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As miragens do barroco: a cidade de Mariana, cenário do barroco mineiro

RESENHA

As miragens do barroco. A cidade de Mariana, cenário do barroco mineiro

Enrique Saraiva

Professor da EBAPE/FGV. E-mail: saravia@fgv.br

ARRUDA, José Maria. As miragens do barroco. A cidade de Mariana, cenário do barroco mineiro. Recife: Editora Nova Presença, 2004.

No seu polêmico Tristes trópicos, Levi-Strauss insinua que a destruição permanente do patrimônio arquitetônico é um traço dos povos jovens. As cidades do Novo Mundo, afirma, vão da frescura à decrepitude, sem se deterem no antigo. Ele atribui a "um espírito malicioso" a definição da América como sendo uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Menciona Nova York, Chicago e São Paulo como exemplos de cidades americanas construídas para poderem renovar-se com a mesma velocidade com que foram erguidas: "isto é, mal".

Eurocentrismos à parte - e certa miopia na visão antropológica do pensador francês -, não há dúvida de que o riquíssimo patrimônio colonial brasileiro foi rapidamente dizimado para abrir largas avenidas ao "progresso". Já na década de 1930, algumas vozes isoladas alertavam para o grave erro que estava sendo cometido. Gilberto Freyre, Mario de Andrade, Gustavo Capanema e Rodrigo Melo Franco de Andrade iniciavam uma ação que levaria à uma política sólida de preservação. Aos poucos foi sendo criada a consciência sobre o valor do que devia ser conservado. Assim, surgiu em 1937 o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e se iniciou o cuidado público com as cidades e monumentos históricos. Mas a idéia custou a se impor e a destruição continuou. No entanto, a política pública de preservação foi-se impondo pela ação inteligente e decidida de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Renato Soeiro, entre outros, para se consolidar definitivamente na década de 1980, sob o comando de Aloísio Magalhães.

A obra de José Maria Arruda mostra essa evolução, em um excelente estudo originado de sua dissertação do Curso de Mestrado em Administração Pública da Ebape/FGV e na sua monografia de especialização em Arte e Cultura Barroca da Universidade Federal de Ouro Preto. No livro, o autor descreve minuciosamente a política federal de preservação histórica e analisa seus instrumentos legais. Mostra a lenta evolução administrativa e legislativa que culminou na Constituição de 1988, a qual define o papel do Estado de forma inequívoca. No seu artigo 216, a Carta de 1988 estabelece que "o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro", observando que "os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma de lei".

A outra vertente do texto de Arruda é o barroco brasileiro. Muito tem sido escrito sobre a natureza filosófica e religiosa do barroco, especialmente no que se refere à conciliação da liberdade criadora do indivíduo com as limitações de um mundo que, material e espiritualmente escapa de seu controle. Surgido na esteira da Contra-Reforma, o barroco é, de um lado, um desafio ao futuro: "como chegaremos a ser modernos sem querer deixar de ser eternos". De outro lado, responde à necessidade de propagar a fé. Como diz José Maria Arruda, "é uma arte triunfalista que procura arrebatar as consciências". No que coincide com Otto Maria Carpeaux, para quem a liturgia romana transformou-se em instrumento poderoso da propaganda jesuítica. Para se opor ao verbo bíblico do ministro protestante, na Igreja Católica colaboram as artes plásticas e a música, representando a verdade religiosa de uma maneira que assombra os espíritos simples, eleva os da elite e edifica a todos. Mas Arruda mostra que o alicerce político do barroco foi diferente na Europa e nestas terras: "o barroco europeu foi a expressão do despotismo dominador, o barroco brasileiro foi o da liberdade criadora".

O barroco foi o modo de expressão musical, arquitetônica e artística de um dos períodos mais ricos e criativos da história brasileira. Seu impacto na cultura foi definitivo. O Brasil "não é o país do quadrado e do círculo renascentistas, senão o país da elipse barroca", sugere Affonso Romano de Sant'Anna. "Elipse, sinônimo de curva, o avesso do cartesianismo, da racionalidade renascentista e iluminista. O discurso tropical é elíptico, sinuoso, sedutor e sempre oculta algo".

Arruda nos explica o surgimento do barroco mineiro, que deixou maravilhas como as de Ouro Preto, Congonhas do Campo, Diamantina, Tiradentes e de tantas outras cidades que formam um dos patrimônios mais valioso da humanidade. O autor focaliza a cidade de Mariana para mostrar como surgiu e se desenvolveu a política de restauração e preservação dos numerosos monumentos dessa cidade. Ele os descreve minuciosamente, explicando as vicissitudes da preservação de cada um desses monumentos. Relata a evolução da mentalidade dos moradores da cidade e conclui contrapondo a gestão burocrática do patrimônio com a gestão social ou participativa. Nesse sentido, não deixa dúvidas sobre a necessidade de uma efetiva participação da comunidade como requisito indispensável para que o passado histórico possa ser preservado.

Por tudo isso, o livro de José Maria Arruda constitui uma nova e valiosa contribuição para a análise das políticas públicas de preservação do patrimônio histórico e dos instrumentos administrativos necessários para sua eficiente implementação. Serve, também, para compreender melhor o Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2005
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