suas vidas, e suas respectivas deficiências se fazem presentes no processo de socialização organizacional. Além disso, uma das principais barreiras enfrentadas pelas PCDs entrevistadas, no que tange ao emprego, era a própria deficiência. Assim, percebeu-se um conflito entre quem o indivíduo é e quem ele acha que deve ser para poder trabalhar. Observou-se que a identidade do indivíduo é resultado de um movimento de construção e reconstrução entre as suas (muitas) identidades e que o indivíduo não consegue se identificar apenas por seus olhos, mas ele necessita se ver pelo olhar do outro.

Identidade; Dinâmica identitária.; Pessoas com deficiência; Trabalho; Organização


Diversity is a very complex and controversial issue. It embraces the so-called "minorities", not in numerical terms but in terms of power. The groups that compose the minorities are the black, the disabled, women and the indigenous, among others. Although there are advances in this discussion, including in the legislation field, there are still gaps when it comes to employment for these minorities. For this paper, we chose, among the minorities, people with disabilities (PWDs), because according to the International Labor Organization (2010)Organização Internacional do Trabalho (2010). Disability and work. Brasília. Recuperado em 23 janeiro, 2011, de http://www.ilo.org/public/english/employment/skills/disability/index.htm.
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, they represent 10% of the world’s population, among which approximately 72% are at the working age. The objective of this paper was to understand the identity dynamics of PWDs inserted in work organizations, located in Brazil and in the United States. To this end, we elaborated a theoretical framework mainly based on the identity from a sociological approach by Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.. We opted for an exploratory and qualitative research, based on an interpretive approach. The techniques of data collection used were semi-structured interviews and documentary research. Interviews were conducted with twelve PWDs in Brazil and eight in the United States, men and women. The interviews were recorded, transcribed and analyzed through content analysis. In both countries the jobs of the interviewed PWDs appeared as an important tool to give meaning to their lives. Moreover, one of the main obstacles faced by the interviewed PWD with regard to employment was the disability itself. Thus, it was possible to notice a conflict between who they are and whom they think they should be in order to work. It was observed that the individual's identity is a result of the movements of construction and reconstruction of his or her (many) identities and that one cannot identify oneself only with one’s eyes; instead, they need to see through someone else’s eyes.

Identity; People with disabilities; Work; Organization


La diversidad es un tema muy complejo y controvertido. Incluye las llamadas "minorías", no en términos de números, pero en cuanto al ejercicio del poder. Los negros constituyen minorías, las personas con discapacidad, las mujeres, los pueblos indígenas y otros. Aunque hay avances en este debate, incluso de carácter legislativo, se observan diferencias cuando se habla de la labor para estas minorías. Para este trabajo, se eligió, entre las minorías, el grupo de personas con discapacidad (PCDs), ya que según la Organización Internacional del Trabajo (2010)Organização Internacional do Trabalho (2010). Disability and work. Brasília. Recuperado em 23 janeiro, 2011, de http://www.ilo.org/public/english/employment/skills/disability/index.htm.
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, representan el 10% de la población mundial, o alrededor de 650 millones, entre los cuales aproximadamente el 72% están en edad de trabajar. Como consecuencia, el objetivo de este artículo es comprender la dinámica de la identidad de PCDs insertos en las organizaciones de trabajo, ubicados en Brasil y Estados Unidos. Para ello, se elaboró un enfoque teórico basado en la identidad sociológica, presentada por Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.. Se optó por la investigación cualitativa exploratoria, a partir de un enfoque interpretativo. Las técnicas de recolección de datos utilizados fueron: entrevistas semiestructuradas y documentos de investigación. Fueron entrevistadas doce PCDs en Brasil y ocho en los Estados Unidos, entre hombres y mujeres. Las entrevistas fueron grabadas, transcritas y analizadas por análisis de contenido. Los resultados sugieren que, tanto en Brasil como en Estados Unidos, el trabajo de las PCDs entrevistadas se configura como una herramienta importante para dar sentido a sus vidas, y sus respectivas deficiencias se presentan en el proceso de socialización dentro de la organización. Además, uno de los principales obstáculos que enfrentan las PCDs entrevistadas sobre el empleo era la propia discapacidad. Así, se percibió un conflicto entre quién es el individuo y quien piensa que debe ser para poder trabajar. Resulta, por lo tanto, que la identidad de la PCD es resultado de un movimiento de construcción y reconstrucción de sus (muchas) identidades y las PCDs no pueden identificarse sólo por su perspectiva, sino que también dependen de la percepción del otro.

Identidad; Dinámica identitária; Personas con discapacidad; Trabajo; Organización


1 INTRODUÇÃO

Atualmente, várias empresas destacam a importância da diversidade e criam ações que incentivam essa prática. Acredita-se que o comportamento do indivíduo perante o "diverso" retrata não somente o comportamento que a organização espera, mas também a sua visão de mundo. Ou seja, a forma como o indivíduo se comporta é resultado de suas construções sociais ao longo da vida. Dessa maneira, se a diversidade não consegue alcançar a efetividade nas organizações, pode-se dizer que isso é resultado dos indivíduos que a compõem e também da cultura da organização. Ainda que o indivíduo compartilhe dos valores da diversidade, se ele trabalha em uma organização que não estimula e concretiza esses valores em suas políticas e práticas, pouco provavelmente conseguirá transformá-la.

Embora haja avanços nessa discussão, inclusive na legislação, ainda se observam lacunas quando se fala do trabalho para as minorias. Para o presente trabalho, escolheram-se, entre as minorias, as pessoas com deficiência1 1 Nesta pesquisa, utiliza-se a expressão "pessoas com deficiência" e não "pessoas com necessidades especiais", visto que a segunda não é específica, podendo contemplar pessoas obesas, idosas, entre outras (Carvalho-Freitas, 2007), o que extrapola o âmbito deste trabalho. Vale destacar também a Portaria n. 2.344, de 3 de novembro de 2010, que alterou a nomenclatura utilizada para pessoas com algum tipo de deficiência. Portanto, onde se lê "pessoas portadoras de deficiência", leia-se "pessoas com deficiência" (Portaria SEDH n. 2.344, 2010). (PCDs), pois segundo a Organização Internacional do Trabalho (2010)Organização Internacional do Trabalho (2010). Disability and work. Brasília. Recuperado em 23 janeiro, 2011, de http://www.ilo.org/public/english/employment/skills/disability/index.htm.
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, elas representam 10% da população mundial, ou seja, cerca de 650 milhões de pessoas, dentre as quais aproximadamente 72% estão em idade produtiva.

As PCDs representam uma parcela significativa da população tanto no Brasil como nos Estados Unidos. De acordo com o censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há 45,6 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência, correspondendo a 23,9% da população total. Nos Estados Unidos, no censo realizado em 2010, há quase 56,7 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que corresponde a 18,7% da população norte-americana (United States Census Bureau, 2010United States Census Bureau (2010). Census of population and housing. Maryland. Recuperado em 22 janeiro, 2013, de http://www.census.gov/prod/2012pubs/p70-131.pdf.
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). Stone-Romero, Stone e Lukaszewski (2006)Stone-Romero, E. F., Stone, D. L., & Lukaszewski, K. (2006). The influence of disability on roletaking in organizations. In A. M. Konrad, P. Prasad & J. K. Pringle. Handbook of workplace diversity (pp. 401-430). London: Sage. destacam ainda que as PCDs compõem o maior grupo entre as minorias nos Estados Unidos. Entretanto, elas têm um dos menores índices de empregos no país. Assim, é de extrema importância compreender como essas pessoas se inserem no mercado de trabalho, analisando também as possibilidades e os obstáculos que elas enfrentam.

A inserção de pessoas com algum tipo de deficiência nas organizações tem potencializado a ocorrência de profundas mudanças na dinâmica organizacional, tais como a questão da acessibilidade, de políticas da diversidade, entre outras. Isso implica também mudanças na forma de constituição desses sujeitos, estando eles cada vez mais vinculados ao trabalho que realizam. Essa ideia constitui-se como o eixo principal desta pesquisa – a identidade e sua dinâmica de (re)construção. Vale ressaltar que, neste artigo, considera-se que a identidade não é fixa, mas construída e reconstruída continuamente (Hall, 2006Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11a ed.). Rio de Janeiro: DP&A.; Bauman, 2005Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar.; Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.; Ciampa, 2001Ciampa, A. da C. (2001). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.), daí a grafia "(re)construção".

Considerando o contexto organizacional, observa-se que o trabalho ocupa um dos papéis centrais na vida de quem o realiza. Seja por ser um meio de sobrevivência, pelo tempo da vida que a ele é dedicado ou até mesmo por ser um meio de realização não apenas profissional, mas também pessoal, o trabalho é um dos principais instrumentos por meio do qual o homem dialoga com o seu meio social, e é, no contexto das relações sociais do trabalho, que o indivíduo modifica, transforma e constrói sua identidade pessoal e social (Aranha, 2003Aranha, M. (2003). Trabalho e emprego: instrumento de construção da identidade pessoal e social. Brasília: Corde.), ou seja, o local de trabalho é também um lugar de construção de identidades.

Assim, a dinâmica identitária dos indivíduos envolve aspectos de suas trajetórias de vida e também a interação com os grupos sociais a que pertencem, principalmente a vivência profissional, como mostrado no estudo de Silva e Vergara (2002)Silva, J. R. G., & Vergara, S. C. (2002). Mudança organizacional e as múltiplas relações que afetam a reconstrução das identidades dos indivíduos. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, Salvador, BA, Brasil, 26.. Cabe ressaltar que o uso da expressão "dinâmica identitária" deve-se ao fato de se considerar a identidade como um processo de construção e reconstrução, e não como um produto acabado. Assim, o objetivo deste trabalho é compreender a dinâmica identitária de pessoas com deficiência inseridas em organizações de trabalho, localizadas no Brasil e nos Estados Unidos. O intuito em escolher outro país além do Brasil foi o de identificar as similaridades e diferenças da inserção de PCDs em ambos os países.

Além deste texto introdutório, o artigo apresenta uma discussão acerca do trabalho para PCDs. Em seguida, discutem-se a identidade e seus desdobramentos. Posteriormente, apresentam-se a proposta metodológica utilizada e as análises das entrevistas. Por fim, apontam-se as considerações finais.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 O TRABALHO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Segundo Almeida, Carvalho-Freitas e Marques (2008)Almeida, L. A. D., Carvalho-Freitas, M. N., & Marques, A. L. (2008). Inserção no mercado formal de trabalho: satisfação e condições de trabalho sob o olhar das pessoas com deficiência. In M. N. Carvalho-Freitas & A. L. Marques (Orgs.). O trabalho e as pessoas com deficiência: pesquisas, práticas e instrumentos de diagnóstico. Curitiba: Juruá., a inserção de PCDs no mercado de trabalho é algo recente, pois, apenas após a Segunda Guerra Mundial, quando os ex-combatentes voltavam mutilados das guerras, é que se legalizou o seu direito ao trabalho na Europa. No Brasil e nos Estados Unidos, somente várias décadas depois da Segunda Guerra Mundial, é que a legislação foi reformulada visando atender a esse grupo, o que será discutido posteriormente.

Embora haja um grande número de pessoas com algum tipo de deficiência que têm a possibilidade de trabalhar, a quantidade delas no mercado de trabalho ainda não é expressiva. Isso pode ser explicado pela dificuldade de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, o que acontece devido à falta de conhecimento sobre a capacidade de trabalho desses indivíduos, à necessidade de adaptação das organizações (Almeida et al., 2008Almeida, L. A. D., Carvalho-Freitas, M. N., & Marques, A. L. (2008). Inserção no mercado formal de trabalho: satisfação e condições de trabalho sob o olhar das pessoas com deficiência. In M. N. Carvalho-Freitas & A. L. Marques (Orgs.). O trabalho e as pessoas com deficiência: pesquisas, práticas e instrumentos de diagnóstico. Curitiba: Juruá.) e, muitas vezes, à falta de qualificação profissional (Tanaka & Manzini, 2005Tanaka, E. D. O., & Manzini, E. J. (2005). O que os empregadores pensam sobre o trabalho da pessoa com deficiência? Revista Brasileira de Educação Especial, 11(2), 273-294.).

Além disso, estudos mostram que os problemas relacionados à empregabilidade das PCDs estão ligados a estereótipos e estigmas, tais como: 1. as PCDs não têm as técnicas e habilidades para desempenhar seu trabalho; 2. há a necessidade de aumento na supervisão dessas pessoas; 3. cria-se uma desigualdade no local de trabalho por causa das adaptações necessárias; 4. há um aumento nos gastos com plano de saúde; e 5. As PCDs têm níveis mais baixos de equilíbrio emocional, o que se reflete em nervosismo e depressão (Stone-Romero et al., 2006Stone-Romero, E. F., Stone, D. L., & Lukaszewski, K. (2006). The influence of disability on roletaking in organizations. In A. M. Konrad, P. Prasad & J. K. Pringle. Handbook of workplace diversity (pp. 401-430). London: Sage.). Esses estigmas contradizem o que outros estudos (Greenwood & Johnson, 1987Greenwood, R., & Johnson, V. A. (1987). Employer perspectives on workers with disabilities. Journal of Rehabilitation, 53(3), 37-45.; Pooley & Bump, 1993Pooley, J. M., & Bump, E. A. (1993) The learning performance and cost effectiveness of mentally disabled workers. Group & Organization Management, 18(1), 88-123.) têm comprovado – que as PCDs têm de fato talentos e técnicas que podem agregar significativo valor ao trabalho. Nesse sentido, a inclusão de PCDs nas organizações envolve a criação de condições nas quais o indivíduo possa se sentir seguro, valorizado e completamente engajado (Ferdman, Avigdor, Braun, Konkin, & Kuzmycz, 2010Ferdman, B. M., Avigdor, A., Braun, D., Konkin, J., & Kuzmycz, D. (2010). Collective experience of inclusion, diversity, and performance in work groups. Revista de Administração Mackenzie, 11(3), 6-26.).

No Brasil, a Lei n. 8.213/91 (Ministério do Trabalho e Emprego, 2007Ministério do Trabalho e Emprego (2007, julho 23). Lei de cotas para deficientes completa 16 anos. Notícia com áudio. Brasília. Recuperado em 3 dezembro, 2010, de http://www.mte.gov.br/sgcnoticiaAudio.asp?IdConteudoNoticia=1187&PalavraChave=lei%20de%20cotas.
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) determina cotas variando entre 2% e 5% de trabalhadores com algum tipo de deficiência para empresas com 100 ou mais funcionários. De acordo com Melo (2004)Melo, O. T. F. de. (2004). O problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública. Jus Navigandi, 9(342). Recuperado em 3 dezembro, 2010, de http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5301.
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, nos Estados Unidos, em 1961, foi expedida uma norma – Executive Order n. 10.925 – pelo presidente John F. Kennedy, que se dirigia às relações de trabalho, obrigando os empregadores a tratar igualmente todos os seus empregados e proibindo-os de impor restrições de cunho racial para sua contratação. Essa norma utilizou pela primeira vez a expressão affirmative action (ação afirmativa). A Executive Order obrigava os contratantes do governo federal a não discriminar nenhum funcionário ou candidato a emprego por causa de raça, credo, cor ou nacionalidade. Posteriormente, estendeu-se também para integrantes de minorias, inclusive para as PCDs. Em 1990, foi instituído o Americans with Disability Act (ADA), que trouxe profundos avanços no que tange aos direitos das PCDs. O ADA foi criado para trazer igualdade a um grupo antes sem representatividade. Oferece um mandato de âmbito nacional para eliminar a discriminação e oferece recurso legal para que isso aconteça (Richards, 2005Richards, L. (2005). Americans with disabilities act: history and overview. In K. Hantzsche, S. Oyster & J. Schott. Writing center review, 10. Recuperado em 13 outubro, 2010, de http://careerconcepts.biz/history_of_the_ADA.pdf.
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). O Estado do Oregon (local onde a pesquisa foi conduzida) não possui legislação específica para PCDs, mas utiliza-se do ADA para garantir o direito aos seus cidadãos, basicamente em quatro grandes áreas: 1. empregabilidade; 2. serviços locais, estaduais e federais e transporte público; 3. acomodações públicas; e 4. telecomunicação (Richards, 2005Richards, L. (2005). Americans with disabilities act: history and overview. In K. Hantzsche, S. Oyster & J. Schott. Writing center review, 10. Recuperado em 13 outubro, 2010, de http://careerconcepts.biz/history_of_the_ADA.pdf.
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). No entanto, os Estados Unidos não estabelecem cotas para a contratação de PCDs.

Nesse sentido, o arcabouço teórico deste artigo foi construído com base na identidade, sendo esta o eixo central desta pesquisa, como será discutido a seguir.

2.2 IDENTIDADE

O termo "identidade" deriva dos vocábulos de origem latina idem e identitas, que significam "o mesmo", e do vocábulo entitas, que significa "entidade", que combinados poderiam definir a identidade como "a mesma entidade". Outros autores acreditam que a palavra "identidade" está ligada ao vocábulo latino identidem, que significa "repetidamente", "uma e outra vez" (Caldas & Wood, 1997Caldas, M. P., & Wood, T. Junior (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17.).

Assim, quando se fala em identidade, normalmente se pensa na maneira como os indivíduos são definidos por eles mesmos e/ou pelos outros. Segundo Caldas e Wood (1997)Caldas, M. P., & Wood, T. Junior (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17., o uso popular do termo está relacionado à filosofia clássica, que associa a identidade à ideia de permanência, singularidade e unicidade do que constitui a realidade das coisas.

Para Machado e Kopittke (2002)Machado, H. V., & Kopittke, B. (2002). A identidade no contexto organizacional: perspectivas múltiplas de estudo. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, Salvador, BA, Brasil, 26., os estudos sobre a identidade derivam, em sua maioria, da psicologia social, da sociologia e da antropologia, sendo influenciados por diversas correntes de pensamento. Além disso, os autores ressaltam que a identidade pode ser analisada em diferentes níveis, do individual ao coletivo.

Na perspectiva da psicologia social, a identidade pode ser concebida como um fenômeno subjetivo e dinâmico, que é resultado de uma dupla constatação de semelhanças e diferenças entre si mesmo, os outros e os grupos (Deschamps & Moliner, 2009Deschamps, J. C., & Moliner, P. (2009). A identidade em psicologia social: dos processos identitários às representações sociais. Petrópolis: Vozes.). Sob a vertente da sociologia, a identidade é social, ou seja, é correlata ao outro – "nunca sei quem sou a não ser no olhar do Outro" (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., p. 135). Por fim, em uma abordagem antropológica, a identidade é decorrente das representações que os indivíduos elaboram acerca da realidade, mediante uma vinculação coletiva, que pode ser imaginária ou real (Cavedon & Stefanowski, 2008Cavedon, N. R., & Stefanowski, F. L. (2008, julho/setembro). O riso que integra, o riso que separa: identidade organizacional em um sebo em Porto Alegre. Organizações & Sociedade, 15(46), 137-152.). Observa-se, portanto, que a discussão acerca da identidade é bastante complexa e pode abarcar diferentes abordagens, as quais podem ou não dialogar entre si (Carrieri, Paula, & Davel, 2008Carrieri, A. P., Paula, A. P., & Davel, E. (2008, abril/junho). Identidade nas organizações: múltipla? Fluida? Autônoma? Organizações & Sociedade, 15(45), 127-144.).

Pode-se dizer que a identidade não é sólida como a rocha, mas é dinâmica (Bauman, 2005Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar.), é metamorfose, é "articulação de várias personagens" (Ciampa, 2001Ciampa, A. da C. (2001). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense., pp. 156, 157), sendo descentrada e desfragmentada (Hall, 2006Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11a ed.). Rio de Janeiro: DP&A.). Para Bauman (2005, p. 19)Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar., "as identidades flutuam no ar". Isso nos dá a ideia de movimento, ou seja, as identidades não estão paradas, mas em constante agitação. Dessa maneira, Dubar (2005, p. 136)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. define identidade como "o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem suas instituições". O autor traz a ideia da dualidade da identidade: a "identidade para si" e a "identidade para o outro", que são indissociáveis, pois a identidade para si encontra-se diretamente relacionada ao outro, ou seja, nós sabemos quem somos somente pelo olhar do outro. Para o autor, a identidade para si é o que você diz que é, enquanto a identidade para o outro é o que se diz que você é. Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. permite duas interpretações para a identidade para o outro: 1. o que eu acredito que o outro pensa sobre mim e 2. o que de fato o outro pensa sobre mim.

Nesse sentido, vem à discussão a ideia de identidade organizacional, que são construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação. É uma articulação entre duas transações: uma "interna" ao indivíduo e uma "externa" entre o indivíduo e as transações com as quais ele interage (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., p. 135).

Bauman (2005)Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar. afirma que existem guerras por reconhecimento, travadas individual ou coletivamente. Ele discute a ideia de pessoas de "subclasse", que são exiladas além dos limites da sociedade, não possuem o direito de reivindicar uma identidade, além de serem pessoas cuja súplica e protestos não são ouvidos. Esse conceito nos remete à noção de estigma de Goffman (1980)Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar., que denota uma pessoa marcada por alguma característica que difere das que a sociedade categorizou como comuns e naturais.

Considerando que o ser humano possui uma plasticidade inesgotável (Ciampa, 2001Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.), ou seja, há uma gama de possibilidades de ele ser (re)construído, moldado, transformado, Bauman (2005)Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar. complementa que as identidades pessoais são compostas da mesma forma que se compõe um quebra-cabeça, sendo um processo complexo, trabalhoso e que leva tempo.

A seguir, será discutida a metodologia utilizada para que a pesquisa fosse realizada e alcançasse o objetivo proposto.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para o desenvolvimento desta pesquisa, optou-se pela pesquisa qualitativa e exploratória, a partir de uma abordagem interpretativa. Por essa perspectiva, as organizações são consideradas como processos resultantes das ações intencionais das pessoas, de forma individual ou coletiva, as quais interagem entre si visando interpretar o mundo e dar sentido a ele, sendo, portanto, a realidade social uma rede de representações complexas e subjetivas (Vergara & Caldas, 2005Vergara, S. C., & Caldas, M. P. (2005). Paradigma interpretacionista: a busca da superação do objetivismo funcionalista dos anos 1980 e 1990. Revista de Administração de Empresas, 45(4), 66-72.).

Para a coleta de dados, utilizou-se a técnica de entrevista semiestruturada, que foi realizada com os sujeitos da pesquisa. Para a escolha dos sujeitos entrevistados, levou-se em consideração aqueles que tinham alguma deficiência e que estavam empregados à época da coleta de dados. No Brasil, buscou-se o auxílio da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) para poder ter acesso aos sujeitos da pesquisa. Nos Estados Unidos, fez-se um contato prévio com uma organização do terceiro setor, a Central Oregon Resources for Independent Living (Coril), que foi a responsável por auxiliar no contato com os sujeitos da pesquisa desse país.

Dessa maneira, entrevistaram-se 12 PCDs na região do sul de Minas Gerais (MG), no Brasil, e oito PCDs na região central do Oregon (OR), nos Estados Unidos, totalizando 20 entrevistados. Vale ressaltar que esta pesquisa baseia-se nos pressupostos de Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. da "identidade para si" e "identidade para o outro", e que o autor permite que a "identidade para o outro" seja apreendida a partir da visão de como o indivíduo acredita ser visto pelo outro.

Com o intuito de manter o sigilo sobre suas identidades, os sujeitos entrevistados foram nomeados como EB ("entrevistado Brasil") e EE ("entrevistado Estados Unidos").

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para a operacionalização da análise, que foi feita com base nos pressupostos da análise de conteúdo. De acordo com Bardin (1994, p. 42)Bardin, L. (1994). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70., a análise de conteúdo é

[...] um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens.

3.1 BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Quanto à caracterização dos sujeitos da pesquisa, 50% dos respondentes são do sexo masculino e 50% do sexo feminino. Dentre os entrevistados, a maioria possuía idade entre 18 e 29 anos (45%). Os demais se dividiram em: 30% entre 30 e 39 anos; 10% entre 40 e 49 anos; 5% entre 50 e 59 anos; e 10% entre 60 e 69 anos. Dos indivíduos que participaram da pesquisa, 55% são solteiros.

Com relação à escolaridade, 30% possuem ensino superior completo; 25%, ensino superior incompleto; 20%, ensino médio completo; 20%, ensino fundamental incompleto; e 5%, pós-graduação (mestrado).

No que tange ao tipo de deficiência, a amostra pesquisada distribui-se da seguinte maneira: 40% possuem deficiência física; 35%, deficiência intelectual; 15%, deficiência auditiva; e 10%, deficiência visual. Para o melhor entendimento da pesquisa, cabe ressaltar alguns pontos relevantes sobre esse aspecto. Os entrevistados EB01, EB03 e EB10 possuem deficiência física em decorrência de poliomielite, quando ainda eram crianças. O participante EB06 teve paralisia cerebral, que comprometeu sua capacidade de locomoção e fala. O entrevistado EB12 nasceu sem parte do membro superior esquerdo. O participante EE03, por sua vez, adquiriu a deficiência em razão de um acidente que sofreu já na idade adulta, no qual perdeu o membro superior direito e teve 90% do corpo queimado. Os entrevistados EE06 e EE08 sofreram acidentes e, por isso, têm dificuldade para locomoção. Com relação às pessoas com deficiência intelectual, cabe ressaltar que EB02, EB04, EB09 e EB11 nasceram com essa deficiência, enquanto EE02, EE04 e EE05 desenvolveram essas deficiências ao longo da vida, em consequência de acidentes. Na amostra de PCDs com deficiência auditiva, EB07 e EB08 nasceram com a deficiência, enquanto EE01 perdeu a audição no decorrer de sua adolescência. O participante EB05 perdeu a visão aproximadamente aos 13 anos de idade, em decorrência de uma doença congênita degenerativa, enquanto EE07 nasceu com essa deficiência.

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

4.1 A DINÂMICA IDENTITÁRIA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Para uma melhor compreensão dos movimentos da identidade dos indivíduos entrevistados, a presente seção está dividida em duas partes. Na primeira parte, discute-se a "identidade para si", que é o que você diz que é. Na segunda, trata-se da "identidade para o outro", isto é, o que se diz que você é. Cabe ressaltar que essas duas dimensões são indissociáveis, ou seja, estão diretamente relacionadas entre si (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.). Elias (1994, p. 57)Elias, N. (1994). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. concorda com Dubar ao afirmar que até mesmo as ideias "eu sou" e "eu penso" pressupõem a existência de outras pessoas e um convívio com elas.

4.1.1 Identidade para si

Segundo Dubar (2005, p. 137)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., cada indivíduo é identificado por outros, mas pode recusar essa identificação e se definir de outra forma. Essa definição vem por meio de "atos de pertencimento", que exprimem "que tipo de homem (ou de mulher) você quer ser". Isso acontece por meio da incorporação da identidade pelos próprios indivíduos. Ou seja, a partir das trajetórias sociais dos indivíduos, eles constroem identidades que nada mais são do que "a história que eles se con-tam sobre o que são" (Laing, 1963 como citado em Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., p. 139), o que Goffman (1980, p. 6)Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. chamou de "identidades sociais virtuais". Assim, o indivíduo legitima sua identidade para si mesmo e para o grupo em que está (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.), como pode ser observado a seguir.

4.1.1.1 O indivíduo e ele mesmo: sujeito estigmatizado

As PCDs entrevistadas carregam o estigma de sua deficiência. Elas se veem como pessoas que são diferentes daquilo que a sociedade considera comum ou natural (Goffman, 1980), como mostra o seguinte relato: "Eu nunca pensei que ia trabalhar em escritório. Sempre pensava que ia ter serviço mais ruim, tipo faxineiro, lixeiro" (EB01, p. 3).

O relato de EB01 nos remete à discussão sobre o tipo de trabalho exercido por PCDs. Na amostra pesquisada no Brasil, apenas uma entrevistada (EB03) ocupa um cargo de gerência. Os demais entrevistados ocupam cargos operacionais, que exigem uma menor qualificação.

Outro ponto percebido nos relatos foi a questão da normalidade: "Se pra pessoa normal já é difícil arrumar emprego, imagina pra pessoa com deficiência" (EB01, p. 1).

De acordo com a definição de EB01, a normalidade se baseia na deficiência: pessoa normal seria a pessoa sem deficiência, e pessoa anormal, a pessoa com deficiência. Isso explicita a discussão de Foucault (2001)Foucault, M. (2001). Os anormais. São Paulo: Martins Fontes. quando afirma que a existência de corpos com diferenças sempre despertou a curiosidade, o espanto ou a indiferença das pessoas, surgindo então a distinção entre normal e anormal, sendo anormal aquela pessoa com características distintas da maioria ou do grupo em que está inserida.

Isso nos remete à discussão acerca de minorias, que são caracterizadas como segmentos das sociedades que possuem traços culturais ou físicos específicos desvalorizados pela maioria, o que gera um processo de exclusão e discriminação (Roso, Strey, Guareschi, & Bueno, 2002Roso, A., Strey, M. N., Guareschi, P., & Bueno, S. M. N. (2002). Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais de gênero. Psicologia & Sociedade, 14(2), 74-94.). As PCDs estão incluídas nas minorias, e, conforme o relato de EB01, ele se sente realmente parte dessa minoria, que é excluída e tem menos oportunidades do que as pessoas "normais" que compõem a maioria.

A deficiência, portanto, passa a ser vista como uma restrição corporal e não como uma manifestação da diversidade humana (Santos, 2008Santos, W. R. (2008). Pessoas com deficiência: nossa minoria. Revista de Saúde Coletiva, 18(3), 501-519.), conforme este relato: "A minha [deficiência] é bem assim, como que fala, dá pra ver, né? Não tem como esconder" (EB10, p. 2).

O entrevistado EB10 se vê como alguém que tem algo diferente dos demais, o que lhe causa desconforto. Portanto, a questão "visual" da deficiência tem papel essencial na definição de quem elas são e como lidam com essa situação. O entrevistado EB10 não pode esconder sua deficiência, o que faz com que ele se olhe no espelho e veja que algo nele é diferente dos demais indivíduos, caracterizando-o como um indivíduo que possui um estigma, o que também pode ser constatado no relato de um entrevistado dos Estados Unidos: "being a burn victim or survival rather it’s a healing process. It takes years. Specially because I have to go through many surgeries" (EE03, p. 2).

Além das diversas cirurgias a que teve de se submeter, o lado psicológico de EE03 foi bastante afetado. Segundo ele, é muito difícil se olhar no espelho depois do acidente. Bragança (2009)Bragança, S. (2009). Preconceito: ele existe? In S. Bragança & M. Parker (Orgs.). Igualdade nas diferenças: os significados do "ser diferente" e suas repercussões na sociedade (pp. 11-32). Porto Alegre: EDIPUCRS. afirma que atualmente se vive em uma sociedade de aparências, na qual cada vez mais se valoriza a imagem. Portanto, ter essa imagem modificada por completo e ter de se adaptar a um novo estilo de vida certamente impacta profundamente a identidade do indivíduo. Isso nos leva a pensar que a aceitação da deficiência também depende do momento em que foi adquirida. Se o indivíduo nasceu com a deficiência, ele aprendeu a conviver com ela, desde a infância. Se a deficiência surgiu em uma idade mais madura, em decorrência de acidente ou doença, o indivíduo terá de reaprender a viver sua vida. Segundo o relato de EE03, quando se olhou no espelho pela primeira vez, teve a sensação de que estava "no corpo errado", como se estivesse sido transportado para o corpo de outra pessoa. Portanto, ele se olhava no espelho e não conseguia reconhecer sua identidade. Em decorrência do acidente, EE03 foi fisicamente transformado, e, portanto, houve a necessidade de transformar também a maneira como via a si mesmo, o que corrobora a ideia de que a identidade é metamorfose (Ciampa, 2001Ciampa, A. da C. (2001). A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense.).

Percebe-se também que EE03 se vê ao mesmo tempo como uma pessoa marcada (Goffman, 1980Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.) por um processo doloroso, ele se vê como alguém capaz de vencer os obstáculos.

O relato apresentado a seguir mostra a relevância da questão da adaptação:

Well, I had to adapt, even before I knew about it. I was not bad, I was just different. SoI’ve always adapted, I always find a way to adapt. So I figure out ways to get aroundtheir method and make it mine. So that’s what I did, usually (EE04, p. 6).

A partir do relato de EE04, percebe-se, então, a necessidade de autoafirmação não apenas para o próximo, mas também para ela mesma. Goffman (1980)Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. justifica isso quando diz que a convivência com pessoas sem um estigma – no caso deste trabalho, sem uma deficiência – faz com que o indivíduo que carrega o estigma construa sua identidade por meio da comparação com as demais, pelo reforço do que foi instituído como normal ou natural. Assim, EE04 quer justificar a sua identidade.

Como afirma Aranha (2003)Aranha, M. (2003). Trabalho e emprego: instrumento de construção da identidade pessoal e social. Brasília: Corde., é no contexto das relações sociais do trabalho que o indivíduo se modifica e, assim, constrói e transforma sua identidade. Portanto, é preciso que se discuta como as PCDs entrevistadas veem a si mesmas com relação ao seu trabalho e à sua deficiência, como pode ser observado a seguir.

4.1.1.2 A relação entre o indivíduo, a deficiência e o trabalho

A menção à deficiência foi recorrente nos relatos dos entrevistados. Assim, pode-se afirmar que os indivíduos entrevistados não negam a deficiência, mas a assumem como parte constituinte de sua identidade, conforme o relato a seguir:

Eu faço tudo que eu quero na vida, tudo! Estudo, trabalho, namoro, pratico esporte, tudo que eu quero fazer eu faço, a única coisa que a minha deficiência me atrapalha hoje é na locomoção, porque eu só ando a pé, eu não tenho carro nem moto pra ganhar tempo, e isso eu perco tempo demais, andando a pé (EB05, p. 5).

O entrevistado EB05 reconhece que possui uma limitação – a da locomoção. Sua deficiência é visual, o que nos leva à discussão sobre a acessibilidade para as pessoas que têm deficiência visual. Pelo menos no Brasil, há inúmeras barreiras que impedem essas pessoas de circular livremente pelas ruas, de utilizar o transporte público, de ir à biblioteca etc. A partir de seu relato, entende-se também que ele se sente livre – faz tudo o que quer: estuda, trabalha, namora, pratica esportes. Portanto, a deficiência que, para alguns é vista como uma restrição corporal (Santos, 2008Santos, W. R. (2008). Pessoas com deficiência: nossa minoria. Revista de Saúde Coletiva, 18(3), 501-519.), para esse indivíduo é apenas uma manifestação da diversidade humana.

Contudo, observamos, em alguns momentos, que EB05 (p. 8) considera as demais PCDs como pessoas incapazes, inferiores, quando comparadas à pessoa sem deficiência:

O deficiente é um indivíduo como qualquer outro, ele trabalha, ele estuda, ele pratica esporte [...] os deficientes na empresa têm um posicionamento de objeto na mão dos outros, eles se sentem tão vistos como coitadinhos e incapazes que estão ali pra completar o quadro de funcionários especiais que tem que ter.

Para o entrevistado, as PCDs se posicionam como objeto, ou seja, elas podem ser manipuladas por outras pessoas. Essa afirmação denota uma das características das classes que compõem as minorias – elas se sujeitam ao outro (Roso et al., 2002Roso, A., Strey, M. N., Guareschi, P., & Bueno, S. M. N. (2002). Cultura e ideologia: a mídia revelando estereótipos raciais de gênero. Psicologia & Sociedade, 14(2), 74-94.).

Entretanto, Silva e Vergara (2002)Silva, J. R. G., & Vergara, S. C. (2002). Mudança organizacional e as múltiplas relações que afetam a reconstrução das identidades dos indivíduos. Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, Salvador, BA, Brasil, 26. destacam que as organizações são um espaço para a constituição das identidades dos indivíduos. Assim, pode-se afirmar que é no trabalho que a identidade do indivíduo é (re)construída, sendo um lugar propício para acontecerem os movimentos de sua identidade, conforme é observado neste relato: "It [o trabalho] really makes you understand the role you play in life " (EE06, p. 4).

Observa-se, então, que EE06 enxerga o trabalho como parte constituinte de si próprio, pois, conforme Berger e Luckmann (1985)Berger, P., & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes., é nos processos de socialização que são produzidas as identidades dos indivíduos. No caso, a socialização secundária.

O relato a seguir reafirma e traz outros pontos à discussão no que tange à importância do trabalho na maneira como o indivíduo enxerga a si próprio:

Just starting a new job gives you a little bit of anxiety. It wasn’t extremely bad because I knew the mountain and I’ve done more complicated jobs, but it still has the challenges of interpersonal communication, dealing with other people’s personalities and hoping that you can learn fast enough, even though it’s not technical, you still need to learn your environment. So I had a little bit of insecurity, because I’ve been so much emotionally exhausted that I would have trouble remembering things, but that didn’t turn out to be a problem (EE05, p. 2).

Pode-se observar, a partir desse relato, o surgimento da ideia da socialização organizacional, que é o processo de aprendizagem de valores, crenças e formas de concepção de mundo de dada organização (Carvalho-Freitas, 2000Carvalho-Freitas, M. N. (2000). O professor iniciante e suas estratégias de socialização profissional. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.). Apesar de se constituir uma fonte de integração, o trabalho para EE05, especialmente no início, também foi fonte de ansiedade. Segundo EE05, ela tinha alguns desafios, como a comunicação interpessoal, lidar com outras pessoas e novamente foi citada a questão da rapidez com que o trabalho deve ser realizado. Observa-se, com base nesse relato, que o trabalho, quando a pessoa não está adaptada a ele, pode fazer com que o indivíduo sinta-se mais inseguro e estressado, o que pode trazer problemas em seu desempenho na organização, além de problemas de saúde. Nesse caso, EE05 se enxerga de maneira diminuída, pois percebemos, em seu relato, um certo pessimismo com relação a si mesma. Isso pode ser explicado pelo fato de ela tentar absorver e assumir não apenas os papéis e as atitudes dos outros, mas também o mundo deles (Berger & Luckmann, 1985Berger, P., & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes.), o que muitas vezes causa frustração.

Observamos, assim, que o outro tem um papel crucial na forma como a identidade é (re)construída, o que Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. chamou de "identidade para o outro".

4.1.2 Identidade para o outro

Nesta seção, serão discutidas as diversas maneiras como o indivíduo acredita ser visto pelo seu próximo. Para Dubar (2005)Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., o indivíduo nunca sabe quem é a não ser no olhar do outro. Assim, é por meio dos atos de atribuição que se define "que tipo de homem (ou de mulher) você é" (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes., p. 137), ou seja, a "identidade para o outro", a qual Goffman (1980, p. 6)Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. denomina de "identidade social real".

4.1.2.1 A relação entre o outro, a deficiência e o trabalho

A maneira como os entrevistados acreditam ser vistos por seus pares, com relação ao seu trabalho e à sua deficiência, é parte de sua identidade, como pode ser observado no relato a seguir:

Eu acho tão legal isso porque a sensação que eu tenho é que eu não sou deficiente aqui. Todo mundo me trata exatamente igual, entendeu?! A equipe aqui é muito boa, entendeu?! Então isso de uma certa forma te dá uma sensação assim... Que não existe uma diferença. Existe a diferença, mas não pras pessoas, sabe como? (EB03, p. 2).

A entrevista EB03, em sua perspectiva, reconhece a diferença entre ela e as outras pessoas. Entretanto, afirma que os outros não a veem como diferente. Eles a tratam de maneira igual, o que a faz pensar que não tem uma deficiência, que não é estigmatizada. Portanto, no olhar do outro, EB03 se vê como igual, "normal", o que nos leva a pensar na importância do olhar do próximo na autoafirmação do indivíduo.

A seguir, observamos outro ponto que surgiu ao longo das entrevistas – a "superproteção":

Eu sou deficiente. Então tem que tomar aquele cuidado, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. Na minha própria casa, entendeu? Eu lutei muito pra ser independente, [...] pra eu poder viajar sozinha, fazer minhas coisas, entendeu? Que meus pais sempre, assim, me protegeram demais (EB07, p. 2).

Pela análise do relato, observa-se a tendência de as pessoas quererem ajudar a pessoa que tem algum tipo de deficiência, especialmente a família. Segundo Goffman (1980)Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar., a família constitui uma cápsula protetora para o indivíduo, dentro da qual a criança estigmatizada pode ser cuidadosamente protegida desde o nascimento. Normalmente, as pessoas sentem a responsabilidade de fazer algo pela PCD para ajudá-la. Isso pode ser explicado também pela definição popular da palavra "deficiência": "falta, insuficiência, imperfeição; defeito que uma coisa tem ou perda que experimenta na sua quantidade, qualidade ou valor" (Bueno, 1986Bueno, F. da S. (1986). Dicionário escolar da língua portuguesa (11a ed.). Rio de Janeiro: FAE., p. 294). Assim, ao pensar na PCD, mesmo que de forma inconsciente, o indivíduo a associa a alguém que necessita de ajuda, a alguém que não pode, sozinha, fazer o que deseja.

Portanto, o que se observa é um indivíduo que ao mesmo tempo é visto como alguém igual aos outros, ele sente que há uma proteção exagerada dada à sua deficiência, o que mostra uma contradição no olhar do outro com relação à deficiência.

Outro ponto importante é quando o outro inculca uma ideia no indivíduo e esta é absorvida como verdade por ele, como se segue:

They made understand that in the construction business I couldn’t work anymore because if I don’t hear something, someone might get hurt. Anyways, they made me realize I could do other stuff, they gave me directions (EE01, p. 4).

O participante EE01 afirma que os empregadores o fizeram entender que não poderia mais trabalhar no ramo da construção civil. Assim, convenceram-no a fazer outro tipo de trabalho. Observa-se o "peso" da opinião do outro na construção de uma nova identidade, tanto pessoal como profissional.

4.1.2.2 A relação entre o outro e o indivíduo

Nos relatos dos entrevistados, percebeu-se a importância do olhar do outro a respeito do indivíduo, tanto de forma positiva como de forma negativa: "Então eu não fazia nada e era rotulado como o aluno mais vagabundo que tinha. E acontecendo isso, eu comecei agir como tal mesmo, a fazer bagunça, e não fazer mais nada, e não querer estudar, e eu passei raspando em tudo" (EB12, p. 9).

A rotulagem é um processo decorrente dos atos de atribuição de identidade pelo outro (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.), o que contribui para a formação da "identidade social real" (Goffman, 1980Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.). O entrevistado EB12 afirma que foi rotulado como alguém preguiçoso, que não fazia as obrigações devidas em sala de aula. Segundo EB12, a partir dessa rotulagem, passou a agir dessa maneira. Percebemos aqui que a atribuição de uma característica pelo outro teve a força para de fato alterar o comportamento do indivíduo, o que nos leva a acreditar que, quando uma identidade é conferida pelo outro ou por um grupo ao indivíduo, este legitima a identidade e a toma como sua.

Isso é observado também no relato a seguir de um entrevistado dos Estados Unidos:

Society says: "You need to have a bachelor’s degree, associate’s degree or whatever’s degree". Anything, they don’t really care, you just need a "degree". I know it’s really important, but it doesn’t really tell if you are good or not at something (EE01, p. 3).

O relato de EE01 mostra a força da sociedade em impor condições ao ser humano, especialmente quando se trata de status. Nesse sentido, a cultura pode ser considerada um dos pontos centrais para compreender as ações do homem, pois ela funciona como um padrão coletivo de identificação dos grupos (Pires & Macêdo, 2006Pires, J. C. S., & Macêdo, K. B. (2006). Cultura organizacional em organizações públicas no Brasil. Revista de Administração Pública, 40(1), 81-105.). Considerando a cultura nacional como um discurso (Hall, 2006Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11a ed.). Rio de Janeiro: DP&A.), este constrói sentidos que influenciam e organizam tanto as ações quanto as concepções que o indivíduo tem de si mesmo, o que pôde ser constatado no relato anterior.

Considerando alguns relatos dos entrevistados dos Estados Unidos, observa-se que cursar uma universidade é sinal de status naquele país. Assim, percebe-se que, na visão do outro, o indivíduo acredita ser "obrigado" a ter um diploma. Segundo EE01, as pessoas não se importam, elas querem apenas um diploma. Pode-se entender, assim, a busca por qualificação das pessoas entrevistadas, pois, naquele país, o diploma faz parte das práticas sociais dos indivíduos norte-americanos.

O relato de EB06 (p. 5) é bastante interessante, especialmente quando diz que acredita que passou a ser visto como cidadão depois que começou a trabalhar e a cursar uma faculdade:

Hoje não dependo muito do meu pai para assim questão de vestimenta, de estudo, as coisa é tudo por minha conta, hoje eu sou visto na sociedade como cidadão [...] sempre fui cidadão, mas hoje as pessoas têm uma visão melhor, ainda mais agora que eu tô na faculdade, entendeu?

Ser cidadão significa pertencer a um país e ter seus direitos e deveres assegurados pela Constituição, além de permitir a participação nas decisões que envolvem política, economia etc. Portanto, ele acredita ser visto pela sociedade como uma pessoa detentora de direitos e deveres e que pode, sim, reivindicar algo. Esse relato se contrapõe à ideia de Bauman (2005)Bauman, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar. de que as pessoas que formam as minorias, no caso EB06, são pessoas cuja súplica e protestos não são ouvidos, ou seja, é a dinâmica da identidade atuando na construção social da realidade. Carvalho-Freitas e Marques (2007)Carvalho-Freitas, M. N. (2007). A inserção de pessoas com deficiência em empresas brasileiras – um estudo sobre as relações entre concepções de deficiência, condições de trabalho e qualidade de vida no trabalho. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. complementam essa discussão ao afirmarem, com base em estudos conduzidos no Brasil e em Cabo Verde, que as maiores dificuldades para as PCDs conseguirem trabalho são as barreiras à cidadania, a falta de conhecimento sobre os seus direitos e a discriminação.

Outra questão que deve ser trazida à discussão é a respeito da importância de o indivíduo ser reconhecido pelo outro:

One of my cousins has Down Syndrome and it was how I start coming here to Coril, and be participant of Coril. He’s so proud that I’m working here, he praises me around "she is my cousin" and it gives me a good inner peace, it makes me feel good knowing that I’m helping others (EE08, p. 2).

Observa-se, com base nesse relato, que o olhar do outro é imprescindível para que EE08 se sinta bem. É saber o que o outro pensa a respeito dela, identificar-se com o sentido que lhe é atribuído e, a partir daí, poder (re)construir suas identidades (Hall, 2006Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11a ed.). Rio de Janeiro: DP&A.), de modo que ela possa sair da posição de receber e tornar-se capaz de ajudar também o outro.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão acerca da diversidade tem se tornado cada vez mais comum atualmente. Seja em discussões acadêmicas, na mídia ou nas organizações, cada vez mais se fala sobre o tema. Contudo, embora tenha havido avanços nessa temática, ainda são observadas lacunas quando se fala do trabalho das minorias.

Nesse sentido, a presente pesquisa foi realizada com o objetivo de compreender a dinâmica identitária de PCDs inseridas em organizações de trabalho, no Brasil e nos Estados Unidos.

Observamos que a identidade do indivíduo é resultado de um movimento de construção e reconstrução entre as suas (muitas) identidades: a identidade para si construída, a identidade para o outro conferida, a identidade social herdada, a identidade escolar visada, que se desenvolvem desde a infância, na adolescência e no decorrer da vida (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.). O indivíduo não consegue se identificar apenas com os seus olhos, mas ele também necessita se ver pelo olhar do outro. A "identidade para si" e a "identidade para o outro" são indissociáveis, pois estão diretamente relacionadas entre si (Dubar, 2005Dubar, C. (2005) A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes.), e isso foi visto nos relatos dos entrevistados.

Em "a identidade para si", as PCDs entrevistadas se viam como indivíduos estigmatizados, que eram tratados diferentemente dos demais. Além disso, elas assumem a deficiência como parte constituinte de suas identidades, tanto no Brasil como nos Estados Unidos. As PCDs entrevistadas tinham uma visão de si mesmas e também uma percepção que acreditavam ser vistas pelos outros, o que trouxe influência direta na forma como elas se comportavam. Em "a identidade para o outro", surgiu a questão da "superproteção", ou seja, há uma tendência de as pessoas quererem ajudar a PCD, especialmente a família, formando uma cápsula protetora para esse indivíduo. Isso apareceu nos relatos dos entrevistados brasileiros, o que revela um dos valores da cultura brasileira, que é o da amizade, o da compaixão pelo próximo.

Não podemos negar que a inserção de PCDs no Brasil e nos Estados Unidos está acontecendo. Embora ainda haja problemas nesse sentido, comparando-se com poucas décadas atrás, vemos que houve um significativo avanço nesse aspecto. Entretanto, ao comparar com a evolução do trabalho como um todo, observa-se que há ainda um longo caminho a ser percorrido pelas PCDs rumo à igualdade de oportunidades. Em ambos os países, fala-se sobre a igualdade – premissa básica de suas Constituições –, mas observa-se que suas práticas ainda estão distantes dos discursos, tomando como base os relatos dos entrevistados.

Nesse sentido, a proposta desta pesquisa foi avançar nos estudos acerca da dinâmica identitária de PCDs para o campo da administração. Embora haja vários estudos que contemplam as PCDs em seu ambiente de trabalho, há poucos que partem da perspectiva do indivíduo para a discussão da diversidade. Assim, com o presente trabalho buscou-se refletir sobre as várias maneiras de pensar na inserção de PCDs nas organizações a partir das vivências delas. Por essa razão, o trabalho apoiou-se em aportes disciplinares, como a sociologia e psicologia social, para melhor compreender a dinâmica dessas dimensões e contribuir, teoricamente, para a discussão sobre o trabalho de PCDs. Entretanto, esta pesquisa tem algumas limitações: uma amostra pequena, especialmente nos Estados Unidos; pouco tempo de coleta de dados no exterior, o que não permitiu uma maior imersão no ambiente dos sujeitos pesquisados; e a falta de trabalhos relacionados à dinâmica identitária de PCDs que discutam, conjuntamente, dois países distintos.

Assim, para futuras pesquisas, o presente trabalho pode servir como referência para outros estudos comparativos não apenas em outros países, mas discutindo as próprias regiões brasileiras, visando à elaboração de políticas públicas de acordo com as especificidades de cada lugar.

  • 1
    Nesta pesquisa, utiliza-se a expressão "pessoas com deficiência" e não "pessoas com necessidades especiais", visto que a segunda não é específica, podendo contemplar pessoas obesas, idosas, entre outras (Carvalho-Freitas, 2007Carvalho-Freitas, M. N. (2007). A inserção de pessoas com deficiência em empresas brasileiras – um estudo sobre as relações entre concepções de deficiência, condições de trabalho e qualidade de vida no trabalho. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.), o que extrapola o âmbito deste trabalho. Vale destacar também a Portaria n. 2.344, de 3 de novembro de 2010, que alterou a nomenclatura utilizada para pessoas com algum tipo de deficiência. Portanto, onde se lê "pessoas portadoras de deficiência", leia-se "pessoas com deficiência" (Portaria SEDH n. 2.344, 2010Portaria SEDH n. 2.344, de 3 de novembro de 2010 (2010). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Recuperado em 10 dezembro, 2010, de http://www.direitoshumanos.gov.br/pessoas-com-deficiencia-/conade/Portaria_n_2.pdf/view.
    http://www.direitoshumanos.gov.br/pessoa...
    ).

REFERÊNCIAS

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  • Aranha, M. (2003). Trabalho e emprego: instrumento de construção da identidade pessoal e social Brasília: Corde.
  • Bardin, L. (1994). Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2013
  • Aceito
    18 Out 2013
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