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ABRINDO CAIXAS-PRETAS DAS INOVAÇÕES DISRUPTIVAS: CONTROVÉRSIAS ENVOLVENDO A UBER EM BELO HORIZONTE

RESUMO

Objetivo:

Busca-se neste artigo compreender as controvérsias presentes a partir da inserção de uma tecnologia disruptiva em um novo modelo de negócios, a Uber, no mercado de mobilidade urbana de Belo Horizonte.

Originalidade/valor:

A teoria ator-rede permite descrever uma inovação como técnica e social, bem como identificar as sociomaterialidades que estão a enactar as múltiplas realidades a partir da mobilização em controvérsias. A proposta é original ao investigar como uma inovação disruptiva é construída como “fato”, acompanhando seus processos de desestabilização e construção de um novo mercado. Houve avanços também na aplicação do conceito de enactar e multiplicidade no estudo de inovações disruptivas.

Design/metodologia/abordagem:

A pesquisa foi operacionalizada a partir da própria teoria ator-rede, utilizando-se da cartografia para seguir os atores em suas controvérsias. Os dados foram advindos, principalmente, de jornais, postagens em redes sociais e materiais jurídicos acessados via internet (de dezembro de 2014 a julho de 2017). Para a apresentação dos resultados, utilizaram-se a mandala de atores que disputam posições em controvérsias e a árvore hierárquica das controvérsias.

Resultados:

O arranjo foi marcado por diversas controvérsias que versavam sobre a legitimidade do aplicativo, as relações trabalhistas estabelecidas pela inovação e a qualidade dos serviços prestados, cada uma sustentada por diferentes atores, posições e argumentos. Identificaram-se quatro tipos de tecnologia enactada nesse arranjo: 1. da tecnologia do usuário; 2. da prestação de serviço; 3. das questões econômicas; e 4. do motorista Uber. Entendeu-se com isso que a tecnologia Uber é múltipla, enactada de formas diferentes, em diferentes práticas, e que o arranjo sociotécnico ainda não se estabilizou.

PALAVRAS-CHAVE
Cartografia das controvérsias; Economia de compartilhamento; Teoria ator-rede; Tecnologia e sociedade; Enactar

ABSTRACT

Purpose:

This article aims to understand the controversies present from the insertion of a disruptive technology in a new business model, Uber, in the urban mobility market of Belo Horizonte-MG.

Originality/value:

The actor-network theory allows us to describe innovation as technical and social, as well as to identify the sociomaterialities that enact and multiple realities from controversies in dispute. The proposal is original in investigating how a disruptive innovation is built as a “fact”, accompanying its stabilization processes.

Design/methodology/approach:

The research was operationalized from the actor-network theory itself, using cartography to follow the actors in their controversies. The data came mainly from newspapers, postings on social networks and legal materials accessed through the internet (from December 2014 to July 2017). For the presentation of the results, the mandala of actors who dispute positions in controversies and the hierarchical tree of the controversies were used.

Findings:

The arrangement was marked by several controversies that deal with the legitimacy of the application, the labor relations established by the innovation and the quality of the services provided, each supported by different actors, positions and arguments. Four types of technology identified in this arrangement were identified: 1. user technology; 2. service provision; 3. economic issues; and 4. Uber driver. It is understood, therefore, that the technology has multiple dimensions and is enacted of different forms, and that this arrangement has not yet stabilized.

KEYWORDS
Cartography of controversies; Sharing economy; Actor-network theory; Technology and society; Enactment

1. INTRODUÇÃO

Nos processos de inovações disruptivas, o entendimento da sociomaterialidade assume papel central, dado que, nos termos de Mol (2002)Mol, A. (2002). The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press., ela age para enactar a realidade. Nesse caminho, a descrição das inovações disruptivas a partir da ótica da teoria ator-rede (actor-network theory - ANT) lança um desafio que vai além das propostas tradicionais de estudo nesse campo, por considerar explicitamente que o “desenho de uma tecnologia é um processo sem fim” (Callon, 2004Callon, M. (2004). The role of hybrid communities and socio-technical arrangements in the participatory design. Journal of the Center for Information Studies, 5(3), 3-10., p. 3).

Em termos metodológicos, o desafio é identificar a sociomaterialidade que está a enactar as múltiplas realidades. Na visão da ANT, a realidade e o social são coperformados por engajamentos sociomateriais. Essa visão assume que a inovação é simultaneamente técnica e social, já que ciência e técnica, assim como sociedade e tecnologia, estão imbricadas (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.). Nesta pesquisa, entende-se que tais imbricamentos estão presentes no processo de inovação disruptiva enactado pela empresa norte-americana Uber, que provê uma plataforma para a prestação dos serviços de transporte remunerado (e-hailing) a partir de automóveis de terceiros.

Para compreender esse processo, a noção de simetria (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.) impõe-se contra a maioria dos estudos sobre inovações disruptivas que focam aspectos técnicos e tecnológicos, como se eles fossem separados ou não fizessem parte do social. A ANT enfrenta esses binarismos e dicotomias em prol do entendimento das redes sociotécnicas e dos agenciamentos. Essa perspectiva vem sendo usada nos estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade (Tonelli, 2016Tonelli, D. F. (2016). Origens e afiliações epistemológicas da teoria ator-rede: Implicações para a análise organizacional. Cadernos EBAPE.BR, 14, 377-390.), no local em que surge e mais recentemente em pesquisas sobre consumo e construção de mercados (Callon & Muniesa, 2005Callon, M., & Muniesa, F. (2005) Economic markets as calculative collective devices. Organization Studies, 26(8), 1229-1250.; Kjellberg & Helgesson, 2006Kjellberg, H., & Helgesson, C. F. (2006). Multiple versions of markets: Multiplicity and performativity in market practice. Industrial Marketing Management, 35(7), 839-855.; Araujo, 2007Araujo, L. (2007). Markets, market-making and marketing. Marketing Theory, 7(3), 211-226.; Çalışkan & Callon, 2010Çalışkan, K., & Callon, M. (2010). Economization, part 2: A research programme for the study of markets. Economy and Society, 39(1), 1-32.). Com isso, o presente estudo se insere como um objeto híbrido (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.) das discussões sobre ciência e tecnologia, por um lado, e construção de mercados, por outro, a partir dos processos de disrupção da Uber.

O contexto da pesquisa é marcado pelo mercado de mobilidade urbana, entendendo mercado como resultados de um processo contínuo que envolve entidades materialmente heterogêneas - um coletivo híbrido (Kjellberg & Helgesson, 2006Kjellberg, H., & Helgesson, C. F. (2006). Multiple versions of markets: Multiplicity and performativity in market practice. Industrial Marketing Management, 35(7), 839-855.). O artigo também fundamenta que “os objetos materiais, até os agentes humanos, desempenham papéis ativos na formação do mercado” (Medeiros, Vieira, & Nogami, 2014Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173., p. 158). No caso do mercado de mobilidade urbana, ele envolve hoje (após desestabilização) uma diversidade de elementos humanos e não humanos, tais como: táxis, ônibus públicos, metrôs, sindicatos, cooperativas, carros particulares, leis, locação de veículos, GPS, vias especiais, aplicativos, empresas, motoristas, passageiros, regulações, condições de trabalho, entre outros (Binenbojm, 2016Binenbojm, G. (2016). Novas tecnologias e mutações regulatórias nos transportes públicos municipais de passageiros: Um estudo a partir do caso Uber. Revista de Direito da Cidade, 8(4), 1690-1706. ). Portanto, uma diversidade de atores que transladam interesses diversos e contraditórios (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.). Por isso, emergiram controvérsias na constituição da Uber nesse mercado, de modo específico na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais.

A tecnologia provida pela Uber (Uber do Brasil Tecnologia Ltda.) ainda não é um processo de inovação estabelecido, regulamentado e regularizado nessa capital. Belo Horizonte já possuía (antes da inserção do aplicativo) uma estabilização no mercado de mobilidade urbana, sendo o táxi e o transporte público os atores centrais da ordem estabelecida. Essa questão é que torna este estudo mais relevante, tendo em vista que o aplicativo Uber despertou controvérsias que ainda não se estabilizaram. Isto é, a construção de uma caixa-preta (estabilização) que purifica o processo da multiplicidade de interesses divergentes ainda não ocorreu. Ou de forma mais simples, o modelo Uber ainda não é visto como algo natural/dado ou inquestionável. Quando a caixa-preta se fechar, a Uber passará a ser uma prática de mercado, natural, aceita e sem controvérsias em torno da sua existência. Outra possibilidade é que ela também deixe de existir. De toda forma, sua controvertida história deixaria de ser relevante a partir desse momento. Enquanto isso não acontece, percebemos nesta pesquisa que a inserção da Uber no mercado foi marcada por incertezas e controvérsias (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.) e pela desestabilização (Medeiros et al., 2014Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173.) do mercado de mobilidade urbana.

Para revelar esses processos, um dos caminhos é o estudo das controvérsias, que permite descrever o envolvimento de diferentes atores, a heterogeneidade das redes sociotécnicas, bem como os variados debates e confrontos (Venturini, 2010Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273.; Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.) envolvidos no caso da Uber. Antes deste estudo, Blanchet e Depeyre (2016, p. 4)Blanchet, V., & Depeyre, C. (2016). Exploring the shaping of markets through controversies: Methodological propositions for macromarketing studies. Journal of Macromarketing, 36(1), 41-53. já destacaram que as controvérsias “são dispositivos metodológicos úteis para o estudo da difusão de inovações, da qualificação de bens e da emergência, da transformação e do declínio de mercados”. Elas são importantes para rastrear as conexões (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.). Com base nesse entendimento, busca-se neste artigo compreender as controvérsias presentes a partir da inserção de uma tecnologia disruptiva em um novo modelo de negócios, a Uber, no mercado de mobilidade urbana de Belo Horizonte-MG. Para isso, foram mapeadas as controvérsias presentes nesse mercado e apresentados os atores-rede que as performam.

Referente à escolha do objeto, justificamos com as palavras de Venturini (2010, p. 13)Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273.: “devem-se procurar controvérsias onde todos estão gritando e brigando; onde os conflitos crescem mais severamente”. Nesse sentido, Belo Horizonte foi um dos locais onde a Uber mais proporcionou controvérsias em torno da sua existência.

2. O ESTUDO DE CONTROVÉRSIAS A PARTIR DA TEORIA ATOR-REDE

A ANT rompe com grande parte das visões anteriores da teoria social ao introduzir de forma marcante a importância dos artefatos e dos objetos no entendimento da vida social para além das separações dicotômicas “sociedade e natureza”, “social e natural” ou “técnica e ciência”. Na perspectiva da ANT, humanos e não humanos são actantes. Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba. argumenta que os atores não humanos (como os objetos) interferem diretamente nos efeitos de sentido e no desenrolar dos fenômenos que circundam o processo de construção da realidade, sendo as interações humanas constantemente mediadas e moldadas por eles. Por isso, a ANT é marcada por uma visão processual das entidades híbridas que compõem os coletivos (Callon, 1986Callon, M. (1986). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In J. Law (Ed.). Power, action and belief: A new sociology of knowledge? London: Routledge.; Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.).

A ANT também trabalha com a estabilidade dos objetos sociotécnicos de forma diferenciada, não a percebendo como algo inerente aos materiais. Isso é fundamental para entender, no campo dos estudos sobre inovação e marketing, como um processo inovador se torna estabilizado e como mercados são construídos (Callon & Muniesa, 2005Callon, M., & Muniesa, F. (2005) Economic markets as calculative collective devices. Organization Studies, 26(8), 1229-1250.; Kjellberg & Helgesson, 2006Kjellberg, H., & Helgesson, C. F. (2006). Multiple versions of markets: Multiplicity and performativity in market practice. Industrial Marketing Management, 35(7), 839-855.; Araujo, 2007Araujo, L. (2007). Markets, market-making and marketing. Marketing Theory, 7(3), 211-226.; Çalışkan & Callon, 2010Çalışkan, K., & Callon, M. (2010). Economization, part 2: A research programme for the study of markets. Economy and Society, 39(1), 1-32.).

Tratando da construção de mercados a partir da ANT, Çalışkan e Callon (2010)Çalışkan, K., & Callon, M. (2010). Economization, part 2: A research programme for the study of markets. Economy and Society, 39(1), 1-32. mostram que a noção de agenciamento sociotécnico permite compreender como a ação se dá em coletivos híbridos, compostos por humanos, materiais, textos, dispositivos, entre outros atores. Dessa forma, a ação coletiva é compartilhada entre entidades sociomateriais. Essa visão supera também a noção de inovação a partir de um ator individual, como muito ingenua mente colocado no caso dos empreendedores. Isso fica evidente no processo descrito por Latour (2016)Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34. de uma inovação sociotécnica: a pílula anticoncepcional. Para ele, a inovação foi resultante dos interesses de atores como a militante feminista Margaret Sanger, o químico Gregory Pincus, a viúva rica Catherine Dexter McCormick e as moléculas (esteroides). Ou seja, a capacidade de agir é adquirida na relação com diferentes elementos (Latour, 2016Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34.).

Para compreender os processos, é necessário seguir, traçar ou cartografar as controvérsias (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba., 2016Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34.). Para Latour (2016)Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34., nas controvérsias identificam-se as formas como os atores constroem e modificam “fatos”. Nelas “os atores intervenientes desenvolvem argumentos contraditórios e pontos de vista que os conduzem a propor diferentes versões dos mundos social e natural” (Callon, 1986Callon, M. (1986). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In J. Law (Ed.). Power, action and belief: A new sociology of knowledge? London: Routledge., p. 3). Por isso, a cartografia de controvérsias busca reunir pontos de vista diferentes em que se observam confrontações em busca da definição do objeto - no nosso caso, o aplicativo da Uber. Para isso, na perspectiva da construção de mercado, Araujo (2007)Araujo, L. (2007). Markets, market-making and marketing. Marketing Theory, 7(3), 211-226. afirma que se deve considerar uma ampla gama de práticas, como os esforços de regulação, o trabalho científico, os atores envolvidos cotidianamente, entre outros aspectos.

A análise das controvérsias (Venturini, 2010Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273.) permite o entendimento das disputas advindas de diferentes interesses constituídos por meio das translações. As controvérsias são disputas e conflitos, cujo estudo revela a diversidade de interesses mobilizados, já que nelas “surgem grupos e antigrupos em conflito com posições opostas no debate” (Cerretto & Domenico, 2016Cerretto, C., & Domenico, S. M. R. (2016). Mudança e teoria ator-rede: Humanos e não humanos em controvérsias na implementação de um centro de serviços compartilhados. Cadernos EBAPE.BR, 14, 83-115., p. 91). As controvérsias são usadas para “rastrear as conexões sociais” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba., p. 53).

De forma geral, Venturini (2010)Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273. esclarece que, no momento em que os agentes se deparam com a ausência de consenso sobre um determinado acontecimento, ação ou projeto e unem esforços na divulgação e propagação de seus argumentos com o propósito de convencer outros agentes, uma controvérsia está instituída. Quando se descrevem as controvérsias, é possível perceber os “muitos quadros de referências mutáveis” (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba., pp. 53-54) no processo de formação de coletivos de humanos e não humanos.

3. CAMINHOS METODOLÓGICOS

A pesquisa foi operacionalizada a partir da própria ANT, afinal, segundo Latour (1999, p. 20)Latour, B. (1999). On recalling ANT. In J. Law & J. Hassard, J. Actor-network theory and after. Oxford: Blackwell., ela é “um método, não uma teoria”, ou “um método muito cru para aprender dos atores sem impor sobre eles uma definição a priori de suas capacidades de construção-de-mundo”. Portanto, a estratégia foi seguir os atores em suas controvérsias performando o mercado de mobilidade urbana em Belo Horizonte.

Entre as opções de análise das controvérsias a partir da perspectiva da ANT, Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba. destaca a possibilidade da adoção do conceito de cartografia, utilizado para registrar e analisar os diferentes momentos da translação frequentemente presentes em processos de mudança. A cartografia vem sendo desenvolvida e adotada por Bruno Latour ao longo do tempo e foi empregada como opção para o tratamento e a análise dos dados neste estudo, seguindo as indicações de Venturini (2010)Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273.. Os procedimentos adotados se basearam também no uso da noção de controvérsias por Cerretto e Domenico (2016)Cerretto, C., & Domenico, S. M. R. (2016). Mudança e teoria ator-rede: Humanos e não humanos em controvérsias na implementação de um centro de serviços compartilhados. Cadernos EBAPE.BR, 14, 83-115. e Moraes, Andion e Pinho (2017)Moraes, R. L., Andion, C., & Pinho, J. L. (2017). Cartografia das controvérsias na arena pública da corrupção eleitoral no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 846-876..

A coleta de dados foi realizada por meio de pesquisa documental a partir de dados disponibilizados na internet. Desse modo, rastreamos as controvérsias que marcam o mercado de mobilidade urbana em Belo Horizonte envolvendo a Uber. Para Venturini (2010)Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273., somente acumulando notas, documentos, entrevistas, pesquisas, arquivos, experiências e estatísticas, os pesquisadores podem fazer uma tentantiva de descrever a vida coletiva.

Considerando os fundamentos dos autores mencionados, iniciou-se a coleta de dados selecionando reportagens veiculadas nos dois jornais de maior circulação em Belo Horizonte: O Tempo e Estado de Minas. O primeiro requisito, proposto por Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba., é não simplificar o número de proposições a serem consideradas na discussão. Com isso as reportagens levaram a uma multiplicidade de atores, que, à medida que se caminhou no entendimento de suas posições na rede, mais materiais de análise foram coletados com a inclusão de outros veículos de informações, documentos públicos, vídeos, redes sociais e dados disponíveis em empresas.

No total, foram reunidas 156 reportagens de jornais (nos veículos: O Tempo, Estado de Minas, G1, Business Insider e TechCrunch); três projetos de lei (2.676/15, 1.647/15 e 5.587/16); duas leis municipais (1.797/15 e 10.900/16); quatro documentos publicados no Diário Oficial do município de Belo Horizonte e Ministério Público em formato de nota pública; quatro sites de empresas privadas e/ou públicas (WillGo, Sincavir, BHTrans e Uber); e 106 minutos de material de vídeo (palestras, entrevistas, reportagens e conferências publicadas nas páginas oficiais dessas organizações via Facebook). Também foram lidos comentários das reportagens jornalísticas e postagens na rede social Facebook (em grupos de usuários e motoristas do aplicativo, páginas dos atores mobilizados), bem como realizaram-se quatro viagens (uma de Cabify, duas de Uber e uma de táxi) como experiência dos pesquisadores, estabelecendo conversas informais sobre esse mercado, o aplicativo da Uber, suas repercussões, a influência e o posicionamento dos atores envolvidos. Portanto, seguiram-se os atores nas controvérsias, no período de dezembro de 2014 (data do início das operações da Uber em Belo Horizonte) a julho de 2017 (momento de encerramento da coleta de dados).

As fontes referenciadas diretamente nos resultados estão codificados de R1 a R21 na Figura 3.1 - indicando os principais eventos das controvérsias.

Figura 3.1
PRINCIPAIS FONTES DE DADOS PERCORRIDAS PARA MAPEAMENTO DE ATORES E CONFIGURAÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

Finalmente, Moraes et al. (2017)Moraes, R. L., Andion, C., & Pinho, J. L. (2017). Cartografia das controvérsias na arena pública da corrupção eleitoral no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 846-876. destacam que o pesquisador deve ampliar as vozes a serem ouvidas promovendo a escuta do que “dizem” os actantes. Para tanto, além da descrição, foram construídas duas representações gráficas (Venturini, 2010Venturini, T. (2010). Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, 19(3), 258-273.), a saber: a mandala de atores que disputam posições em controvérsias (Moraes et al., 2017Moraes, R. L., Andion, C., & Pinho, J. L. (2017). Cartografia das controvérsias na arena pública da corrupção eleitoral no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 846-876.) e a árvore hierárquica da controvérsia (Cerretto & Domenico, 2016Cerretto, C., & Domenico, S. M. R. (2016). Mudança e teoria ator-rede: Humanos e não humanos em controvérsias na implementação de um centro de serviços compartilhados. Cadernos EBAPE.BR, 14, 83-115.).

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Uber foi fundada em 2009 por Garrett Camp e Travis Kalanick, com a proposta inicial de oferecer um serviço semelhante ao táxi de luxo, baseada em tecnologia disruptiva em rede por meio do E-hailing. O aplicativo foi lançado para as plataformas de smartphones Android e iOS em 2010, oferecendo carros na cidade de San Francisco, na Califórnia, nos Estados Unidos, como serviço de “carona remunerada” (R1). Conforme Travis Kalanick, a ideia central da Uber é proporcionar meios para que as pessoas compartilhem automóveis, de modo a reduzirem os efeitos de fenômenos como engarrafamentos, emissão de gases poluentes e criação de estacionamentos, especialmente nas grandes cidades (R1).

Entre 2010 e 2011, a empresa recebeu quase USD 50 milhões em investimentos (R2). No ano de 2014, foi avaliada em USD 18,2 bilhões contando com investidores como Google e Goldman Sachs. Em 2015, a Microsoft realizou novo investimento, o que fez o valor de mercado da Uber subir para USD 51 bilhões. Por oferecer um serviço semelhante ao dos táxis, porém exercido com um custo mais baixo do que uma empresa com frota de táxi tradicional, a Uber despertou preocupação e críticas da indústria de táxis em todo o mundo. Em maio de 2011, recebeu uma notificação judicial do departamento de trânsito da cidade de San Francisco com essa mesma acusação (R3). Em 2012, a California Public Utilities Commission multou a Uber e outras empresas do ramo em USD 20 mil cada (R4). Episódios semelhantes ocorreram em vários locais dos Estados Unidos. À medida que o modelo de negócio Uber foi se expandindo, problemas semelhantes surgiram em muitos países, como Austrália, Canadá, Portugal, França e Brasil (R3).

No caso do Brasil, órgãos específicos dos governos municipais regulamentam o trabalho de taxistas, conferindo licenças que têm alto custo e muita demanda e são liberadas em quantidades limitadas. De forma geral, os sindicatos de taxistas alegam que a Uber estaria violando a legislação nacional que regulamenta a profissão e dispararam uma série de protestos e ações contra a empresa (Binenbojm, 2016Binenbojm, G. (2016). Novas tecnologias e mutações regulatórias nos transportes públicos municipais de passageiros: Um estudo a partir do caso Uber. Revista de Direito da Cidade, 8(4), 1690-1706. ).

A primeira cidade a receber o aplicativo no Brasil foi o Rio de Janeiro, seguida de São Paulo e Belo Horizonte (R20). Sua chegada a essa capital veio acompanhada de uma onda de violência, protestos e agressões, trazendo a presença de uma diversidade de atores humanos e não humanos em controvérsia, assim como a presença desta pesquisa.

4.1 Uber: controvérsias em Belo Horizonte

Em setembro de 2014, a Uber do Brasil Tecnologia Ltda. chegava a Belo Horizonte, e, já no primeiro dia do mês seguinte, o Sindicato Intermunicipal de Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários (Sincavir), que atende taxistas e transportadores autônomos de Minas Gerais, denunciava oficialmente a “ilegalidade” do aplicativo na prefeitura de Belo Horizonte e na Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), apresentando uma solicitação de proibição dele. As informações contidas no site do Sincavir referentes a essa ação estão acompanhadas da alegação de considerar a Uber uma rede de transporte ilegal.

Em abril de 2015, os taxistas de Belo Horizonte, incentivados pelas manifestações que ocorreram em São Paulo, mobilizam-se e articulam protestos contra a Uber, pressionando por sua proibição (R12). As manifestações surtem efeito, e, em maio, há a criação do Projeto de Lei 2.676/15 que prevê a proibição de aplicativos como o da Uber na cidade. O projeto recebeu parecer favorável da Comissão de Transporte, Comunicação e Obras Públicas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) no dia 20 de agosto (R14). Nas redes sociais, apareceram disputas entre o favorável parecer e os usuários.

Se o Uber for proibido nós vamos protestar, vamos para as ruas em horário de pico e divulgar na mídia todos os deputados e vereadores que votaram contra. Também vamos acionar os sindicatos dos taxistas no Procom sobre o caro e precário atendimento prestado pelos Taxistas (R5).

As controvérsias seguem de forma intensa, de modo que, no dia 2 de setembro de 2015, um homem, aparentemente motorista credenciado na Uber, foi agredido por motoristas de táxi. No dia seguinte, realizou-se uma carreata com aproximadamente 200 motoristas de táxi contra o aplicativo direcionada ao Ministério Público de Minas Gerais (R15 e R16). Nos dias 4, 5 e 6 do mesmo mês, registraram-se mais agressões e perseguições aos motoristas do aplicativo. Na ocasião, a polícia não autuou ninguém, tão pouco enquadrou o motorista de Uber por transporte clandestino.

Em resposta aos conflitos violentos contra motoristas e usuários do aplicativo, a empresa ofereceu serviço gratuito em Belo Horizonte para corridas de até R$ 50,00 (no limite de três corridas por usuário), entre as 11 e 18 horas, com a hashtag #UberLoveDay (R17). Ao noticiar esse evento, o jornal Estado de Minas destacou:

[d]epois de confusões, quebradeiras e ameaças envolvendo taxistas, o aplicativo de transporte Uber lançou seu contra-ataque, em uma agressiva estratégia de marketing que consistiu em oferecer corridas gratuitas a passageiros (R21).

Na página oficial do Facebook do jornal Estado de Minas, os comentários referentes à publicação dessa reportagem revelam atores em controvérsia com o posicionamento e a tradicional atuação dos taxistas na cidade. Um deles comenta: “engraçado é que os taxistas vivem chorando, mas não se perguntam pq estão sendo trocados pelo Uber! #uberloveday” (R6).

No dia 3 de outubro de 2015, foi criado, na Câmara de Vereadores, o projeto de lei municipal (elaborado a partir de relatório da BHTrans) que prevê a criação da categoria Táxi Premium, passando a proibir a Uber na configuração em que atuava na cidade. Essa proposta obrigaria motoristas que trabalhavam por meio da Uber a concorrer por uma das placas licenciadas dessa modalidade de táxi. Na página do jornal O Tempo, mais atores se manifestam contra os taxistas e a BHTrans:

Péssima proposta, como quase tudo que envolve a BHTrans. A Prefeitura precisa é se certificar de que o Uber não vire um monopólio. E não expulsar o Uber favorecendo os donos de licenças de táxis que sublocam o serviço (R7).

No mesmo mês, o presidente da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte garante apoio aos taxistas e promete discutir termos do projeto de lei de regulamentação do aplicativo. Em novembro, o Projeto de Lei Suplementar n. 530/2015, que pretende regularizar o uso da Uber no Brasil como um meio de transporte privado individual (diferente do táxi), inicia seu trâmite no Senado Federal. No dia 5 de novembro, vereadores de Belo Horizonte solicitam à BHTrans a punição dos taxistas que agredirem motoristas da Uber. Na mesma semana, taxistas realizam nova carreata visando mobilizar esforços para a aprovação das medidas de regulamentação/proibição da Uber.

Em meio a tantas polêmicas, a Uber criou, no dia 9 de dezembro, mais uma campanha para tentar evitar a proibição do aplicativo em Belo Horizonte pelo Projeto de Lei n. 1.797/15. A ação foi promovida por meio do envio de um e-mail aos moradores da capital cadastrados em sua base. No e-mail, constava o seguinte: “No dia 12 de dezembro Belo Horizonte completará 118 anos. E você sabe qual pode ser o presente da Câmara Municipal para a cidade? Retrocesso” (R19). Na semana seguinte (16 de dezembro de 2015), a Câmara de Vereadores aprova mudança em documento que regularizava a atuação de taxistas em Belo Horizonte, incorporando como crime agressões cometidas a qualquer pessoa durante o exercício da função de taxista.

Na segunda semana de 2016 (9 de janeiro), foi publicada a Lei n. 10.900/2016 no Diário Oficial do Município (originada no Projeto de Lei n. 1.795/2015), proibindo o uso dos serviços da Uber em Belo Horizonte da forma como são oferecidos pelo aplicativo. A lei obriga motoristas a se credenciar na prefeitura. Entretanto, a Uber garantiu que continuaria funcionando, apoiando-se na Constituição Federal.

No final do mês de janeiro, a Justiça Federal concedeu liminar para que os motoristas da Uber pudessem continuar a trabalhar pelo aplicativo, sem a necessidade de cadastro na prefeitura. Caso os motoristas sofressem repressões, seria aplicada multa aos órgãos responsáveis pela coação de R$ 1.500,00/dia, conforme comentário apresentado por um juiz de direito envolvido na decisão.

No entanto, para além das disputas entre taxistas, Estado e Uber até aqui discutidas, apresenta-se mais um ator que entra em controvérsia com a multinacional: o motorista “parceiro” da Uber, que começa a chamar a atenção nas redes sociais para as condições de trabalho na empresa e o baixo valor pago pelas corridas.

Verdadeira covardia e exploração que a Uber vem fazendo com seus motoristas parceiros. Pagando taxas fora da realidade diante dessa crise, preço da gasolina, pressão e muitas exigências. A UBER hoje é excelente somente para o cliente que anda de carro com ar condicionado... bebe água, ganha bala... é bem tratado e paga “migalhas” em suas viagens. [...] (R9).

No dia 11 de junho de 2016, os motoristas que trabalham pela Uber realizaram carreata pedindo mais segurança e regulamentação do trabalho. Motoristas advogavam pela aprovação de projeto de lei que regulariza a profissão: “Precisamos dessa regulamentação até mesmo para acabar com essas confusões com taxistas. Não descartamos fazer outras manifestações” (R10).

Alinhado a essas demandas, em outubro de 2016, um motorista da Uber em Belo Horizonte criou um abaixo-assinado cobrando da empresa um cadastro mais rigoroso de passageiros. O motorista alega que, desde o aceite do pagamento em dinheiro, houve um aumento nas ocorrências de assaltos e ameaças. Outro motorista diz que sofreu com “calotes” por parte dos clientes (R11).

Além disso, as discussões acerca de questões trabalhistas impulsionaram o envolvimento de mais um actante a esse momento da controvérsia. No dia 16 de dezembro de 2016, procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) informaram que iriam criar um grupo de pesquisa sobre aplicativos de transporte de passageiros, como a Uber. O grupo visava investigar as relações de trabalho entre as empresas e os motoristas das plataformas, buscando combater a precarização do trabalho. Enquanto isso, motoristas parceiros da Uber se articularam contra a empresa reivindicando o benefício de relações trabalhistas, com processos em andamento no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), que abrange Minas Gerais.

Referente a esse momento, a Uber reage com reajuste no custo fixo das viagens em todo o território nacional, no início de 2017. No dia 17 de janeiro, motoristas vinculados ao aplicativo organizam mais uma carreata reivindicando, desta vez, melhores condições de trabalho e segurança por causa do aumento no número de assaltos ocorridos por “vulnerabilidades” no aplicativo, conforme discutido no grupo de Facebook Uber Bh/Clientes e Motoristas. Na primeira quinzena de fevereiro, o juiz da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Dr. Márcio Toledo Gonçalves, reconheceu o vínculo de emprego entre a empresa e o ator R. L. S. F. (motorista parceiro) (R12). A empresa recorreu e, em maio de 2017, venceu o processo contra o motorista. A decisão, em segunda instância, foi dada de modo unânime.

Finalmente, as disputas em torno da legitimidade dos serviços prestados por motoristas que operam pela plataforma Uber foram marcadas por um novo evento. Em 16 de agosto de 2017, desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais votaram a favor da liberação dos aplicativos de transporte privado em todo o estado. Os magistrados analisaram o denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) referente à legalidade do serviço provido por empresas como a Uber. Essa decisão cria uma espécie de jurisprudência para todas as ações relacionadas a essa controvérsia (R18). A partir desse momento parou-se de seguir as controvérsias, pois os elementos já eram suficientes para o entendimento da proposta do estudo.

A narrativa mostra que uma inovação sociotécnica - nesse caso, uma tecnologia e sua implementação - não caminha de forma linear e uniforme, ou seja, envolve uma rede complexa de atores humanos e não humanos em disputa (Latour, 2016Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34.). Isso ficou evidente nos momentos em que a Uber se fortalecia e quando tinha sua existência/permanência ameaçada. Nessa direção, Pinch e Bijker (1984)Pinch, T. J., & Bijker, W. E. (1984). The social construction of facts and artefacts: Or how the sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. Social Studies of Science, (3), 399-441. mostram que as tecnologias não são definidas por critérios meramente técnicos - dependem de interesses de consumidores, interesses políticos e de uma diversidade de coletivos. Como os autores mostram, antes de as tecnologias se estabilizarem como as conhecemos hoje (seu formato, seu uso etc.), havia a concorrência de “diferentes” bicicletas. Isso também ocorreu com a Uber, que, desde a sua criação, passou por diversas mudanças - às vezes, disputando com leis, taxistas, políticos, usuários, empresas concorrentes, pesquisadores e motoristas; e, noutras, formando alianças com eles.

4.2 Os atores e as controvérsias que marcam a rede de disrupção estudada

Para compreender essa realidade, buscou-se um enfoque nos atores envolvidos. Cabe lembrar que atores ou actantes no caso da Uber não são apenas taxistas, motoristas Uber ou usuários. Conforme Law e Mol (2008, p. 74)Law, J., & Mol, A. (2008). The actor-enacted: Cumbrian sheep in 2001. In C. Knappett & L. Malafouris. Material agency: Towards a non-anthropocentric approach. New York: Springer. , “um ator é um momento de indeterminação que gera eventos e situações”, de modo que o enfoque nessa definição cabe às ações que os atores performam e às suas diferentes direções e impactos. Com isso, o estudo das controvérsias que marcaram a inovação disruptiva provocada pela emergência da Uber em Belo Horizonte passa pela atuação dos diferentes atores humanos e não humanos que promulgam essa rede (Figura 4.2.1).

Figura 4.2.1
MANDALA DE ATORES QUE DISPUTAM POSIÇÕES EM CONTROVÉRSIAS RELACIONADAS À ATUAÇÃO DA UBER

Como se vê, os atores disputam posições controversas. Para compreender esses confrontos, foi elaborado um mapa cognitivo (Figura 4.2.2), em uma proposta próxima a uma árvore hierárquica (Cerretto & Domenico, 2016Cerretto, C., & Domenico, S. M. R. (2016). Mudança e teoria ator-rede: Humanos e não humanos em controvérsias na implementação de um centro de serviços compartilhados. Cadernos EBAPE.BR, 14, 83-115.). Para tanto, definiu-se a própria existência do aplicativo desenvolvido pela Uber como controvérsia central na formação dessa rede. Dessa controvérsia, emergem diferentes temas que, por sua vez, apresentam posições distintas, destacando atores que as sustentam, bem como argumentos empregados por eles nesse processo.

Figura 4.2.2
ÁRVORE HIERÁRQUICA DA CONTROVÉRSIA UBER EM BELO HORIZONTE

A partir da inserção da Uber em Belo Horizonte, em setembro de 2014, o primeiro tema que marca está disrupção está relacionado à legitimidade do serviço oferecido pela empresa, enactado por um conjunto de atores e dispositivos. A discussão em torno da legitimidade da Uber promoveu intensos debates, formando redes de actantes que buscam defender posições dis tintas. Essas posições podem ser representadas em três eixos. O primeiro deles defende a proibição do aplicativo, advogada, sobretudo, por motoristas de táxi (Sincavir), grande parte dos vereadores da Câmara Municipal de Belo Horizonte, agentes da BHTrans e usuários de táxis que se identificam com a posição. Esse eixo se sustenta na noção de que essa inovação prejudica o trabalho dos taxistas já inseridos no mercado, com a denúncia de que motoristas parceiros da Uber atuam de forma clandestina, uma vez que não se conformam às normas estabelecidas para a regulamentação da atuação de taxistas e a crítica relacionada ao caráter multinacional da Uber, a qual teria como interesses apenas a exploração de trabalhadores brasileiros. O segundo eixo defende a regulamentação da Uber e é advogado por alguns vereadores e deputados, por alguns agentes da BHTrans, pela prefeitura de Belo Horizonte, por dispositivos legais, como projetos de lei, leis, decretos, ofícios etc., bem como por usuários dos serviços de mobilidade urbana e alguns motoristas que atuam pela Uber. A posição se fundamenta em dois argumentos: 1. a necessidade de maior controle das operações envolvendo a Uber, considerando seus impactos nesse mercado; e 2. a necessidade de regulamentação defendendo a isonomia entre os agentes, especialmente taxistas e motoristas de Uber, de modo que, uma vez formalizados pelo Estado, sejam estabelecidas condições mais equalizadas para que possam operar. Por fim, a terceira posição em torno da legitimidade do arranjo é marcada por atores que defendem a inalteração das condições do mercado, sobretudo diretores da própria Uber, alguns usuários dos serviços, jurisprudências promulgadas por alguns magistrados, bem como a próprias configurações sociotécnicas do aplicativo. Essa posição defende que a Uber promoveu uma inovação e, portanto, não deve ser regulamentada, bem como critica a atuação do Estado brasileiro direcionada à regulação e ao controle de todas as trocas econômicas, o que poderia levar à maior burocratização dos serviços.

Por sua vez, o segundo tema que marca está controvérsia refere-se à disputa em torno de relações trabalhistas, especialmente a partir da relação entre motoristas, aplicativos e a Uber. Nesse sentido, os atores que constituem essa temática figuram em quatro posições. A primeira diz respeito ao reconhecimento do envolvimento entre a Uber e motoristas como relação de trabalho, devendo, então, ser regulamentada conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Os principais envolvidos nessa posição são atores jurídicos em primeira instância, motoristas que acionaram dispositivos legais e as próprias configurações do aplicativo que permitiram a produção, em um primeiro momento, de jurisprudências favoráveis ao reconhecimento de legislações trabalhistas nessa rede. Por sua vez, os outros atores assumem posições contrárias, defendendo a não existência de relações de trabalho entre Uber, aplicativo e motoristas. Nessas disputas, são empregados argumentos que alegam o caráter liberal e empreendedor da atividade performada pelos motoristas, sendo a Uber (e dispositivos atrelados à sua posição) apenas um ator intermediador entre o serviço e os usuários. Além disso, é enunciado como argumento uma crítica a alguns motoristas que acionaram dispositivos jurídicos, ou seja, próximos à posição anterior, como “brasileiros querendo aproveitar”. Nessa posição, figuram atores como alguns motoristas que trabalham a partir do aplicativo da Uber, bem como gerentes da própria empresa, jurisprudências e alguns usuários. Outra posição defendida nesse tema refere-se aos debates em torno precarização do trabalho promovida pelas traduções entre atores da rede, especialmente motoristas e dispositivos do aplicativo. Por um lado, os motoristas, bem como alguns usuários e veículos de mídia, alegam que a remuneração baseada no rendimento do motorista promove uma maior competição e realização de longas jornadas de trabalho (alguns motoristas chegam a atuar por 18 horas seguidas), o que incorre em danos à saúde. Por outro lado, alguns motoristas que trabalham por meio do aplicativo, bem como outros usuários, retrucam os argumentos anteriores, defendendo que os indivíduos que performam essas atividades reconhecem os riscos desse tipo de trabalho. No mais, as controvérsias que envolvem relações de trabalho também perpassam posições defendidas por atores referentes à segurança no trabalho. Desse modo, são defendidos argumentos relacionados a roubo de veículos, agressões proferidas por taxistas, calote de passageiros e assaltos a motoristas.

No que se refere à última temática que constitui as controvérsias analisadas nessa rede, destacamos as posições e os argumentos relacionados à qualidade de serviço. Nesse sentido, duas posições antagônicas são exploradas. A primeira envolve a atribuição de maior qualidade à mobilidade urbana provida pela disrupção da Uber. Atores que se afiliam a essa posição empregam argumentos como maior facilidade de pagamento dos serviços, melhor preço, melhor atendimento ao cliente em relação ao táxi e a possibilidade de escolher o conforto da viagem. Entre os atores que compõem essa posição, destacam-se: alguns motoristas que atuam a partir da Uber, o aplicativo, o dinheiro (que paradoxalmente é tido como um ator que promulga insegurança ao trabalho), os smartphones, balas, o ar-condicionado, sinais de Wifi gratuitos, diferentes estações de rádio, entre outros. Como posição contrária aos argumentos anteriores, outros atores defendem que o arranjo promovido pela Uber ocasiona menor qualidade nos serviços. Essa noção é reproduzida a partir de argumentos como a insegurança a que alguns usuários são submetidos e a falta de critério para a seleção de motoristas Uber, o que poderia incorrer em casos de assédio e agressões provocados por esses atores aos usuários.

Em suma, o conjunto de temas, posições e argumentos performados por diferentes atores que compõem essa rede traduzem as controvérsias que envolvem a disrupção promovida pela Uber (a partir de dispositivos característicos a ela) em Belo Horizonte.

4.3 Contribuições para o estudo de inovações disruptivas: controvérsias, enactar e multiplicidade

As controvérsias são comuns e frequentes em processos performativos como são os de inovações disruptivas em que os atores estão inseridos na existência de agenciamentos sociomateriais de diferentes realidades. Sobre construção de mercados, estabilização e heterogeneidade, diversos estudos vêm sendo realizados. Por exemplo, Medeiros et al. (2014)Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173. mostram que o mercado editorial permaneceu por muito tempo estabilizado (com livrarias, editoras, autores, transporte, gráficas etc.), no entanto a internet mudou as relações de trocas que desestabilizaram e, posteriormente, estabilizaram o mercado (agora com websites, tablets, e-readers, editoras, e-book etc.). Algo semelhante pode ser observado no caso da Uber, em que o mercado de mobilidade urbana, até então estável, passa por significativas mudanças com a emergência do aplicativo. Os procedimentos deste artigo, a saber, a mandala de atores que disputam posições em controvérsias e a árvore hierárquica, foram instrumentos importantes para alcançar esse entendimento: inovações desestabilizam estruturas e geram externalidades (Callon, 1998Callon, M. (1998). An essay on framing and overflowing: Economic externalities revisited by sociology. The Sociological Review, 46 (suppl. 1), 244-269.; Leme & Rezende, 2018Leme, P. H. M. V., & Rezende, D. C. de (2018). A construção de mercados sob a perspectiva da teoria ator-rede e dos estudos de mercado construtivistas (EMC). Revista Interdisciplinar de Marketing, 8(2), 133-151.).

Para Medeiros et al. (2014)Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173. e Leme e Rezende (2018)Leme, P. H. M. V., & Rezende, D. C. de (2018). A construção de mercados sob a perspectiva da teoria ator-rede e dos estudos de mercado construtivistas (EMC). Revista Interdisciplinar de Marketing, 8(2), 133-151., a construção de mercado envolve a noção de framing (enquadramento) e overflow (transbordamento), conceitos fundamentados em Callon (1998)Callon, M. (1998). An essay on framing and overflowing: Economic externalities revisited by sociology. The Sociological Review, 46 (suppl. 1), 244-269.. O framing “engloba o processo de práticas calculadas, como regras, regulamentos, acordos, contratos, transações, entre outros [...]” (Medeiros et al., 2014Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173., p. 157). Para Leme e Rezende (2018)Leme, P. H. M. V., & Rezende, D. C. de (2018). A construção de mercados sob a perspectiva da teoria ator-rede e dos estudos de mercado construtivistas (EMC). Revista Interdisciplinar de Marketing, 8(2), 133-151., o enquadramento é um processo de estabilização dos arranjos de mercado - os atores submetem-se às regras (Callon, 1998Callon, M. (1998). An essay on framing and overflowing: Economic externalities revisited by sociology. The Sociological Review, 46 (suppl. 1), 244-269.). No entanto, as ações podem extrapolar as barreiras e, nesse caso, “interferir nas ações de outros agentes que não estão necessariamente relacionados à troca econômica ocorrida” - transbordamento (Medeiros et al., 2014Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173., p. 158).

Os transbordamentos são “resultados dos impactos que a troca acarreta em toda a sociedade, mesmo que os elementos não tenham relação nenhuma com a troca” (Medeiros et al., 2014Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173., p. 158). A noção de transbordamento indica que o enquadramento é frágil e parcial e que a estabilidade das entidades é provisória e relacional (Callon, 1998Callon, M. (1998). An essay on framing and overflowing: Economic externalities revisited by sociology. The Sociological Review, 46 (suppl. 1), 244-269.). Isso pode ser observado no momento em que o aplicativo da Uber começa a enactar novas realidades no mercado de mobilidade urbana, rompendo com os enquadramentos e promulgando novas relações entre os atores, muitas delas representadas nas controvérsias. No caso discutido neste artigo, o transbordamento direcionou ainda, entre outros, casos registrados de violência entre atores (motoristas parceiros da Uber, taxistas, usuários dos serviços, automóveis, entre outros) e disputas político-jurídicas envolvendo projetos de lei.

Portanto, o estudo a partir da Uber reitera que os mercados são híbridos, coletivos e resultados de práticas (Callon, 1998Callon, M. (1998). An essay on framing and overflowing: Economic externalities revisited by sociology. The Sociological Review, 46 (suppl. 1), 244-269.; Kjellberg & Helgesson, 2006Kjellberg, H., & Helgesson, C. F. (2006). Multiple versions of markets: Multiplicity and performativity in market practice. Industrial Marketing Management, 35(7), 839-855.). Também se constatou que a incerteza (Latour, 2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.) está presente nos mercados para além de qualquer estabilidade. Uma das fontes de incerteza, conforme Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba., é que não há grupos e sim apenas formação de grupos. Isso foi observado quando, em certo momento, os motoristas Uber que estavam em uma coalização (a favor da empresa Uber do Brasil) passaram a pressionar a própria empresa, especialmente no que se refere ao não reconhecimento (por parte da desenvolvedora da plataforma) de relações de trabalho para com seus parceiros motoristas.

Essa incerteza não se aplica somente às representações e aos discursos. O diferencial da perspectiva da ANT é compreender que essa fragilidade se faz presente em todas as entidades sociomateriais. Portanto, um artefato tecnológico “aparentemente único pode estar sendo enactado, ao mesmo tempo, nas mais diferentes práticas, em diversas localidades, constituindo, em verdade, múltiplos objetos” (Ferreira & Lessa, 2019Ferreira, R. C. R., & Lessa, B. S. (2019). Enactando tecnologias: A noção de enactment como possibilidade analítica para o estudo das tecnologias nas organizações. Décimo Encontro de Estudos Organizacionais da Anpad - EnEO, Fortaleza, CE, Brasil., p. 7). Essa noção se fez presente no mercado de mobilidade urbana de Belo Horizonte, haja vista as diferentes tecnologias enactadas pelos diversos atores mediante suas relações na rede: 1. a tecnologia do usuário; 2. da prestação de serviço; 3. das questões econômicas; e 4. do motorista Uber. Faz-se notório informar que, em cada prática, o aplicativo Uber é enactado de forma diferente. A rigor, não se trata do mesmo objeto. Percebe-se que a existência do artefato (aplicativo) está ligada a uma prática e, portanto, a uma realidade enactada (Mol, 2002Mol, A. (2002). The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press.).

Nesse sentido, o objetivo do presente artigo não foi somente investigar como uma inovação disruptiva é construída enquanto “fato” ao acompanhar seus processos de estabilização, mas também avançar no estudo de inovações a partir da noção de enactment (Mol, 2002Mol, A. (2002). The body multiple: Ontology in medical practice. Durham: Duke University Press.; Ferreira & Lessa, 2019Ferreira, R. C. R., & Lessa, B. S. (2019). Enactando tecnologias: A noção de enactment como possibilidade analítica para o estudo das tecnologias nas organizações. Décimo Encontro de Estudos Organizacionais da Anpad - EnEO, Fortaleza, CE, Brasil.), compreendendo que, entre tecnologias, organizações e sociedade, existe um emaranhado constitutivo marcado pela sociomaterialidade e pela multiplicidade. No caso da Uber, entendemos que o aplicativo é enactado de diferentes maneiras em diferentes práticas, daí decorre que “os vários modos de enactment levam a uma multiplicidade de objetos constituídos em diversas configurações sociomateriais as quais são igualmente e distintivamente reais” (Ferreira & Lessa, 2019Ferreira, R. C. R., & Lessa, B. S. (2019). Enactando tecnologias: A noção de enactment como possibilidade analítica para o estudo das tecnologias nas organizações. Décimo Encontro de Estudos Organizacionais da Anpad - EnEO, Fortaleza, CE, Brasil., p. 6). Isso lembra o estudo de Law e Mol (1995)Law, J., & Mol, A. (1995). Notes on materiality and sociality. The Sociological Review, 43(2), 274-294. sobre o Doppler que era enactado como instrumento para o diagnóstico de veias obstruídas, como uma tecnologia que ajuda a avaliar a saúde de um feto e como um objeto de diagnóstico em avaliação. Além do caso do Doppler, o trabalho de Law e Mol (2008)Latour, B. (2016). Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34. sobre o actor-enacted também é uma referência. Para os autores, em cada uma das práticas “uma ovelha” era algo diferente. Eles descreveram no total quatro ovelhas, a saber: a ovelha na prática veterinária (the veterinary sheep), na prática epidemiológica (the epidemiological sheep), na prática econômica (the economic sheep) e na prática do fazendeiro (the farming sheep).

Além disso, do ponto de vista das discussões sobre tecnologia, este artigo demonstrou que esta não é independente de perspectivas clássicas. Na linha do construtivismo social (Pinch & Bijker, 1984Pinch, T. J., & Bijker, W. E. (1984). The social construction of facts and artefacts: Or how the sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. Social Studies of Science, (3), 399-441.), o significado de uma tecnologia surge nos diferentes grupos sociais, não possuindo ela uma única lógica técnica que é isenta de valores. Portanto, nem o mercado de mobilidade urbana em Belo Horizonte nem o aplicativo Uber são entidades distintas e dotadas do atributo da estabilidade - esta se constrói de forma relacional. Nesse sentido, “as relações e divisões entre humanos e tecnologias não são preestabelecidas ou fixas, mas enactadas na prática” (Ferreira & Lessa, 2019Ferreira, R. C. R., & Lessa, B. S. (2019). Enactando tecnologias: A noção de enactment como possibilidade analítica para o estudo das tecnologias nas organizações. Décimo Encontro de Estudos Organizacionais da Anpad - EnEO, Fortaleza, CE, Brasil., p. 5). Para além da discussão de Pinch e Bijker (1984)Pinch, T. J., & Bijker, W. E. (1984). The social construction of facts and artefacts: Or how the sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. Social Studies of Science, (3), 399-441., as perspectivas recentes da ANT revelam que se trata de processos em que o enactar constitui diferentes realidades em suas multiplicidades.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebeu-se neste artigo que entidades enactam umas às outras e proporcionam mutuamente suas existências. Assim, a partir dos dados coletados, afirma-se que agir e ser enactado ocorre em conjunto, pois um ator não age sozinho. Além disso, um actante-enactado não está no controle, já que agir não é controlar. A tecnologia aqui apresentada está na encruzilhada de diversas práticas, na qual cada uma enacta essa tecnologia de forma diferente. O estudo apresenta algumas versões de tecnologias. Em primeiro lugar, a tecnologia do usuário é uma forma de mobilidade urbana, com qualidade superior, serviço mais rápido, prático e a um preço justo, entretanto é difícil compreender se a tecnologia é segura ou não, uma vez que isso depende também da atenção da Uber em selecionar os motoristas, embora ambos, usuário e empresa, possam observar e avaliar o motorista por meio da tecnologia.

Em segundo lugar, a tecnologia da prestação de serviço de mobilidade urbana era enactada de modo diferente, como um conjunto localizado geograficamente, e a probabilidade de encontrar um motorista disponível era dada a distância: motoristas dispostos a fazer viagens curtas ou a lugares sem a certeza de serem seguros, como a favelas, estão menos disponíveis (em regiões periféricas e próximas às favelas, encontram-se menos motoristas do que na zona centro-sul de Belo Horizonte).

Em terceiro lugar, há a tecnologia das questões econômicas. Nessa realidade, a compra e a venda de carros particularmente fabricados a partir de 2008 aumentaram por causa da inserção do UberX (carros mais populares), e, com isso, o preço de mercado desses carros subiu e hoje é comum encontrar motoristas Uber negociando em redes sociais aluguéis de carros por um certo período. Além disso, o governo do estado instituiu, em segunda instância, que não há relação trabalhista entre Uber e motorista, reforçando argumentos de que o motorista seria um empreendedor. Isso foi de extrema importância para o enactment econômico da tecnologia.

Em quarto lugar, deve-se considerar a tecnologia do motorista Uber. Nessa realidade, a tecnologia se manifesta em relação a uma diversidade de atores humanos e não humanos, e não apenas a um indivíduo único com um valor econômico. Uma das práticas que podem ser realizadas por meio do aplicativo é dar nota para a qualidade do serviço prestado pelo motorista. Essa nota é dada pelo usuário Uber, sendo de 0 a 5. Os motoristas precisam em média permanecer com nota 4,5, caso contrário, são descredenciados pela empresa. Por isso, em comunidades de motoristas Uber, são muito comuns expressões como: “meus olhos brilham nas cinco estrelas” e “fé em Deus e olho nas cinco estrelas”.

Dito isso, destaca-se que, quando se pensa em disrupções baseadas em tecnologias da informação, percebe-se que elas performam novos mercados em diversas áreas do social, como música (a partir do caso do Spotify), moeda digital (Bitcoin), cinema (Netflix), hotelaria (Airbnb), educação (e-learning), leitura (e-reader) e transporte (em que figura a Uber, como demonstrado nesta pesquisa). A partir disso, as tecnologias que participam do processo de disrupção, em vez de carregarem representações, na verdade performam novas entidades que se candidatam nas controvérsias a se tornar realidade. Portanto, entende-se a disrupção como um processo controverso no qual assemblances performam novas práticas em mercados outrora estáveis.

Outro importante achado diz respeito às relações entre os atores antagônicos: motoristas de Uber e motorista de táxi. Percebe-se que a realidade formada entre taxistas e outros atores adjacentes que permeiam o táxi está mais próxima de atores conectados ao Estado. Por sua vez, o motorista Uber, a empresa e os atores mais próximos performam relações mais próximas aos usuários que utilizam o transporte urbano. Provavelmente isso explica o porquê de mobilizações contra o estabelecimento da Uber por parte do poder público, bem como as manifestações contra esses atores por parte de muitos usuários, especialmente em redes sociais. Entende-se que, para que esse conjunto de inovações disruptivas se estabeleça em caixas-pretas, pode ser necessário que atores que representem a Uber busquem estabelecer novas associações com atores do Estado.

Como agenda de pesquisa, indica-se que estudos futuros podem explorar o papel do marketing na construção e disseminação de mercados. Com isso, é importante estudar as práticas de mercado (de transação, de representação e normativas) (Kjellberg & Helgesson, 2006Kjellberg, H., & Helgesson, C. F. (2006). Multiple versions of markets: Multiplicity and performativity in market practice. Industrial Marketing Management, 35(7), 839-855.) tomando a Uber como objeto de estudo. Sugere-se ainda a realização de pesquisas de cunho etnográfico que utilizem métodos de coleta de dados mais imersivos, como proposto por Latour (2012)Latour, B. (2012). Reagregando o social: Uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba.. Por fim, pontua-se que este trabalho permitiu visualizar como os actantes tornam-se o que são e agem, bem como enactam as realidades e os momentos em que estas se encontram, podendo se chocar ou complementar. A contribuição do artigo está em conseguir, mesmo que momentaneamente, capturar a multiplicidade de realidades em disputas nas controvérsias e torná-la compreensível ao leitor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2019
  • Aceito
    20 Set 2019
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