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Projeto Russas: um exemplo de intervenção sociológica

Project Russas: an example of sociological intervention

Resumos

O processo de intervenção analisado neste artigo foi chamado de Projeto Russas e teve início no ano 2000, no município de Russas, no Ceará. O objetivo do projeto foi erradicar e prevenir o trabalho infantil, sob o patrocínio da Fundação BankBoston em parceria com outros atores sociais, como o Conselho Municipal dos Direitos daCriança e do Adolescente, a Pastoral do Menor, a prefeitura municipal e os empresários locais. O Projeto Russas foi um exemplo bem-sucedido de intervenção social: uma ação sistemática contra a exploração da mão-de-obra infantil, viabilizada por seu modelo de participação, que mobilizou toda uma comunidadepara um objetivo. No Projeto Russas, sempre ficou claro o papel da comunidade como partícipe nas decisões. A comunidade mostrou sua competência para descrever seu próprio mundo, sua própria realidade, identificarsuas dificuldades e oferecer sugestões viáveis. Os técnicos souberam ouvir e, assim, conseguiram intervir no sentido de subverter a realidade instituída, de promover uma ruptura no equilíbrio social existente, resgatando uma dignidade há muito perdida na teia econômica. Foi um projeto de intervenção que rendeu dividendos para todos os participantes, principalmente para as crianças e adolescentes. O município de Russas erradicou o trabalho infantil.

intervenção sociológica; trabalho infantil; responsabilidade social


The process of intervention analyzed in this work was called "Project Russas" and began in 2000, in the city of Russas - Ceará. The objective was to eradicate and to prevent the infantile work, under the sponsorship of the BankBoston Foundation in partnership with other social actors. The Project Russas was an example of a successful social intervention: a systematic action against the exploitation of child labour made possible by its model of participation, which mobilized all community for one objective. In the Project Russas it was always clear the role of community in decision making. The community showed its ability to describe its own world and reality, to identify its difficulties and to offer viable suggestions. The technicians learned how to hear and, for this reason, intervened to change the instituted reality, to promote a rupture with the existing social balance, rescuing a dignity that has long been lost in economics network. It was an intervention project in which all participants won, especially children and adolescents. The city of Russas eradicated child labour.

sociological intervention; child labour; social responsibility


ARTIGOS

Projeto Russas: um exemplo de intervenção sociológica

Project Russas: an example of sociological intervention

Fátima Regina Ney MatosI; Ana Marcia AlmeidaII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Administração/PROPAD da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. Endereço: Rua Laet Lemos, 106 - Boa Viagem - Recife - PE - Brasil - CEP : - 51111 -090 . Email: fneymatos@globo.com

IIProfessora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA). Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (PROPAD/UFPE). Endereço: R. Azevedo Coutinho, s/n, Petrópolis - Caruaru/PE - Brasil - CEP: 55.030-902. Email: aaninhama@yahoo.com.br

RESUMO

O processo de intervenção analisado neste artigo foi chamado de Projeto Russas e teve início no ano 2000, no município de Russas, no Ceará. O objetivo do projeto foi erradicar e prevenir o trabalho infantil, sob o patrocínio da Fundação BankBoston em parceria com outros atores sociais, como o Conselho Municipal dos Direitos daCriança e do Adolescente, a Pastoral do Menor, a prefeitura municipal e os empresários locais. O Projeto Russas foi um exemplo bem-sucedido de intervenção social: uma ação sistemática contra a exploração da mão-de-obra infantil, viabilizada por seu modelo de participação, que mobilizou toda uma comunidadepara um objetivo. No Projeto Russas, sempre ficou claro o papel da comunidade como partícipe nas decisões. A comunidade mostrou sua competência para descrever seu próprio mundo, sua própria realidade, identificarsuas dificuldades e oferecer sugestões viáveis. Os técnicos souberam ouvir e, assim, conseguiram intervir no sentido de subverter a realidade instituída, de promover uma ruptura no equilíbrio social existente, resgatando uma dignidade há muito perdida na teia econômica. Foi um projeto de intervenção que rendeu dividendos para todos os participantes, principalmente para as crianças e adolescentes. O município de Russas erradicou o trabalho infantil.

Palavras chave: intervenção sociológica; trabalho infantil; responsabilidade social.

ABSTRACT

The process of intervention analyzed in this work was called "Project Russas" and began in 2000, in the city of Russas - Ceará. The objective was to eradicate and to prevent the infantile work, under the sponsorship of the BankBoston Foundation in partnership with other social actors. The Project Russas was an example of a successful social intervention: a systematic action against the exploitation of child labour made possible by its model of participation, which mobilized all community for one objective. In the Project Russas it was always clear the role of community in decision making. The community showed its ability to describe its own world and reality, to identify its difficulties and to offer viable suggestions. The technicians learned how to hear and, for this reason, intervened to change the instituted reality, to promote a rupture with the existing social balance, rescuing a dignity that has long been lost in economics network. It was an intervention project in which all participants won, especially children and adolescents. The city of Russas eradicated child labour.

Key words: sociological intervention; child labour; social responsibility.

Introdução

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade, curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar. (FREIRE, 1998, p.85)

Parafraseando Paulo Freire, é possível afirmar que não podemos mais estar "de luvas nas mãos", constatando apenas. Como atores sociais, precisamos decidir, escolher e intervir na realidade. Intervir no sentido de subverter a realidade instituída, de promover uma ruptura no equilíbrio social existente, que se mantém através do habitus, o qual "consiste no resultado do mecanismo de interiorização e da exterioridade instituída e, ao mesmo tempo, indica como esse mecanismo se perpetua pela ação e pela organização inconscientes dos agentes sociais" (BARBIER, 1985, p.147), de procurar resgatar uma dignidade humana perdida na teia econômica.

O Brasil é um país de democratização tardia e ainda não consolidada. Nossas instituições ainda são frágeis e, como povo, ainda nos encontramos, segundo Freire (2005, p.66), emergindo:

Com a ruptura da sociedade e sua entrada em transição, (o povo) emerge. Imerso era apenas espectador do processo; emergindo, descruza os braços, renuncia a ser simples espectador e exige participação. Já não se satisfaz em assistir; quer participar; quer decidir. Não tendo um passado de experiências decisivas, dialogais, o povo emerge inteiramente "ingênuo" e desorganizado.

E é nessa "ingenuidade" e desorganização que devemos ter sempre o cuidado de não nos sentirmos superioresnum processo de intervenção, possuidores do conhecimento e agentes de mudança. É necessário respeitarmos os saberes da comunidade e buscarmos o que Matos (2005, p.2) chama "uma nova proposta de intervenção centrada na autonomia dos participantes e no direito do animador de explicitar o seu próprio projeto para o trabalho".

A participação é, pois, condição sine qua non para o sucesso de um processo de intervenção sociológica, embora seja difícil consegui-la, pois participação efetiva é conquista, é um processo "infindável, em constante vir-aser, sempre se fazendo." (DEMO, 1998, p.18). O se fazendo pelas experiências cotidianas de grupos sociais.

Um processo de intervenção sociológica, de acordo com Matos (2005, p.1), deve ter um compromisso central com a autonomia do sujeito, ou seja, deve reconhecer "que esta pressupõe uma transformação radical da sociedade que, por sua vez, só será possível pelo desdobramento da atividade autônoma dos homens." (CASTO-RIADIS, 1982, p.97).

Neste artigo, procurou-se analisar uma experiência embasada muito mais na prática social do que na prática científica, o que não o invalida como intervenção, considerando que "entre a observação empírica da 'consciência comum' e o conhecimento científico não há ruptura." (BARBIER, 1985, p.70). Há talvez aqui o "artesanato" proposto pela psicologia social:

A psicologia social é um artesanato no mais amplo sentido da palavra; tanto forma os elementos da mudança como prepara o campo no qual vai atuar. Assim, haverá duas leituras para a psicologia social, uma preocupada só com a problemática das técnicas ou dos tipos possíveis de mudança, e que se sente paralisada frente a sua responsabilidade de realizar uma síntese entre teoria e prática. A outra, a práxis, de onde surge o caráter instrumental e operacional, e se resolve não num círculo fechado, mas sim numa contínua realimentação da teoria através de sua confrontação na prática e vice-versa. (PICHON-RIVIÈRE apud SAIDON, 1986, p.183)

O processo de intervenção analisado neste artigo foi chamado de Projeto Russas e teve início no ano 2000, no município de Russas, Ceará, visando erradicar e prevenir o trabalho infantil, sob o patrocínio da Fundação BankBoston em parceria com outros atores sociais, como a Pastoral do Menor, a prefeitura municipal, os empresários locais e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Vale salientar que os conselhos são espaços recentes (1980) da participação e

dizem respeito ao aprofundamento da democracia; à construção de um novo paradigma; às ações coletivas baseadas na categoria da cidadania e à construção de novos espaços de participação, lastreados não em estruturas físicas, mas em relações sociais novas que se colocam entre o público e o privado, originando o público não-estatal. (GOHN, 2003, p.56)

A Fundação BankBoston é uma entidade do terceiro setor que, em parceria com outros atores públicos e privados, procura resgatar a cidadania e a dignidade através de processos participativos, pois se a comunidade não se apropriar do processo de intervenção não se desenvolverá a praxis, "este fazer no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia." (CASTORIADIS, 1982, p.94).

O terceiro setor como uma nova ordem

Vivemos em uma sociedade de classes, caracterizada pela lógica do liberalismo econômico, na qual a classe dominante não "reconhece" os dominados, mantendo-os como atores coadjuvantes e impedindo-os de achar seu próprio caminho, pois é uma lógica excludente.

As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes; ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as idéias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual. [...] Os indivíduos que formam a classe dominante possuem, entre outras coisas, também, uma consciência e, por conseguinte, pensam; uma vez que dominam como classe e determinam todo o âmbito de um tempo histórico, é evidente que o façam em toda a sua amplitude e, como conseqüência, também dominem como pensadores, como produtores de idéias, que controlem a produção e a distribuição das idéias de sua época, e que suas idéias sejam, por conseguinte, as idéias dominantes de um tempo. (MARX; ENGELS, 2004, p.78)

A classe dominante impõe uma ideologia que possibilita sua manutenção e auto-reprodução, ideologia que Thompson (1995) compara a uma "cola", a "um cimento social". A ideologia dominante objetiva a estabilidade da dominação, "unindo conjuntamente seus membros e propiciando-lhes valores e normas coletivamente compartilhados" (THOMPSON, 1995, p.17), embora o cimento social, mais do que manter unidos os homens, os mantém numa situação de submissão, pois "os dominados são dominados também em seu cérebro." (BOUR-DIEU, 1990, p.57). Entretanto, de acordo com Castoriadis (1982, p.141),

Uma sociedade só pode existir se uma série de funções são constantemente preenchidas (produção, gestação e educação, gestão da coletividade, resolução de litígios etc.), mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus problemas são ditadas de uma vez por todas por sua "natureza"; ela inventa e define para si mesma tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas necessidades.

Assim, parece estar se desenvolvendo uma nova ordem social, o terceiro setor, que se propõe senão a eliminar, pelo menos, a minimizar a face perversa da exclusão.

O terceiro setor vem a ser "o representante institucional de uma nova ordem, que surgiu da desordem social vigente e supera em vitalidade, legitimidade e harmonia a ordem da burocracia estatal e a ordem econômica do mercado" (OFFE, 1998, p.26), ambas, ordens instituídas.

Formado por entidades da sociedade civil - como organizações não-governamentais (ONGs), associações, fundações e órgãos de assistência social, educação, saúde e meio ambiente -, o terceiro setor caracteriza-se por criar grupos e pressionar em direção a determinadas opções políticas, produzindo estruturas institucionais que favorecem a inclusão e a cidadania.

É no âmbito da sociedade civil e do terceiro setor que as ações de responsabilidade social e de trabalho voluntário vêm se desenvolvendo, patrocinadas principalmente por organizações empresariais. Diferentemente da implantação das políticas públicas, "engessadas" pela estrutura burocrática do Estado, as entidades da sociedade civil caracterizam-se pela flexibilidade e agilidade com que conseguem se mobilizar para intervir e atuar positivamente em situações de exclusão social, calamidades públicas, desastres naturais e de agressões ao ecossistema.

As ações patrocinadas por entidades do terceiro setor devem procurar transformar em direito legalmente instituído o que pode ser feito a partir de um sentimento de "compaixão pelos pobres". A lógica do direito deve se contrapor e sobrepujar à lógica da piedade. Nesse sentido, é imprescindível salientar que essas ações não devem ter qualquer cunho assistencialista, tendo em vista que o assistencialismo:

Desfaz a noção essencial de direito e de cidadania, recriando a miséria sob a forma de tutela. Além de nunca ir à raiz do problema, estigmatiza o pobre com uma oferta pobre. É típico de uma postura assistencialista reservar para o pobre uma educação pobre, uma saúde de segunda categoria, uma habitação subumana, e assim por diante. Ademais, paga-se a esmola com a subserviência. (DEMO, 1988, p.11)

Em um país como o Brasil, no qual o Estado historicamente não cumpre algumas funções básicas como o atendimento à educação, à saúde e à segurança - e que, atualmente, legitima essa omissão como conseqüência de uma política econômica neoliberal -, o tema responsabilidade social adquire extrema importância, pois vem de encontro às políticas assistencialistas, propondo principalmente o resgate da dignidade e da cidadania.

O Brasil ocupa a terceira posição na classificação dos países com maior grau de desigualdade de renda, com base no Coeficiente de Gini - um dos indicadores do Banco Mundial para mensuração da concentração de renda nos países.

Durante os últimos 500 anos, a desigualdade social vem fazendo parte da história do Estado brasileiro. Arendt (1999) usou a expressão "banalidade do mal" para referir-se ao papel de Eichmann no holocausto nazista. No Brasil, parece estar havendo uma "banalização da pobreza", ou seja, a exclusão social passa a não incomodar, adquirindo o status de algo natural.

A missão de uma empresa, de acordo com Friedman (1977), é usar os seus recursos para aumentar e maximizar continuamente os lucros, aumentando a riqueza dos shareholders. Atualmente, mais importante que maximizar o lucro é maximizar o valor. A maximização do valor ocorre, geralmente, quando a empresa amolda-se às imposições da sociedade, ou seja, passa a seguir normas que respeitem o meio ambiente, os empregados, os clientes e os fornecedores.

De acordo com a política econômica neoliberal, o Estado não pode sobrecarregar-se com programas sociais, pois os pobres são responsáveis pela própria condição e o mercado garante a seleção dos mais aptos, uma vez que é preciso combater a "cultura da dependência". O objetivo da empresa é produzir, o da propriedade é servir à produção e os objetivos sociais têm de ser da sociedade, cobertos mediante a arrecadação de tributos que atrapalhem o menos possível o processo produtivo e que sejam previsíveis e estáveis. (SROUR, 1998, p.248). Nesse cenário, no qual se acentuam as demandas sociais criadas a partir do liberalismo, começa a se desenvolver a noção de responsabilidade social. Segundo o Instituto Ethos (2005), a responsabilidade social pode ser entendida como:

Uma forma de conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torna parceira e co-responsável pelo desenvolvimento social. Uma cultura de gestão que procura aplicar princípios e valores a todas as atividades e relações da empresa [...] abrindo novas perspectivas para a construção de um mundo economicamente próspero e socialmente mais justo.

O princípio da responsabilidade social fundamenta-se no pressuposto de que as organizações são instituições sociais que se constituem e se desenvolvem no seio da sociedade, utilizando os recursos fornecidos pela mesma e que interferem na qualidade de vida dos seus membros, devendo, portanto, dar um retorno para a comunidade.

A prática da responsabilidade social pelas empresas desenvolveu-se a partir de uma postura estatal omissa em relação a uma massa de excluídos sociais. Participantes da sociedade civil, algumas empresas estão criando fundações sociais, com o intuito de diminuir a desigualdade social, aplicando recursos financeiros e elaborando projetos que visem à integração dessa massa de excluídos.

Para atuar nesse cenário, o BankBoston criou a Fundação BankBoston, organização sem fins lucrativos com sede em São Paulo e abrangência nacional, que busca participar ativamente de projetos sociais de proteção à infância e à adolescência. A Fundação BankBoston procura trabalhar sempre de forma harmônica com organizações governamentais e da sociedade civil, pois entende que a complexidade dos problemas sociais requer o estabelecimento de parcerias e alianças estratégicas com outros atores sociais.

O projeto analisado neste artigo teve como objetivos a erradicação e a prevenção do trabalho infantil no município de Russas, no Ceará, visando:

fortalecer os aparatos de fiscalização e de punição dos exploradores da mão-de-obra infantil;

à mobilização e à capacitação da rede escolar local para atender à demanda de vagas;

ao desenvolvimento de atividades esportivas, culturais e de lazer complementares à escola;

à garantia do direito à profissionalização; e

ao envolvimento das famílias como parceiras do projeto.

Trabalho infantil: uma das faces mais perversas da pobreza

Foi como uma das conseqüências da Revolução Industrial que Marx (1982) mostrou o abuso do capital na utilização da mão-de-obra infantil.

Tornando supérflua a força muscular, a maquinaria permite o emprego de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento físico incompleto mas com membros mais flexíveis. Por isso, a primeira preocupação do capitalista ao empregar a maquinaria, foi a de utilizar o trabalho das mulheres e das crianças. Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do capital. O trabalho obrigatório para o capital tomou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro de limites estabelecidos pelos costumes. (MARX, 1982, p.449-50)

No século XVIII, a indústria têxtil foi beneficiária de grandes progressos técnicos: a máquina a vapor utilizada para a fiação, o tear mecânico, as máquinas de bater, de cardar, de fiar em quantidade, de branqueamento e de tintura, iniciando uma nova forma de produção: a fábrica. Desse modo,

No setor têxtil, é principalmente entre as mulheres e as crianças, especialmente as crianças abandonadas, fornecidas pelas paróquias, que se forma a mão-de-obra: em 1789, por exemplo, nas três tece-lagens de Arkwright, em Derbyshire, que empregam 1.150 pessoas, dois terços são crianças. (BEAUD, 2004, p.108)

Foi Robert Owen, no século XIX, o primeiro "patrão social". De acordo com Buber (1971, p.33), Owen sobressaiu-se por atividades puramente práticas no cotonifício de New Lanark, onde criou instituições sociais exemplares, inclusive a primeira escola maternal do Reino Unido, com o objetivo de afastar as crianças das fábricas.

Na maioria das vezes, originário da questão que está na base de praticamente todos os problemas sociais (qual seja, a pobreza), o trabalho infantil tem sido erradicado dos países desenvolvidos, embora persista nos países em desenvolvimento, mostrando-se refratário a muitas das políticas públicas que o têm como foco.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada em 1919, é uma das agências do sistema das Nações Unidas e tem como objetivo promover a justiça social. Já no ano de sua fundação, firmou a Convenção para Estabelecer a Idade Mínima de Admissão de Menores no Emprego Industrial, proibindo a contratação de pessoas com idade inferior a 14 anos. Até a década de 1980, a OIT era praticamente a única organização que firmava convenções sobre o trabalho infantil e procurava conscientizar os países membros sobre esse grave problema. Em 1998, conforme dados da OIT, havia nos países em desenvolvimento, 250 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalhando, sem considerar o trabalho doméstico nem as empresas familiares.

Em um país com desigualdades sociais tão severas como o Brasil, esforços para combater o trabalho infantil vêm sendo feitos, tanto através de políticas públicas quanto de parcerias com entidades da sociedade civil.

Os dados mais recentes sobre o trabalho infantil vêm da pesquisa realizada como tema suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), e embora possa se constatar um avanço em relação aos níveis de 1992, ainda estamos distante de números expressivos, como se pode observar na tabela e no gráfico mostrados adiante.

O trabalho infantil é vergonhoso para qualquer nação. Todas as crianças brasileiras têm garantido pela Constituição Federal o direito de não trabalhar, bem como a oportunidade de estudar.

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Direitos fundamentais no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990): direito à vida e à saúde (arts. 7º a 14); direito à liberdade, ao respeito e à dignidade (arts. 15 a 18); direito à convivência familiar e comunitária (arts. 19 a 52) (CONSTITUIÇÃO..., 1999, p.125)

A Emenda Constitucional nº 20, de 15-12-1998, veio delimitar o artigo 227:

Art. 7º - XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) anos e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição deaprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos. (CONSTITUIÇÃO..., 1999, p. 218)

Os direitos básicos da criança e do adolescente no Brasil, além de constitucionais, são instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o principal instrumento de defesa das pessoas menores de 18 anos.

A partir da década de 1980, foram também criados os conselhos municipais, estaduais e nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, com o objetivo de conferir à sociedade participação nas decisões sobre a destinação de verbas para as políticas de atendimento ao menor.

Entidades formadoras do terceiro setor, como a Fundação BankBoston e a Fundação Abrinq, apoiadas pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), têm como bandeira de ação a luta contra o trabalho infantil.

Em 1992, a OIT criou o Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec), instrumento de cooperação que articulou, mobilizou e legitimou as iniciativas de combate ao trabalho infantil. Atualmente é meta da OIT:

Cooperar com a sociedade brasileira para progressivamente retirar as 5 milhões de crianças e adolescentes restantes (das 8,4 milhões existentes, entre 5 e 17 anos no início da década de 90, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - Pnad 2001, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE). Essas encontram-se no trabalho informal, perigoso, ilícito e oculto, cujos desafios não são menores do que eram quando o Ipec se estabeleceu no Brasil há mais de 10 anos (OIT,2005).

O "Projeto Russas", analisado neste artigo, teve como parceiros da Fundação BankBoston, além da OIT, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Russas, a Delegacia Regional do Trabalho - CE, o Sistema Nacional de Empregos (Sine), a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febemce) do Ceará, bem como os empresários ceramistas, lideranças políticas e comunitárias e representantes da prefeitura municipal e do Conselho Municipal do Trabalho (Comut), o que caracteriza um grupo operativo.

Grupos operativos

O grupo é a unidade básica de qualquer tipo de sociedade, sendo portanto objeto de estudo da psicologia social "oficial", ou seja, o campo disciplinar que "fornece o material ideológico que permite a uma classe dominante manter-se [...]." (ANDRADE, 1986, p.163). Ainda segundo a autora, "o grupo tem sido disputado por várias ciências: a psicologia, a psicologia social, a sociologia, na sua divisão microssociológica, e até por uma disciplina: a dinâmica de grupo." (Ibid., p.160).

De acordo com o senso comum, grupo é um conjunto de dois ou mais indivíduos com um objetivo qualquer. Segundo Bauleo (1974, p.95):

Um grupo real ou natural é um conjunto de indivíduos "conhecidos" que se reúnem por algo ou para algo. Ocorre assim uma situação indeterminada, cujo único limite é dado por um problema comum e porque os sujeitos se "conheciam". Dessa situação, surge a noção de grupo; noção ideológica, empírica, na qual aqueles sujeitos reunidos para as mais diversas ocupações reconhecem o conjunto como tal. Isso quer dizer que certas decisões, escolhas ou manifestações são vistas por cada um como resultantes do fato de terem sido tratadas com outros, reconhecendo assim o estar no grupo como uma experiência distinta.

Nesse texto, Bauleo enfatiza as palavras "conhecidos" e "conheciam", para um grupo natural, mas é na noção ideológica de grupo que está o reconhecer, ou seja, o saber o porquê, a identificação comum de um objetivo específico.

Os grupos são a base da vida cotidiana e, além de sua função de manutenção são também agentes de mudança. De acordo com Lapassade (2005, p.29), "uma mudança revolucionária da sociedade - uma 'revolução sociométrica', para falar a linguagem de Moreno - deveria ser feita a partir de pequenos grupos."

O estudo dos grupos, além da sociometria e do psicodrama de Jacob Moreno, recebeu também enorme contribuição de Kurt Lewin, que desenvolveu a teoria do campo, a noção de espaço hodológico (tipo de geometria qualitativa), a teoria dos grupos restritos, o training group (T. group) - "um grupo formado por pessoas que se reúnem durante um certo número de horas, para analisar os processos de constituição e de funcionamento do grupo que estão organizando" (LAPASSADE, 2005, p.30) - e a pesquisa-ação (pesquisa dirigida para a produção de mudanças sociais).

De acordo com Saidon (1986, p.171), "é imperioso que a teoria dos grupos já considere saldada sua dívida com a field theory, teoria de campo de Kurt Lewin, e seus sucessores da psicossociologia americana", pois se não for assim, a técnica dos grupos operativos pode tornar-se apenas "um instrumento de adaptação e moderador de tensões".

Para Andrade (1986, p.166), "o grupo operativo é um grupo de aprendizagem. É um novo espaço didático" e, assim, tem que estar em constante formação, nunca acabado ou reificado, nunca apenas um instrumento de adaptação e moderador de tensões.

O grupo operativo "se caracteriza por estar centrado, de forma explícita, em uma tarefa que pode ser o aprendizado, a cura, o diagnóstico de dificuldades etc."(SAIDON, 1986, p.183). Pode-se dizer, então, que um grupo é operativo quando se reúne para realizar uma tarefa específica, que deve estar explícita para todos os seus membros, ou seja, o "reconhecimento". Um grupo operativo pode tornar-se um sujeito social, podendo ajudar tanto as pessoas quanto a sociedade.

Em relação à tarefa, de acordo com Bauleo (1974), a aprendizagem do grupo passa por três fases distintas: indiscriminação, diferenciação e síntese. Na indiscriminação, a tarefa ainda não está clara e os objetivos estão confusos. Na diferenciação, a tarefa é esclarecida e ficam definidos não somente os objetivos, mas também os papéis (coordenador e integrantes). Por fim, na fase de síntese, o grupo está em pleno funcionamento, os tema-se subtemas são ordenados. É a fase de insight e de produtividade, quando o grupo experiencia a conjunção entre horizontalidade e verticalidade.

A horizontalidade e a verticalidade são para Bauleo (1974, p.17) "os elementos que permitem ao grupo não só uma integração atual, mas também uma perspectiva histórica, a renovação de esquemas antigos ou expectativas, sua aplicação atual e a necessidade de modificação."

O grupo operativo funciona centrado em uma tarefa planejada, sua razão de ser é a realização dessa tarefa, que fica clara no momento de diferenciação. Porém, no planejamento da operatividade, Pichon-Rivière (apud SAI-DON, 1986, p.189) considera três parâmetros: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto.

A pré-tarefa caracteriza-se por medo e resistência à mudança. O grupo não se reconhece como grupo e o seu comportamento caracteriza-se pelo "fingir que faz". Na fase da tarefa, ocorre o reconhecimento, é estabelecida a relação com o outro. No projeto, são desenvolvidas as estratégias que levam à mudança.

A mudança através dos pequenos grupos é um dos focos da intervenção sociológica, pois é neles que os membros "são considerados como atores históricos, produtores de sua história e transformadores de sua situação". De acordo com Touraine (1982, p.40),

o ponto de partida da intervenção sociológica consiste em constituir tais grupos, formados por atores os mais estritamente militantes, que assim permaneçam durante toda a duração da pesquisa, mas que, como militantes, se engajem também num trabalho de análise.

A intervenção sociológica, numa definição simplista, é o método aplicado ao estudo dos movimentos sociais, embora suas aplicações sejam bem maiores. Vale salientar o dizer de Touraine (1982) sobre a intervenção:

[...] é com angústia que nos perguntamos se o espaço da sociedade civil que conseguimos aos poucos estender no Ocidente, no decorrer de séculos, não será novamente invadido pela floresta estatal. A razão de ser da sociologia é defender, palmo a palmo, essa clareira e as culturas que as coletividades humanas nelas desenvolvem. O método de intervenção está a serviço dessa defesa. Uma de suas metas é o conhecimento, mas procura elevar o nível de ação, proporcionar à ação real uma aproximação cada vez maior do máximo de ação possível. Procura ajudar os homens a fazerem sua história. [...] Não é contraditório afirmar que a intervenção sociológica tem um valor humanístico e reconhecer que ela é, também, o signo de um desejo de fazer renascer uma consciência da história, e assim defender e reforçar as chances da democracia. (TOURAINE, 1982, p.45)

Matos (2005) propõe que a intervenção seja dividida em quatro fases subseqüentes: fase da dependência (que equivale à fase da pré-tarefa), fase de emergência do conflito, fase de confronto das contradições (que pode equivaler à fase da tarefa) e fase do projeto.

Na fase da dependência, os membros do grupo atribuem um papel proeminente ao animador, concedendo-lhe "poder baseado no seu status profissional, na sua relação com a hierarquia e numa suposta competência." (MATOS, 2005, p.2). É nessa fase que o animador precisa ter um cuidado redobrado para não se deixar seduzir pelas artimanhas do poder, mantendo uma situação de distanciamento do que as pessoas realmente vivem.

Quando começa a fase de emergência do conflito, deve ser sedimentada a postura não-diretiva do animador. A não-diretividade possibilita uma situação na qual os membros do grupo podem aceitar experiências porque não se sentem ameaçados; suas experiências nunca devem ser rejeitadas ou menosprezadas pelo animador.

A fase de confrontação das contradições, segundo Matos (2005, p.5), "trata da liberação das forças instituintes, em contraposição ao poder instituído." É nessa fase que a mudança é exigida, através do poder do grupo, construído pela postura não-diretiva do animador.

Na última fase, a de projeto, ocorrerá uma construção coletiva, visto que as outras fases foram trabalhadas em conjunto. É a constituição do sujeito social e o sentido do coletivo que tornam possível a intervenção, a qual, neste artigo, mostra como a mobilização social foi um instrumento de mudança.

O Projeto Russas: um exemplo de intervenção

O município de Russas localiza-se na região do Baixo Jaguaribe, no Ceará, distante 162km de Fortaleza. O Jaguaribe é o maior rio do Ceará - estado integralmente incluído no polígono das secas -, e as terras que formam o seu vale fornecem um tipo de barro ideal para a produção de cerâmica vermelha e confecção de telhas, tijolos, blocos e lajotas de barro para a construção civil.

A maior quantidade de olarias registradas na Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará está em Russas e a produção de cerâmica vermelha é sua principal atividade econômica. A mão-de-obra utilizada na indústria da cerâmica não é qualificada, sendo comum o predomínio do trabalho familiar, envolvendo o pai, a mãe e os filhos pequenos, que contribuem para o alcance da meta diária de produção.

A fabricação da cerâmica é um processo ainda rudimentar e envolve as seguintes tarefas:

o barro é retirado do solo a picareta;

é misturado com água e amassado com os pés, para formar a argila;

as peças são confeccionadas (telhas, tijolos e lajotas); e

transportadas em carrinhos de mão para o forno a lenha;

onde são queimadas em fornos de alta temperatura.

Além de participar de todas essas tarefas, as crianças devem juntar gravetos e cortar pedaços de madeira, para abastecer o forno.

O trabalho em olarias é considerado insalubre, pois exige o transporte de material pesado e é executado em ambiente empoeirado e sob alta temperatura. Para a criança, a insalubridade é ainda maior, uma vez que sua estrutura óssea está em formação, seus pulmões são imaturos e o calor excessivo pode levá-las à desidratação, além de causar-lhes sérios problemas dermatológicos.

De acordo com dados da Delegacia Regional do Trabalho do Ceará (DRT-CE), antes da intervenção patrocinada pela Fundação BankBoston, a maior parte das crianças, em Russas, trabalhava de seis a 12 horas por dia, algumas delas mais do que isso. Grande parte dessas crianças nunca tinham freqüentado uma escola.

A situação diagnosticada pela DRT-CE no ano de 1997 é mostrada nas tabelas 1, 2 e 3.

Provavelmente, a situação fosse muito pior do que a revelada por essas tabelas, tendo em vista que algumas olarias procuravam enganar a fiscalização da DRT, fechando suas portas e escondendo as crianças.

Se apenas uma criança deixa de ir à escola para trabalhar, já é necessário uma atitude que reverta essa situação. Pode-se imaginar o impacto causado pela constatação de que havia 103 crianças nas olarias, número que evidentemente poderia ser muito maior.

A gravidade da situação fez com que a DRT acionasse o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), pois alguma atitude drástica tinha de ser tomada para acabar com o trabalho infantil naquele município. Podemos dizer que se estava na fase de indiscriminação, uma vez que se sabia que algo deveria ser feito, ainda que a tarefa não estivesse clara.

O Conselho também sabia que para erradicar o trabalho infantil no município teria que enfrentar os empresários que exploravam essa mão-de-obra, os pais das crianças (que precisavam de sua ajuda) e a sociedade, cuja cultura mantinha a crença de que o trabalho afasta as crianças da marginalidade.

O embrião do Projeto Russas começou, então, a tomar forma em 1997. Em 1998, foi constituído o Fórum Nacional Permanente dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), mantido principalmente pela Pastoral do Menor, pelo Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e apoiado pelo Unicef. Apesar dos dados gritantes da DRT, nessa época, muitas autoridades e líderes políticos não consideravam o trabalho infantil um problema grave. As famílias eram coniventes e os empresários se mostraram extremamente resistentes à mudança.

O Projeto Russas teve início efetivamente em 1999, a partir de uma seca no Nordeste que motivou os funcionários do BankBoston de Fortaleza, juntamente com colegas de agências do BankBoston em outros municípios brasileiros, a contribuírem com 4.500 cestas básicas, numa típica ação assistencialista.

Por causa dessa campanha, os funcionários do BankBoston de Fortaleza tiveram contato com algumas lideranças em Russas e tomaram conhecimento do desejo de erradicar o trabalho infantil no município. Decidiram então por uma atuação que fosse além da doação de cestas básicas. Para isso, identificaram com clareza um problema, o trabalho infantil. A partir daí, estabelecerem um objetivo que foi o de erradicar e prevenir o trabalho infantil, mobilizando e capacitando a rede escolar local, desenvolvendo atividades esportivas e culturais e garantindo o direito à profissionalização.

Seria ingênuo acreditar que uma instituição do porte do BankBoston - primeiro símbolo do capitalismo financeiro norte-americano - não teria também como objetivo envolver seus funcionários em programas de voluntariado corporativo, visando à construção de uma imagem socialmente positiva e aos benefícios de um bem elaborado plano de marketing social.

Após algumas reuniões, foram decididas as obrigações de cada ator social:

o Unicef repassaria o dinheiro para a compra de equipamentos, jogos e outros materiais didáticos e esportivos, de materiais para a biblioteca, para as oficinas de teatro e artes e para a remuneração dos monitores;

a prefeitura investiria em atividades complementares: banda de música, artes marciais e capoeira;

a Secretaria da Ação Social, juntamente com o Sine, responderia por programas de capacitação profissional; enquanto

a Igreja Católica e a Maçonaria cederiam espaços físicos para as atividades - os núcleos de Ingá, Flores e Maçonaria.

Foi feito um novo cadastramento das famílias e chegou-se a 300 crianças envolvidas no trabalho. Havia crianças não só nas olarias, mas também trabalhando como catadoras de latas e na agricultura. Constatou-se que o custo projetado inicialmente para 103 crianças ultrapassou em muito o planejado.

Questões como atrair as crianças para a escola e para as atividades complementares e como conseguir que as famílias permitissem seu afastamento do trabalho foram respondidas: além do trabalho de conscientização (base de qualquer processo de mudança), deveria ser oferecida a essas famílias, uma compensação financeira, mesmo simbólica. O valor dessa renda mensal complementar foi estipulado em R$25,00 por cada criança e adolescente que deixasse o trabalho e voltasse para a escola. Nesse ponto, entrou a Fundação BankBoston com sua equipe de técnicos, o quais elaboraram uma campanha para mobilizar os funcionários. A proposta foi a de que o funcionário que se interessasse deveria doar mensalmente R$5,00; R$10,00; R$25,00 ou mais, quantia que seria totalmente destinada para a composição da bolsa de R$25,00 paracada criança e adolescente afastado do trabalho e matriculado na escola.

A estratégia utilizada pelos técnicos da Fundação BankBoston para estimular a doação foi denominada "Imposto Criança". Foi esclarecido que os funcionários não precisariam aderir ao projeto, mas os que aderissem teriam o valor da doação descontado no montante declarado ao Imposto de Renda devido, até o teto de 6%, pois a destinação era comprovada: contribuição ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Russas.

O dinheiro era debitado no dia 28 do mês na conta corrente de cada funcionário doador e encaminhado à conta do fundo municipal, mantido pelo Conselho Municipal de Russas. Dos 4.154 funcionários do BankBoston, pelo menos, 586 participaram do Projeto Russas. É importante salientar que esse número, equivalente a aproximadamente 10% do quadro de funcionários, visto de maneira absoluta é insignificante, mas, de maneira relativa, foi uma conquista, haja vista que no Brasil não existe uma cultura de filantropia. Nosso comportamento em relação ao outro caracteriza-se muito mais pela caridade assistemática e pela solidariedade pontual, como ocorre quando há uma grande catástrofe natural (secas, enchentes e acidentes, por exemplo).

Para evitar o assistencialismo, ficou estabelecido que as 300 bolsas teriam um caráter temporário, ou seja, deveriam ser doadas durante o período de um ano, tempo necessário para que outras medidas para reverter a situação fossem implantadas. De acordo com a Fundação BankBoston (1999):

A bolsa pode, nesse caso, configurar um recurso de renda mínima, mas que não deve ser permanente. Deve integrar mecanismos que permitam sua desvinculação com o tempo: seja pelo aumento da renda basal, por meio de programas de capacitação profissional, por exemplo, seja pelo próprio encaminhamento à escola.

Os técnicos da Fundação BankBoston também assessoraram o Fórum Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil, composto para esse fim, na construção de programas locais a longo prazo. Uma das exigências da fundação foi a de que o dinheiro fosse entregue aos pais, sempre durante reuniões realizadas entre os dias 4 e 10 de cada mês, nas quais as ações eram discutidas e mais uma vez explicados os objetivos do projeto, as razões legais e de saúde pelas quais as crianças deveriam estudar e não trabalhar. Os pais foram sempre tratados como parceiros e não como alvo do atendimento.

Se por qualquer motivo uma criança se desligasse do projeto, a "vaga" deveria ser preenchida por outra criança, sendo distribuídas mensalmente as 300 bolsas. Inicialmente projetado para durar um ano, o período de doação das bolsas foi prorrogado por mais um ano, para que ficassem introjetados no imaginário das famílias que "lugar de criança é na escola e não, trabalhando".

Considerações finais

O Projeto Russas foi um exemplo de intervenção social de sucesso: uma ação sistemática contra a exploração da mão-de-obra infantil, viabilizada por seu modelo de participação e que mobilizou toda uma comunidade para um objetivo.

Atualmente, em Russas, pelo menos, 300 crianças e adolescentes estão na escola e tendo oportunidade de participar de atividades lúdicas, como é necessário nessa fase da vida do ser humano. Essa realidade tornou-se possível porque pais, governantes, organizações sociais e até mesmo os empresários concluíram que a criança e o adolescente têm direitos reais que devem sair do papel para o cotidiano. Não se muda uma cultura por decreto, mas por ações que a revertam em benefício de uma comunidade.

Ainda hoje, várias ações complementares estão em andamento com os recursos do Projeto Russas. Foi construída uma pequena gráfica num prédio doado pela prefeitura, no núcleo da Maçonaria, duas salas foram refor-madas (uma para leitura e outra para atividades de profissionalização em informática) e em Ingá, foi adquirido um imóvel onde está sendo construída uma escola para atividades circenses. Também foi construída uma pequena fábrica de "multimistura" (suplemento nutricional) que abastece de merenda escolar a rede municipal de ensino, contribuindo para a geração de renda.

No Projeto Russas sempre ficou claro o papel da comunidade como partícipe nas decisões. A comunidade mostrou sua competência para descrever seu próprio mundo, sua própria realidade, identificar suas dificuldades e oferecer sugestões viáveis. Os técnicos souberam ouvir e, assim, foi possível elaborar uma estratégia para intervir numa realidade de exclusão em sua face mais perversa - a exploração da mão-de-obra infantil, com crianças exercendo atividades penosas em ambiente insalubre. Conseguiram intervir no sentido de subverter a realidade instituída, de promover uma ruptura no equilíbrio social existente, resgatando uma dignidade há muito perdida na teia econômica. Nesse sentido, é difícil de mensurar o mais importante resultado do Projeto Russas, pois envolve a subjetividade - embora seja muito fácil de visualizar -, a construção da auto-estima das famílias, tanto dos pais quanto das crianças.

O município de Russas recebeu o Selo Unicef Município Aprovado 2002, pois "tirou do papel" o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Fundação BankBoston recebeu, em 2001, o Prêmio Top Social ADVB, conferido pela Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil. O Projeto Russas recebeu destaque no Guia Exame de Boa Cidadania Corporativa em 2003 e o BankBoston foi incluído no ranking das 10 "empresas modelo" no quesito Apoio à Criança e ao Adolescente. Foi um projeto de intervenção que rendeu dividendos para todos os participantes, principalmente, para as crianças e os adolescentes. O município de Russas erradicou o trabalho infantil.

Artigo recebido em julho de 2006 e aceito para publicação em setembro de 2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2007

Histórico

  • Aceito
    Set 2006
  • Recebido
    Jul 2006
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