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Sobreviver ao trabalho

RESENHA

Sobreviver ao trabalho

Enrique Saravia

Professor da EBAPE/FGV. E-mail: saravia@fgv.br

THIRY-CHERQUES, Hermano R. Sobreviver ao trabalho. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

Para os ocidentais o trabalho é maldição. Desde a sentença bíblica "ganharás o pão com o suor do teu rosto", ele se identifica com a expulsão do paraíso. No imaginário brasileiro quem está bem é quem não tem que trabalhar. Os senhores não trabalhavam. Ainda hoje acontece de algum rico herdeiro ser celebrado pela imprensa porque nunca trabalhou.

As pregações destinadas a enobrecer a labuta - notadamente as da época vitoriana - não conseguiram convencer. Em países em crise, o emprego vive o paradoxo de ser considerado benção e sacrifício ao mesmo tempo. E os que se degladiam por um "lugarzinho" precário no mercado de trabalho são absurdamente recriminados pelos psicólogos, que teimam em aconselhar tarefas gratificantes como requisito para a boa saúde física e mental.

Toda essa temática gira em torno do trabalho alienado, daquele que se faz porque não há outro meio de sobrevivência. O fazer e o criar, porém, estão na natureza humana. E o que se faz por prazer, na procura não imposta por outrem de algum tipo de satisfação, integra legitimamente o processo de "realização" do ser humano.

O trabalho sempre foi matéria de reflexão intelectual. Ele tem lugar destacado na prédica religiosa, na moral, na filosofia, na sociologia. Deu lugar a disciplinas inteiras: a administração nada mais é do que uma reflexão e uma preleção sobre as formas e os componentes do trabalho. Sobre como torná-lo mais eficiente e útil, seja para melhor produzir, para aumentar os lucros ou para melhor servir ao interesse público.

O livro do professor Thiry-Cherques acrescenta uma dimensão original e iluminadora. Ele analisa as atitudes que o ser humano assume perante o trabalho organizado; como as pessoas conseguem sobreviver diante de organizações imensas, que tendem a sugar-lhes a capacidade em favor de interesses que não as incluem.

De forma erudita, mas engenhosa e amena, o autor seleciona figuras míticas ou do mundo literário, encontrando em cada uma delas uma forma criativa de se posicionar no mundo do trabalho. Assim, encontramos a alienação total ante o sistema encarnada pelo mito judaico do Golem. Franz Kafka representa quem não encontra sentido algum no sistema, e nesse sentido O processo continua sendo a imagem mais citada - mesmo que o livro seja pouco lido - pelos que consideram que o sistema é absurdo e esmagador. Max Weber - fonte inesgotável de reflexão - personifica os que toleram o sistema mas não lhe entregam a alma. Maquiavel - o sempre incompreendido sábio - representa aqueles que consideram que para sobreviver é necessário dominar o sistema. Jorge Luis Borges - "poeta, cego, rebelde, argentino e conservador" - exemplifica a atitude dos que se retiram do sistema e a ele são indiferentes.

Através desse método - que nos permite ampliar nossa cultura e conhecer detalhes interessantíssimos da vida e do contexto em que cada um desses personagens desenvolveu a sua vida e atividade - Thiry-Cherques investiga com profundidade seu objeto de análise. Baseado em pesquisas empíricas em organizações brasileiras, mostra que o trabalho assalariado vai desaparecendo. As inovações tecnológicas e os movimentos da economia - flexibilização, abertura de mercados, globalização - levam a uma dramática transformação dos sistemas de trabalho. "Ao que tudo indica", afirma o autor, "a relação que une o trabalhador a uma organização, no quadro de um reconhecimento público predefinido territorial e historicamente, será residual em um futuro próximo. A forma de relação contratual de trabalho de tempo completo e duração indeterminada, hoje ainda dominante, está deixando de existir".

Ainda que Thiry-Cherques se recuse a fazer previsões, insinua tendências como, por exemplo, a de estratégias de sobrevivência fundadas na solidariedade. Ou a da articulação de profissionais a partir de instâncias comuns externas à organização. Ou ainda no surgimento de estratégias incidentais, compatíveis com os novos tipos de relação da produção, em que o eixo não é mais o trabalho continuado, mas a atividade intermitente do trabalhador. Tudo isso, de uma perspectiva - aterradora para uns, libertadora para outros - de que a modificação e a automação dos processos de trabalho levaram a uma inversão do discurso: "não é a sociedade que precisa do trabalho para se sustentar, mas o trabalhador que necessita do trabalho para subsistir".

Trata-se, portanto, de obra absolutamente atual, chave para o entendimento de muitas situações novas que geram perplexidade entre os que lidam com o trabalho nas organizações.

Um raciocínio impecável, uma análise rigorosa apoiada em metodologias complexas e precisas, fundamentos teóricos amplos e atualizados; essas são as bases de um trabalho de grande valor. Não hesito em afirmar que esse livro é uma das melhores contribuições intelectuais dos últimos tempos. Ele aporta novas luzes para a compreensão do fenômeno do trabalho organizado e das perplexidades provocadas pelas aceleradas mudanças na vida social, ao mesmo tempo que possibilita um melhor posicionamento perante o sistema produtivo. O próprio leitor poderá se reconhecer, total ou parcialmente, nos personagens que ilustram as ponderações do autor.

E the last but not the least, deve ser louvada a fluidez e a riqueza no manejo do idioma. Numa época caracterizada pela aridez literária, pela "mesmice" ou pelo mau uso da língua, é muito agradável transitar por um texto maravilhosamente bem escrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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