Acessibilidade / Reportar erro

Arquivos da web como fonte historiográfica

BRUGGER, Niels; MILLIGAN, Ian. The SAGE handbook of web history. SAGE Publications Limited, 2018. 672. 9781473980051

Qual é a memória digital que preservamos agora para futuros usuários e suas respectivas pesquisas? Os artefatos preservados são o que nos permitem (re)construir ou (re)criar a memória, seja ela individual, coletiva ou organizacional. O que fazemos hoje em termos de preservação digital impactará nas fontes de pesquisa que estarão disponíveis e, em uma sociedade que produz crescentes volumes de informação, em múltiplas plataformas, o desafio é constante. Este desafio não se configura somente em termos tecnológicos, mas também nas possibilidades de uso retrospectivo dos conteúdos digitais.

No Brasil, algumas publicações na última década trouxeram importantes reflexões sobre os usos do digital, disponíveis na internet e na web, como fonte historiográfica. Autores como Almeida (2011ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas históricas. AEDOS - Revista do Corpo Discente do PPGHistória da UFRGS, v.3, n. 8, p. 9 - 30, jan./jun. 2011. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/16776. Acesso em: 6 maio 2021.
https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view...
), Oliveira (2014OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. História e Internet: conexões possíveis. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 23-53, mai./ago. 2014.), Tomasi (2014), Rodrigues (2014), Lucchesi (2014LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, Sergipe, n. 02, 2014. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/2127. Acesso em: 6 maio 2021.
https://seer.ufs.br/index.php/historiar/...
) e Cezarinho (2018CEZARINHO, Filipe. Arnaldo. História e fontes da internet: uma reflexão metodológica. Temporalidades, v. 10, p. 320-338, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5878. Acesso em: 6 maio 2021.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/tem...
) trouxeram à discussão as possibilidades da internet como fonte primária no ofício do historiador, a web como dados de pesquisa para os estudos do tempo presente, o surgimento de novos objetos para o estudo da História, a presença da web na vida social e os impactos da rede na forma de obter e publicar conhecimentos. Dentre as principais formas de preservação digital da internet destaca-se o arquivamento da web, que consiste em "um processo que compreende coletar, armazenar e disponibilizar a informação retrospectiva da World Wide Web para futuros pesquisadores" (ROCKEMBACH, 2018). No cenário brasileiro, alguns trabalhos vem contribuindo no estudo dos arquivos da web, como as pesquisas realizadas pelo Núcleo de Pesquisa em Arquivamento da Web e Preservação Digital (www.ufrgs.br/nuaweb) e a plataforma do Arquivo da Web Brasileira (www.arquivo.ong.br).

Uma relevante contribuição para os estudos da web de forma retrospectiva é o livro The SAGE Handbook of Web History (2018), editado e organizado por Niels Brugger, professor na Escola de Comunicação e Cultura da Universidade de Aarhus, o qual concentrou suas pesquisas e publicações nos temas de historiografia da web, arquivamento da web e teoria da mídia, e Ian Milligan, professor associado de história na Universidade de Waterloo, onde ensina história canadense e digital, com pesquisas e publicações anteriores direcionadas as possibilidades de utilização dos arquivos da web por historiadores, com foco nos grandes repositórios de informações culturais que o Internet Archive e outras instituições preservam desde a metade da década de 1990.

O prefácio, escrito por Steve Jones, professor de Comunicação da UIC (University of Illinois at Chicago) aborda a Web como um mundo paralelo (Counterpart), no qual ele utiliza o argumento metafórico da série de ficção da TV Counterpart (2017), ambientada na Berlim do período da Guerra-Fria, onde o personagem principal descobre um grande segredo da organização para qual ele trabalhava, uma fórmula que permite passar para uma dimensão paralela e, por isso, tem seu emprego ameaçado. Na trama, alguns cientistas da Alemanha Oriental acidentalmente criaram uma Terra paralela, existindo aí um ponto de passagem em Berlim, que possibilita as pessoas se moverem fisicamente entre dois mundos.

Para Jones, a importância de entender a História da Web reside nas possibilidades e consequências que surgem a partir das divergências entre os dois mundos apresentada em Counterpart. O que acontece com a noção de identidade, em um universo dividido e paralelo, e a necessidade de manter uma web estável suficiente para que seja possível uma análise detalhada, são questões que surgem e são comparadas nesta alegoria. O autor afirma que a Web é um lugar estranho para nós, moradores do Planeta Terra, tal qual o mundo paralelo em Counterpart.

Em uma tradução livre, o Manual SAGE da História da Web, de 630 páginas é dividido em seis partes: a web e a historiografia; reflexões teóricas e metodológicas; dimensões técnicas e estruturais da web história; plataformas na web; web história e usuários, alguns estudos de caso e, por fim, discussões sobre o futuro das pesquisas na área (the roads ahead).

Estas discussões são propostas por distintos campos do conhecimento, desde a computação, ciência da informação, história, comunicação e humanidades digitais, demonstrando possibilidades multi, inter e transdisciplinares no que tange os arquivos da web.

A primeira parte, que trata da web e historiografia, é composta de quatro capítulos, que abordam os arquivos da web como fonte historiográfica. Outro ponto que ressalta é a necessidade de um aprendizado sobre os usos da tecnologia na pesquisa, uma literacia informacional e digital que possibilite investigar os arquivos da web de distintas formas pelas Humanidades e Ciências Sociais. Conta com os capítulos: Historiografia e a Web (Ian Milligan), Compreendendo a Web arquivada como uma fonte histórica (Niels Brügger), Periodização do arquivamento da web: biográfico, baseado em eventos, tradições Nacionais e autobiográficas (Richard Rogers).

A parte II é composta por nove capítulos, os quais tratam sobre reflexões teóricas e metodológicas referentes à História da Web. Dentro da temática abordada, os capítulos partem de aspectos metodológicos aplicados à História da Web, baseadas em diferentes perspectivas intelectuais, até chegarem em abordagens mais técnicas como o uso de análises de redes. Em suma, esta segunda parte apresenta os desafios de se trabalhar com arquivos da Web, com enfoque nas discussões de análise de rede, métodos quantitativos e abordagens computacionais. Compõe esta parte os capítulos: História da web no contexto (Valérie Schafer e Benjamin Thierry), Abordagens de Estudos de Ciência e Tecnologia para a História da Web (Francesca Musiani e Valérie Schafer), Teorizando os usos da Web (Ralph Schroeder), Considerações éticas para arquivos da web e pesquisa de história da web (Stine Lomborg), Coletando Fontes Primárias de Arquivos da Web: Um Conto de Escassez e Abundância (Federico Nanni), Análises de rede para história da web (Michael Stevenson e Anat Ben-David), Métodos quantitativos de história da web (Anthony Cocciolo), Métodos Computacionais para História da Web (Anat Ben-David e Adam Amram) e Visualizando Dados Históricos da Web (Justin Joque).

As dimensões técnicas e estruturais do histórico da Web são versadas na parte III. Os sete capítulos que integram esta trecho apresentam e discutem a necessidade de entendimento dos pesquisadores do funcionamento das plataformas, desde os protocolos, a evolução dos hiperlinks a infraestrutura utilizada. Desta forma, os capítulos partem da exposição dos fundamentos técnicos da História da Web, com o HTTP (Hypertext Transfer Protocol ou Protocolo de Transferência de Hipertexto), até a navegação de usuários em dispositivos móveis e as diferentes mediações desses usuários por diferentes plataformas de redes sociais, aplicativos e outros softwares. Os títulos que formam esta parte são: Adicionando a Dimensão de Tempo ao HTTP (Michael Nelson e Herbert Van de Sompel), Hipertexto antes da web - ou, o que a web poderia ter sido (Belinda Barnet), Uma historiografia do hiperlink: periodizando a web por meio da mudança do papel do hiperlink (Anne Helmond), Como a pesquisa moldou e foi moldada pela web (Alexander Halavais), Tornando a Web Significativa: uma História da Semântica da Web (Lindsay Poirier), Navegadores e guerras de navegador (Marc Weber), Surgimento da Web Móvel (Gerard Goggin).

As plataformas web são discutidas nos cinco capítulos que compõem a Parte IV. A seção é formada por trabalhos escritos por Andy Famiglietti, Matthew Crain, Ian Miligan, Ignacio Siles, Christina Ortner, Philip Sinner e Tanja Jadin, que empregam abordagens históricas diretas para explorar as diferentes plataformas da Web, desde os anos 1990 até os dias atuais. Dentre os estudos, surgem plataformas como a Wikipédia, Geocities e as redes de mídias sociais como Twitter e Facebook, que são utilizados e contribuem para contextualizar os estudos de caso que são expostos na parte subsequente.

A Parte V constitue-se, de fato, no espaço mais denso da obra e conta com quatorze capítulos. Após a historiografia, teoria, metodologia, dimensões técnicas, estruturais e as plataformas serem discutidas nas partes que antecederam a seção, essa utiliza os estudos de caso para apresentar a História da Web e usuários, com uma vasta diversidade de temas como spam (Finn Brunton), trolls (Michael Nycyk), pornografia online (Susanna Paasonen), memes (Jim McGrath), web chinesa (Gabriele de Seta), Primeira Guerra Mundial (Valérie Beaudouin, Zeynep Pehlivan e Peter Stirling) e religião (Peter Webster).

A última parte da obra, parte VI, formada por capítulo único escrito por Jane Winters, discorre sobre os muitos caminhos a seguir no campo dos arquivos da Web. A questão central que envolve o capítulo é a verificação da atual dificuldade dos historiadores em se envolver com a temática dos arquivos da Web. Como sugestão final o capítulo direciona para um novo futuro onde os estudos dos arquivos da web e história digital abordariam estudos qualitativos e quantitativos, no intuito de recuperar a história de pessoas comuns.

A união de autores de diferentes áreas, mantendo ao mesmo tempo uma coesão ao redor do tema principal, constitui a obra como um tour de force nos estudos da web. O livro fala para muitos campos do conhecimento além dos Historiadores, como às áreas da Comunicação e estudos de mídia e para a Ciência da Informação. Reforça-se aqui as colocações de Niels Brugger, onde diz que "a web arquivada é, em muitos aspectos, fundamentalmente diferente de outras fontes digitais" e que, por isto, "uma abordagem crítica para a web arquivada é necessária", e de Ian Milligan que afirma que "os arquivos da web são importantes. Não se pode escrever a maioria das histórias da década de 1990 ou além, sem referência aos arquivos da web". As memórias preservadas nos arquivos da web, uma representação do que outrora foi a web ao vivo, são os indícios e fragmentos que podem servir como um dos principais subsídios para o fazer historiográfico do período do final do século XX e início do século XXI. Além disto, a preservação das informações de hoje poderão ser nosso contributo para os pesquisadores no futuro.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas históricas. AEDOS - Revista do Corpo Discente do PPGHistória da UFRGS, v.3, n. 8, p. 9 - 30, jan./jun. 2011. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/16776 Acesso em: 6 maio 2021.
    » https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/16776
  • BRUGGER, Niels, MILLIGAN, Ian (org.) The SAGE handbook of web history. SAGE Publications Limited, 2018. ISBN 978-1-4739-8005-1.
  • CEZARINHO, Filipe. Arnaldo. História e fontes da internet: uma reflexão metodológica. Temporalidades, v. 10, p. 320-338, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5878 Acesso em: 6 maio 2021.
    » https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5878
  • COUNTERPART: Mundo paralelo. Produtor: Justin Marks. Meridian: Starz, 2017 Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt4643084 Acesso em: 6 maio 2021.
    » https://www.imdb.com/title/tt4643084
  • LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, Sergipe, n. 02, 2014. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/2127 Acesso em: 6 maio 2021.
    » https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/2127
  • OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. História e Internet: conexões possíveis. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 23-53, mai./ago. 2014.
  • 1
    JITA: HQ. Web pages
  • RECONHECIMENTOS:

    Não aplicável.
  • FINANCIAMENTO:

    Este estudo foi parcialmente financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), Código financeiro 001.
  • APROVAÇÃO DE ÉTICA:

    Não aplicável.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS E MATERIAIS:

    Não aplicável.

Disponibilidade de dados

Não aplicável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2020
  • Aceito
    29 Abr 2021
  • Publicado
    06 Maio 2021
Universidade Estadual de Campinas Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 - 1º andar Biblioteca Central César Lattes - Cidade Universitária Zeferino Vaz - CEP: 13083-859 , Tel: +55 19 3521-6729 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: rdbci@unicamp.br