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Teorizando e pesquisando organizações contemporâneas em contextos de crises e eventos extremos

O nosso esforço para a organização de uma edição com artigos voltados a contextos de crises e eventos extremos foi motivado pela potencialidade de oferecer contribuições para o campo de estudos da Administração. O tema é de natureza multidisciplinar, mas, ainda assim, não foi suficientemente reconhecido por pesquisadores como um fenômeno organizacional que merece atenção como tal para a compreensão da magnitude dos seus impactos.

As sociedades deparam-se com certos eventos, como guerras, terrorismo, violência e segurança pública, desastres naturais e aéreos, crises políticas e econômicas, extorsão e violação de privacidade, cada vez mais comuns nas manchetes de jornais do mundo todo. Nos anos mais recentes, o rompimento de barragens da Vale, o incêndio no Clube do Flamengo, o atentado terrorista na Nova Zelândia, o incêndio na Catedral de Notre-Dame, a morte de pessoas pisoteadas em baile funk em Paraisópolis, em São Paulo, o ter-remoto no Haiti, o incêndio na Amazônia, o acidente na Usina Nuclear de Fukushima, e, mais recentemente, a Covid-19 são exemplos de eventos que deixam aparentes a fragilidade e a vulnerabilidade do mundo, levantando questões importantes sobre como as organizações, as sociedades e os indivíduos recebem os impactos desses eventos e lidam com eles. No que tange às organizações contemporâneas, as questões centrais relativas a esses eventos estão relacionadas com as operações deles, as estruturas, os recursos, a comunidade e os(as) trabalhadores(as), que são centrais para a compreensão de contextos extremos.

No campo de estudos da Administração, a necessidade de considerar o contexto é reconhecida pela sua importância em várias perspectivas de análise organizacional, a começar pelas teorias contingenciais, passando pela teoria da dependência de recursos, pelo novo institucionalismo, pelos estudos baseados na prática, pelos estudos críticos de gestão, entre outras. Contexto significa “oportunidades e restrições situacionais que afetam a ocorrência e o significado do comportamento organizacional, bem como as relações funcionais entre variáveis” (Johns, 2006Johns, G. (2006). The essential impact of context on organizational behavior. Academy of Management Review, 31(2), 386-408., p. 386).

Na literatura sobre contexto e eventos extremos, há uma diversidade de nomenclaturas atribuída a essas expressões, gerando controvérsias infrutí-feras (Hällgren et al., 2018Hällgren, M., Rouleau, L., & Rond, M. de (2018). A matter of life or death: How extreme context research matters for management and organization studies. Academy of Management Annals, 12(1), 111-153. https://doi.org/10.5465/annals.2016.0017
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). Tradicionalmente, o termo extremo é utilizado para se referir a

[...] situações que ocorrem fora do comum e subculturas de lazer quase desviante que visam a uma fuga da modernidade comercializada e excessivamente racionalizada ou para profissões que envolvam alto riso, exposição a trabalho sujo e ameaça à vida (Granter et al., 2015Granter, E., McCann, L., & Boyle, M. (2015). Extreme work/normal work: Intensification, storytelling and hypermediation in the (re)construction of “the New Normal”. Organization, 22(4), 443-456. https://doi.org/10.1177/1350508415573881
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, p. 443).

Porém, o termo ganhou novos contornos, passando a definir domínios de trabalho e organizacionais convencionais que se caracterizam pela inten-sidade do trabalho e pela normalização de comportamentos e culturas de trabalho extremos, que trazem ameaças de danos materiais e não materiais.

Um contexto extremo é aquele

[...] ambiente no qual um ou mais eventos extremos estão ocorrendo ou são prováveis de ocorrer e que podem exceder a capacidade da organização de prevenir uma magnitude extensa e intolerável de consequências físicas, psicológicas ou materiais para os membros da organização e de resultar nela (Hannah et al., 2009Hannah, S. T., Uhl-Bien, M., Avolio, B. J., Cavarretta, F. L. (2009). A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, 20, 897-919. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
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, p. 897).

Os danos são potenciais para os membros organizacionais e para aqueles que, de alguma forma, estão envolvidos com a organização. Contextos extremos não são homogêneos, sendo atravessados por variações em termos de temporalidade da organização, de magnitude das consequências, de probabilidade de ocorrer, de proximidade dos membros organizacionais e de formas de ameaças (Hannah et al., 2009Hannah, S. T., Uhl-Bien, M., Avolio, B. J., Cavarretta, F. L. (2009). A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, 20, 897-919. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
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). Apesar das similaridades, contexto extremo e crise1 1 Ver a discussão de Maia (2021, p. 212) sobre “o sentido que o conceito [de crise] assume na teoria social, permanecendo incerta sua relação com problemas funcionais e normativos, assim como sua própria utilidade para a qualificação do tempo histórico”. são fenômenos distintos: em uma crise, causas e efeitos são ambíguos; já em contextos extremos, as ameaças são específicas e graves, as organizações são capazes de se antecipar, e as causas e efeitos são, frequentemente, identificáveis (Hannah et al., 2009Hannah, S. T., Uhl-Bien, M., Avolio, B. J., Cavarretta, F. L. (2009). A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, 20, 897-919. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
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).

Eventos extremos têm ganhado um interesse mais forte de pesquisadores em diversos campos de conhecimento por causa das incertezas políticas, econômicas e ecológicas, dos desastres que resultam em tragédias e dos escândalos corporativos relacionados à irresponsabilidade social. São definidos como ocorrências que podem resultar em uma magnitude extensa e intolerável de consequências físicas, psicológicas ou materiais para os membros da organização (Hannah et al., 2009Hannah, S. T., Uhl-Bien, M., Avolio, B. J., Cavarretta, F. L. (2009). A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, 20, 897-919. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
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, p. 898) e os consumidores, afetando sua capacidade de produção e de obtenção de recursos (Hällgren et al., 2018Hällgren, M., Rouleau, L., & Rond, M. de (2018). A matter of life or death: How extreme context research matters for management and organization studies. Academy of Management Annals, 12(1), 111-153. https://doi.org/10.5465/annals.2016.0017
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). Os eventos extremos têm em comum alguns elementos: pré-crise, plano de emergência, crise, gestão da crise, pesquisa e implementação de mudanças (Buchanan, 2011Buchanan, D. A. (2011). Reflections: Good practice, not rocket science - understanding failures to change after extreme events. Journal of Change Management, 11(3), 273-288.).

No entanto, os trabalhos acadêmicos sobre contextos extremos têm produzido respostas para eventos particulares (Maglajlic, 2019Maglajlic, R. A. (2019). Organisation and delivery of social services in extreme events: Lessons from social work research on natural disasters. International Social Work, 62(3) 1146-1158.), ao comporem um corpo de pesquisa fragmentado (Hällgren et al., 2018Hällgren, M., Rouleau, L., & Rond, M. de (2018). A matter of life or death: How extreme context research matters for management and organization studies. Academy of Management Annals, 12(1), 111-153. https://doi.org/10.5465/annals.2016.0017
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) e limitarem os esforços para sistematizar o que podemos aprender sobre a natureza desses eventos e os contextos em que eles ocorrem, de forma que se possa melhorar nossa compreensão sobre esses fenômenos, suas características e seus fundamentos. Reconhecer que contextos extremos fornecem uma plataforma para o estudo de fenômenos organizacionais complexos potencializa a compreensão de comportamentos humanos e organizacionais, de jogos de poder, de processos organizacionais de adaptação e resiliência, bem como dos desafios e das barreiras a que as organizações encontram dificuldades para responder.

Nesta edição especial, seis artigos oferecem respostas ou caminhos para a compreensão de contextos de crises e eventos extremos. Três artigos destacam a importância da resiliência: “Desempenho resiliente ante período de crise econômica: Modelo integrado de concepções e estratégia de pesquisa”, de Leandro K. Rosa, Roberto F. Decourt e Daniel F. Vancin; “Como mensurar a resiliência organizacional? Validando um modelo simplificado”, de Alã Y. P. Santos e Renata G. Spers; e “Social customer relationship management e resiliên-cia organizacional de microempresas brasileiras na pandemia de Covid-19”, de Guilherme A. S. Andrade, Márcia M. S. B. Espejo, Rigoberto García-Contreras e Cleston Alexandre dos Santos. Diferentemente do destaque à resi-liência, o artigo “Vale tudo: As estratégias de atuação da Vale após o desastre-crime da barragem de Córrego do Feijão”, de Tatiane Lúcia de Melo e Liliane de Oliveira Guimarães, mostra como a empresa Vale tratou as consequências do rompimento da barragem para a comunidade. O artigo “Percepção de empreendedo-res acerca das políticas públicas no enfrentamento da Covid-19”, de Claudia M. S. Bezerra, Heidy R. Ramos, Eudes V. Bezerra, Marco A. C. Teixeira e Marcos F. Magalhães, aponta o papel do governo no que tange às políticas públicas para enfrentamento de um evento extremo específico. Já “Líderes na pandemia: Contribuições para a literatura sobre liderança nas organizações em contextos extremos”, de Beatriz M. B. Braga e Vanessa M. Santos, apresenta um modelo de liderança que acreditamos poder contribuir tanto para a pesquisa sobre o tema como para a orientação de líderes que venham a viver esse contexto.

  • 1
    Ver a discussão de Maia (2021Maia, F. (2021). Crise, crítica e reflexividade: Problemas conceituais e teóricos na produção de diagnósticos de época. Sociologias, 23(56), 212-243., p. 212) sobre “o sentido que o conceito [de crise] assume na teoria social, permanecendo incerta sua relação com problemas funcionais e normativos, assim como sua própria utilidade para a qualificação do tempo histórico”.

REFERENCES

  • Buchanan, D. A. (2011). Reflections: Good practice, not rocket science - understanding failures to change after extreme events. Journal of Change Management, 11(3), 273-288.
  • Granter, E., McCann, L., & Boyle, M. (2015). Extreme work/normal work: Intensification, storytelling and hypermediation in the (re)construction of “the New Normal”. Organization, 22(4), 443-456. https://doi.org/10.1177/1350508415573881
    » https://doi.org/10.1177/1350508415573881
  • Hällgren, M., Rouleau, L., & Rond, M. de (2018). A matter of life or death: How extreme context research matters for management and organization studies. Academy of Management Annals, 12(1), 111-153. https://doi.org/10.5465/annals.2016.0017
    » https://doi.org/10.5465/annals.2016.0017
  • Hannah, S. T., Uhl-Bien, M., Avolio, B. J., Cavarretta, F. L. (2009). A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, 20, 897-919. https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
    » https://doi.org/10.1016/j.leaqua.2009.09.006
  • Johns, G. (2006). The essential impact of context on organizational behavior. Academy of Management Review, 31(2), 386-408.
  • Maglajlic, R. A. (2019). Organisation and delivery of social services in extreme events: Lessons from social work research on natural disasters. International Social Work, 62(3) 1146-1158.
  • Maia, F. (2021). Crise, crítica e reflexividade: Problemas conceituais e teóricos na produção de diagnósticos de época. Sociologias, 23(56), 212-243.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
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