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A regra de ouro e a ética nas organizações

The golden rule and ethics in organizations

Resumos

Este artigo examina o princípio da regra de ouro e questiona a sua ampla aplicação nas organizações. O texto resume a trajetória da regra na história do pensamento filosófico e, a partir da crítica de Kant, apresenta argumentos que expõem a sua fragilidade lógica.

ética; moral; organizações; argumentação; Kant


This article examines the principle of the gold rule and questions its plentiful application in organizations. The text summa-rizes the rule's trajectory in the history of philosophical thought and, based on Kant's critical view, presents arguments that shows its logical fragility.

ethics; moral; organizations; argumentation; Kant


ARTIGOS

A regra de ouro e a ética nas organizações

The golden rule and ethics in organizations

Hermano Roberto Thiry-Cherques

Mestre em Filosofia - Instituo de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular da EBAPE/FQV. Endereço: Praia de Botafogo 190 - sala 508 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil - CEP 22253-900. E-mail: hermano@fgv.br

RESUMO

Este artigo examina o princípio da regra de ouro e questiona a sua ampla aplicação nas organizações. O texto resume a trajetória da regra na história do pensamento filosófico e, a partir da crítica de Kant, apresenta argumentos que expõem a sua fragilidade lógica.

Palavras-chave: ética; moral; organizações; argumentação; Kant

ABSTRACT

This article examines the principle of the gold rule and questions its plentiful application in organizations. The text summa-rizes the rule's trajectory in the history of philosophical thought and, based on Kant's critical view, presents arguments that shows its logical fragility.

Key-words: ethics; moral; organizations; argumentation; Kant

Introdução

A regra de ouro - o princípio de que não devemos fazer aos outros o que não queremos que nos façam - é, certamente, o preceito mais difundido e aceito em todos os tempos. É hoje repetida na quase totalidade dos autodenominados códigos de ética das grandes organizações. Faz parte dos discursos politicamente corretos e justifica moralmente as diretrizes econômicas mais diversas.

Nosso propósito neste texto é examinar as implicações dessa unanimidade.

A regra tem uma história antiqüíssima e duas fórmulas básicas: uma negativa, outra positiva. A fórmula negativa - "não faças a outro o que não queres que te façam" - é a mais conhecida. Provavelmente, porque assim consta como a palavra de Cristo1, tanto em Mateus (7,12) como em Lucas (6,31). Mas a fórmula é muito mais velha do que a cristandade. O caminho que percorreu até ir parar na Palestina romana, não é possível descrever. Talvez, a regra não seja nem mesmo transmitida, mas reinventada por cada povo a cada novo ciclo cultural. O fato é que, já no século. VI a.C., a encontramos no zoroastrismo, sob a forma da assertiva "a natureza humana é boa somente quando ela não faz aos outros qualquer coisa que não seja boa para ela." (Dadistan-i-Dinik,94:52

No budismo, o preceito é repetido quase da mesma maneira: "não firas outro de modo que você não queira ser ferido" (Udanavargu, 5:18)3. Confúcio, entre 551 e 479 a.C., ao ensinar as cinco virtudes (bondade, honradez, decoro, sabedoria e fidelidade), toma a regra de ouro como guia (Analecta, 15:23, 6:28)4. No Mhabharata (XIII, 5.571)5, compilado por volta de 330 a.C., que é tanto uma epopéia como um livro de preceitos de moral ascética, Khrisna ensina o sentido da vida usando a mesma fórmula que usamos hoje, como fariam, muito mais tarde, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e até Hobbes.

A fórmula positiva da regra de ouro - "age em relação aos outros como queres que os outros ajam em relação a ti" - é menos comum. Está na Tora judaica; aliás, em um dos fragmentos recuperados no Mar Morto e que se supõe ter sido escrito no século. II a.C., mas cuja ação se passa por volta do século VIII a.C., quando Israel foi expulso da Assíria (Deuteronômio,24) É uma recomendação belíssima do 31º Shabbat, no Talmude6, que diz assim: "o que é odioso para você, não faça a seu vizinho; esta é toda a Lei, o resto são comentários, vá e aprenda".

Entretanto, a fórmula mais tocante talvez seja a do jainismo, que expressa a observância do ainsa (o respeito aos viventes) dessa maneira: "na felicidade como no sofrimento, na alegria como na tristeza, olha toda a criatura como você olharia para você mesmo." (Yoga-Sastra)7

A fórmula indireta é adotada pelo islã (Sunnah)8: "deseja para o teu irmão o que ele deseja para ele mesmo". Foi usada, também, pelo papa Gregório IX, no breve de 6-4-1233, que exorta os cristãos a deixarem os judeus em paz dessa maneira: "os cristãos devem mostrar para com os judeus a mesma boa vontade que queremos seja demonstrada para os cristãos em terras pagãs".

As formas da regra de ouro9 são tão luminosas, a regra está tão difundida, que pareceria uma impiedade tentar criticá-la. Infelizmente, a ética não pode ser sustentada esteticamente. O torneio das frases, o encanto poético das palavras não bastam. É preciso que as assertivas façam sentido, tenham fundamento. Se quisermos agir eticamente, e não nos confortarmos com o moralismo incerto do costume, a razão nos obriga a darmos um passo adiante. É aí que entra o pouco de filosofo que todos nós somos ou deveríamos ser.

É verdade que também na história do pensamento filosófico a regra de ouro é mencionada com regularidade impressionante, desde Santo Agostinho até o século XVIII. Mas há um momento, uma data específica, no já distante ano de 1785, em que a regra desaparece do pensamento racional. Nesse dia, numa pequena nota no qüinquagésimo parágrafo da segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes10, livro que então faz publicar, Kant põe abaixo a regra de ouro. A fragilidade lógica da fórmula lhe parece tão evidente que Kant fecha o período com um curto "usw" ("und so weiter": "e assim por diante"). Nem se dá ao trabalho de estender a argumentação.

E por que Kant faz uma coisa dessas com um princípio aceito por todos e por tão longo tempo? Por que ele liquida com um princípio que parece tão apropriado a sustentar o pouco de moralidade que ainda resta à espécie humana? Ele procede assim porque é um filósofo na mais pura acepção do termo. É alguém que critica antes de aceitar; uma pessoa que procura usar a razão e não se deixa levar pelos sentimentos e pelas facilidades da praxe e do hábito. E é principalmente o hábito, a cultura sedimentada em nossa consciência que nos empurra para acolher sem maiores preocupações princípios como esse.

O que Kant faz, e muitos depois dele tornam a fazer - algumas vezes sem citar a fonte original - é seguir a rotina de um pensador de ofício. Ele verifica que a regra de ouro se pretende uma norma formal, no sentido de que não especifica a ação a ser evitada. Isto é, ela não diz o que é certo e o que é errado (mentir, roubar etc.), apenas fornece um critério para diferir um do outro. Assim, a regra é posta como um princípio incondicional.

Por definição, um princípio dessa natureza é uma norma para o qual não há exceção. Vale dizer, que se aplica universalmente. É por esse motivo que a regra de ouro, em nenhuma de suas múltiplas formas, aparece seguida de ressalvas. Tendo feito essa verificação, Kant imediatamente constatou que, como tal, a regra não tem sustentação lógica, não passa de um provérbio, um dito trivial (... das triviale: quod tibi non vis fieri etc.). Um aforismo muito interessante, mas que se aplicado como princípio, leva-nos imediatamente a cair em contradições e paradoxos.

Isso ocorre por muitas razões. A primeira deriva do fato da regra omitir os deveres de cada um para consigo mesmo. Ao tentar segui-la, nós nos dirigimos sempre aos outros, nós nos descuidamos de nós mesmos, nós nos excluímos. Disso decorre que não há elementos na regra para decisões morais de ordem pessoal. Por exemplo, quando um gerente se pergunta se deve ou não alienar a sua convicção aos interesses da organização em que trabalha, o único amparo que obtém da regra é o preceito "não faças a ti o que não queres que façam a ti". Um contra-senso, aplicável somente aos que não controlam a própria vontade. Uma cláusula que não ajuda em nada na decisão dos que ainda mantêm a sanidade mental.

Em segundo lugar, a regra é auto-referida: desconsidera o que os outros podem sentir, opinar ou desejar. Como tal, não contempla os deveres mútuos. Em outras palavras, basta renunciarmos a que nos façam bem para desobrigarmo-nos de fazer o bem aos outros. Assim, um trabalhador demasiadamente orgulhoso para deixar-se ajudar em uma situação difícil, dispensa-se integralmente de ajudar os colegas. A regra dá, ainda no que toca aos deveres mútuos, base para o argumento vulgar de que alguém tem o direito de ser duro com os outros, com os subordinados; principalmente, porque é duro consigo mesmo. Argumento que é um disparate monumental. Se fizesse sentido, um masoquista teria não só o direito, mas a obrigação de transformar-se em um sádico.

Em terceiro lugar, a regra é absurda porque iguala os diferentes; ignora as condições particulares. Seguindo-a fielmente, um criminoso argumentaria que o juiz não pode puni-lo porque ele, o juiz, não gostaria de receber punição, mesmo que a merecesse. A regra ignora todas as distinções, inclusive as de conhecimento. Por exemplo, ignora que quando ralhamos com uma criança que sobe uma escada alta, nós estamos querendo adverti-la do perigo, não estamos querendo que ela ralhe conosco quando subirmos a mesma escada ou, muito menos, que ela se responsabilize por advertir-nos dos perigos que, nós adultos, corremos. No campo da economia e da gestão não é preciso ir muito longe para vermos o equívoco que a regra encerra. Ao adotá-la, um governante deveria baixar os impostos, porque isso é o que ele desejaria se fosse um empresário. Em contrapartida, um empresário - colocando-se no lugar do governante - teria a obrigação moral de lutar para que os impostos aumentassem.

Em quarto lugar, e aqui já estamos na área dos argumentos que Kant se dispensou de citar, a regra propõe um despotismo moral inaceitável. Uma tirania, em que a decisão recai unicamente naquele que age ou que contém a sua ação. Para seguir a regra, devemos impor aos outros nossos sonhos e inclinações. É isso exatamente que fazem os governos dos países que gostariam que os mercados fossem abertos, ao justificarem a imposição da abertura de mercados a países onde as pessoas pensam de maneira diferente. É isso que leva o dirigente, absolutamente convicto de que só o trabalho aturado redime as almas, a pensar que age corretamente quando exige do trabalhador que se esforce até a exaustão. É, também, o despotismo moral bem-intencionado que torna os animadores de festinhas de escritório, os dinamizadores de grupo e os consultores em geral, cegos para o constrangimento daqueles que têm censo de ridículo. Já que eles gostariam de ser festejados, integrados e dinamizados, agem - em estrita observância à regra - como se pagar mico e dar vexame também fossem desejos dos outros.

Em quinto lugar (e paremos por aqui), a regra simplesmente ignora o mundo. Considera apenas dois atores, os agentes ativo e passivo da ação. Refere-se somente a quem a aplica e ao outro (quando muito aos outros) que a sofrem. Nunca a todos, nunca à humanidade. Por exemplo, quando um dirigente concede um aumento às pessoas que trabalham com ele, faz com elas o que gostaria que fizessem com ele, mas esquece que os recursos para esse aumento sairão de algum lugar. Numa empresa, sairão do bolso do cliente ou, deliremos, da margem de lucro devida aos acionistas. Numa agência governamental, sairão do bolso do contribuinte, como, aliás, costuma acontecer.

Ora se a regra é tão ilógica, por que ela segue consistente e louçã na boca e na intenção das pessoas? A razão para que ela continue como discurso vivo nós já vimos: é a beleza poética da moral da transferência - a idéia de nos colocarmos no lugar dos outros. A razão para que continue a ser praticada (se e quando é praticada) é mais complexa. Principalmente, porque para aplicar a regra corretamente, temos que poder nos imaginar no lugar de outros. Em última instância, temos que imaginar a dor que os outros poderiam vir a sentir em face de uma ação que ainda não praticamos. Convenhamos que é preciso ter um bocado de imaginação.

Mesmo assim, não podemos negar que a regra é levada a efeito. Só que não pela razão moral. Como demonstram as pesquisas dos professores suíços Wedekind e Milinski11, é um fato empiricamente provado que as pessoas tendem a agir como gostariam que agissem com elas, a serem mais generosas com os que são generosos, a retribuir a liberalidade e a punir a sovinice. Contudo, isso é verdade somente e desde que - e aqui vem à baila a natureza humana - sejam apregoadas a generosidade de uns e a avareza de outros. Vale dizer, desde que tanto a imagem pública como a auto-imagem, a vaidade e a presunção estejam sendo incensadas ou depreciadas.

Na psicologia experimental, essa inclinação é chamada de reciprocidade indireta, uma vez que o agente não espera ser retribuído diretamente pelo seu ato, mas indiretamente, por terceiras pessoas, pelo sistema ou por Deus.

Além da lamentável psicologia humana, há muitas maneiras de entender a intenção de reciprocidade. São Francisco via na doação de si ao mundo a própria retribuição, a redenção do espírito, a santidade ao alcance da mão. Os hindus vêm a reciprocidade negativamente. Chamam isso de karma, o nosso destino sendo retribuir com sofrimento pelo que fizemos em outras esferas de existência.

No entanto, o que nos interessa aqui é a ciência da ética, e ela chama a esperança de retribuição pelos nossos atos de compensação moral. Nesse sentido, se há uma coisa sobre a qual as muitas correntes do pensamento filosófico concordam é que a intenção compensatória é uma fraqueza humana, uma debilidade do espírito, uma imoralidade

2 Disponível em http://www.avesta.org/dhalla/dhalla1.htm ; cf. Huby, Joseph; Manuel d'histoire des religions, Paris, Gabriel Beauchesne ; 1921

3 Disponível em http://www.marcic.com/articles/golden_rule.htm; cf. Woodward, F.L; trad.; Some sayings of the Budda; Londres; Oxford University Press; 1951

Artigo recebido em agosto de 2006 e aceito para publicação em novembro de 2006.

  • 1
    Disponível em: <http://www.ccel.org/contrib/exec_outlines/mt/mt_19.htm>
    » link
  • 4 WU-CHI, Liu; La philosophie de Confucius; Paris; Payot; 1963
  • 5 Disponível em http://web.utk.edu/~jftzgrld/MBh1Biblio.html#Brockington; Wattles, Jeffrey; The golden rule; Oxford University Press; 1996
  • 6 Disponível em http://www.profecias.com.br/historia/talmude.htm
    » link
  • 7 Disponível em http://web.utk.edu/~jftzgrld/MBh1Biblio.html#Brockington; Wattles, Jeffrey; The golden rule; Oxford University Press; 1996
  • 8 Disponível em http://www.usc.edu/dept/MSA/fundamentals/hadithsunnah/
    » link
  • 9 Disponível em: http://theosophy.org/tlodocs/GoldnRul.htm
    » link
  • 10 KANT, E. Kant, Emanuel; Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural e Indus-trial, 1974.
  • 11 WEDEKIND, C.; MILINSKI, M. Cooperation through image scoring in humans. Science, n.288, p.850-852, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Aceito
    Nov 2006
  • Recebido
    Ago 2006
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