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The good, the bad and the ugly: estudo sobre pequenas e médias empresas familiares brasileiras a partir da teoria da ação de Pierre Bourdieu

Resumos

De acordo com Bourdieu (1994), existem campos sociais, entre os quais a família, onde a lógica econômica funciona às avessas. Assim, a própria expressão "empresa familiar" seria, por si só, um paradoxo, pois nela convivem duas lógicas distintas e, às vezes, antagônicas: a lógica da empresa, que objetiva o lucro, e a lógica da família, que visa ao bem comum. Por isso, mais do que em qualquer outro tipo de empresa, é preciso considerar o papel desempenhado pelas trocas simbólicas nas relações sociais. Baseando-se nesses conceitos, esta pesquisa apresenta um panorama do universo das pequenas e médias empresas familiares brasileiras.

empresa familiar brasileira; lógica econômica; trocas simbólicas


According to Bourdieu (1994), there are social fields where the economic logic works upside down. Therefore, the expression "family business" is paradoxical because inside it resides two distinct and, sometimes, antagonistic logics: the business logic, which goal is the profit, and the family logic, which aims at the common welfare. That is why one must consider the symbolical exchanges influences on the social relations more than in any other kind of company. Based on these concepts, this research presents an overview of the small and medium Brazilian family business universe.

Brazilian family business; economic logic; symbolical exchanges


ARTIGOS

The good, the bad and the ugly: estudo sobre pequenas e médias empresas familiares brasileiras a partir da teoria da ação de Pierre Bourdieu

Vanessa de Sá Queiroz

Mestre em Administração EBAPE/FGV. Graduada em Direito (Universidade Cândido Mendes) e Administração ( PUC/RJ). Endereço: Av. Ayrton Senna, nº 2150 - Bloco F - sala 223 - Barra da Tijuca - Rio de Janeiro/RJ - Brasil - CEP: 22775-003 . E-mail: vanessadesaqueiroz@ig.com.br

RESUMO

De acordo com Bourdieu (1994), existem campos sociais, entre os quais a família, onde a lógica econômica funciona às avessas. Assim, a própria expressão "empresa familiar" seria, por si só, um paradoxo, pois nela convivem duas lógicas distintas e, às vezes, antagônicas: a lógica da empresa, que objetiva o lucro, e a lógica da família, que visa ao bem comum. Por isso, mais do que em qualquer outro tipo de empresa, é preciso considerar o papel desempenhado pelas trocas simbólicas nas relações sociais. Baseando-se nesses conceitos, esta pesquisa apresenta um panorama do universo das pequenas e médias empresas familiares brasileiras.

Palavras-chaves: empresa familiar brasileira; lógica econômica; trocas simbólicas.

ABSTRACT

According to Bourdieu (1994), there are social fields where the economic logic works upside down. Therefore, the expression "family business" is paradoxical because inside it resides two distinct and, sometimes, antagonistic logics: the business logic, which goal is the profit, and the family logic, which aims at the common welfare. That is why one must consider the symbolical exchanges influences on the social relations more than in any other kind of company. Based on these concepts, this research presents an overview of the small and medium Brazilian family business universe.

Keywords: Brazilian family business; economic logic; symbolical exchanges.

Introdução

O objetivo deste artigo é contribuir para a compreensão do universo das empresas familiares, através da explicação de sua lógica e da apresentação de suas características próprias. Todavia, dentre os inúmeros trabalhos existentes acerca do tema, este estudo se propõe a ser diferente dos demais, não pelo simples prazer de contestar o status quo, mas por pretender gerar debate numa área em que o conhecimento parece ter se cristalizado em torno de alguns pontos centrais.

De um modo geral, o que os autores que se dedicam a estudar as empresas familiares costumam fazer é uma SWOT analisis, isto é, uma análise dos seus pontos fortes e fracos, e das suas oportunidades e ameaças, em comparação com outros tipos de empresas. No tocante aos seus pontos fracos e às ameaças, muitos fazem prescrições, sugerindo fórmulas de sucesso (como se existissem), em extensas listas de "dos and don'ts" (do inglês, "faça isso, não faça aquilo"), mais afeitas às reportagens de revistas.

Além disso, parece haver predileção por alguns assuntos. A maioria dos trabalhos, nacionais ou estrangeiros, acadêmicos ou não, referem-se basicamente ao processo sucessório, com especial ênfase no conflito de gerações, e à profissionalização, apontada como o "remédio para todos os males".

Há que se considerar ainda o fato de que a quase totalidade dos autores adota a abordagem positivista, concebida sob a égide da lógica econômica. Baseando-se nessa lógica, alguns se referem às empresas familiares com um ar preconceituoso, como se fossem "dinossauros pré-históricos", condenados ao desaparecimento caso não adotem a "receita de bolo" da profissionalização.

Não é o caso de contestar o mérito desses estudos pioneiros que demonstram uma visível preocupação com a preservação das empresas familiares, mas de defender o lugar de destaque a que as empresas familiares fazem jus no meio acadêmico, uma vez que as mesmas desempenham relevante papel social, gerando emprego e renda para milhões de pessoas e, conseqüentemente, movimentando a economia, não só no Brasil, como também em outros países, como a Itália e os EUA.

Desde já, devo confessar que a escolha desse tema de pesquisa não foi aleatória e que há muito me interesso por estudar as empresas familiares; pois, na minha família, até a presente geração, todo mundo sempre trabalhou em família (como fazendeiros, comerciantes, industriais ou profissionais liberais).

Entretanto, minha experiência me levou a desconfiar que as empresas familiares brasileiras não adotam, ipsis litteris, a lógica econômica. A meu ver, elas seguem uma lógica própria de administrar, tal qual os casos que destoam da ética da eficiência, relatados por Clegg (1998).

E é importante frisar que não é pelo fato de não seguirem a lógica do homem econômico racional que a sua lógica possa ser classificada como ruim ou feia, até porque os conceitos de bom ou ruim, bonito ou feio são extremamente subjetivos, dependendo do juízo de valor de quem os aplica.

Portanto, é nesse sentido que o título deste artigo "the good, the bad and the ugly" (do inglês, "o bom, o mau e o feio") - inspirado no filme de Sérgio Leone (1966), clássico do western com Clint Eastwood - se explica: aquilo que de um ponto de vista é bom, de outro pode ser mau ou feio, e vice-versa.

No entanto, se por um lado, a escolha do tema de pesquisa ocorreu naturalmente, por outro, a escolha do referencial teórico foi dificílima. Era necessário encontrar outra base epistemológica que não fosse a habitual, baseada em fundamentos econômicos. Por isso, decidi utilizar os conceitos de um texto original de Pierre Bourdieu (1994), Raisons pratiques sur la théorie de l'action (do francês, Razões práticas sobre a teoria da ação), por cujas idéias me apaixonei instantaneamente, apesar dele não se referir especificamente a empresas familiares, muito menos ao Brasil. Essa escolha não poderia ter sido mais acertada, pois Bourdieu (1994) não só critica duramente o economicismo, isto é, a redução de todas as relações sociais a critérios meramente econômicos, mas ensina que existem campos sociais (entre os quais a família) onde a lógica econômica funciona às avessas, ou seja, onde o espírito de cálculo é mal visto.

Contudo, o objeto de estudo escolhido, as empresas familiares, era amplo demais e precisava ser delimitado.

Como meu interesse era por entender a lógica e as características genuínas das empresas familiares brasileiras, optei por estudar empresas que ainda preservassem suas características e lógicas originais: as pequenas e médias empresas familiares brasileiras. Em outras palavras, escolhi estudar empresas que ainda preservassem uma forma de administração naïf (do francês, ingênuo), que ainda não tivessem crescido a ponto de necessitarem se profissionalizar, que ainda não tivessem mesclado sua cultura com técnicas de gestão mais elaboradas, muitas delas, baseadas na lógica econômica do capitalismo.

Isto posto, é importante frisar que, para efeito deste artigo, não me ative aos critérios de faturamento bruto e número de funcionários, utilizados pela legislação brasileira para definir quais sejam pequenas e médias empresas, mas me concentrei em estudar organizações que se valem de uma forma de administração prosaica, quase artesanal.

Assim, para evitar qualquer tipo de confusão, convém, desde já, apresentar duas definições que constituem premissas deste artigo. Considero empresa familiar o empreendimento em que mais de um membro da família trabalha com o intuito de retirar dali seu sustento. Já pequenas e médias empresas familiares são aquelas cujos donos são administradores intuitivos que tocam seu negócio tal qual uma dona de casa1 1 Wensley (1996) dedicou um artigo a comentar um livro em que uma dona de casa inglesa, Mrs. Isabella Beeton (1861 apud WENSLEY, 1996), dá conselhos sobre administração de pequenos negócios, os quais podem ser resumidos em três: dar exemplo aos empregados, controlar as finanças e ter ordem e método. Em outras palavras, "deve haver um lugar para cada coisa e cada coisa deve estar em seu lugar". (BEETON, 1861 apud WENSLEY, 1996, p. 38, tradução nossa). gerencia seu lar.

Metodologia

O estudo partiu de quatro questões norteadoras, a saber:

As pequenas e médias empresas familiares brasileiras têm realmente uma lógica própria?

Como é a lógica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras?

Por que a lógica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras é diversa da lógica econômica?

Quais as características das pequenas e médias empresas familiares brasileiras?

Para a coleta dos dados aqui apresentados, foram utilizadas entrevistas, realizadas com o intuito de ilustrar o estudo com casos concretos.

De acordo com os critérios da acessibilidade e da tipicidade, foram selecionadas quatro empresas familiares situadas na cidade do Rio de Janeiro: a clínica de olhos Guedes, o escritório Mendes de Almeida Advogados Associados, o Restaurante Balanceado e a fábrica de massas Cadore. Em cada uma delas, dois familiares que efetivamente trabalhavam nas empresas foram submetidos a entrevistas semi-estruturadas individuais, as quais foram gravadas em fita cassete e, posteriormente, analisadas de forma interpretativa, gerando o conteúdo da seção "Aplicação da teoria à realidade empírica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras".

Portanto, foi utilizado o tratamento qualitativo na análise dos dados. A exploração do tema, a descrição dos fenômenos e características que o envolvem e sua conseqüente explicação assim demandavam, já que a riqueza de detalhes era fundamental para a compreensão do contexto. Era preciso apresentar o fenômeno em sua totalidade e números frios não conseguiriam expressar as complexas relações sociais que se estabelecem nas empresas familiares.

Destarte, o método utilizado para a elaboração deste trabalho teórico-empírico foi o indutivo-dedutivo; isto é, a formulação do problema e das perguntas de pesquisa teve origem na vida prática, mas sua resolução baseou-se na teoria da ação de Pierre Bourdieu (1994), a qual, por sua vez, foi ilustrada por quatro casos concretos.

Em relação a Bourdieu (1994), vale ressaltar, neste momento (antes mesmo de adentrar a seção que trata do referencial teórico propriamente dito), que o sociólogo criticava a postura neutra, de distanciamento e abstração, em que o pesquisador se retira do mundo para exercitar a escolástica, isto é, para fazer do exercício escolar um jogo gratuito, uma experiência apenas mental, um fim em si mesmo. Para ele, tal postura de espectador modifica a forma e o conteúdo das observações do pesquisador.

Por isso, defendia que a compreensão do mundo social dependia da imersão do pesquisador na particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada e datada, mas sem que se pudesse dispensar a pesquisa teórica. Acreditava que um modelo assim construído teria mais credibilidade do que os desenvolvidos por curiosos em busca do exotismo e de diferenças pitorescas, justamente, por respeitar as realidades históricas, por buscar as particularidades das histórias coletivas.

Assim, acredito apresentar aqui um trabalho bem ao gosto de Bourdieu (1994), ao analisar a realidade teóricoempírica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras através da abordagem da imersão social, uma vez que me encontro perfeitamente inserida nesse contexto. Não só por isso, mas, também, por ter tido a oportunidade de trabalhar em outras empresas (Brahma, Coca-Cola, Vale do Rio Doce e Souza Cruz) e, por algum tempo, ter me distanciado dessa realidade, desenvolvendo um senso crítico e um olhar capaz de captar as particularidades, os traços distintivos da lógica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras, através da comparação com outras formas de organização no Brasil.

Os principais conceitos da teoria da ação de Pierre Bourdieu

Como Bourdieu (1994) concebia a realidade como relacional, ele defendia que seria através da comparação que se poderia construir uma distinção. Assim, partindo do conceito de diferença, ele definiu o conceito de espaço social.

Para Bourdieu (1994), o espaço social, ainda que invisível e simbólico, é a própria realidade, um "espaço do que é possível", construído de tal maneira que os agentes ou grupos sociais são distribuídos segundo, basicamente, dois princípios de diferenciação: o capital econômico e o capital cultural.

Numa primeira dimensão, os agentes são distribuídos segundo o montante global de capital que possuem; numa segunda dimensão, segundo a estrutura de seu capital, isto é, segundo o peso relativo das diferentes espécies de capital - econômico e cultural - no volume de seu capital total; e, numa terceira dimensão, segundo a evolução no tempo do volume e da estrutura de seu capital.

Entretanto, não são só o volume e a estrutura de capital que variam no tempo. Os valores atribuídos pela sociedade às diversas espécies de capital também sofrem flutuações, tal qual numa casa de câmbio. Conseqüentemente, as posições dos agentes no espaço social não são imutáveis, alterando-se conforme a variação do seu volume total de capital, da sua estrutura de capital e da taxa de câmbio/conversão das espécies de capital.

Assim, o espaço social é um campo de poder, onde o equilíbrio de forças é dinâmico, uma vez que os detentores dos diversos tipos de capital lutam, para conservar ou modificar a estrutura existente, conforme seus interesses. É a eterna luta entre os detentores de poder, que querem perpetuar as regras do jogo em vigor, e os desafiantes, que querem subvertê-las.

O mais interessante é que o modelo proposto por Bourdieu (1994) é válido mesmo para os antigos países socialistas, onde o capital econômico pertencia ao Estado, pois ele considera que existem outros tipos de capital, além do econômico e do cultural.

No caso dos países socialistas, como o capital econômico está fora do jogo, a diferenciação pode se dar segundo o capital político, que assegura a seus detentores uma forma de apropriação privada dos bens e serviços públicos, e/ou o capital escolar.

Bourdieu (1994) salienta que o novo capital (com a cotação em alta) é o capital escolar, uma vez que as instituições escolares contribuem para a reprodução da distribuição do capital cultural e, conseqüentemente, da estrutura de capitais no espaço social.

Também o Estado desempenha um papel fundamental no espaço social, uma vez que, através de suas instituições, sobretudo pela escola, estabelece não só um conformismo moral, mas um conformismo lógico, segundo o qual os agentes sociais devem respeitar as estruturas fundamentais do pensamento por ele criadas e impostas, que constituem o capital simbólico.

Destarte, como o Estado concentra diferentes espécies de capital (capital da força física ou dos instrumentos de coerção, capital econômico, capital cultural, ou melhor, capital informacional, capital simbólico), ele é possuidor de uma espécie de meta-capital, o capital estatal, que lhe dá poder sobre todas as outras espécies de capital e seus detentores, ao estabelecer a "taxa de câmbio" e assegurar a reprodução das diferentes espécies de capital.

E é através do enquadramento que impõe às práticas que o Estado estabelece estruturas mentais de percepção e pensamento comuns, uma espécie de consenso que constitui o senso comum, que Bourdieu (1994) chama de habitus.

Assim, o habitus corresponde às estruturas de pensamento, que reconhecemos e aceitamos como as regras do jogo, individual e coletivamente. Essas regras nos são tão familiares, estão tão intrincadas em nossa forma de pensar, que não nos damos conta de que não foram criadas através de um processo racional consciente, mas que reproduzimos tacitamente a mesma forma de pensamento a que estamos habituados, sem que sequer percebamos isso.

L'habitus est cette sorte de sens pratique de ce qui est à faire dans une situation donnée - ce que l'on appelle, en sport, le sens du jeu, art d'anticiper l'avenir du jeu qui est inscrit en pointillé dans l'état présent du jeu. (O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer numa dada situação - aquilo a que chamamos, no esporte, o sentido do jogo, arte de antecipar o futuro do jogo que está inscrito em pontilhado no estado presente do jogo.). (BORDIEU, 1994, p.45, tradução nossa)

O habitus é também sinônimo de gosto ou estilo de vida, que são condicionamentos sociais gerados pela posição ocupada no espaço social. Porém, enquanto as estruturas do campo social são estruturas objetivas, as estruturas do habitus são estruturas incorporadas. É nesse sentido que Bourdieu (1994) afirma que o habitus é, ao mesmo tempo, estruturado e estruturante, pois concebemos o mundo segundo nossa estrutura, nossa visão, e é a partir dela que atuamos no mundo, estruturando-o segundo nossa visão.

Isto posto, os agentes e grupos sociais, detentores dos diversos tipos de capital, vivem em constante luta para dominar o aparelho estatal e impor aos demais o seu ponto de vista particular como um ponto de vista universal.

Para Bourdieu (1994), também o conceito de família é uma ficção social, mas uma ficção bem fundamentada, uma vez que o Estado lhe garante os meios de existir e subsistir, através de diversos atos notariais - tais como o registro de nascimento, casamento, morte e propriedade - que, por sua vez, estabelecem direitos e deveres civis - como o direito à filiação, ao nome e à herança - e o dever de ajuda mútua.

Assim, ele considera que família é apenas uma palavra, mas uma palavra universalmente aceita e repleta de ideologia política, com personalidade e atributos próprios, transcendendo seus membros, cuja privacidade e intimidade devem ser sempre preservadas "aux portes closes" (do francês "a portas fechadas") (BOURDIEU, 1994, p.136) dentro do domínio do lar, numa clara separação entre o que é público e privado.

Assim como a noção de família está impressa em nosso habitus de forma tácita, evidente, "taken for granted" (BOURDIEU, 1994, p.139), também estamos impregnados do "family discourse" (o discurso que a família tem sobre a família): um consenso do que seja correto na vida em família.

... la bonne manière de vivre les relations domestiques: univers où sont suspendues les lois ordinaires du monde économique, la famille est le lieu de la confiance (trusting) et du don (giving) - par opposition au marché et au donnant donnant -, ou, pour parler comme Aristitote, de la philia, mot qu'on traduit souvent par amitié et qui désigne en fait le refus de l'esprit de calcul; le lieu òu l'on met em suspens l'intérêt au sens étroit du terme, c'est-à-dire la recherche de l'équivalence dans les échanges. Le discours ordinaire puisse souvent, et sans doute universellement, dans la famille des modèles idéaux des relations humaines (avec, par exemple, des concepts comme celui de fraternité), et leur rapport familiaux dans leur definition officielle tendent à fonctionner comme principes de construction et d'évaluation de toute relation sociale. (...a boa maneira de viver as relações domésticas: universo onde são suspensas as leis ordinárias do mundo econômico, a família é o lugar da confiança (trusting) e da doação (giving) - em oposição ao mercado e ao "toma lá-dá cá" -, ou para falar como Aristóteles, da philia, palavra que freqüentemente traduzimos como amizade e que designa de fato a recusa do espírito de cálculo; o lugar onde está suspenso o interesse no seu sentido mais estreito, quer dizer, a busca pela equivalência das trocas. O discurso ordinário possui freqüentemente, e sem dúvida, universalmente, na família, os modelos ideais das relações humanas (através de conceitos tais como o de fraternidade), e as relações familiares, em sua definição oficial, tendem a funcionar como princípio de construção e de avaliação de toda relação social.). (BOURDIEU, 1994, p.137, tradução nossa)

Esse consenso que existe sobre o comportamento que é aceitável (de "bom tom") em família remete ao título deste estudo, uma vez que, em família, as regras do mercado, do mundo econômico, são substituídas por valores mais altruístas; e são esses mesmos valores que são utilizados como critério de avaliação em família, como um fim em si mesmo.

Esse "esprit de famille" (do francês "espírito de família"), gerador de generosidade e fraternidade, reflete-se na afeição imposta pelos laços de sangue e casamento e, também, em inúmeras situações quotidianas de reforço desses laços, como as reuniões de família, as visitas, os telefonemas, a troca de presentes, cartões e gentilezas e, principalmente, as fotos que eternizam esses momentos e, conseqüentemente, essa imagem. Como essa idéia de família, como entidade integrada voltada para o bem comum de seus membros, desempenha papel fundamental na manutenção da ordem social, o que permitiu inclusive, a criação do Estado burocrático, o Estado faz de tudo para assegurar a perpetuação da "célula-mãe" da sociedade.

Embora o objetivo desse discurso seja o de perpetuação da idéia de família como entidade integrada e estável, indiferente à flutuação dos sentimentos individuais, a família, na verdade, tende a funcionar como um campo social, onde os membros possuem volume e estrutura de capitais (da força física, econômico e, sobretudo, simbólico) diferentes, e que, por isso mesmo, lutam pela conservação ou alteração das forças. Esses conflitos acontecem porque dentro da família coexistem duas lógicas distintas: a lógica econômica, dos atos interessados, e a lógica do bem comum, dos atos desinteressados.

Entretanto, Bourdieu (1994) explica que, para a sociologia, não existem atos gratuitos, desinteressados; o que não quer dizer que todas as condutas humanas tenham sempre uma finalidade, alguma intenção estratégica e utilitarista que as tenha motivado a priori. Pelo contrário. Na maioria das vezes, os atores sociais agem sem, sequer, dar-se conta do que estão fazendo, de tão impregnados pelo habitus daquele campo no qual estão inseridos, pelo seu senso do jogo e pela sensação de que vale a pena jogar aquele jogo. As pessoas agem se antecipando ao jogo, pois sabem tacitamente qual conduta é esperada delas em cada situação.

Nem tudo é premeditado e nem tudo pode ser reduzido ao "economisme" (economicismo) (BOURDIEU, 1994, p.158, tradução nossa), reducionismo que considera que as leis do campo econômico valem para todos os outros campos.

Embora Bourdieu (1994) aplique o modo de pensar relacional a todos os campos - econômico, social, político, burocrático, artístico, literário, científico, religioso e familiar -, ele propõe que em cada um desses campos um tipo de capital social se sobressai em relação aos outros. Em outras palavras, para cada campo existe uma conduta valorizada, adequada. Exemplificando, ele cita o campo artístico ou literário, em que o artista bem-sucedido comercialmente não é reconhecido pelo grupo, que o considera "charlatão"; o mesmo valendo para o campo religioso, acadêmico ou científico. Nesses círculos, o sucesso financeiro é visto como uma pecha, pois a sua lógica é inversa à lógica do mundo econômico.

Intuitivamente, esperamos determinado comportamento dos agentes e dos grupos sociais, e tanto é assim que existe até uma expressão, "noblesse oblige" (do francês "nobreza exige"), que resume todo o comportamento esperado de um nobre; ou seja, aquilo que ele, na condição de nobre, deve ou não fazer.

Portanto, é nesse sentido que Bourdieu (1994) afirma que não existem atos desinteressados, pois dentro da lógica econômica, existem universos, onde o cálculo é visto como um tabu e o desinteresse não só é visto com bons olhos, como é reconhecido e recompensado. Exemplos dessas pequenas "ilhas do faz-de-conta" são a nobreza, os campos artístico, literário e religioso, bem como a família.

Si le désintéressement est possible sociologiquement, ça ne peut être que par la rencontre entre des habitus prédisposés au désintéressement et des univers dans lesquels le désintéressement est récompensé. Parmi ces univers, les plus typiques sont, avec la famille et toute l' économie des échanges domestiques, les différents champs de production culturelle, champ littéraire, champ artistique, champ scientifique, etc., microcosmes qui se constituent sur la base d' une inversion de la loi fondamentale du monde économique et dans lesquels la loi de l' intérêt économique est suspendue. (Se o desinteresse é possível sociologicamente, é somente pelo encontro de habitus predispostos ao desinteresse com universos nos quais os desinteresse é recompensado. Dentre esses universos, os mais típicos são, com a família e toda a economia das trocas domésticas, os diferentes campos de produção cultural, campo literário, campo artístico, campo científico etc., microcosmos que se constituem sobre o alicerce de uma inversão da lei fundamental do mundo econômico e dentro dos quais a lei do interesse econômico está suspensa.). (BOURDIEU, 1994, p.164, tradução nossa)

Conseqüentemente, nesses meios em que as leis do mundo econômico são às avessas, o capital simbólico desempenha um papel fundamental, qual seja, o de transfigurar as relações econômicas em relações simbólicas.

Assim, na economia dos bens simbólicos, as trocas entre os agentes sociais não são explícitas, baseadas numa taxa de câmbio/conversão, o preço, mas são realizadas como se fossem trocas de favores, gentilezas, que submetem o favorecido à obrigação de retribuir, pois todo o grupo compartilha essa regra do jogo, o habitus.

Na lógica da economia dos bens simbólicos, em que os bens econômicos são traduzidos em bens simbólicos, a linguagem, mais especificamente o discurso, é elemento fundamental, pois os significados dos códigos e símbolos precisam necessariamente ser conhecidos e reconhecidos por todo o grupo.

No entanto, como em todo processo de comunicação, em que há um emissor e um receptor, a mensagem pode ser interpretada de forma diversa da pretendida, originando práticas dúbias, ambíguas e até mesmo contraditórias. Assim, aquele que se dispõe a entrar no jogo das trocas simbólicas e põe um dom à disposição, sem esperar nada em troca, arrisca-se, mas sabe que a incerteza na retribuição do seu dom é finita e acaba no momento em que o favorecido lhe retribui, pois o habitus impõe reciprocidade naquela sociedade.

Mas, o conceito de economia dos bens simbólicos merece destaque, sobretudo, em razão dos efeitos que pode acarretar no que se refere às formas de dominação menos explícitas e mais implícitas.

Un des effets de la violence symbolique est la transfiguration des relations de domination et de sousmission en relations affectives, la transformation du pouvoir en charisme ou en charme propre à susciter un enchantement affectif [...] (Um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das relações de dominação e submissão em relações afetivas, a transformação do poder em carisma ou em charme próprio a suscitar um encantamento afetivo ...). (BOURDIEU, 1994, p.189, tradução nossa)

Le dominé collabore à sa propre exploitation à travers son affection ou son admiration. (O dominado colabora com a sua própria exploração através de sua afeição ou sua admiração.). (BOURDIEU, 1994, p.200, tradução nossa)

Em suma, os conceitos até aqui apresentados foram desenvolvidos por Bourdieu (1994) a partir do estudo de uma sociedade específica, a sociedade francesa dos anos 1970, mas sua capacidade de extrapolação é inquestionável, uma vez que se pode perfeitamente aplicá-los às pequenas e médias empresas familiares brasileiras, como tentarei ilustrar a seguir.

Aplicação da teoria à realidade empírica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras

Nesta seção, serão apresentadas situações presenciadas pela entrevistadora ou narradas pelos entrevistados, a fim de ilustrar os conceitos desenvolvidos por Bourdieu (1994).

Breve panorama do espaço social das pequenas e médias empresas familiares brasileiras

Especificamente no Brasil, onde as oportunidades de estudo e trabalho são limitadas pela desigualdade social, a definição de Bourdieu (1994) de espaço social como "o espaço do que é possível" explica o importante papel social desempenhado pelas empresas familiares.

De acordo com dados do Sebrae de 2004, dos oito milhões de empresas em atividade no país, 90% são familiares, respondendo por, aproximadamente, 12% do PIB do setor primário, 34% do PIB do setor secundário e 54% do PIB do setor terciário; números estes que dizem respeito apenas à economia formal, o que leva a crer que tais percentuais devam ser bem maiores.

Por isso, durante a vida profissional de um brasileiro (ou estrangeiro que deseje realizar negócios com o Brasil), há grande possibilidade dele necessitar compreender a realidade (incluindo a lógica e as características) das pequenas e médias empresas familiares brasileiras, ainda que não seja na posição de fundador ou herdeiro, mas ao menos como funcionário, cliente, fornecedor, parceiro ou concorrente comercial de uma pequena ou média empresa familiar.

No Brasil, muitas vezes, empreender é a única alternativa honesta (desconsiderando a hipótese de praticar delitos) para quem não tem dinheiro, não tem estudo ou, simplesmente, quer ascender socialmente. Pelos mesmos motivos, muitas empresas familiares brasileiras foram fundadas por imigrantes. Pois, o imigrante quando toma a corajosa decisão de deixar o seu país de origem para tentar a sorte em outro lugar, geralmente, está disposto a tudo. Sem oportunidade, sem dinheiro, sem parentes ou amigos influentes a quem recorrer e, muitas vezes, sem compreender a língua, ele só tem uma alternativa: trabalhar duro e persistir diante das dificuldades.

No entanto, mesmo sendo maioria, as pequenas e médias empresas familiares brasileiras encontram dificuldades na concorrência com as grandes empresas, sobretudo, com as multinacionais, uma vez que o amplo portfólio desses grandes conglomerados lhes permite trabalhar com margens de lucro negativas, compensando as perdas através do aumento de preços de outros produtos ou de outras praças de distribuição. Além disso, não se pode dizer que trabalhar em família seja visto com bons olhos pelos brasileiros. No Brasil, nem o governo, nem as escolas incentivam as pessoas a trabalhar em família e, por isso, os profissionais mais qualificados preferem trabalhar para o governo ou para as grandes empresas multinacionais, locais onde se sentem amparados pela sua estrutura.

Como o governo brasileiro não concede nenhum tratamento privilegiado às empresas familiares, elas costumam se valer da sua rede de relações com outras empresas também familiares para trocar experiências informalmente e se ajudar mutuamente em caso de dificuldades, inclusive, financeiras. Entretanto, essa restrição ao crédito não só dificulta a criação de novas empresas (familiares ou não), entravando o desenvolvimento econômico, mas também coloca em risco a sobrevivência das empresas já existentes. Isso ocorre porque apesar dessa prática solidária de empréstimos "entre amigos" permitir que se "apague incêndios", mantendo operante uma empresa que poderia fechar as portas, ela pode vir a prejudicar a economia brasileira como um todo, pois, quando uma empresa empresta suas reservas para a outra, pode estar deixando de investir no próprio negócio. Pior do que isso, ela corre o risco da empresa credora não conseguir honrar seus compromissos, hipótese em que ambas as empresas estarão ameaçadas de deixar de existir.

Decerto essa prática de uma empresa familiar emprestar dinheiro à outra empresa familiar em dificuldade, mesmo correndo o risco de comprometer sua saúde financeira a médio e longo prazos, só pode ser explicada por uma lógica diversa da lógica econômica.

A lógica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras

Ao explicar que a família é um dos meios sociais onde a lógica econômica, o economicismo, funciona às avessas, Bourdieu (1994) nos fornece meios para compreender o fator que distingue a lógica das empresas familiares da lógica das outras empresas: seu caráter dúbio, conflituoso.

Quando se fala em conflito na empresa familiar, o que todos temos em mente (talvez, em função do grande número de best-sellers dedicados ao assunto) é o conflito entre gerações, cujos capitais em questão são o capital da experiência - a experiência adquirida na prática pelos mais velhos - e o capital escolar - o conhecimento acadêmico atualizado, geralmente, dos mais jovens. Todavia, além desse conflito - que pela própria natureza das forças em questão, não é privilégio das empresas familiares, podendo ocorrer em qualquer organização -, há outro conflito, esse sim, exclusivo das empresas familiares.

Partindo dos conceitos de Bourdieu (1994), pode-se afirmar que, internamente, as pequenas e médias empresas familiares brasileiras se constituem em um campo de poder, cujas principais forças em conflito são os objetivos da empresa, notadamente o lucro, e os objetivos da família, que objetiva o bem comum e rejeita qualquer espírito de cálculo. Conseqüentemente, a própria expressão "empresa familiar" seria, por si só, um paradoxo. Por um lado, a empresa tem como objetivo o lucro (caso contrário, seria uma instituição sem fins lucrativos, uma instituição de caridade), devendo agir segundo a lógica econômica para perseguir seus fins. Por outro lado, a família é uma instituição onde as práticas e os valores econômicos não são vistos com bons olhos, devendo sempre prevalecer o bem-comum.

Assim, não se pode falar em uma lógica das pequenas e médias empresas familiares brasileiras, mas em duas lógicas. Pois, elas ora adotam a lógica econômica, que objetiva o lucro, privilegiando os interesses da empresa; ora adotam a lógica do bem comum, privilegiando os interesses da família.

Por isso, nas empresas familiares, mais do que em qualquer outro tipo de empresa, as trocas simbólicas exercem um papel fundamental, qual seja, o de transfigurar as relações econômicas em relações simbólicas. Quanto maior o peso dos interesses da família em relação aos interesses da empresa, maior será a importância das trocas simbólicas.

Essa lógica da economia dos bens simbólicos é encontrada em pequenas e médias empresas familiares brasileiras, em maior ou menor grau, dependendo de qual dos dois pólos se sobressai: a lógica econômica, dos atos interessados, ou a lógica do bem comum, dos atos desinteressados. Em outras palavras, observa-se que, dependendo de seu estágio de profissionalização, elas conseguem separar, em maior ou menor grau, os assuntos relativos à família daqueles relativos à empresa.

A seguir, para melhor compreensão de como essas duas lógicas, aparentemente conflitantes, funcionam na prática, serão apresentadas as características das pequenas e médias empresas familiares, segundo a classificação bom, mau e feio.

O bom, o mau e o feio: características das pequenas e médias empresas familiares brasileiras

Finalmente, nesta subseção, o título deste artigo é explicado. Compreender as características das pequenas e médias empresas familiares brasileiras envolve, necessariamente, o estudo dos comportamentos ali considerados bons, maus ou feios.

Entretanto, os critérios de classificação entre o que é bom ou mal, feio ou bonito não são os mesmos para todo mundo. Bom, mau, feio e bonito são, conforme as regras de gramática, adjetivos; por isso, seu uso está condicionado a critérios subjetivos que dependem do juízo de valor de quem os aplica.

De acordo com Bourdieu (1994), as pessoas formam juízos de valor a partir do seu habitus, isto é, a partir das configurações mentais de percepção e pensamento, as quais são, em última análise, reflexo do grupo social no qual estão inseridas.

Destarte, pode-se dizer que os conceitos de bom, mau, feio e bonito são construções sociais, variando no tempo e de lugar, conforme a flutuação dos valores e condutas adotados por um determinado grupo social, de acordo com o tipo de capital que se sobressai naquele campo social. Por conseguinte, aquilo que num determinado contexto é bonito, isto é, socialmente aceito e valorizado, em outro é feio e menosprezado.

O bom

A empresa familiar representa o que Clegg (1998, p.130) chama de "caminhada para a pequena burguesia", ou seja, materializa o sonho pequeno burguês de ser o próprio patrão. Por isso, é mais do que o lugar onde se ganha o sustento, representando um ideal, uma paixão, uma missão, um objetivo de vida.

Esse sonho é uma forte motivação para os membros da família que se dispõem a sacrifícios pessoais e financeiros em nome do bem comum.

Os sacrifícios pessoais se traduzem na falta de tempo livre para o lazer e o descanso e em esforço além do normal, que inclui trabalhar durante o fim de semana ou virar noites trabalhando, se preciso. Mesmo quando já não estão nas dependências da empresa ou saem de férias, o pensamento das pessoas da família está sempre voltado para a empresa. Já o sacrifício financeiro envolve abrir mão de lucros para reinvestir na empresa, almejando seu crescimento, ainda que incerto.

Contudo, é importante ressaltar que tais sacrifícios em nada se comparam aos percalços inerentes a qualquer outro tipo de atividade profissional, pois seu caráter é voluntário. Os membros da família têm liberdade de escolha, mas preferem arriscar, porque entendem que para empreender é preciso ter coragem. Essa é a conduta que o seu grupo social incentiva: em primeiro lugar, a empresa.

Essa disposição para sacrificar o presente na expectativa de um futuro melhor só pode ser explicada pelo pacto tácito entre gerações. Enquanto em algumas empresas há pressão de acionistas ávidos por dividendos imediatos, na empresa familiar existe um consenso de que a "empresa é uma grande árvore que deve ser cultivada para render frutos por gerações". Todos estão "no mesmo barco" e entendem que auferir grandes lucros no curto prazo pode exaurir a empresa a médio e longo prazos.

A empresa familiar representa o maior bem, o maior investimento de uma família e, por essa razão, o fundador nutre a expectativa de que seus descendentes continuem o negócio, embora procure lhes assegurar, através da educação, outras alternativas de subsistência.

No início, praticamente, só o fundador trabalha na empresa, mas, com o tempo, seus filhos sentem-se impelidos a colaborar porque reproduzem tacitamente o habitus de seu campo social, que valoriza o trabalho em família. Para eles, trabalhar em família é bonito porque envolve a união de todos em nome de um ideal maior: o bem comum. O bem comum não só da empresa, mas da família, que luta junto pela sua sobrevivência. Essa é a conduta que se espera deles.

Nessa fase, os filhos não se dedicam com exclusividade à empresa, pois precisam estudar. Seus pais querem garantir que eles tenham acesso não só ao capital econômico, representado pela empresa e outros bens a serem recebidos como herança, mas ao capital cultural, notadamente, representado por um diploma universitário, uma garantia em caso de dificuldade nos negócios.

Com o passar dos anos, os filhos ingressam na empresa formalmente e aprendem a prática do ofício sob a supervisão da dupla autoridade do pai-patrão, a quem devem duplo respeito e submissão.

À medida que os filhos vão aprendendo e assumindo responsabilidades, o pai começa a sair da linha de frente, passando a atuar mais no planejamento estratégico, até o momento em que eles se tornem aptos a gerir a empresa na eventualidade deste precisar se ausentar da empresa por motivo de doença ou morte, pois se aposentar definitivamente não faz parte de seus planos.

O fundador valoriza o trabalho, pois foi através do trabalho que conseguiu tudo o que tem na vida. Ele trabalhou a vida toda e, simplesmente, não saberia viver sem trabalhar: sentir-se-ia inútil. Além disso, ele não tem nenhuma motivação concreta para parar de trabalhar. Enquanto muitas pessoas gostariam de ter mais tempo para se dedicar à família, o fundador tem o privilégio de poder trabalhar duro e bastante e, ao mesmo tempo, manter uma convivência muito estreita com as pessoas de sua família que trabalham com ele.

Nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras, não há uma separação muito clara entre a vida pública e a vida privada. A empresa é uma extensão da casa (ou seria o contrário?). Por isso, seu ambiente de trabalho costuma ser informal, pessoal e acolhedor. Patrões e empregados compartilham não só espaço, mas alegrias e tristezas, e, muitas vezes, tornam-se amigos, inclusive, fora do ambiente de trabalho.

Com o passar dos anos e uma convivência tão intensa, um se torna capaz de colocar-se no lugar do outro, e, assim, é prática comum que um trabalhador, seja ele patrão ou empregado, compense o outro em casos de problemas pessoais.

Não se trata de afirmar que as empresas familiares adotem como regra geral a flexibilidade de horário, mas é que tal prática, comum entre os membros da família, costuma ser estendida aos empregados de confiança, isto é, àqueles que demonstraram ao longo do tempo também estarem dispostos a se sacrificar por aquele empreendimento.

Há também casos em que são os pais que precisam tomar a frente dos negócios quando os filhos adoecem ou estão ocupados - por exemplo, com a educação dos netos -, casos em que o sacrifício em nome do bem comum familiar e da empresa é perfeitamente compreensível. O pai-patrão julga que essa é a melhor decisão para o bem-estar geral da família e o filho compreende que é sua obrigação gerir a empresa e sustentar os pais na velhice. É dessa forma que eles enxergam o mundo, segundo o habitus de seu grupo social.

Enfim, é interessante notar que numa empresa familiar há perspectiva de trabalho para todas as idades. Às crianças, além de brincar e estudar, cabem pequenas tarefas que lhes são ensinadas de forma lúdica para que comecem a se familiarizar com o funcionamento da empresa "que um dia será sua"; assim, acabam aprendendo a administrar tacitamente o negócio. Dos idosos, não se espera a aposentadoria, mas, no mínimo, o exercício do papel de conselheiros.

Especificamente no Brasil, o pacto entre gerações, seja na empresa familiar ou não, é importantíssimo em virtude das deficiências dos sistemas educacional e previdenciário. Além de garantir a subsistência da família por gerações, as pequenas e médias empresas familiares também garantem emprego para um expressivo contingente de mão-de-obra: mais de 60% da mão-de-obra empregada em atividades privadas no país, de acordo com dados do Sebrae de 2004.

Por todo o exposto, é possível compreender porque as empresas familiares são tão longevas quando comparadas a outras empresas.

O mau

Por outro lado, devido à tamanha informalidade, nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras, o comprometimento das pessoas não é profissional, mas emocional. Isto é, o comprometimento por parte dos funcionários, incluindo os familiares, não se dá por adesão ao projeto apresentado, mas por amor, admiração ao patrão, que para conseguir o que deseja sabe muito bem como usar seu carisma.

O fundador, geralmente, é um líder carismático, um herói que lutou contra todas as adversidades e venceu. Num mundo que precisa de heróis, ele encarna o "sonho americano", é o self-made man (do inglês "homem que se fez sozinho"). Assim, a relação de trabalho que deveria consistir na simples troca da força de trabalho do trabalhador pelo seu correspondente em dinheiro, o salário, transfigura-se numa relação de amor (ou ódio) àquele que lhe dá ordens.

O amor ou ódio ao chefe também ocorrem em empresas não-familiares e até em empresas multinacionais, mas de forma mitigada. Quanto maior a organização, mais difuso é o sentimento.

Numa grande empresa, o chefe não personifica a empresa. O empregado pode odiar o chefe e amar a empresa, a "boa mãe"2 2 De acordo com Pagès et al (1987), "a organização [...] está associada a uma imagem inconsciente feminina", mais especificamente, à figura materna. que lhe paga o salário. Na empresa familiar, não: as figuras do patrão e da empresa são indissociáveis.

Além disso, quando as pessoas trabalham por afeto, costumam confundir a figura do patrão com a figura do pai, e as recompensas deixam de ser apenas monetárias, passando a ser também simbólicas. Nesse sentido, a confusão não é só do empregado em relação ao patrão. Se o patrão trata o empregado como um filho que lhe deve obediência, dificilmente, vai conseguir exigir que ele haja como um profissional.

A grande maioria dos fundadores administra intuitivamente, muitas vezes, controlando apenas o extrato bancário e comparando o volume de dinheiro que entrou e saiu de sua conta corrente. Raros são os casos em que os donos de pequenas e médias empresas familiares brasileiras fazem uso de ferramentas contábeis e financeiras para realizar contas simples, como o retorno sobre o investimento ou a margem de lucro de cada produto, para saber se estão seguindo na direção certa. Geralmente, agem por intuição, seguindo seu feeling, e os planos para a empresa não costumam ser discutidos com ninguém. Eles decidem o futuro da empresa sozinhos, por insights, e, assim, dificilmente conseguem o comprometimento que gostariam dos funcionários.

Por isso, o que se observa, com freqüência, é que os funcionários costumam aderir incondicionalmente às idéias do patrão; algumas vezes, pela convicção (gerada por uma grande admiração) de que ele sabe melhor do que ninguém o que está fazendo, outras vezes, pelo temor de contrariá-lo, mesmo que seja para propor uma sugestão benéfica para a empresa. Isso ocorre porque na economia das trocas simbólicas, as pessoas às vezes se sentem mais satisfeitas em receber um elogio do que uma contrapartida monetária em retribuição pelo seu esforço.

Contudo, Bourdieu (1994) salienta o perigo que o capital simbólico representa: o risco de alienação, sobretudo, nas relações em que as trocas deveriam se basear em dinheiro, como no caso das relações trabalhistas.

De todos os campos que rejeitam a lógica do mundo econômico, talvez no familiar o assunto "dinheiro" seja o maior tabu. Numa família, um parente não deve ajudar o outro e receber dinheiro em troca. Se o fizer, será mal visto. Para aquele grupo social, esse tipo de conduta é absolutamente desprezível, abominável. Tanto é assim que, nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras, não há uma separação muito clara entre assuntos referentes à casa e assuntos referentes à empresa. Por isso, é muito comum haver confusão entre o dinheiro do pai, do filho e o da empresa familiar.

No entanto, observa-se que as empresas mais profissionalizadas conseguem separar melhor os assuntos (inclusive, o dinheiro) que se referem à casa dos que dizem respeito à empresa. Quanto maior o grau de profissionalização, maior essa separação.

Para quem não trabalha numa empresa familiar, é muito difícil compreender, por exemplo, por que um filho trabalha para o pai mesmo não recebendo um salário. As pessoas imaginam que o pai deveria obrigatoriamente pagar um salário ao filho pelos serviços prestados, pois se o filho ali não trabalhasse, teriam de ser pagos salário e encargos trabalhistas para que um profissional realizasse as tarefas realizadas pelo filho.

Em primeiro lugar, não se pode esquecer que as pessoas que trabalham em família, agem segundo o habitus de seu grupo social, ou seja, acabam fazendo o que se espera delas, sem sequer se darem conta disso. Todos conhecem as regras do jogo e se as aceitam é porque reconhecem nelas algum sentido.

Além disso, como o dinheiro é um tabu em família, pode-se afirmar que, nas empresas familiares, o capital simbólico é tão ou mais importante que o capital econômico, pelo menos no que diz respeito aos membros da família, que trabalham não só pelo dinheiro que possam vir a ganhar, mas por diversos outros motivos como: o afeto, a admiração e o respeito da família.

Além do mais, de acordo com o pensamento de Maquiavel (1994-5), pode-se afirmar que os membros de uma família que dedicam sua vida à empresa têm com ela uma ligação tanto afetiva quanto de dominação, não conseguindo dela se desvincular facilmente. Após tantos anos de sacrifício em nome da empresa, eles esperam algum retorno em troca, nem que seja apenas uma vida mais tranqüila. É essa expectativa de retorno incerto, que talvez nunca venha a se materializar, que os prende àquela empresa, àquele sonho de ser o próprio patrão.

É da natureza dos homens o obrigar-se tanto pelos benefícios feitos como pelos recebidos. (MAQUIAVEL, 1994-5, p.80-81)

O feio

Quanto ao que é feio de se trabalhar em família, é muito comum ultrapassar limites em razão da maior intimidade, em ter condutas que seriam inaceitáveis com colegas de trabalho não pertencentes à família. Ou seja, ser grosseiro, descontar em quem está mais próximo, discutir assuntos de casa no ambiente de trabalho, desrespeitar a individualidade, invadir o espaço de atuação do outro e competir. Em suma, o que é feio na empresa familiar é feio em qualquer lugar: o desrespeito.

No entanto, as empresas familiares apresentam certas peculiaridades. Brigas por divergência de opiniões em relação a decisões estratégicas ocorrem em todas as empresas, mas o que muda nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras é a forma de expressar essas divergências. Em geral, todos querem o melhor para a empresa, mas como o "melhor" é um conceito subjetivo, ocorrem diversos conflitos em que um tenta impor sua opinião aos outros, especialmente, quando os outros são pessoas da família, com quem se tem maior intimidade.

Algumas vezes, as pessoas tentam se valer de sua posição influente na família para impor aos demais uma decisão referente à empresa. Outras vezes, por não possuírem tanta força dentro da família, tentam se aliar com alguém que, talvez não entenda muito dos negócios, mas que poderia vir a interceder a seu favor junto aos outros membros.

Pessoas são diferentes. E não é pelo fato de serem da mesma família que terão de pensar necessariamente da mesma forma. Por isso, são tão comuns relatos de verdadeiras guerras em pequenas e médias empresas familiares brasileiras, que em casos mais extremos chegam a dividir a família em facções.

Entretanto, embora em família as desavenças sejam maiores, o habitus impõe que os laços de sangue devem prevalecer, obrigando as pessoas a ter mais tolerância com os defeitos dos familiares.

Um exemplo de briga típica de empresa familiar ocorre quando o filho se recusa a trabalhar com o pai.

A empresa familiar representa o ápice da realização pessoal e profissional do fundador, mas, em geral, o pai é incapaz de compreender que ela pode constituir um fardo muito pesado para os sucessores.

Os filhos sabem que o pai, embora este algumas vezes negue, nutre o desejo de que eles continuem sua obra. Contudo, algumas vezes, os pais não deixam outra alternativa aos filhos a não ser darem continuidade a sua empresa. Eles se valem de sua autoridade paterna para gerar no filho um sentimento de que abrir mão da empresa seria ingratidão por todo o esforço que fizeram, esquecendo-se de que a empresa é o seu projeto de vida, mas não necessariamente o dos filhos.

No início, os filhos trabalham porque querem colaborar com o pai, mas com o passar dos anos vão percebendo que, em nome da realização do sonho do pai, abriram mão de seus próprios sonhos. Além disso, os filhos se vêem obrigados a conviver com sócios que não escolheram e dos quais não podem se livrar facilmente por pertenceram à sua família. A dissolução de uma sociedade familiar envolve muita paciência, porque um sócio da família pode até deixar de ser sócio, mas não vai deixar de ser parente e freqüentar as reuniões de família.

Por outro lado, mesmo que o filho esteja disposto a continuar o negócio, o pai nem sempre lhe dispensa o tratamento dispensado aos outros profissionais, como, por exemplo, quando se recusa a lhe pagar um salário ou se vale da sua dupla autoridade para humilhar o filho perante os funcionários, simplesmente, pelo prazer de "mostrar quem manda".

Competir com os filhos é muito comum. O pai sente orgulho de seu filho que se dedica à empresa, afinal "filho de peixe, peixinho é", mas nem sempre está preparado para torcer pelo sucesso do filho, porque passa a encará-lo como uma ameaça, como uma pessoa que um dia talvez passe a ter mais poder e influência do que ele sobre os familiares, os funcionários, a sociedade. O fundador se identifica com a figura do capo3 3 Palavra italiana que significa cabeça, mas também utilizada para designar chefe, comandante, líder. e, por isso, não quer dividir seu poder com mais ninguém.

Uma crítica que a primeira geração costuma fazer à segunda geração diz respeito ao comprometimento com o negócio. Eles não querem apenas um comprometimento de tempo, mas um comprometimento emocional com a empresa. Na verdade, eles esperam que os filhos encarem a empresa da mesma forma que eles, como um objetivo de vida, e o fato é que nem todos os filhos pensam assim.

Quando os pais comparam a sua vida às vidas de seus filhos, acham que os mesmos têm muitas regalias, muitas facilidades que eles próprios nunca tiveram. Contudo, esquecem de que, em contrapartida, os filhos sofrem com a cobrança e com a necessidade de assumir grandes responsabilidades precocemente, o que lhes causa um grande desgaste. No mínimo, o que se espera deles é que mantenham o patrimônio que o pai construiu, pois "já pegaram tudo pronto".

Além disso, o sucessor terá que lidar a vida toda com expectativas, comparações e, ainda, com o ciúme dos que se sentirem preteridos na sucessão.

Não raro os funcionários costumam comparar as características das personalidades de pai e filhos. Alguns, já saudosos do velho patrão, outros, esperançosos de que o novo chefe seja um "salvador da pátria".

No entanto, o que mais afeta a vida dos funcionários dentro das pequenas e médias empresas familiares não são as brigas entre pais e filhos, mas quando há um certo apadrinhamento dentro da empresa.

Numa família, é natural que se tenha mais afinidade com algumas pessoas do que com outras, mas quando essas preferências e favoritismos, antes restritos à esfera doméstica, chegam à empresa, cria-se um clima de insegurança. Com razão, os funcionários se sentem desmotivados ao concorrerem a uma promoção com um familiar, pois duvidam da isenção dos critérios de julgamento dos patrões.

Enfim, embora desrespeito e apadrinhamento não sejam defeitos exclusivos das pequenas e médias empresas familiares brasileiras, observa-se que, em família, os limites do bom senso são mitigados por critérios subjetivos.

Conclusões

Até a elaboração deste artigo, por mais que eu intuísse que as empresas familiares eram diferentes das outras empresas, não seria capaz de explicar o como e o porquê disso racionalmente.

Toda a bibliografia que havia lido, até então, sobre empresas familiares, dedicava-se a dois assuntos: ao processo sucessório, com especial ênfase no conflito de gerações, e à profissionalização, apontada como o "remédio para todos os males".

Apesar do mérito desses estudos, que se preocupam com a preservação das empresas familiares, sua abordagem superficial, que considera somente a lógica econômica, não conseguia (pelo menos, para mim) explicar o que de fato há de "especial" nas empresas familiares.

Em primeiro lugar, porque o conflito de gerações não é privilégio das empresas familiares, ocorrendo em todas as organizações. Em segundo lugar, porque qualquer estudante do primeiro período de faculdade sabe que administração não é ciência e que, conseqüentemente, não existe "receita de bolo" para os problemas que eles irão enfrentar na vida prática: não existe certo ou errado, bonito ou feio. Portanto, a profissionalização pode, sim, ajudar algumas empresas, mas pode também destruir outras.

Hoje, acredito que foi em virtude desse tipo de material, que, durante toda a minha vida, ouvi numerosas críticas e preconceitos em relação às empresas familiares, como se trabalhar em família correspondesse a um trabalho menor, que as pessoas fazem por falta de opção.

Nunca me considerei uma pessoa sem opção. Pelo contrário, considerava-me numa posição privilegiada por ter a opção de trabalhar ou não em família. Por isso me propus a realizar este estudo, disposta a entender o que há de diferente nas empresas familiares.

Seria muito simples fazer entrevistas e perguntar às pessoas quais características elas identificam com as empresas familiares; ou apresentar-lhes uma lista pronta e pedir-lhes que fossem atribuídas gradações de ocorrência: sempre, às vezes ou nunca (o que equivaleria a fazer uma pesquisa de imagem das pequenas e médias empresas familiares brasileiras perante uma amostra da população).

Porém, acredito que esse tipo de trabalho não serviria para elucidar as complexas relações que nelas se estabelecem, razão pela qual preferi estudar quais são os comportamentos considerados bons, maus e feios nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras.

Sem dúvida, a leitura do livro Raisons pratiques sur la théorie de l'action (do francês, Razões práticas sobre a teoria da ação), de Pierre Bourdieu (1994), foi o fator fundamental para o sucesso desta empreitada, sobretudo, quando esclareceu que a família é um campo social onde a lógica econômica funciona às avessas, onde o espírito de cálculo é mal visto.

Só depois de compreender esse conceito, pude chegar à conclusão de que a empresa familiar é, na verdade, um paradoxo, onde convivem duas lógicas distintas e conflitantes: de um lado, estão os interesses da empresa, que objetiva o lucro e, portanto, segue a lógica econômica e, de outro, estão os interesses da família, que adota a lógica do bem comum.

Entendida a razão dos numerosos conflitos relatados por pessoas que trabalham em empresas familiares, sejam fundadores, sucessores ou funcionários, percebi a importância da profissionalização.

No impasse entre a lógica da empresa e a da família, as empresas menos profissionalizadas tendem a privilegiar os interesses da família em detrimento dos interesses da empresa, ao passo que as mais profissionalizadas conseguem separar melhor os assuntos relativos à empresa e à família.

Isto posto, acredito que seja essa lógica dúbia e conflitante, que em nada se compara à lógica do homem econômico racional, que constitui a principal característica distintiva das empresas familiares. Pelo menos, pude comprovar isso nas pequenas e médias empresas familiares brasileiras, que foram objeto deste estudo.

Além disso, é interessante notar que nesse conflito entre os interesses da empresa e os da família, os envolvidos não estão necessariamente em posições antagônicas, uma vez que possuem ambos os interesses. Sem dúvida, eles desejam o melhor tanto para a família quanto para a empresa. Porém, como "o melhor" é um critério subjetivo, dificilmente, conseguem chegar a um consenso quanto ao peso exato que devem ter os interesses da empresa e os da família nas decisões que envolvem a empresa. Aparentemente, esse será um conflito eterno e sem solução.

Entretanto, há um componente desse conflito que pode ser minimizado, qual seja, a tendência das pessoas a querer valer-se de sua autoridade natural sobre a família para impor uma decisão na empresa e vice-versa.

Além disso, a leitura de Bourdieu (1994) foi especialmente decisiva para que eu conseguisse enxergar as complexas relações de poder e dominação que se estabelecem nas empresas familiares, sobretudo, através da dominação implícita exercida pelas trocas simbólicas que ali se estabelecem.

Minha visão de mundo foi profundamente modificada. Eu tinha consciência dos discursos e práticas de "lavagem cerebral" das empresas multinacionais, mas não conseguia perceber o maior problema de se trabalhar em família, o risco de alienação, pois, teoricamente, as relações de trabalho são relações em que o trabalhador troca sua força de trabalho pela sua contraprestação em dinheiro, o salário, que é fundamental para a sua sobrevivência. Na empresa familiar não é assim. Nela, as pessoas trocam sua força de trabalho não só por dinheiro, mas também por afeto, respeito e admiração dentro da família.

Assim, a leitura de Bourdieu (1994) surtiu em mim um efeito emancipatório. Eu passei a questionar se continuar a empresa familiar tinha sido uma decisão racional minha ou se ela me tinha sido imposta pelo habitus do meu grupo social, que espera exatamente isso de mim.

Sem dúvida, a partir de agora, não poderei mais dizer que fui condicionada a isso. Compreendendo as regras do jogo em vigor, tenho o livre arbítrio de decidir se vale a pena ou não jogar.

Concluindo, respondo mais explicitamente às perguntas de pesquisa. As pequenas e médias empresas familiares brasileiras têm, sim, uma forma própria de organização, que é resultante de duas lógicas: a lógica econômica e a lógica do bem comum, que constantemente se alternam e se sobrepõem. Por isso, essa lógica é diversa da lógica exclusivamente econômica. É justamente essa dualidade de lógicas que constitui sua principal característica distintiva quando comparada com outras formas de organização e que, em muitos casos, deve ser preservada.

Artigo submetido em junho de 2007 e aceito em outubro de 2007.

  • BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques sur la théorie de l'action. Paris: Seuil, 1994.
  • CLEGG, Stewart R. As organizações modernas. Tradução: Fátima Assunção. Oeiras: Celta, 1998.
  • MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Cultrix, 1994-5.
  • PAGÉS, Max et al. O poder nas organizações. Tradução: Maria Cecília Pereira Tavares e Sônia Simas Favatti. São Paulo: Atlas, 1987.
  • SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Disponível em <http://www.sebrae.br>. Acesso em: 9 dez. 2006.
    » link
  • THE GOOD, the bad and the ugly. (Título do filme em português: Três homens em conflito.) Direção: Sérgio Leone. Itália/Espanha, 1966. DVD.
  • WENSLEY, Robin. Isabella Beeton: Management as "everything in its place". Business Strategy Review, v.7, n.1, spring 1996.
  • 1
    Wensley (1996) dedicou um artigo a comentar um livro em que uma dona de casa inglesa, Mrs. Isabella Beeton (1861 apud WENSLEY, 1996), dá conselhos sobre administração de pequenos negócios, os quais podem ser resumidos em três: dar exemplo aos empregados, controlar as finanças e ter ordem e método. Em outras palavras, "deve haver um lugar para cada coisa e cada coisa deve estar em seu lugar". (BEETON, 1861 apud WENSLEY, 1996, p. 38, tradução nossa).
  • 2
    De acordo com Pagès et al (1987), "a organização [...] está associada a uma imagem inconsciente feminina", mais especificamente, à figura materna.
  • 3
    Palavra italiana que significa cabeça, mas também utilizada para designar chefe, comandante, líder.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2007
    • Aceito
      Out 2007
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