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A percepção da captura política da saúde suplementar no Brasil

Perceiving the political capture of the private health sector in Brazil

Resumos

O estudo analisa a relação público-privado do sistema de saúde suplementar no Brasil à luz da teoria institucional, analisando as ações e as estratégias percebidas dos principais atores portadores de interesse no sentido da dominação do poder público. A base empírica advém de pesquisa de campo e documentos abrangendo o período entre 2003 e 2006, voltada ao entendimento das motivações e a intensidade da captura política pelo setor privado da saúde. O estudo sugere que o setor apresenta indícios de estar no início de um processo de dominação, contribuindo para reduzir o direito dos usuários dos planos de saúde e a eficácia da agência reguladora, fortalecendo as corporações privadas de saúde em prejuízo de uma classe média consumidora de serviços longeva e com gradativa perda de renda.

Saúde suplementar; Campo organizacional; Captura política


This paper analyzes the public and private relationship in the private health system in Brazil. It focuses on the relevant stakeholders' actions and strategies according to the theoretical basis of the institutional vision of the organizational theory. The empirical and documental data were collected between 2003 and 2006 and were subjected to qualitative analysis. The study suggests that the social phenomenal changes, as aging and income losses of the middle class force the redirection of the corporation strategy of private players towards a safety environment for their economic interests, reducing the public-private partnership equilibrium through an incremental political capture process.

Private health; Organizational field; Political capture


ARTIGOS

A percepção da captura política da saúde suplementar no Brasil

Perceiving the political capture of the private health sector in Brazil

Paulo Ferreira Vilarinho

Doutor em Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ e Mestre em Gestão Empresarial, EBAPE/FGV. Consultor Associado do PNUD. Endereço: rua Almirante Cochrane nº 236, Tijuca, Rio de Janeiro - RJ. E-mail: pvilarinho@uol.com.brpvilarinho@uol.com.br

RESUMO

O estudo analisa a relação público-privado do sistema de saúde suplementar no Brasil à luz da teoria institucional, analisando as ações e as estratégias percebidas dos principais atores portadores de interesse no sentido da dominação do poder público. A base empírica advém de pesquisa de campo e documentos abrangendo o período entre 2003 e 2006, voltada ao entendimento das motivações e a intensidade da captura política pelo setor privado da saúde. O estudo sugere que o setor apresenta indícios de estar no início de um processo de dominação, contribuindo para reduzir o direito dos usuários dos planos de saúde e a eficácia da agência reguladora, fortalecendo as corporações privadas de saúde em prejuízo de uma classe média consumidora de serviços longeva e com gradativa perda de renda.

Palavras-chave: Saúde suplementar. Campo organizacional. Captura política.

ABSTRACT

This paper analyzes the public and private relationship in the private health system in Brazil. It focuses on the relevant stakeholders' actions and strategies according to the theoretical basis of the institutional vision of the organizational theory. The empirical and documental data were collected between 2003 and 2006 and were subjected to qualitative analysis. The study suggests that the social phenomenal changes, as aging and income losses of the middle class force the redirection of the corporation strategy of private players towards a safety environment for their economic interests, reducing the public-private partnership equilibrium through an incremental political capture process.

Key words: Private health. Organizational field. Political capture.

1. Introdução

A visão de um cenário de bem estar remonta aos primórdios do liberalismo clássico, na secular preocupação da burguesia com uma possível ruptura social fermentada na profunda desigualdade econômica, principalmente após a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, na medida em que o fortalecimento do capitalismo industrial ensejou a formação de gigantescas massas proletárias, estimulando a criação de sistemas de seguridade que minimizassem os níveis de pobreza, embora mantivessem a hierarquia entre classes (ESPING-ANDERSEN, 1999). Ou seja, os fundamentos do welfare state são antigos, reflexos de uma época na qual os operários dependiam de recursos como saúde e educação para trabalharem com eficiência nas fábricas, gerando, entretanto, uma consciência de cidadania, sinalizando que a construção de um ambiente social advém das coalizões políticas, garantindo a subsistência do Estado e das próprias corporações industriais.

Segundo Max Weber, o primeiro indício de uma política econômica racional fundada em parcerias com empresas capitalistas úteis à estratégia do Estado foi na Inglaterra, no séc. XVI, por meio de um modelo cunhado por Adam Smith como mercantilismo, que expandiu a riqueza interna do país pela exportação de manufaturas e controle das importações, gerando as bases conceituais das balanças comerciais como instrumento de política econômica (WEBER, 1998).

Peter Drucker registra que no início do século XX nenhum governo arrecadava mais do que 5% da renda nacional. A Primeira Grande Guerra ampliou esta relação, reforçada pela emissão de bônus de guerra, gerando obrigações do Tesouro e as bases de um novo modelo de economia no qual as pressões inflacionárias se tornaram endêmicas, limitando a efetiva capacidade de arrecadação do Governo, que, se ultrapassada, desestimula o crescimento econômico gerando depressão, estagflação e a realimentação das pressões inflacionárias, transformando os gastos governamentais em um mal para a sociedade (DRUCKER, 1997).

Desse modo, os limites da arrecadação fiscal e a necessidade de níveis elevados de eficiência nos programas governamentais propiciaram um modelo de governança baseado em parcerias público-privado, que materializam o moderno dilema decisório da administração pública: fazer ou comprar? Gerar bens e serviços diretamente pelo Estado ou por agentes privados contratados ad hoc, otimizando recursos públicos pelo compartilhamento de riscos e co-produção em campos específicos ou não, conforme o contexto institucional, político e cultural de cada país. Por outro lado, é possível que ao longo do tempo a estratégia da parceria possa perder o equilíbrio saudável da confiança mútua, e que as diferentes lideranças políticas locais possam dificultar os arranjos pela força dos interesses paroquiais, propiciando oportunismos para ambas as partes (SKELCHER, 2005).

No caso, embora a terceirização de serviços reduza o volume dos aportes públicos, a assimetria de informações e a limitada capacidade de fiscalização do Estado estimulam os agentes privados a sacrificar a qualidade dos serviços prestados à sociedade em proveito da lucratividade empresarial, práticas condenáveis justificadas pela manipulação do discurso afastando a ética e a responsabilidade social das corporações (WHITTINGTON et al, 2003).

Ou seja, conforme a densidade da interação entre os atores públicos e privados de um campo organizacional e a fragilidade dos valores sociais envolvidos, pode-se gerar uma estratégia de cumplicidade com base em falhas na transparência das informações estimulando a obtenção de interesses, onde cada ator, em sua especificidade, obtém vantagens fora do processo natural da livre competição em detrimento da sociedade.

O fenômeno da corrupção não é recente. Há oito séculos, Dante Alighieri posicionou na mais profunda região do inferno, na quinta vala do oitavo círculo, mergulhados num poço de betume fervente, os que exerceram o tráfico de cargos e influência: "são os funcionários corruptos e venais, os prevaricadores e trapaceiros" (DANTE, 1971: 189). Por outro lado, trata-se de um fenômeno de difícil observação, considerando que este não ocorre à luz do dia, embora "like an elephant, while it may be difficult to describe, corruption is generally not difficult to recognize when observed" (TANZI, 1998: 564).

A situação estimulou pesquisadores (TANZI, 1998; REINIKKA, SVENSSON, 2003; ABOLAFIA, KILDUFF, 1988; STIGLER, 1971), instituições internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (GUPTA, DAVOODI, TIONGSON, 2000) e entidades não governamentais (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2004) a identificarem mecanismos de dominação, ou captura, do poder público por corporações privadas. "Um tipo de estratégia competitiva que, embora não seja socialmente aceitável, é altamente eficaz em países do terceiro mundo" (MARTIN, 2003: 1), pois conforme o contexto, algumas empresas podem ficar dependentes de determinadas agências de governo com autoridade legal sobre o acesso no mercado e a fixação de níveis de preços, podendo se constituir numa ameaça à própria sobrevivência ou autonomia da empresa, razão pela qual aquelas que se encontram sob a influência de uma lei ou regulamentos não ficam totalmente passivas e podem assumir uma postura política exercendo influência no próprio processo regulador.

O ambiente de captura política pode abranger uma miríade de parcerias sutis em uma rede de diversificados interesses, associando renomados acadêmicos e consultores, agências de fomento, a mídia especializada e segmentos do Governo atuando em áreas estratégicas como a infraestrutura, a educação e principalmente a saúde, salienta Whittington (2003).

O presente estudo tem por objetivo analisar o mercado de saúde suplementar no Brasil quanto à sua vulnerabilidade frente à pressão dos atores privados portadores de interesse, que visam conformá-lo às suas estratégias corporativas minando a eficácia dos instrumentos institucionais desenvolvidos para a salvaguarda do sistema.

2. Método

A metodologia utilizou base documental para identificar informações relevantes ao entendimento da estruturação do mercado da saúde suplementar e da percepção quanto à sua captura política produzida por entidades de classe médica e de defesa do consumidor, como o CREMESP1 1 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo , o IDEC2 2 Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e o Poder Judiciário, abrangendo o período entre 2003 e 2006. Também foi realizada pesquisa empírica junto à Agencia Nacional de Saúde Suplementar- ANS no ano de 2004 sobre a evolução dos processos de fiscalização.

A categorização dos dados associou os objetivos percebidos nos atores privados, suas ações junto ao poder público e os resultados obtidos, por meio de correlações entre variáveis escolhidas conforme um modelo conceitual explicativo de captura política na visão do Banco Mundial. As variáveis são as seguintes: frequência de operadoras de planos de saúde ativas; faturamento das operadoras ativas; frequência de usuários de planos individuais de saúde; frequência de usuários de planos coletivos; volume de normas regulatórias e de demandas judiciais em 2º grau recursal no TJ-SP. Foram comparadas as tendências entre montantes de doações a campanhas de políticos associados com interesses de corporações de serviços de saúde nas eleições de 2002 e 2006.

A base teórica utilizada foi a teoria institucional com foco no papel desempenhado pelos atores no desenho da estrutura e dos processos em um campo organizacional. A abordagem institucional, que deriva da teoria das organizações (MEYER, ROWAN, 1977) enfatiza a força de fatores exógenos como legitimadores de regras, mitos e crenças que moldam a realidade social e pelas quais as organizações tendem a agregar valor e significado social às suas atividades. Conceitualmente, é o processo pelo qual as empresas tornam-se altamente organizadas e sistematizadas, com valores que se integram aos requisitos técnicos necessários à execução das suas atividades (SELZNICK,1996), sejam públicos ou privados, legitimando suas estruturas e processos em relação aos membros e ao ambiente em que atuam, reforçando o suporte social e a aprovação dos parceiros externos, deixando de atuar como unidades distintas e objetivos individuais, posto que a sua sobrevivência advém da capacidade de alinhamento às orientações coletivamente compartilhadas, para o êxito das estratégias comuns e do funcionamento interno do campo, formando práticas gradativamente homogêneas que sobrepujam os valores dos clássicos critérios de eficiência técnica (DIMAGGIO, POWELL, 1983).

3. O sistema misto de financiamento da saúde no Brasil

O modelo brasileiro de financiamento da saúde associou um subsistema público, Sistema Único de Saúde - SUS, com um de mercado, Saúde Suplementar, com objetivos formais diferenciados, mas que no conjunto se complementam realizando a função redistributiva da universalização do direito social à saúde, por vezes de modo paralelo ou mesmo se sobrepondo. Segundo Faveret e Oliveira (1990), o Governo visou à população pobre e sem organização social, relegando os segmentos de classes de renda elevada ao mercado, afastando-os do sistema público.

O mercado de saúde suplementar até o ano de 2006 agregou 2.639 operadoras de planos de saúde em atividade, movimentou R$ 39,2 bilhões ao ano prestando serviços para 31,6 milhões de beneficiários, perto de 25% da população (BRASIL, 2007). O mercado apresenta uma forte correlação entre o acesso e rendimento familiar: nas classes com renda inferior a um salário mínimo a cobertura alcança apenas 2,9% das pessoas, enquanto nas classes de 20 salários e superior atinge 83,8%, marcando um perfil de desigualdade social no acesso ao sistema (BRASIL, 2003, 2000). O setor reúne inúmeras concentrações: um volume de 80% dos usuários tem contrato com 12% das operadoras, sendo que 95% se concentram na região Sudeste, basicamente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, que, por si só, movimentam 60% do mercado nacional (BRASIL, 2002).

O sistema é complexo, pois as divergências ideológicas e econômicas alimentam um processo de segmentação, sinalizando a força de uma estratégia corporativa pela qual os atores privados se afastam do problema representado pela prestação de serviços dispendiosos de saúde a uma população longeva e com gradativa perda de renda.

A análise dos elementos institucionais do campo aponta uma forte divergência de interesses entre os atores. O alinhamento estratégico das principais operadoras de planos de saúde evidencia a vulnerabilidade dos usuários e dos prestadores de serviços de saúde, por meio de um processo de segmentação do mercado, alimentando um processo de seleção adversa que deixa sem cobertura ou dependente do SUS a população de alto risco, como registram o IDEC (2007) e o CREMESP (2007).

A presente pesquisa sugere que os atores relevantes do sistema adotam valores, crenças e tipos articulados de ação, desenvolvendo regras e competências e assumindo padrões de ação próprios, desenhando um campo institucional com estruturas homólogas.

O modelo desenvolvido para o sistema de saúde brasileiro encontra-se ilustrado no Diagrama 1 , enquanto o perfil dos atores, seus objetivos estratégicos e respectivos recursos de poder do campo da saúde suplementar estão sumarizados no Quadro 1.


1. As operadoras de planos de saúde, a par do segmento privado das entidades filantrópicas, estruturam a prestação dos serviços contratando redes de assistência no atendimento aos seus clientes. Os recursos de poder estão na estrutura organizacional, presente em toda a federação, e no poder econômico viabilizando lobbies no Legislativo e patrocínio de ações judiciais;

2. Os prestadores de serviços de saúde compõem a classe médica, os hospitais e clínicas de diagnóstico-terapêuticos, que atendem tanto ao SUS como ao sistema da saúde suplementar. Os recursos de poder estão na estrutura organizacional de conselhos e associações, na chamada "bancada da saúde" no Congresso e nos códigos de ética médica;

3. Os consumidores de planos de saúde não se estruturam em associações civis. Seu recurso de poder advém de entidades externas: os PROCON, do Poder Executivo; o Judiciário e entidades privadas como o Instituto de Defesa do Consumidor - IDEC, que atuam, cada qual em sua esfera de competência, na garantia dos direitos prescritos no Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11.09.1990, e na Lei nº 9.656, de 09.06.1998.

4. Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, regula e fiscaliza o campo. Os recursos de poder são a legislação, a estrutura nacional de fiscalização, a independência administrativa e política e a receita advinda de taxas de licenciamento das operações.

A análise do ambiente institucional salienta que os recursos econômicos e a estrutura organizacional são basilares às operadoras de planos de saúde. Os prestadores de serviço se apoiam em códigos de conduta ética e em grupos de pressão junto ao Congresso. Os usuários de planos de saúde dependem da legislação, de entidades de defesa do consumidor e do Judiciário, enquanto a própria Agência reguladora fica adstrita ao alcance da legislação e de suas resoluções normativas.

4. Modelo conceitual da captura política do campo da saúde suplementar

A natureza dos atores do campo da saúde suplementar, seus objetivos e os recursos de poder usados para alcançá-los permitem conceituar o fenômeno da captura política por meio de um modelo teórico representado pela seguinte relação causal:

Captura = força política > redução do rigor da lei > força econômica > força política

O modelo é avaliado por variáveis de análise dos dados categorizados segundo a tipologia de Nilton Martin, ajustada às peculiaridades do campo. Martin decompõe os tipos de captura por faixas de intensidade e foco da ação, conforme a vulnerabilidade da política dominante e os resultados esperados. As táticas pelas quais se obtém vantagens diretas são as ativas; as que protelam, reduzem a eficácia de leis ou atenuam os custos do descumprimento, são as defensivas. Quando a ação visa apenas alterar a percepção da autoridade em certo assunto é de baixa intensidade, quando age na decisão é tida como de alta intensidade; sobre o Legislativo e nas agências reguladoras são avaliadas como de baixa e alta intensidade, respectivamente. O autor enumera alguns exemplos (MARTIN, 2003):

Táticas Ativas:

Aprovação e liberação de recursos orçamentários relativos a programas de interesse;

Obtenção de recursos governamentais em condições altamente favoráveis;

Vantagens fiscais e proteção de mercados;

Acesso privilegiado a mercados governamentais de compras de bens e serviços, ou contratos sem licitação pública ou com preços acima do mercado;

Política de preços com margem de rentabilidade excessiva imposta à sociedade;

Redução da incerteza pelo acesso a informações privilegiadas, em planos de governo, medidas provisórias e projetos de leis.

Táticas Defensivas:

O bloqueio de projetos, o retardamento da regulamentação de legislação desfavorável, ou redução de sua eficácia;

A protelação da vigência de medidas desfavoráveis e ineficácia da fiscalização;

Minimização do custo da desobediência às regras pelo retardamento no pagamento de multas ou o pagamento mínimo.

A incerteza presente nos sistemas de saúde é forte e abrangente, podendo alcançar os poderes Legislativo e Executivo, além de um sem número de comissões orçamentárias e de classe, permitindo que agentes privados participem ativamente do processo investindo recursos para conquistar posições de poder no jogo político (SAVEDOFF, 2007), como ilustra o diagrama 2 , com um hipotético, porém plausível, modelo de captura da saúde suplementar.

Os dados que podem ser referidos à percepção da captura política da saúde suplementar, por atores, tipos de táticas, foco de ação e intensidade encontram-se no quadro 2.


5. Resultados

A análise sinaliza que o modelo conceitual explica a ação dos atores em uma estratégia de captura política. O processo principia nas doações a políticos, reflete-se no amortecimento do rigor da lei e na longa manus da Agência, reduz a eficácia normativa, obriga os usuários a buscarem um poder neutro, o Judiciário. Segmenta o mercado em grupos de baixo e alto risco, fortalece economicamente as operadoras e, ao final, fecha o ciclo reforçando as doações e a representação política das corporações.

O quadro ressalta a força da "bancada da saúde" no volume crescente das doações pelas operadoras a partidos políticos, na defesa de interesses junto ao Legislativo. Segundo pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, o número de empresas doadoras aumentou de 15 a 62, entre as eleições de 2002 e 2006, concentrando recursos da ordem de R$ 7,2 milhões, 757% superior à eleição anterior, logrando elevar de 17 para 31 o número de parlamentares explicitamente ligados a interesses corporativos (CEBES, 2007).

Segundo a ANS, entre 2001 e 2006, a receita das operadoras cresceu 80%, de R$ 21,4 bilhões a R$ 38,5 bilhões, sendo que a diferença entre novos clientes de planos individuais e planos coletivos subiu de 3.876.081 para 12.498.546 indivíduos. Porém, o número de operadoras em atividade caiu de 2.639 para 2.070, entre 1999 e 2006 (BRASIL, 2007a).

Enquanto isso, o órgão regulador aparenta perder de vista a sua missão institucional originária, concentrando-se no arcabouço normativo de um segmento de mercado que aos poucos perde expressão, privilegiando uma visão de processo em detrimento dos seus objetivos, conforme conceito de Gajduschek (2003). Para regular um volume de cerca de 20% do mercado foi produzido, entre 1998 e 2007 (até setembro), um conjunto de 966 itens normativos, leis, propostas de medidas provisórias e resoluções (BRASIL, 2007b), metade das quais promulgadas três anos após a constituição da ANS, já na segunda gestão do órgão. Neste período, elevou sua receita de R$ 83,9 bilhões para R$105,3 bilhões (BRASIL, 2007c).

A agência apresenta uma forte sensibilidade à alternância política. Na gestão entre 2000 e 2004, seguiu o entendimento de que não deve se ater a casos concretos, mas concentrar esforços nos agregados que integram a economia e a estrutura do mercado, aplicando multas nos casos relacionados com práticas gerenciais. Porém, entre 2004 e 2007, imprimiu outra diretriz: julgou 427 processos de fiscalização, em 2ª instância, contrariamente às operadoras, sendo que 50% dos processos sobre doenças e lesões preexistentes, e nos últimos dois anos notificou o lançamento de débito fiscal em 47 casos (BRASIL, 2007d).

Ou seja, as multas aplicadas até 2004, perto de R$ 80 milhões, perderam parte da sua eficácia, pois o tempo médio do processo administrativo em 1ª instância consumia quase dois anos até a análise de recursos pela Diretoria Colegiada, estacionando sem prazo, para depois, se necessário, prosseguir pela via judicial. Na época, a Agência cadastrou na Dívida Ativa e CADIN 39 processos, que somaram perto de R$ 1,2 milhões.

Entretanto, o cipoal normativo gerado pela Agência não é suficientemente eficaz para harmonizar as relações entre consumidores e operadoras, que pressionam o poder judicial na resolução de conflitos (BRASIL, 2005). Segundo Mário Schaffer, 735 demandas judiciais subiram em grau de recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entre 2000 e 2004, com sentenças contrárias aos interesses das operadoras em assuntos de doenças crônicas e colocação de próteses (SCHAFFER, 2006).

Avaliando a possibilidade de que existam relações de proporcionalidade entre as variáveis do modelo, analisamos as associações entre tendências nas seguintes hipóteses:

I. O fortalecimento político das operadoras de planos de saúde pode estimular a redução dos planos de saúde individuais e familiares no mercado da saúde suplementar?

II. A redução dos planos individuais pode estimular o aumento da receita das operadoras?

III. A produção regulatória é eficaz na prevenção contra lesão de direitos dos consumidores?

Percepções:

1. Há uma sintonia entre o volume de doações a políticos e o faturamento das operadoras.

2. Há uma forte correlação entre a quantidade de operadoras de planos de saúde em atividade e o crescimento dos planos coletivos, em detrimento dos planos individuais.

3. A formação de oligopólios no mercado de saúde suplementar favorece a elevação do faturamento das principais operadoras de planos de saúde.

4. O arcabouço legal e o conjunto das medidas regulatórias da ANS, no período entre 2000 e 2004, aparentam contribuir para a redução dos litígios judiciais envolvendo questões de saúde suplementar. É possível, entretanto, que outros fatores concorram para a redução das demandas judiciais.

6. Pontos de discussão

O estudo sobre a saúde suplementar no Brasil encontra ressonância na experiência do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, para os quais, especialmente nas economias emergentes, a administração pública é realizada por meio de complexos sistemas de leis, regulamentos e autorizações que consolidam um tipo de monopólio de poder nos agentes do governo, com discricionariedade para rejeitar o exercício de algumas atividades ou simplesmente paralisar o processo decisório por meses ou anos, exigindo frequentes contatos entre cidadãos, empresários e os burocratas do governo, conforme Gupta, Davoodi e Tiongson (2000), caso das agências da Argentina e Peru, sugerindo desvios na gestão de taxas e licenças de funcionamento, registra Tanzi (1998).

George Stigler (1971) avalia que normalmente as organizações com poder político não o aplicam para auferir apenas ganhos financeiros, ou em dirigismos nas contratações públicas, mas sim no controle sobre as entidades rivais no negócio, na influência sobre a ação regulatória quanto à expansão do setor: na entrada de novos competidores, na oferta de bens substitutos ou complementares e, principalmente, sobre os preços dos produtos.

No caso da saúde suplementar, o estudo sinaliza que são fortes os indícios de que este setor tenha perdido sua neutralidade frente às fortes pressões das corporações prestadoras de serviços. A gradativa concentração do mercado em torno das corporações de grande porte se deve por muitos fatores originados na ANS, tais como a falta de estrutura organizacional dos grupos menores frente às complexas exigências contábeis e de informação para funcionarem.

Neste aspecto, as autorizações da Agência nos reajustes no preço dos planos de saúde, via de regra acima da inflação, e o distanciamento da questão dos planos coletivos, reforçam a visão de Stigler, para quem esse ambiente fortalece o poder econômico das corporações de saúde, estimula a segmentação do mercado e a formação de oligopólios. A pesquisa identifica o objetivo das doações a políticos: propostas de rejeição à obrigatoriedade de pagamento de despesas de acompanhante de idosos e crianças; à cobrança de PIS e COFINS às cooperativas médicas, suspensão de convênios públicos com o Fundo GEAP, em prol das operadoras.

Vito Tanzi sugere que este contexto facilita a pressão por grupos especialistas no trâmite e desobstrução de processos de interesse privado enredados na complexa e nem sempre transparente malha regulatória, atuando em autorizações, taxações e penalidades. Fatores como a contenção de salários e a baixa qualidade da burocracia pública alimentam as práticas usuais de captura política, como o financiamento de políticos e partidos, que concentram verbas públicas em setores de interesse corporativo firmando a influência de grupos de rent seeking, ou seja, os que buscam rendas públicas para o consumo privado.

No plano internacional, estudos em Hong Kong e La Paz avalizam modelos que sumarizam Corrupção = Monopólio + Discricionariedade - Prestação de Contas, mostrando que o grau da corrupção depende da efetividade do sistema legal e do rigor da punição, conforme Klitgaard, Maclean-Abaroa e Lindsey (2000) e Treisman (2000).

Na saúde, Savedoff e Hussmann (2005) avaliam que a corrupção afeta a qualidade de todos os sistemas, sendo particularmente gravoso na América Latina e Caribe. Na Colômbia, o Secretário da Saúde afirmou, em 2002, que a reforma dos anos 1990 não reduziu as fraudes por seguradoras de saúde, que continuaram a cobrar do governo por serviços prestados a pacientes falecidos ou transferidos a outras organizações de saúde (SAVEDOFF, 2007).

7. Considerações finais

O estudo avalia que a estratégia das corporações junto ao Legislativo, no sentido de se afastarem do foco da lei 9.656/1998, que caracteriza os serviços de saúde como uma relação individual de consumo, está logrando êxito. Aos poucos o conceito é substituído pelas regras de contrato que regem os planos coletivos, robustecidas pelo distanciamento da ANS, embora o segmento dos planos individuais, sob sua égide, esteja perdendo expressão.

O estudo não identificou indícios formais de corrupção entre a ANS e as organizações privadas, posto que o processo de segmentação do mercado e enriquecimento das corporações de saúde ocorre livremente sob o manto da legalidade, ficando a Agência adstrita à lei e ao Ministério da Saúde. Por outro lado, a agência, a partir de 2004, está impondo uma ação mais forte junto às operadoras de planos de saúde, julgando casos concretos sobre doenças preexistentes e lesões de direito. Esta mudança pode estar contribuindo para a redução da demanda judicial.

De uma perspectiva ampla, o modelo institucional do campo da saúde suplementar no Brasil apresenta lacunas na consistência política e severas vulnerabilidades organizacionais, posto que estas evoluem sem salvaguardas estruturais, desenhando um cenário social futuro deveras desfavorável, com o contingente atual de 24 milhões de usuários de planos coletivos podendo integrar à massa dos 18 milhões de idosos estimados para 2020, acorrendo às portas do SUS após terem sido afastados dos planos corporativos por força da aposentadoria no mercado de trabalho.

A análise crítica dos efeitos da trajetória da captura política é complexa, pois são escassos os estudos no Brasil sobre este assunto, ao contrário de outros países da América Latina, como a Bolívia, Venezuela, Peru, Argentina e Colômbia, dentre outros, que tratam de modo transparente os impactos da corrupção na macroeconomia e nos indicadores de pobreza. No Brasil, com exceção de algumas poucas organizações, como a transparência Brasil, que basicamente focaliza a percepção da corrupção no âmbito das eleições, via de regra o assunto é "fechado", mesmo no ambiente acadêmico. Principalmente na área da saúde.

A experiência acumulada de inúmeras organizações internacionais sinaliza que medidas institucionais adequadas podem reduzir a força da estratégia de captura política. Dentre estas, sobressaem o aperfeiçoamento das auditorias nas contas públicas; o controle quanto ao poder discricionário dos agentes de governo e o desenvolvimento de sistemas de informações que elevem o nível de transparência do jogo político.

WHITTINGTON, R., JARZABKOWSKI, P., MAYER, M., MOUNOUD, E., NAHAPIET, J.,

ROULEAU, L..Taking strategy seriously. Journal of Management Inquiry, v. 12, n.4, p. 396- 409, 2003.

Artigo submetido em outubro de 2009 e aceito para publicação em dezembro de 2009.

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    Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
  • 2
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2009
    • Recebido
      Out 2009
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