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O mito da flexibilização organizacional na realidade brasileira

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

O mito da flexibilização organizacional na realidade brasileira

José Luís Abreu Dutra

Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestre em administração pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV), onde atua como auxiliar de pesquisa no Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs). Endereço p/Correspondência: Praia de Botafogo, 190 - sala 529 - Botafogo - Rio de Janeiro - 22250-900

TENÓRIO, Fernando G. Flexibilização organizacional. Mito ou realidade? 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

Em seu livro Flexibilização organizacional. Mito ou realidade?, Fernando Guilherme Tenório discute a flexibilização organizacional, que durante a década de 1990 foi o grande modismo nas organizações. Para melhor entender a implantação desse processo, o autor adota como perspectiva central a participação dos trabalhadores.

Tenório observa que, a partir de meados da década de 1980, começou uma mudança no paradigma organizacional, basicamente em empresas do setor industrial, na qual o predomínio do modelo produtivo, baseado no taylorismo/fordismo abriu espaço para um sistema de controle cibernético, fundamentado na incorporação de tecnologias da informação (TI). Tais mudanças levaram à substituição da rigidez do processo anterior por um sistema mais flexível. Diante disso, a curiosidade do autor está no impacto que tais mudanças podem causar nas relações sociais, na quais diversos sujeitos interagem em diversos papéis e níveis decisórios.

O termo "flexibilização", entretanto, é visto por Tenório de forma crítica. Para uma maior clareza sobre essa questão, ele recorre ao pensamento crítico frankfurtiano -que parte da distinção feita por Max Weber sobre o conceito de razão com relação a fins (ou razão instrumental) e razão substantiva, segundo o qual o primeiro conceito fomenta o processo de burocratização da sociedade -relacionado ao conceito, também weberiano, de dominação racional-legal.

Para levar essa discussão para a dinâmica organizacional, Tenório se fundamenta no conceito de razão comunicativa do filósofo Jürgen Habermas. O autor observa que Habermas se preocupa em discutir a problemática da racionalização social, pois julga que esta acabou marginalizada depois da análise de Weber. Tenório indica que, ao denunciar a redução da razão à força produtiva, em sua crítica da razão, Habermas tem como objetivo desenvolver uma teoria que "diferentemente da teoria tradicional, permite uma práxis social voltada para um conhecimento reflexivo e uma práxis política que questiona as estruturas sócio-político-econômicas existentes". Ele buscaria, assim, uma teoria que não apenas tenha um interpretação positivista da ciência, mas que também contribua para a emancipação dos atores sociais.

A partir daí, Fernando G. Tenório resgata a discussão promovida por Habermas sobre as ações sociais estratégicas e as ações sociais comunicativas. De acordo com essa abordagem, as ações sociais estratégicas têm uma atuação gerencial monológica, não abrem espaço para a participação dos trabalhadores no planejamento e/ou no controle organizacional, visam exclusivamente ao êxito tecnoburocrático e estão estreitamente vinculadas ao fordismo. Este, por sua vez, é entendido no livro tanto como um modelo de gestão da produção voltado para a padronização e o consumo de massa, quanto um paradigma tecnoeconômico -implementado através do estado de bem-estar social - e regulador, que exerce um controle keynesiano da demanda e também o controle monetário.

Por sua vez, as ações sociais comunicativas partem de uma ação gerencial dialógica, que permite aos atores sociais direcionarem suas diversas formas de comunicação num espaço cooperativo de interpretação da realidade, distinguindo-se da ação estratégica por não ser orientada para um fim pragmático, mas por agir motivada pelo entendimento.

Tenório apresenta as características do paradigma pós-fordista, indicando elementos progressistas - como a interação entre o trabalhador como sujeito social e equipamentos de base microeletrônica -e o envolvimento desse trabalhador nas decisões sobre o processo de produção, basicamente, a partir de ferramentas de gestão pela qualidade total. Trata-se, portanto, de um modelo que defende uma menor distância entre planejamento e execução; distância essa tão enfatizada por Frederick Taylor e presente no modelo fordista. Com isso, Tenório indica que a flexibilização organizacional está associada ao paradigma pós-fordista, contribuindo para a participação dos trabalhadores nos "sistemas-empresa" aos quais pertencem.

Essa reflexão permite observar que o paradigma pós-fordista e a flexibilidade organizacional têm uma certa aproximação com a perspectiva habermasiana de ação gerencial dialógica. Contudo, Tenório é prudente ao estabelecer essa aproximação, pois observa, antes de tudo, que a inserção de elementos característicos do pósfordismo ainda está em curso (segundo ele, o desenvolvimento pleno do modelo fordista levou 50 anos para ser efetivado) e que tal modelo de produção e gestão está aliado a uma perspectiva de sociedade. O autor chama atenção para o fato de que a flexibilização organizacional está associada ao processo de globalização, o qual requer um alto grau de competitividade, faz com que as empresas absorvam tecnologias de base microeletrônica e recorram ao uso extensivo da mão-de-obra, que deve ser qualificada, polivalente e cooperativa. Nesse processo o capital financeiro ganha prioridade e aumenta, em nível global, a concentração da propriedade, gerando crescente desigualdade social e entre as nações. Também pode ser observado que esse modelo se baseia na concepção do "Estado mínimo", sem papel regulador, não só quanto às relações capital/trabalho, mas também (e menos ainda) nas relações de mercado, igualmente perdendo sua capacidade de promover políticas de desenvolvimento.

Tais apontamentos permitem perceber o caráter contraditório desse movimento. Ao mesmo tempo que possibilita um avanço na participação dos trabalhadores nas empresas que implantaram a flexibilização organizacional (valorização da cidadania), impõe uma diminuição da capacidade política desses mesmos trabalhadores, pela ameaça da automação, o que acarreta esvaziamento das organizações sindicais. Esse contexto também é marcado pela debilidade do Estado -no que diz respeito aos investimentos estruturais -, que assim perde importância como lócus da disputa pela ampliação da conquistas sociais.

Na análise empírica desenvolvida por Fernando Tenório, a partir de quatro empresas do setor industrial brasileiro, observa-se que essa contradição é ainda maior. Além de analisar o problema em um país periférico - inserido de modo ainda incipiente no processo de flexibilização organizacional, comparado aos países centrais -, Tenório observa que persistem certos valores característicos do paradigma fordista. Ao comparar três tipos de análise efetuadas em sua pesquisa (discurso, dados e entrevista), ele aponta a existência de uma cultura organizacional, cujos valores tecnoburocráticos ainda confundem o bem público com o bem privado, inviabilizando a transparência no processo decisório. O autor de Flexibilização organizacional. Mito ou realidade? também aponta para a presença de uma cultura técnica centrada na visão positivista de ciência, da mesma forma que fala da baixa articulação entre trabalhadores e sindicatos, impossibilitando uma atuação sistêmica em relação ao fenômeno da incorporação das tecnologias da informação nas empresas e seus reflexos na sociedade.

Dessa forma, Fernando Tenório sugere que esse embate político não deve ficar restrito às questões específicas da empresa, mas que tem de ser trabalhado à luz de uma noção mais ampla de cidadania, na qual, nas palavras de Habermas, o mundo da vida não se submeta ao mundo do trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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