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Motivações e significados do abandono de categoria: aprendizado a partir da investigação com ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis

Motivations and meanings of the abandonment of a category: learning through the investigation with ex-smokers and ex-car owners

Resumos

O presente trabalho investiga por que os indivíduos tomam a decisão de abandono de categoria, tendo em vista diferentes contextos de estímulo e questionamento ao consumo. Para isso, foram escolhidas as categorias de automóvel e cigarro, considerando-se o conteúdo do sistema da publicidade, que, no caso do automóvel, é predominantemente de reforço ao consumo e, para o cigarro, de proibição dos anúncios por parte da indústria e demarketing através das campanhas governamentais. A pesquisa utiliza-se de metodologia qualitativa de coleta e análise dos dados, obtidos a partir de entrevistas em profundidade com 29 consumidores (ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis). O trabalho enriquece os estudos de anticonsumo ao diferenciar três tipos de abandono e evidenciar que este não é apenas movimento de distanciamento de significados negativos, com o objetivo de proteger a autoestima (Hogg et al., 2009), mas também passível de operar diferenciação afirmativa, positiva e de reforço da autoestima. O abandono contingencial acontece quando o indivíduo, apesar de compartilhar os significados com os consumidores da categoria, vê-se forçado a abandonar o consumo. O abandono posicional é motivado principalmente pela rejeição às associações simbólicas que o consumo proporciona. Por fim, o abandono ideológico apresenta uma perspectiva coletiva, onde o indivíduo acredita que a sociedade (e não apenas ele individualmente) deve abandonar aquele consumo.

Anticonsumo; Abandono; Cigarro; Automóvel


This paper aims at investigating why individuals make the decision to abandon a category in different contexts of stimulation and questioning of consumption. For this study, the product categories car and cigarette were selected, taking into account contents from the advertising system. In the case of cars, these contents mainly concern reinforcement of consumption; with regard to smoking, the questioning of consumption predominates (due to the Brazilian government's anti-smoking campaigns and ban on tobacco industry advertising). This research uses a qualitative methodology for the collection and analysis of data obtained through in-depth interviews with 29 consumers (ex-smokers and ex-car owners). The paper contributes to the literature on anti-consumption characterizing three different types of abandonment and suggesting that, more than a move away from negative meanings to protect selfesteem (HOGG et al., 2009), abandonment is also likely to promote affirmative, positive, differentiation and to reinforce self-esteem. This research shows that, like consumption, abandonment is able to construct identities and signalize important changes. Contingency abandonment occurs when the individual, despite sharing meanings with other consumers of a category, is forced to abandon consumption. Positional abandonment is driven mainly by the rejection of symbolic associations that consumption provides. Finally, ideological abandonment presents a collective perspective where the individual believes that society as a whole should abandon or reassess that kind of consumption.

Anti-consumption; Abandonment; Cigarette; Car


ARTIGOS

Motivações e significados do abandono de categoria: aprendizado a partir da investigação com ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis

Motivations and meanings of the abandonment of a category: learning through the investigation with ex-smokers and ex-car owners

Maribel SuarezI; Marie Agnes ChauvelII; Leticia CasottiIII

IDoutora em Administração pela Universidade PUC-Rio (IAG); Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. (COPPEAD/UFRJ); Professora Adjunta do Instituto COPPEAD/UFRJ de Administração. Endereço: Rua Pascoal Lemme, 355 - Ilha do Fundão, CEP 21941-918, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. E-mail: maribels@coppead.ufrj.br

IIDoutora em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPEAD/UFRJ); Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP); Professora adjunta da Universidade Federal de São João Del Rei. Endereço: Praça Frei Orlando, 170 - Centro, CEP 36307-352, São João del-Rei - MG, Brasil. E-mail: mariechauvel@gmail.com

IIIDoutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ); Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPEAD/UFRJ); Professora adjunta do Instituto COPPEAD/UFRJ de Administração. Endereço: Rua Pascoal Lemme, 355 - Ilha do Fundão, CEP 21941-918, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. E-mail: leticia@coppead.ufrj.br

RESUMO

O presente trabalho investiga por que os indivíduos tomam a decisão de abandono de categoria, tendo em vista diferentes contextos de estímulo e questionamento ao consumo. Para isso, foram escolhidas as categorias de automóvel e cigarro, considerando-se o conteúdo do sistema da publicidade, que, no caso do automóvel, é predominantemente de reforço ao consumo e, para o cigarro, de proibição dos anúncios por parte da indústria e demarketing através das campanhas governamentais. A pesquisa utiliza-se de metodologia qualitativa de coleta e análise dos dados, obtidos a partir de entrevistas em profundidade com 29 consumidores (ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis). O trabalho enriquece os estudos de anticonsumo ao diferenciar três tipos de abandono e evidenciar que este não é apenas movimento de distanciamento de significados negativos, com o objetivo de proteger a autoestima (Hogg et al., 2009), mas também passível de operar diferenciação afirmativa, positiva e de reforço da autoestima. O abandono contingencial acontece quando o indivíduo, apesar de compartilhar os significados com os consumidores da categoria, vê-se forçado a abandonar o consumo. O abandono posicional é motivado principalmente pela rejeição às associações simbólicas que o consumo proporciona. Por fim, o abandono ideológico apresenta uma perspectiva coletiva, onde o indivíduo acredita que a sociedade (e não apenas ele individualmente) deve abandonar aquele consumo.

Palavras-chave: Anticonsumo. Abandono. Cigarro. Automóvel.

ABSTRACT

This paper aims at investigating why individuals make the decision to abandon a category in different contexts of stimulation and questioning of consumption. For this study, the product categories car and cigarette were selected, taking into account contents from the advertising system. In the case of cars, these contents mainly concern reinforcement of consumption; with regard to smoking, the questioning of consumption predominates (due to the Brazilian government's anti-smoking campaigns and ban on tobacco industry advertising). This research uses a qualitative methodology for the collection and analysis of data obtained through in-depth interviews with 29 consumers (ex-smokers and ex-car owners). The paper contributes to the literature on anti-consumption characterizing three different types of abandonment and suggesting that, more than a move away from negative meanings to protect selfesteem (HOGG et al., 2009), abandonment is also likely to promote affirmative, positive, differentiation and to reinforce self-esteem. This research shows that, like consumption, abandonment is able to construct identities and signalize important changes. Contingency abandonment occurs when the individual, despite sharing meanings with other consumers of a category, is forced to abandon consumption. Positional abandonment is driven mainly by the rejection of symbolic associations that consumption provides. Finally, ideological abandonment presents a collective perspective where the individual believes that society as a whole should abandon or reassess that kind of consumption.

Keywords: Anti-consumption. Abandonment. Cigarette. Car.

Introdução

O campo do Comportamento do Consumidor historicamente tem seu foco na faceta positiva do consumo, investigando as preferências, a escolha, a compra. Sua contrapartida, a não escolha, o abandono, o distanciamento e a rejeição sempre foram perifericamente endereçados pelos estudos dessa área. Apenas recentemente, pesquisadores de distintos posicionamentos paradigmáticos investigaram o que leva os indivíduos a se engajar em comportamentos de não consumo, aversão a marcas e empresas (GOULD et al.,1997; STAMMERJOHAN e WEBSTER, 2002; DALLI et al., 2006; LEE et al., 2009; IYER e MUNEY, 2009; SANDIKCI e EKICI, 2009; CROMIE e EWING, 2009; FUNCHES et al.,2009; ALBUQUERQUE et al. 2010a; 2010b)

O entendimento sobre o anticonsumo traz a possibilidade de aprofundamento do conhecimento a respeito do consumo na sociedade contemporânea. Lee et al. (2009a, p. 145) argumentam que "médicos que entendem a saúde, mas não as doenças, não podem tratar seus pacientes adequadamente. Da mesma forma, pesquisadores de negócios que apenas estudam empresas de sucesso, podem nunca entender as causas de companhias fracassadas". Fischer (2001) sugere que consumo e não consumo são discursos que se coconstituem e que estão inextricavelmente ligados: para se entender um, é preciso entender as práticas discursivas associadas ao outro. Uma lacuna de pesquisa se apresenta ainda quando se considera a dimensão simbólica do anticonsumo. Se os bens são adquiridos não apenas pelos seus aspectos utilitários, mas também pelas emoções e experiências que proporcionam e a demarcação social que são capazes de operar, como se configuram esses significados no comportamento de abandono, distanciamento e aversão?

O presente trabalho tem por objetivo investigar o abandono, definido como o ato de abrir mão de algo anteriormente consumido, pressupondo, portanto, que uma escolha deliberada foi realizada (HOGG, 1998; HOGG et al., 2009). Mais especificamente, busca-se analisar por que os indivíduos tomam a decisão de abandono de categoria e os significados derivados a partir dessa escolha, tendo em vista diferentes contextos de estímulo e questionamento ao consumo.

Para isso, foram escolhidas as categorias de automóvel e cigarro, tendo em vista o conteúdo do sistema da publicidade (McCRACKEN, 2003), que, no caso do automóvel, é predominantemente de reforço ao consumo e, para o cigarro, de questionamento a este (devido à proibição de anúncios por parte da indústria tabagista e campanhas de combate ao consumo desenvolvidas pelo governo brasileiro). A pesquisa utiliza-se de metodologia qualitativa de coleta e análise dos dados, obtidos a partir de entrevistas em profundidade com 29 consumidores (ex-fumantes e ex-proprietários de automóveis).

Para contextualizar as contribuições do presente trabalho aos estudos de consumo, o próximo item apresenta conceitos teóricos fundamentais. O item metodologia procura descrever e justificar as opções metodológicas do presente trabalho. O quarto tópico apresenta os principais resultados da pesquisa. Nas considerações finais são destacadas as contribuições desses achados à teoria e à prática das empresas, bem como as limitações da presente pesquisa.

Referencial Teórico

O termo anticonsumo abarca um contínuo abrangente de respostas que os consumidores podem ter em relação às ofertas de mercado, compreendendo desde comportamentos passivos de não consumo (por exemplo, inércia, possíveis empecilhos, satisfação com o estado atual, hábito ou autossuficiência até aqueles onde o consumidor faz um esforço no sentido de se manter longe do consumo por questões relacionadas à gratificação pessoal, altruísmo, diferenciação (ou como forma de autoexpressão) e resistência ideológica (GOULD et al., 1997; HOGG, 1998; ZAVESTOSKI, 2002; LEE e FERNANDEZ, 2006; SANDIKCI e EKICI, 2009).

Dentro dos chamados estudos de anticonsumo, boa parte dos trabalhos voltou suas atenções para os comportamentos mais ativos, extremados e, por isso, mais "visíveis", como, por exemplo, as ações de aversão às empresas e marcas por resistência ideológica, como, por exemplo, os boicotes (LEE et al, 2009b; CLOSE e ZINKHAN, 2009; SANDIKCI e EKICI, 2009; CROMIE e EWING, 2009; FUNCHES et al, 2009; HOFFMAN e MULLER, 2009; YUKSEL e MRYTEZA, 2009; ALBUQUERQUE et al. 2010a; 2010b).

Comportamentos "menos apaixonados" ou mais "silenciosos", como, por exemplo, o abandono de uma categoria de consumo, foram perifericamente endereçados pelos pesquisadores da área. Para embasar essa investigação, a presente seção contextualiza as discussões em torno do conceito de anticonsumo e situa o abandono dentro dessa discussão. Tendo em vista a ausência de trabalhos que tratem de maneira específica a questão do abandono, buscou-se analisar pesquisas que trataram motivações do anticonsumo de maneira abrangente. Por fim, os aspectos simbólicos relacionados a esse tema são também revistos.

Definição e abrangência do anticonsumo

Gould et al. (1997) conceituaram anticonsumo como algo que pode ser desde um comportamento passivo (não consumir) até algo ativamente perseguido pelo consumidor. Lee e Fernandez (2006) se alinham a essa conceituação ao afirmar que o anticonsumo é vasto em seu escopo, incluindo desde a preferência de uma marca em relação à outra até a rejeição intensa praticada por ativistas contra empresas e o processo de globalização. Hogg (1998) afirma que o anticonsumo engloba tanto o conjunto inepto e inerte de consumo, quanto a não escolha e a antiescolha. A não escolha diz respeito a produtos e serviços que simplesmente não são comprados, em geral, porque não estão acessíveis ao consumidor, seja por fatores financeiros, disponibilidade ou acessibilidade. Já a antiescolha se refere a produtos e serviços que foram ativamente não escolhidos, caracterizando o comportamento de abandono, distanciamento ou aversão, porque foram vistos como inconsistentes ou incompatíveis com outras escolhas ou preferências do consumidor.

Hogg (1998) afirma que abandono, distanciamento e aversão representam diferentes graus de anticonsumo, tendo, entretanto, algum grau de sobreposição. Para Hogg et al. (2009), a aversão seria o ato de se desvencilhar física e emocionalmente de algo. Esta seria a expressão mais clara do desgosto, envolvendo decisões mais definitivas do não consumo. Já o distanciamento refere-se a se manter separado, estando mais relacionado ao desejo de minimizar as escolhas de consumo que possam ter associações simbólicas ou socioculturais indesejadas. O abandono representa o ato de abrir mão de algo anteriormente consumido, pressupondo, portanto, que uma escolha deliberada foi realizada. Segundo Hogg (1998), o abandono estaria mais relacionado à transição social, ou seja, mudanças no ciclo de vida ou status dos indivíduos. Hogg et al. (2009) afirmam que a aversão está fortemente ligada ao componente emocional das atitudes, enquanto que o distanciamento e o abandono referem-se mais à dimensão comportamental. Segundo os autores, a aversão (expressa como desgosto, nojo ou repulsão) pode gerar comportamentos de distanciamento e abandono. Esta tende a preceder ou aparecer em conjunto com expressões de afastamento e abandono.

O anticonsumo e suas motivações

Com o objetivo de entender o anticonsumo, Gould et al. (1997) propuseram uma tipologia de duas dimensões, que permite distinguir o não consumo passivo (não escolha, na definição de HOGG, 1998) daquele que é resultado de escolhas ativas (antiescolha): a) apenas não tentar (ignorar diversas soluções de consumo), e b) tentar não tentar (fazer um esforço para não consumir). No primeiro caso, estão as situações onde o consumidor prefere não consumir por motivos como inércia, fatores situacionais, satisfação com o estado atual, hábito ou autossuficiência. Já no segundo, o consumidor age no sentido de se manter longe do consumo por questões relacionadas ao altruísmo, diferenciação (ou como forma de autoexpressão).

O artigo de Stammerjohan e Webster (2002) avança nessa discussão, examinando os comportamentos de não consumo e seus antecedentes. As autoras propõem, assim, uma tipologia mais complexa que a de Gould et al. (1997), incluindo não apenas o comportamento de não consumo, mas também a motivação para este. O resultado são quatro dimensões: 1) postegar (adiar o consumo devido à inércia ou por ceder a empecilhos eventuais), 2) economizar (interesse em guardar seu potencial de consumo para o futuro), 3) autocontrole (variável individual ou valor da sociedade no sentido de estabelecer as rédeas do consumo) e 4) ignorar as alternativas (autossuficiência), hábito ou satisfação com estado atual). Enquanto postegar e ignorar as alternativas estão no domínio do apenas não tentar; economizar e autocontrole estão relacionadas a tentar não tentar.

Iyer e Muney (2009) avançam na reflexão em torno da motivação para o anticonsumo ao evidenciar que esse comportamento pode estar referenciado em motivos pessoais, mas também se originar em um desejo de mudança coletiva. Os autores argumentam que o comportamento de anticonsumo não é um movimento único, monolítico, mas, ao contrário, formado a partir de distintas motivações e formas de atuações. Iyer e Muney (2009) apresentam, então, quatro perfis de comportamentos de anticonsumidores, apresentados a seguir:

1) Consumidores de impacto global (global impact consumers) - São os que têm como foco o bemestar da sociedade ou do planeta e acreditam que os níveis atuais de consumo não são sustentáveis, seja pela questão ambiental, seja pelas diferenças sociais que eles terminam por criar. Eventos como o Buy Nothing Day sintetizam essa perspectiva.

2) Simplificadores (simplifiers) - Esses consumidores fizeram uma escolha individual por reduzir seus níveis de consumo. Mais do que melhorar a sociedade como um todo, o que eles buscam é obter uma vida mais feliz, comprando apenas o que consideram necessário para suas vidas. Estes podem reduzir seu consumo em determinadas categorias e incrementá-lo em outras.

3) Ativistas de mercado (Market activists) - São os consumidores que veem determinadas marcas ou produtos como causadores de problemas sociais. Por isso, utilizam seu poder, como consumidores, para impactar a sociedade. Campanhas promovidas pelo Adbusters ou contra a rede de supermercados Walmart são exemplos de ações desenvolvidas por ativistas de mercados.

4) Consumidores anti-leais (Anti-loyal consumers) - É o comportamento oposto à lealdade de marca. São consumidores que evitam comprar uma marca ou produto, porque acreditam que este é inferior ou por terem vivenciado experiências negativas anteriores.

Diversos estudos procuraram investigar mais especificamente as motivações relacionadas ao comportamento de aversão a determinadas marcas e empresas (DALLI et al., 2006; SANDIKCI e EKICI, 2009; CROMIE e EWING, 2009; LEE et al., 2009b; ALBUQUERQUE et al., 2010a, 2010b). Dalli et al. (2006) evidenciam que os motivos podem ser mais individualistas ou coletivistas, como um contínuo, que inclui desde falhas de produto, até compromissos ideológicos contra práticas consideradas antiéticas. Dentre os fatores individuais, os autores destacam a rejeição que se origina na percepção da marca como apresentando desempenho inferior ou relação preço/qualidade inadequada. No meio deste contínuo, a rejeição também poderia estar relacionada à inadequação da marca como símbolo expressivo (baseada na incongruência com os usuários da marca ou na sua pouca força expressiva). Por fim, uma abordagem mais coletivista pode levar os consumidores a rejeitar a marca como forma de resistência à atuação da empresa, considerada danosa ou antiética. Lee et al. (2009b) trabalharam em cima dos mesmos conceitos, propondo uma tipologia de aversão à marca bastante similar: a) aversão baseada na experiência, b) aversão baseada na identidade, e c) aversão moral

Aspectos simbólicos no anticonsumo

Apenas recentemente, estudos começaram a investigar os significados negativos e seus impactos nas dinâmicas de não escolha, abandono, distanciamento e aversão. Diversos artigos discutem a formação da identidade como algo central no comportamento de resistência ao consumo (DOBSCHA, 1998; CHERRIER, 2007, 2009; BLACK, 2009). Dobscha (1998) destaca que práticas cotidianas tais como evitar determinadas categorias, usar menos produtos do que o socialmente recomendado, comprar produtos de segunda mão, ou produzir seus próprios itens de consumo, ajudavam suas entrevistadas a moldar uma identidade que se delineia justamente pela oposição ao mercado e à cultura de consumo dominante: "não ser consumidora".

Cherrier (2009) analisa o discurso de dois importantes movimentos anticonsumo - simplicidade voluntária e culture jamming, e evidencia como, a partir desses comportamentos de resistência, os consumidores articulam dois tipos de identidades possíveis: a identidade de herói e a identidade de projeto.

A identidade de herói é descrita como uma batalha, que exige dedicação e comprometimento para redefinir e reestruturar a vida cotidiana, articulando novos significados para o consumo, a partir de conceitos como justiça, igualdade e participação. O objetivo desses "heróis" é catalisar uma mudança da sociedade.

A identidade de projeto se constrói a partir do tema do vazio existencial proporcionado pela cultura de consumo. A publicidade é apresentada como gerando necessidades artificiais e estimulando o consumo compulsivo, que preenche as carências emocionais com produtos materiais. Essa identidade questiona o consumo posicional, que entende os bens materiais como criadores de um senso de identidade para os indivíduos. A resistência se dá não pela "batalha coletiva" (como na identidade de herói), mas pelo consumo criativo, onde os indivíduos não mais compram, usam e descartam produtos para responder às expectativas dos demais.

A área deve aos estudos Hogg (1998); Banister e Hogg (2003), Hogg et al. (2009) os primeiros trabalhos que procuram mapear as dinâmicas que operam diferenciação através do anticonsumo. As autoras desenvolveram um conjunto de pesquisas dentro do contexto do vestuário e da moda (BANISTER e HOGG, 2001, 2004; HOGG e BANISTER, 2001, 2006), onde investigam como os consumidores criam e interpretam significados a respeito dos aspectos negativos de seus "eus", estereótipos gerados a partir do consumo, e como a rejeição a produtos e marcas acontece dentro desse contexto.

Hogg e Banister (2001) afirmam que, para manter uma autoimagem positiva - ou pelo menos normativa ou "padrão" -, os consumidores evitam riscos, rejeitando produtos, marcas ou fornecedores que estejam associados a estereótipos ou grupos de referência indesejados ou negativos. Hogg et al. (2009) lembram que os profissionais de marketing podem criar significados para seus produtos veiculando imagens sobre usuários típicos. Estes podem gerar identificação com consumidores, se estiverem alinhados com seus autoconceitos positivos ou, ao contrário, gerar distanciamento se estiverem associados ao "eu-indesejado" ou grupos dissociativos, de rejeição.

Hogg et al. (2009) apresentam, em lados opostos, como drivers motivacionais a reação desejada para proteger autoestima e evitar humilhação dentro do autoconceito (no comportamento de anticonsumo, de distinção, abandono, aversão ou afastamento) e a reação desejada para manter ou melhorar autoestima dentro do autoconceito (no consumo, como aproximação).

O presente tópico procurou situar o abandono dentro das discussões de anticonsumo e destacar estudos a respeito das motivações e associações simbólicas desses comportamentos. Definido como o ato de abrir mão de algo anteriormente consumido, pressupondo a existência de uma decisão, o abandono situa-se em uma posição intermediária entre a não escolha e a antiescolha. Em outras palavras, de um lado está o não consumo passivo (inércia, indiferença ou satisfação com estado atual) e do outro os comportamentos de distanciamento e aversão, representando escolhas ativas e mais definitivas de não consumo. O abandono recebeu até o momento pouca atenção dos pesquisadores do campo, sendo usualmente associado às transições de papéis sociais e status dos consumidores. Na discussão dos aspectos simbólicos, estudos como de Dobscha, 1998; Cherrier, 2007, 2009 e Black, 2009 evidenciam como movimentos organizados de resistência ao consumo se constituem como fonte para diferenciação identitária, sem entretanto examinar detalhadamente a dinâmica que opera essa distinção. Hogg et al (2009) caminham nesse sentido ao propor um modelo dialético entre consumo e anticonsumo e destacar o movimento de proteção da autoestima e o distanciamento do eu-negativo como a motivação para o anticonsumo.

Metodologia

A pesquisa utilizou-se de metodologia qualitativa na coleta e análise dos dados, obtidos a partir de entrevistas em profundidade com 29 ex-consumidores das categorias de automóvel e cigarro. A escolha das categorias a serem estudadas (automóvel e cigarro) se pautou pelo interesse de investigar a importância do contexto de reforço ou questionamento ao consumo na decisão de abandono. Em pesquisa na qual investigavam a orientação moral e seu impacto no consumo, Kwak et al (2001) produziram uma lista de categorias percebidas como socialmente "boas" ou "más", onde o carro figura na primeira e o cigarro, na segunda. No contexto brasileiro, em 2010, o conteúdo do sistema da publicidade era predominantemente de reforço ao consumo de automóvel, tendo a indústria investido quase R$ 3,5 bilhões em comunicação nos meios de massa (tv, mídia impressa e outdoor), segundo dados do Observatório da Imprensa. Já o cigarro vivenciava restrições à publicidade desde a década de 90, quando também passaram a ser veiculadas as primeiras advertências nos maços.

As questões a serem investigadas - todas de escopo amplo, relacionadas a motivações, significados e lógicas ligados ao abandono - apontavam para a importância da entrevista em profundidade. Captar a fala dos entrevistados seria essencial, já que esse é também o mais importante veículo de interação social e negociação de significados. A entrevista qualitativa em profundidade é um método de coleta de dados amplamente empregado (GASKELL, 2002), sendo considerado um dos mais importantes dentro do arsenal qualitativo (McCRACKEN, 1988). Seu objetivo não é obter respostas simples, testar hipóteses ou avaliar um conteúdo previamente conhecido, mas entender a experiência "viva" do informante e os significados que este deriva dela (RUBIN e RUBIN, 2005). Assim, em uma conversa direta e pessoal (que para o leigo pode se aproximar de uma interação cotidiana), busca-se captar o universo mental do entrevistado (McCRACKEN, 1988), com o objetivo de entender o seu comportamento. Seu caráter aberto, pautado por questões iniciais, mas em busca de informações e categorias não previstas pelo entrevistador, tornam esse instrumento bastante diferenciado daqueles utilizados em entrevistas estruturadas (DENZIN e LINCOLN, 2000).

Na elaboração do roteiro de perguntas, um dos desafios era reconstruir junto ao entrevistado o processo de abandono e reproduzir as interações e falas cotidianas a respeito dessa decisão. Entretanto, além dos aspectos mais públicos, conscientes e comunicáveis, seria preciso captar também aspectos inconscientes, relacionados a atitudes e motivações. Assim, além de perguntas em busca de justificativas e aprofundamento, um dos recursos utilizados foi a inclusão de exercícios projetivos ao longo da entrevista. Segundo Rook (2006), as técnicas projetivas são particularmente relevantes na pesquisa de emoções, desejos, motivações dos consumidores e significados e relações com produtos e marcas. Uma de suas características principais reside no questionamento indireto: no lugar de perguntar diretamente aos participantes sobre seus comportamentos e motivações, formulam-se perguntas com base em outras pessoas ou situações imaginárias. Além da maior liberdade de respostas, essa técnica tem como benefício certo grau de ambiguidade, o que dificulta que os entrevistados sejam capazes de captar os objetivos da pesquisa, procurando adequar sua fala ao que seriam "respostas ideais" (ROOK, 2006).

A seleção dos entrevistados seguiu o procedimento de amostragem teórica, que consiste na coleta de dados induzida por conceitos elaborados ao longo do processo de pesquisa (STRAUSS e CORBIN, 2008). Cada novo entrevistado é buscado tendo em vista a possibilidade de descobrir variações entre os conceitos elaborados e de tornar densas as categorias em termos de suas propriedades e dimensões. Segundo os autores, o objetivo da amostragem teórica é "maximizar oportunidades de comparar fatos, incidentes ou acontecimentos para determinar como uma categoria varia em termos de suas propriedades e de suas dimensões" (STRAUSS e CORBIN, 2008, p. 196).

No total, foram entrevistados 15 ex-fumantes e 16 ex-proprietários de automóvel (dois informantes falaram a respeito tanto do abandono de automóvel quanto de cigarro). Os entrevistados, com idades entre 26 e 75 anos de idade, enquadram-se dentro do contexto das camadas médias urbanas e de bom nível educacional. Para garantir sua privacidade, todos tiveram seus nomes trocados (ver quadros 1 e 2 com perfil dos entrevistados).



A análise de conteúdo (BARDIN, 1977) foi realizada com o auxílio do programa Atlas ti (versão 6) e seguiu a dinâmica proposta por Rubin e Rubin (2005). A partir das entrevistas buscou-se encontrar, refinar e elaborar conceitos, temas e eventos, que pudessem ser codificados e inter-relacionados para a construção de proposições teóricas. Para a distinção dos diferentes tipos de abandono, a análise articulou quatro dimensões principais, a saber: 1) tensões motivadoras do abandono; 2) repertório de significados em relação ao consumo da categoria; 3) repertório de significados a respeito do abandono da categoria e, por fim, 4) a negociação social desses significados (como veem o produto e apresentam socialmente sua decisão de abandonar a categoria).

No total, as entrevistas contabilizaram mais de 30 horas de áudio, convertidas em 780 páginas de texto transcrito. Cada uma dessas entrevistas foi lida pelo menos três vezes na íntegra (muitas delas tiveram trechos revistos outras vezes). Na primeira delas, seguindo as indicações de Rubin e Rubin (2005) para a preparação e codificação dos dados, realizou-se a chamada leitura "flutuante", onde além de aspectos gerais e de grande destaque, distinguiam-se, por meio de códigos, os grandes blocos de temas e objetivos relacionados no roteiro de entrevista.

A segunda leitura exigiu um exercício mais denso, a partir do trabalho sistemático de criação de rótulos nas diversas unidades ou blocos de textos já destacados. Alguns desses códigos foram sugeridos pela literatura, outros foram sendo criados no processo de interação com as entrevistas. Segundo Rubin e Rubin (2005), a partir do trabalho de reconhecer, refinar, sintetizar e elaborar conceitos e temas se torna possível a tarefa de codificação. Ao final, este trabalho contabilizou 446 códigos brutos, que foram, ao longo do processo de análise, sendo refinados e agrupados, compondo as categorias teóricas propostas neste artigo.

Resultados

Na literatura, o abandono é descrito como o ato de abrir mão de algo anteriormente consumido, pressupondo, portanto, que uma escolha deliberada foi realizada (HOGG, 1998; HOGG et al., 2009). As entrevistas, entretanto, sugerem que, mais do que um evento discreto, uma ação ou decisão circunscrita a um dado momento, o abandono é um processo.

Nos relatos de ex-proprietários de automóveis, encontramos diversos informantes que permaneceram longos períodos (em alguns casos anos) com o veículo, mesmo que sem uso, antes da venda. Parado na rua ou na garagem, sem uma funcionalidade efetiva, o carro terminava por contrariar a visão social corrente de que este é um produto imprescindível, sinalizando, assim, a possibilidade de uma vida sem o automóvel. A promessa de autonomia e mobilidade expressa na publicidade do produto vai sendo pouco a pouco apagada por uma prática que mostra ser possível a vida sem ele. Conscientemente percebido pelo consumidor ou não, esse período caracteriza o abandono, já que permite "esfriar" os significados que motivaram a compra e legitimar sua decisão de venda.

No caso do cigarro, a natureza processual do abandono se torna ainda mais evidente, já que o consumo do produto gera dependência física. Assim, foram recorrentes as histórias de idas e vindas, em que a decisão de abandono era tomada, mas o consumo se mantinha por meses e até anos. Além disso, a exemplo do que acontece com o automóvel, foram comuns os relatos que evidenciam uma "gestação" do abandono, através de comportamentos (nem sempre conscientes) que viabilizam essa decisão posterior. Estabelecer rotinas de abstinência, segundo critérios relacionados a locais, horários ou pessoas; alterar dinâmicas de compra (reduzindo quantidades e frequência de aquisição) e estoque do produto (guardar em locais menos convenientes) são exemplos de ações que permitem aos indivíduos experimentar o controle sobre o seu consumo e, simbolicamente, a condição de não consumidor. A exemplo do que acontece com o automóvel, essas experiências viabilizam pouco a pouco a transição da condição de consumidor para a de não consumidor - algo que especialmente no caso do cigarro dificilmente é imediato.

As entrevistas sugerem três tipos distintos de abandono: 1) contingencial; 2) posicional; e 3) ideológico. Sua delimitação se dá a partir da articulação de fatores que explicam não apenas a decisão em si, mas também a negociação e a comunicação de significados que se estabelece a partir dela. Assim, foram considerados as tensões motivadoras (objetivos), os conflitos existentes e o repertório de significados do consumo e do abandono (como veem individualmente o produto e se posicionam diante dos significados sociais do produto).

Abandono contingencial

Trata-se do abandono em que o consumidor se vê forçado a deixar a categoria, dado um conflito de objetivos ou limitações práticas e materiais que se impõem na sua vida. Ainda que valorizem os benefícios funcionais e/ou simbólicos que o produto traz, questões de ordem financeira, de saúde, de acesso ao produto, espaço, de pressão da família, etc, podem levar o consumidor a abandoná-lo. Na presente pesquisa, foi possível encontrar consumidores que venderam seus automóveis ou largaram o cigarro a contragosto.

Para ilustrar esse tipo de abandono, inicialmente será apresentado o exemplo de Jorge, um analista de sistemas, de 26 anos, que deixou Salvador para trabalhar no Rio de Janeiro. Sua noiva o acompanhou nessa mudança, mas o carro foi deixado em sua cidade natal. Jorge se confessa um apaixonado por automóveis: "adoro carros, sou viciado em automobilismo". O jovem diz ter um relacionamento afetivo com seus automóveis, chegando a dar um nome ao seu primeiro carro, comprado com os recursos do primeiro emprego. Jorge ainda faz parte de uma comunidade de proprietários de Gol na internet, grupo que ele não abandonou nem mesmo depois da venda do seu veículo, que ele justifica assim:

Primeiro porque me mudei para uma cidade que permitia um transporte público mais adequado do que Salvador. Carro também é muito custo, muito gasto. Lá eu não pagava aluguel, por exemplo, e aqui já tenho que pagar aluguel. Então, transferi esse custo do meu carro pra minha casa. Aqui eu tenho o metrô, fica mais próximo do meu trabalho, o acesso é mais rápido e até mais barato do que manter um carro com seguro, combustível, até a própria depreciação. Tem também a questão de garagem: como eu trabalho no centro, é muito mais complicado você ter um carro e ter que manter uma garagem por mês, a garagem do prédio também, porque o meu prédio não tem garagem. (Jorge, 26 anos, analista de sistemas)

O relato acima sugere que a venda do automóvel parece "tangibilizar" diversos ganhos para Jorge. O novo emprego, a mudança para uma cidade maior com o "acesso" ao transporte público de qualidade, a nova casa e o casamento. Nesse contexto, não ter carro, momentaneamente, adquire os significados dessas mudanças e conquistas. Embora se mostre satisfeito com a solução, Jorge não se identifica com o abandono da categoria, já que adora automóveis. Na entrevista, ao ser solicitado para criar uma campanha que incentivasse o não consumo de automóvel, lamenta: "Poxa, é difícil você passar para as pessoas aquilo que você não acredita muito". Assim, o jovem demonstra compartilhar com consumidores os significados positivos relacionados ao consumo do automóvel. O entrevistado também descreve seu abandono como provisório e situacional e comenta que, no futuro, quando tiver filhos, pretende reestruturar seu estilo de vida, comprando um apartamento maior, com garagem, para contemplar esse produto dentro de seu padrão de consumo.

Nas histórias de outros entrevistados como Fernanda, Yolanda, Norberto e Samara também identificamos elementos que tornam a decisão de abandono repleta de sentimentos ambíguos - positivos e negativos. Esses entrevistados consideram essa uma solução pessoal e continuam a partilhar com os consumidores os significados da categoria. Embora reconheçam benefícios do abandono, sofrem com as perdas, sobretudo, as emocionais e sociais. Assim, vivenciam sentimentos de luto. Tendem a ver o abandono como não definitivo e situacional e, por isso, quando possível, consideram movimentar-se no sentido de viabilizar o consumo futuro.

Yolanda (75 anos, professora aposentada), Norberto (73 anos, engenheiro aposentado) e Samara (59 anos, fisioterapeuta), por exemplo, relataram limitações de saúde e as pressões da família como principal motivo da venda do automóvel. Embora usassem pouco o produto, os três entrevistados associam o abandono da categoria com a perda de status relacionado à juventude, condição autônoma e independente.

Ao ser questionada se sua decisão de abandono poderia servir de exemplo para outros consumidores, Yolanda (75 anos, professora aposentada) faz questão de afirmar que a sua opção por vender o automóvel se apresenta como o reconhecimento de uma condição diferente:

A gente tem que aproveitar os recursos da época, da atualidade, do momento da vida, da idade e do que está passando. Estou vivendo fases diferentes e não posso querer ficar lá vovozinha sem ver, sem ouvir, quando o pescoço já dói - meu pescoço já está doendo, porque eu estou com problema na cervical. Então, eu também vou aceitando algumas coisas. Não vou ficar dirigindo até 80, 90, não vou. Eu tenho que ver as formas que atendem à solução da minha situação, e, então, eu aceito. (Yolanda, 75 anos, professora aposentada)

A fala acima indica que diversas limitações físicas são tangibilizadas pelo abandono da categoria. A fala "vou aceitando" sugere ao mesmo tempo nostalgia, certa tristeza e resignação, uma espécie de luto que evidencia um abandono não almejado pela consumidora, mas, ao contrário, visto como imposto dada a sua idade. Outro trecho da entrevista confirma a natureza contigencial desse abandono, ou seja, revela uma consumidora em potência, destituída de seu consumo por fatores externos a sua vontade:

Dizer o que eu gostaria não vai resolver nada... Eu estou contente pelo fato de que um dia, por 38 anos, eu pude adquirir o carro, e utilizá-lo para coisas boas - para o trabalho, meus estudos, atender à família, para mim mesma, para passear, até para dar carona. Se eu fosse você [dirigindo-se a entrevistadora], se tivesse um pouco menos de idade para poder continuar, mas não há essa possibilidade. Então, essa é cortada. O tempo já passou, aproveitei o que pude e agora é partir para outra. Não é chorar o leite derramado, porque ele não foi derramado, ele foi bebido no tempo certo, eu me alimentei naquela parcela, naquele período que Deus me deu, me deu condições de visão, de movimentos, e econômicas. Agradeço muito a Deus por ter essa oportunidade que tive. Me foi um bem muito útil, muito valioso, me alegrou, me deu preocupação em termos de trânsito, de estar chovendo e tal, mas venci as barreiras graças a Deus.(Yolanda, 75 anos, professora aposentada)

Norberto (engenheiro aposentado, 73 anos) tem uma história com diversos pontos em comum com a de Yolanda. Ao longo de sua vida, o automóvel sempre esteve associado às conquistas profissionais e à vida familiar (nascimento dos cinco filhos, diferentes cargos em empresas, viagens em família etc). Nas suas palavras, carro gera "a sensação de liberdade, "independência" e "um estilo de vida prazeroso". Em 2008, o entrevistado teve um acidente vascular, que o manteve hospitalizado por quase dois meses. Em 2009, ele e sua esposa venderam o último veículo do casal, incentivados pelos filhos.

Ao longo de sua entrevista, Norberto destaca os aspectos mais racionais da sua decisão (custos envolvidos, pouco uso do veículo etc), deixando de lado qualquer argumentação em torno das limitações de saúde. Ao contrário de Yolanda, que vê o abandono da categoria como definitivo, Norberto faz questão de destacar que está experimentando pela primeira vez uma vida sem automóvel e que essa decisão não chega a ser definitiva: "Essa decisão é provisória. Hoje a questão é essa: Por que eu vou ficar [com o carro] se estou usando pouco?".

Samara (59 anos, fisioterapeuta) manteve por um ano seu carro estacionado na porta do prédio, praticamente sem uso. Ela comenta que o preservava por uma questão "de hábito" e explica o que terminou por motivar a venda: "Eu fui vendo que o carro realmente estava ali só se acabando. Me dava uma dor no coração! Mas, eu demorei muito para tomar essa atitude, porque eu nunca fiquei sem carro".

O relato de Samara remete ao processo de perda de um ente querido. Mesmo gerando sofrimento, as mortes causadas por doenças degenerativas representam, em muitos casos, um alívio - tanto para o doente quanto para a sua família. Esse sentimento parece contido na fala de Samara, que vê na deterioração do carro um consolo para o abandono e complementa: "Se eu comprar outro carro, vou ter o mesmo problema, então, acabei! Agora estou sem carro". Aqui vemos uma situação em que o abandono não é gerado pelo baixo envolvimento com a categoria, mas, ao contrário, pela ligação afetiva que a consumidora tem com esse produto.

Para Fernanda (33 anos, economista), a venda do automóvel está atrelada a sua separação. A entrevistada conta que na partilha dos bens com seu ex-marido "abriu mão" do automóvel, já que ele o utilizava no dia a dia. O abandono da categoria no seu caso ajuda a sinalizar sua nova condição. Ela comenta que hoje conta com o apoio de amigos que se tornaram "mais solícitos" e que se oferecem prontamente para levá-la aos programas em comum. Além de uma "ferramenta" para ressocialização da jovem, que volta à vida de solteira, a carona é descrita por Fernanda como prova do afeto e cuidado dos seus amigos. Na visão da entrevistada, entretanto, essa é uma situação passageira, já que mais do que vantagens, ela contabiliza muitas perdas:

Pra mim o automóvel é conforto. Eu adoro ir ao supermercado. Uma das coisas que eu mais sinto falta de carro é quando eu vou ao supermercado, porque o supermercado pra mim era uma curtição, então depois que você saiu daquela curtição, você ter que carregar trezentas bolsas pesadas, tem que jogar num táxi. E, fora a liberdade de você ir a qualquer lugar e poder viajar quando quiser. (Fernanda, 33 anos, economista)

Mesmo no caso do cigarro, um processo de desligamento do consumo que exige grande força de vontade e sacrifício, foi possível encontrar histórias de abandono contingencial. Esse é, por exemplo, o caso de Flávio, advogado, de 63 anos, casado, com três filhas já adultas e netos. O cigarro entrou na sua vida aos 16 anos, a partir dos incentivos dos amigos. Já a motivação para abandonar o consumo, aos 58 anos de idade, partiu da família, que insistia nos males que o produto causava. Embora demonstre satisfação por ter conseguido abandonar o produto, em alguns momentos da entrevista, como na citação a seguir, ele parece compartilhar com os fumantes o amor pelo consumo: "Hoje passo na rua e vejo as pessoas fumando. Até em certas ocasiões dá vontade de fumar porque foi companheiro de 40 anos. Assim como tem casamentos que duram 40 anos e é maravilhoso, tem casamentos que duram 40 anos e é horrível, mas as pessoas continuam juntas. O cigarro é a mesma coisa".

Flávio vivencia saudades e uma espécie de luto, que resolve, ludicamente, através da magia: "Se chegasse um gênio para mim e dissesse que eu tenho três pedidos, eu ia escolher dois ligados a finanças - não ter problema de dinheiro - e o terceiro, à saúde: ficar imune ao cigarro. Isso era um pedido meu, poder fumar três, quatro maços por dia e não acontecer nada, absolutamente nada comigo".

Outra brincadeira, menos fantástica e, portanto, mais factível, inclui a retomada do cigarro em um outro momento de vida, quando a saúde deixar de ser uma preocupação, justamente pela sua ausência. Nesse momento, ele comenta que poderá, quem sabe, retomar esse prazer: "Eu tenho amigos que dizem assim: 'Quando eu fizer 84 anos, eu volto a fumar'. A gente chegou a brincar com isso aqui. Eu não sei se, quando chegar a 84, eu vou voltar a fumar...".

Para Shirley (54 anos, jornalista), o abandono do cigarro também representa a perda de uma parte importante da vida. Os primeiros problemas de saúde levaram a entrevistada a abandonar o consumo de oito cigarros diários, sem que ela reconheça até hoje os benefícios dessa decisão. Segundo a jornalista, os cigarros mais prazerosos se concentravam à noite, quando ela utilizava o produto como meio de introspecção e relaxamento, algo que lhe trazia paz e tranquilidade. Hoje Shirley lamenta essa ausência e diz que nada a faz sentir o mesmo bem-estar que o produto proporcionava. A entrevistada lamenta as perdas e reconhece sempre o risco iminente de retomar o consumo:

Aqueles momentos que eu gostava de ficar só comigo mesmo, no canto, pensando, eu gostava de estar com o cigarro. Não tem substituto. (...) Vou fazer o que? (quê?) Segurar o quê? Fumar o quê? Eu pensei até em voltar... Então, eu não paro mais, para ficar pensando. Porque eu tenho vontade sim. E, se eu parar, vou pegar o cigarro. (Shirley, 54 anos, jornalista)

Abandono posicional

É motivado pela demarcação de uma distância simbólica em relação aos consumidores da categoria. Assim, a decisão expressa uma diferença e gera um senso de identidade distinto para os indivíduos. Para ilustrar o abandono posicional, será descrito o exemplo de Leonardo, um jovem com características demográficas (idade, estado civil, bairro de moradia) similares às de Jorge (apresentado anteriormente no abandono contingencial). Mas, como se verá, Leonardo tem uma lógica de abandono bastante distinta.

Em 2008, esse jovem administrador, de 27 anos, pôde comemorar duas conquistas pessoais: o término do seu mestrado e a aprovação em um concurso público. Muitos poderiam esperar que o bom salário e a estabilidade do emprego fossem motivos para que Leonardo (solteiro e sem filhos) trocasse seu velho automóvel, com 150 mil km rodados. No lugar disso, ele preferiu simplesmente vender o carro. Leonardo reconhece ser diferente da maioria: "Sou uma pessoa que tende a questionar muito as coisas, sou crítico com tudo. Muitas pessoas até acham que eu sou do contra".

Suas opiniões a respeito do consumo do automóvel foram formadas ainda jovem. Ele conta que vem de uma família que, embora sempre trocasse de carro, não chegava a apresentar uma "paixão pelo produto". Outro fato marcante se deu na compra do seu primeiro automóvel. Leonardo trabalhou por cinco meses em Londres, juntando cerca de três mil dólares. Ao voltar para o Brasil, o jovem se animou a comprar um carro com o dinheiro economizado. Foi em uma casa de câmbio e trocou todo o valor, em notas de R$ 50,00, que levou diretamente para a concessionária de automóveis. "Eu falei que alguma coisa naquele momento estava errada. (errada:) 'Eu estou dando todo o meu dinheiro'! Foram cinco meses de trabalho e sem gastar quase nada. Então, eu falei: 'Nossa! Acabou meu dinheiro'!".

A fala acima evidencia que o pagamento em dinheiro fez Leonardo se tornar mais consciente do esforço de aquisição e dos custos envolvidos na compra de um carro. A experiência ampliou a percepção do jovem para os elementos que constituem o denominador da equação benefícios/ custos. Assim, ao longo de sua entrevista, Leonardo desconsidera os benefícios simbólicos que o carro poderia trazer para o seu proprietário, valorizando apenas sua função de transporte, como evidenciado na sua fala a seguir: "Eu não tenho ódio do carro, é só uma questão de opção. É racional. Porque se você tem carro e não usa, mas acha que ele te traz algum benefício, então, você não consegue expressar aquilo. Nesse caso deixa de ser racional".

Não precisar do status que o veículo proporciona coloca Leonardo em uma posição diferenciada: de alguém que controla e domina seu consumo e não é dominado por ele. O abandono do automóvel parece contribuir para um senso de identidade singular, calcado, sobretudo, na racionalidade e, nas suas próprias palavras, "tomada de decisões mais conscientes". Leonardo se apropria assim do discurso sugerido pela identidade de projeto, como descrito por Cherrier (2009), que questiona o consumo posicional e entende os bens materiais como criadores de um senso de identidade para os indivíduos.

Entretanto, é o abandono do automóvel que o ajuda a construir o eu-desejado anunciado logo no início da entrevista: alguém crítico, sistemático, com um comportamento diferenciado da maioria. Hogg e Banister (2001) afirmam que, para manter uma autoimagem positiva - ou pelo menos normativa ou padrão -, os consumidores evitam riscos, rejeitando produtos, marcas ou fornecedores que estejam associados a estereótipos indesejados. Nesse caso, o abandono do automóvel reforça um autoconceito positivo (racional), a partir da crítica aos significados usuais do produto: se carro é status, sonho de consumo da maioria, Leonardo expressa seu lugar diferenciado no mundo via o abandono.

Ao ser questionado se o seu comportamento deveria ser seguido por toda a sociedade, o jovem afirma não estar preocupado com a questão ecológica e que só pode ser considerado um exemplo pela racionalidade e consciência da decisão: "Porque eu não advogo a ideia de não ter carro. Eu sou uma pessoa feliz sem carro e eu passo essa felicidade para as outras pessoas". Como um simplificador, na definição de Iyer e Muney (2009), Leonardo entende essa como uma decisão pessoal, específica para a categoria em questão e não ideológica.

Outro exemplo de abandono posicional é o realizado por Fábio (40 anos, ator e documentarista). Na sua entrevista ele faz questão de colocar sua rejeição aos significados de status e masculinidade usualmente associados ao produto, e expressa sua diferença por estar "tão fora da minha realidade". Ele lembra que "tem gente que precisa mesmo, porque viaja, tem filhos ou precisa para trabalhar". Nesses casos, ele ressalva, o carro tem uma "razão utilitária". O ator, entretanto, coloca-se distante de uma maioria que compra "o significado" e não a necessidade de uso, já que "a classe média total vai ter carro até morrer no Brasil, porque é um símbolo de status".

Na sua fala Fábio hierarquiza os indivíduos em função das necessidades atendidas pelo produto. Se a esfera de significados funcionais é legítima, a social (status) é desqualificada. Mais do que desprezar a lógica em si (comprar carro para demonstrar conquista financeira), o ator desqualifica o automóvel como signo de riqueza. A exemplo do que se percebe em outras entrevistas, se o carro é um bem acessível à "classe média total", algo que pode ser comprado em parcelas por quase todos, ele perde seu poder distintivo. Assim, o que poderia ser considerado um novo luxo? Não ter carro? "Eu acho! Não na ponta do lápis, não como uma coisa cara, mas é um luxo! Sai do Brasil e olha como é lá fora. Você acha que o Woody Allen quer dirigir?".

Acima, Fábio articula diversos significados positivos que associa a sua identidade a partir do abandono da categoria: luxo - não financeiro, mas de um estilo de vida ("não na ponta do lápis"); desenvolvimento ("olha como é lá fora"), e, principalmente, da persona artística bem-sucedida, um tanto excêntrica, complexa, mas muito admirada do cineasta Wood Allen. Aproxima-se, em parte, da identidade de projeto (Cherrier, 2009) na medida em que Fábio se distancia "da classe média total", personalizando seu estilo de consumo, como forma de expressar e construir sua própria identidade. Para isso, reformula significados culturais e práticas de acordo com suas preferências e histórias. Em outro momento, Fábio diz que considera muito chatos aqueles que têm carro e explica porque:

Quem tem carro, só pensa em carro o tempo inteiro, porque está sempre no carro. 'Onde parei meu carro? Será que roubaram meu carro? Será que vou conseguir estacionar? Olha o trânsito'. Aquela cena de filme do cara dirigindo e a mulher do lado, todo mundo conversando, você não vê isso. Talvez numa estrada assim, mas na cidade você não vê. O cara tem carro, o cara é tenso. A mulher que tem carro é tensa. (Fábio, 40 anos, ator e documentarista)

Fábio, assim, evoca estereótipos negativos para os que têm automóveis. Como lembram Hogg e Banister (2001), consumidores escolhem produtos e marcas que evocam estereótipos positivos para seus usuários e tendem a evitar aqueles que suscitam estereótipos negativos. Nesse processo, grupos de referência negativos têm importante influência, já que os indivíduos vão evitar a compra, propriedade e uso de produtos que sejam associados a esses grupos e possam gerar estigmas. Para Fábio, "a classe média total" é a imagem negativa a ser evitada. Ao abdicar do uso do automóvel, o entrevistado se distancia dessa massa que reproduz o discurso tradicional e se aproxima de um outro grupo, com quem tem mais afinidade.

Eu tenho alguns amigos que não têm carro, alguns que nunca tiveram, alguns que não sabem dirigir e alguns que de um tempo para cá resolveram não ter. (...) São pessoas que têm uma visão um pouco diferente. Todas são artistas ou jornalistas, são pessoas que veem o mundo de uma forma... Eu não vou dizer alternativa, mas um pouquinho diferente. (...) Aqui no Rio e no Brasil é uma coisa meio de um nicho pequeno. Eu acho que a pessoa tem que ser muito descolada, vou usar esse termo quase que paulista. O cara que não tem carro é um cara descolado. (Fábio, 40 anos, ator e documentarista)

No caso de Fábio, o abandono não apenas o distancia de grupos de referência negativos ou o afasta de euspossíveis indesejados, como reforça eus-possíveis positivos e o aproxima de um grupo de pessoas "descoladas". Nesse sentido, assim como o consumo, o abandono se apresenta como uma ferramenta de reforço da autoestima como meio de diferenciação.

Samanta (59 anos, professora universitária), outro exemplo de abandono posicional, lembra que nunca teve um envolvimento com a categoria, embora tivesse demorado quase dois anos para vender seu automóvel, depois que parou "de dirigir total". Explica que tinha "preguiça de botar anúncio" e, por isso, pagava mensalmente R$50,00 ao porteiro para que o ligasse, evitando que seu motor se deteriorasse. Em uma sociedade, onde o automóvel é símbolo de status, autonomia e liberdade, deixá-lo parado, sem uso, termina por expressar que o consumidor pode dispor de uma liberdade ainda maior: a de usá-lo se assim desejar. Esse "luxo" comunica que este é evidentemente desnecessário e que seu abandono, portanto, não é motivado pela falta de recursos do proprietário. Depois da venda, Samanta hoje comemora, além dos ganhos econômicos, o distanciamento de todos os trabalhos que o consumo proporcionava: "Eu acho que financeiramente compensa [não ter carro] e eu tirei um estresse da minha vida: não tem que levar carro para a oficina, não tem que fazer vistoria".

Roberto (59 anos, professor universitário) é outro entrevistado a questionar os significados usualmente associados à categoria, de bem-estar econômico e otimização do tempo, evidenciando uma distância do repertório de significados articulados pelos proprietários de automóveis. Ao descrever alguém que decide vender o automóvel, ele comenta: "É um privilegiado por não precisar de carro. Ele tem uma vida bastante urbana, é uma pessoa independente. Do ponto de vista de necessidades financeiras ele está bem. Está simplesmente fugindo da tortura de ter um carro nesse país que é caro e é difícil. (...) Eu acho que o luxo é de não ter que se estressar de ter carro".

Em outro trecho, Roberto elenca os ganhos de tempo que a decisão de não dirigir lhe proporciona, permitindo que faça ligações e resolva questões com total atenção enquanto circula de táxi pela cidade. O discurso de Roberto questiona benefícios associados ao produto, evidenciando a capacidade de escolha e de pensar de maneira diferenciada da maioria. Assim, no lugar de alguém que perde tempo temos o indivíduo que pelo uso superior da razão maximiza esse recurso.

No caso do cigarro, foram diversos os relatos onde o abandono evidencia o desejo de se distanciar dos significados de vício, fraqueza, doença e compulsão usualmente relacionados ao consumo da categoria. Isadora (56 anos, psicóloga), por exemplo, lutava no momento da entrevista por levar adiante a decisão do abandono do cigarro (tomada algumas semanas antes da conversa para essa pesquisa). Ela comenta que o cigarro não combina com ela, que se considera ao mesmo tempo disciplinada e bem cuidada: "Por que esse perfil disciplinado não combina com o cigarro? Porque na disciplina é você que comanda as coisas. Você se controla. Você controla os seus impulsos, você não se deixa controlar. E, no entanto, acabo sendo controlada pela porcaria do cigarro, porque é um vício!".

A primeira memória da consumidora em relação ao cigarro é a de seus pais fumando, em uma época em que fumar era "uma coisa chique, glamorosa". Ao analisar sua iniciação, conta que essa era "para repetir os meus pais e para estar junto com esse grupo", afinal "a regra ali era fumar, não havia nenhuma exclusão, minha família fumava, todo mundo fumava". Hoje, Isadora associa o cigarro ao "anti-glamour" e elenca diversos significados negativos associados ao fumante desde o "não me cuido, não me incomodo se incomodo os outros", passando pela imagem da "infantilidade" e do "foco exclusivo no prazer". Isadora destaca a leitura social do consumo: "Hoje em dia é cafona. Socialmente, hoje para você poder fumar, em países como os Estados Unidos, você quase se junta aos mendigos".

Os significados associados ao cigarro se modificaram ao longo das últimas décadas. Isadora parece vivenciar, assim, dois conflitos importantes: 1) dos significados subjetivos construídos na sua infância e juventude (glamour, socialização) x os sociais, que hoje marginalizam o consumo ("anti-glamour", descuido, egoísmo, etc); 2) da forma como ela se vê (disciplinada) x a forma como ela pode ser vista (eu-social) a partir do consumo (viciada, descontrolada). Para Isadora, o cigarro se coloca associado a um eu-possível negativo. O abandono representa, assim, uma forma de proteger a autoestima e uma autoimagem positiva (Hogg et al., 2009). Ao ser estimulada a falar mais sobre o incômodo gerado pelo cigarro, ela sintetiza: "Acho que é feio fumar. Eu não quero ser uma velhota fumante, acho horroroso velhinho fumando e eu estou envelhecendo".

O adjetivo "feio" usado para retratar esse desconforto remete à dimensão estética, da aparência, da identidade que se projeta, daquilo que se dá a perceber, em contraposição, por exemplo, à dimensão mais interiorizada e imperceptível aos olhos. Ao descrever o desafio de se desvencilhar do cigarro, também prioriza a questão simbólica (em detrimento da física ou fisiológica). Para Isadora, o desafio está em "se ver" de maneira diferente, restituindo "no espelho" (subjetivo e social) a imagem que ela espera ver projetada: "Eu acho que a pergunta que eu teria que me responder hoje é o que está me impedindo de me ver como uma ex-fumante. Porque tem uma escolha (...) Quando é que eu vou conseguir me olhar no espelho e dizer: 'Eu sou ex-fumante por opção'!".

Daniele (42 anos, filósofa) também conta ter abandonado o cigarro, motivada pela "vergonha social". A entrevistada comenta que o cigarro está associado à fraqueza e por isso ela decidiu "deixar de dar essa mensagem porque às vezes a gente dá a mensagem e não é exatamente o que a gente quer passar. E a de fraqueza não me cabia". Assim, no momento em que se decidiu, Daniele faz desse processo uma prova de sua força e determinação. Utilizou-se de remédios sugeridos pelo seu médico, seguiu as instruções de cartilhas sobre como abandonar o cigarro e alcançou seu objetivo. Ela comenta que no final das contas "foi muito mais fácil do que pensava, se eu soubesse teria parado antes" e se contrapõe àqueles que vivem tentando sem jamais conseguir: "Eu tenho horror a isso! Pra mim não tem primeira ou segunda vez, ou é, ou não é"!

Antônio (60 anos, consultor de empresas) também abandonou o cigarro motivado pelo conflito de identidade que o produto proporcionava. Incomodava-se com a má impressão social que o produto gerava e da dependência psicológica que percebia em si. "Ficava chateado comigo mesmo, por exemplo, ao ter que sair correndo do avião, para fora do aeroporto, para fumar um cigarro".

O entrevistado recorda-se de uma história marcante: o dia em que depois de fazer o check-in e entrar na sala de embarque, sentiu-se compelido a sair para fumar, sendo obrigado a fazer novamente todo o procedimento junto ao controle do aeroporto. Assim, antes de abandonar definitivamente o consumo, criou a regra pessoal de abstinência dentro do avião, antes mesmo que essa fosse uma lei:

Eu decidi que eu não ia mais fumar no avião, e passei a comprar lugar de não fumante. Parei de fumar e parei de sentir vontade. Era tão condicionado: entrava no avião, me sentia como um não fumante. Ficava com raiva de quem fumava, reclamava de tudo. Quando saía do avião, a primeira coisa que eu fazia do lado de fora era acender o cigarro, mas eu passava a viagem inteira tranquilão, nem sentia falta de cigarro. (Antônio, 60 anos, consultor de empresas)

Mesmo que limitada ao tempo de um voo, a abstinência operava uma transformação importante: fazer de Antonio um não fumante. Vivenciava não apenas a independência do produto, mas também o incômodo que este proporcionava a quem não compartilhava do vício. Nesses momentos olhava o consumo pela ótica do não fumante, distanciando-se emocionalmente do consumo da categoria. Esse distanciamento parece ter contribuído para exacerbar sua percepção do fumante como uma espécie de "pária social", como ele mesmo define, sendo esse sentimento decisivo para seu abandono.

Abandono ideológico

Diferencia-se dos outros dois tipos por apresentar uma perspectiva coletiva. Os consumidores acreditam que a sociedade (e não apenas eles, individualmente) deve abandonar ou repensar aquele consumo. O caso de Eurico será utilizado para ilustrar esse tipo de abandono.

Eurico tem 34 anos e, como biólogo, trabalha como consultor ambiental em uma Organização não Governamental, ONG, voltada para o incentivo da reciclagem. Paralelamente colabora com uma organização que tem por objetivo promover meios de transporte alternativos baseados na propulsão humana (bicicletas, patins, skate etc). Para Eurico, o abandono do automóvel tem o objetivo de proporcionar uma melhoria do espaço urbano.

Na sua entrevista, associa o carro ao individualismo, ao espaço privado e isolamento, em detrimento do espaço coletivo. Sua decisão de abandono da categoria, portanto, não é algo individual - nas vantagens e desvantagens que traz para ele como consumidor -, mas se baseia no seu impacto na sociedade como um todo. Como solução para os problemas gerados pelo transporte motorizado, Eurico reivindica a utilização da bicicleta. Mais do que um meio de transporte sustentável, a bicicleta representa uma filosofia de interação e intervenção no social, que o aproxima da definição de "consumidor de impacto global", como definido por Iyer e Muney (2009):

Minhas escolhas no dia a dia combinam com a questão da bicicleta ser socioambientalmente mais adequada. Então, acaba que faz parte de um discurso afinado. Faço coleta seletiva, economizo água, ando de bicicleta. Isso entrou no meio de uma série de coisas que a gente tenta fazer para tentar ajudar a melhorar a qualidade de vida da sociedade, que começa com a nossa qualidade de vida. (Eurico, 34 anos, biólogo e consultor ambiental)

Ao longo de sua entrevista, Eurico vai pouco a pouco desconstruindo os significados positivos usualmente associados ao carro transferindo-os para a bicicleta. O jovem faz questão de frisar os ganhos individuais: a "economia das despesas de manutenção" ou "me sinto mais inseguro dirigindo, já fui assaltado mais vezes de carro" ou ainda "de bicicleta você raramente chega atrasado nos lugares, porque não fica preso no trânsito". Por fim, destaca os benefícios para a saúde, evidenciando não compartilhar do repertório de significados dos consumidores da categoria.

Mais do que celebrar no âmbito pessoal os ganhos que obteve com o abandono do automóvel, o jovem comunica essas vantagens de maneira ampla e coletiva, em palestras, pela internet: "Falo com todo mundo, desde jornalistas em programas de tv, meios de comunicação, até com os amigos, com a minha esposa, com os familiares, é um assunto bastante recorrente".

Eurico participa de eventos como o Dia Mundial Sem Carro e organiza outros como a Bicicletada, um passeio ciclístico na hora do rush. Cruzando ruas engarrafadas da cidade, a iniciativa tem o objetivo de evidenciar a mobilidade da bicicleta e a vantagem dessa escolha a partir da oposição aos carros parados. Seu discurso é embasado e evidencia a elaboração de alguém que se propõe a ser porta-voz de uma causa.

No caso de Eurico, a filosofia de um consumo mais sustentável, tangibilizado pelo abandono do automóvel, também ajuda a construir uma identidade diferenciada e positiva. Cherrier (2009) descreve a identidade de herói como uma atuação que exige dedicação e comprometimento para redefinir e reestruturar a vida cotidiana, articulando novos significados para o consumo. Eurico coloca-se nesse papel, não medindo esforços de comunicação, seja através de meios formais ou dos significados que são gerados a partir de seu próprio comportamento. O jovem, inclusive, orgulha-se de já ter convencido "vários a adotar a bicicleta como meio de transporte".

Outro exemplo de abandono ideológico é Cristiano, um "senhor" de 65 anos de idade. As aspas foram incluídas para relativizar sua condição, já que esse entrevistado pouco se aproxima da visão convencional de um "senhor de idade", com seu cavanhaque vermelho, linguagem e vestuário jovem, parafusos de bicicleta na orelha e a conquista recente de prêmios nas principais competições ciclísticas do país, incluindo um vicecampeonato na extenuante prova do Iron Biker. As surpresas, entretanto, não se restringem ao seu estilo de vida. Cristiano perdeu uma de suas pernas há 31 anos e, tendo vivido um longo processo de recuperação, suscita ainda mais admiração nos meios onde passa.

Sua entrevista foi sugerida por um dirigente de uma associação de ciclismo do Rio de Janeiro (também entrevistado nessa pesquisa), que o citou como um possível personagem símbolo para uma campanha a fim de incentivar o abandono do automóvel. Cristiano é uma referência nos meios de fisioterapia e educação física, além de ser um ídolo entre os apaixonados por bicicleta. Na ocasião da pesquisa reunia quase 2.400 "amigos" no Orkut, boa parte de fãs que conquista através de suas palestras e do trabalho de assistência social, desenvolvido em duas instituições diferentes. Na página, são frequentes os depoimentos de admiração e de agradecimento pelo seu trabalho e exemplo de superação pessoal.

Cristiano define-se como "cicloativista", engajado com a causa da educação no trânsito e na utilização da bicicleta como meio de transporte alternativo. O entrevistado faz questão de situar sua opinião em relação a esse meio de transporte: o problema não está no automóvel, mas no uso que a nossa sociedade faz desse bem. Quando questionado sobre o que seria um uso consciente, destaca, por exemplo, que esse não deve ser utilizado nos pequenos percursos ou por um único indivíduo nos seus deslocamentos cotidianos. Cristiano, inclusive, comenta que pretende comprar um carro nos próximos dois anos e explica que este seria utilizado nas competições em que precisa transportar sua bicicleta e os equipamentos de reposição.

Além dos benefícios funcionais (de transporte eventual), o automóvel parece ter no caso de Cristiano um papel fundamental na construção de sua identidade e autoestima: não pelo seu consumo, mas justamente pela ausência dele no seu cotidiano. Se encontrar um deficiente físico dirigindo um automóvel é sinal máximo de autonomia e superação no Brasil, Cristiano alarga essa fronteira ao questionar esse consumo, utilizando-se da bicicleta para seus deslocamentos (que inclui viagens até São Paulo utilizando esse meio de transporte). O entrevistado comenta que o uso da bicicleta foi algo que aconteceu de forma natural na sua vida, mas que, com o tempo, ele percebeu que "era um absurdo para os olhos da sociedade": "É muito interessante, ninguém consegue imaginar um cara sem perna, pedalando sua bicicleta na linha vermelha a 50 km/h. Você ia conseguir imaginar isso? Isso está fora do acervo mental".

A campanha do uso consciente do automóvel é, para Cristiano, uma campanha também da bicicleta e da inclusão do velho e do deficiente físico na sociedade. Ao estar "fora do acervo mental da sociedade", ele encontra para si um novo local nela. Não é mais excluído por ser "deficiente" ou o "velho", mas alguém que a partir do questionamento ao símbolo máximo de mobilidade contemporânea (o automóvel) torna-se um exemplo capaz de suscitar discussões sobre o tema e garantir um local diferenciado:

Velho para mim é uma palavra muito bonita e que a sociedade coloca como uma coisa degenerada, de mobilidade reduzida. (...) Então, eu sou um velho todo poderoso. Velho para mim é como se fosse um supervelho. Eu tenho essa força de diferente. (...) Eu sou o mais velho do mundo praticando esse esporte [ciclismo] e como faço em igualdade, e, muitas vezes, mais forte que um normal com idade menor, então, você é um incluído. (Cristiano, 65 anos, cicloativista)

Cristiano participa de eventos como o Dia Mundial Sem Carro, porque acredita que esse evento ajuda a conscientizar as pessoas: "não pode ser alienado e preguiçoso que só anda de carro". Ele também ministra palestras sobre o tema da mobilidade, e serve como personagem em reportagens que discutem o automóvel nas grandes cidades. No website Youtube, por exemplo, é possível encontrar vídeos sobre o entrevistado, incentivando o uso consciente do automóvel e o respeito no trânsito. Uma matéria jornalística da Globonews documenta o trajeto de 72km, percorridos usualmente por ele na sua bicicleta, da sua casa na Ilha do Governador até a sede da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, ABBR, no Jardim Botânico, onde atua como voluntário no setor de recuperação de amputados.

No exercício projetivo em que aconselha um jovem em dúvida sobre manter ou não o automóvel, já que esse lhe fornece autoestima, Cristiano admite que, na nossa sociedade, os mais jovens consideram que não ter carro "é como se você fosse um amputado". Mas, mais uma vez, utiliza-se de seu exemplo para questionar a visão convencional, reproduzindo e contradizendo a "fala social": "não vou arrumar mulher, não tenho dinheiro, não tenho carro e não tenho perna. Pois eu tenho uma agenda de gatinhas, qual é?!".

O caso acima evidencia que o abandono é capaz de operar o distanciamento de eus-possíveis negativos ("velho", "deficiente", "alienado"), como sugerem Hogg et al (2009), mas também "construir" eus-possíveis positivos ("herói", "esportista", "humanitário"). Através do não consumo, Cristiano utiliza-se dos significados do automóvel de uma maneira dialética, contrapondo a mobilidade contida neste produto, com a sua escolha de uso da bicicleta, criando, a partir daí, novos significados para si e para a sociedade como um todo.

Dentre os ex-fumantes entrevistados não foi possível perceber nenhum que apresentasse o abandono do cigarro como uma causa coletiva. No processo de seleção dos entrevistados, continuou-se a buscar novos informantes, contactando pessoas que publicamente se engajaram na discussão a respeito do não consumo da categoria (por exemplo, a autora de um blog sobre parar de fumar e uma cineasta que produziu um documentário antitabagista, dentre outros). Curiosamente ambas apresentaram essas iniciativas não como uma "bandeira", mas como ferramentas pessoais no auxílio para parar de fumar, colocando essa como uma escolha pessoal.

Na fala de todos os ex-fumantes da pesquisa predominou a preocupação por não ser confundido com o "exfumante chato" (aquele que impõe aos consumidores sua visão sobre os males do produto). A fala de Suzana (jornalista, 40 anos) é exemplar para ilustrar as razões que fazem com que o abandono ideológico não se justifique dentro do contexto atual brasileiro:

Isso poderia fazer sentido se eu morasse na Indonésia que tem criança de quatro anos que fuma. Aí sim, eu entenderia isso como uma mensagem política que tem que ser levada adiante, que tem que ser tratada. Agora, se você me diz que fuma, você tem o mesmo grau de informação que eu. Quem sou eu para dizer para você que você tem que parar de fumar? Você vai parar de fumar se você quiser. Eu não quero ser responsável pela sua decisão, não é da minha conta. (Suzana, jornalista, 40 anos)

Em síntese, a dificuldade em encontrar o abandono ideológico relacionado ao cigarro aponta para a importância do contexto na negociação dos significados relacionados ao abandono e pode estar relacionada, dentre outros fatores a: 1) falta de um produto visto como alternativo (a exemplo do que acontece com o carro x bicicleta), cujo interesse motiva a discussão e o questionamento do consumo da "categoria dominante"; 2) imagem negativa do produto, que hoje termina por dispensar a atuação individual de questionamento ao consumo e seus significados positivos; 3) ao fato de o governo brasileiro ter um papel ativo na campanha antitabagista. Como se trata de uma "causa" abraçada pelo poder público, essa exige menor mobilização política em torno do questionamento do consumo.

Considerações Finais

O presente trabalho exercita uma perspectiva raramente praticada pelos estudos do campo, buscando entender o fenômeno do consumo através do abandono. Dentro da temática do anticonsumo, optou por uma seara ainda não percorrida, que inclui não apenas a expressão clara de oposição e desgosto (aversão e distanciamento), mas também possíveis deserções banais, cotidianas e desapaixonadas (abandono). Assim, a pesquisa procura contribuir com o conhecimento da área ao investigar as motivações para o abandono de categoria, tendo em vista diferentes contextos de estímulo e questionamento ao consumo.

Em primeiro lugar, a pesquisa evidencia o abandono como um processo, mais do que um ato ou decisão circunscrita a um dado momento. Além disso, sugere uma compreensão mais rica, ao distinguir três tipos de abandono:

a) Abandono contingencial - acontece quando o consumidor se vê forçado a abandonar a categoria. Deriva, portanto, da existência de conflitos, que tornam a decisão repleta de sentimentos ambíguos - positivos e negativos. Esses entrevistados consideram essa uma solução pessoal e continuam a se identificar com os consumidores, compartilhando com estes os significados da categoria. Tendem a ver o abandono como não definitivo e situacional e, por isso, quando possível, movimentam-se no sentido de viabilizar o consumo futuro.

b) Abandono posicional - é motivado principalmente pela dimensão simbólica que o consumo proporciona. O consumidor pode considerar que o produto está associado a eus-possíveis negativos e, por isso, o abandono tem a tarefa de afastá-lo desses significados. Em outros casos, a escolha de renunciar à categoria é capaz de gerar associações positivas, contribuindo para manter e melhorar a autoestima (a exemplo, do que acontece nas escolhas de consumo). Assim, pela abstinência, o consumidor demarca uma diferenciação simbólica, uma identidade própria e positiva. Assim, como no abandono contingencial, o não consumo é motivado por uma perspectiva individual (não coletiva).

c) Abandono ideológico - difere dos demais por apresentar uma perspectiva coletiva. Os consumidores acreditam que a sociedade (e não apenas eles, individualmente) deve abandonar ou repensar aquele consumo. O não consumo é uma postura política que mobiliza atenção e energia desses "ativistas", que se engajam em demonstrar alternativas para aquele consumo, bem como suas implicações e significados negativos. Os entrevistados não compartilham com os consumidores os significados da categoria e, principalmente, procuram reformular a forma como a sociedade entende o consumo, através da manifestação pública do seu comportamento. O abandono do consumo, nos moldes como ele se apresenta na sociedade atual, é visto como definitivo por esses consumidores.

Assim, do ponto de vista da teoria, o presente artigo amplia o conhecimento sobre um tópico até o momento marginalmente estudado, caracterizando o abandono como um processo e oferecendo uma tipologia que evidencia diferentes lógicas que podem motivá-lo. O trabalho enriquece os estudos de anticonsumo, mais especificamente seus aspectos simbólicos, ao evidenciar que o abandono não é apenas movimento de distanciamento de significados negativos, com o objetivo de proteger a autoestima (HOGG et al., 2009). É também passível de operar diferenciação afirmativa, positiva e de reforço da autoestima. A pesquisa evidencia que, assim como o consumo, o abandono é capaz de construir identidades e sinalizar mudanças importantes.

No abandono, o indivíduo abre mão da funcionalidade relacionada ao produto. Já as associações simbólicas continuam sendo usadas, criadas e manipuladas mesmo depois que este acontece. Ao falar sobre os benefícios e vantagens do abandono, consumidores se apropriam e "tiram vantagem" dos significados da categoria descartada. Ao descrever o abandono de determinado produto, ex-consumidores expressam - a partir do que não são - aquilo que pretendem ser. Esse é, por exemplo, o caso do jovem que vende seu carro ao conquistar um emprego seguro, com ótimo salário. Essa iniciativa se contrapõe ao movimento esperado pela sociedade e serve como um indicador do espírito crítico e racional. Isso pode ser visto ainda no discurso de uma das entrevistadas que descreve toda a sua força e obstinação para superar o vício do cigarro, em contraposição à imagem de fraqueza e compulsão usualmente associada aos consumidores da categoria.

Pesquisas futuras

Cada método nos oferece uma espécie de lente com a qual se observa a realidade. O presente trabalho fez uma escolha por uma abordagem qualitativa, dentro de uma escala microssocial. Essa perspectiva permite investigar em detalhe e profundidade lógicas de consumo, emoções e interações e negociações entre indivíduos, sem propósitos de mensuração desse fenômeno ou generalização populacional. Entretanto, como sugerem Arnould, Price e Moisio (2006), nesse tipo de pesquisa é preciso distinguir entre as possibilidades de generalização populacional e teórica. Enquanto a primeira se torna impossível através da pesquisa em contextos específicos, a teorização pode (e deve) ser buscada a partir desse tipo de investigação. O presente trabalho propôs categorias de abandono a serem investigadas em outros contextos.

A escolha por duas categorias polarizadas (automóveis e cigarros) trouxe benefícios de contraste e comparação. Entretanto, um caminho futuro de investigação encontra-se no abandono de categorias "neutras". Por exemplo, o estudo de Kwak et al (2001) sugere produtos como café, xampus e bebidas leves, como exemplos de categorias que não são vistas nem como fazendo bem nem mal pelos entrevistados da sua pesquisa. Também permanece o desafio de estudar o abandono de serviços e suas particularidades.

Implicações gerenciais

Na perspectiva das empresas, o entendimento dos diferentes tipos de abandono possibilita a aplicação de distintos antídotos, mais efetivos para cada caso. No caso do abandono contingencial, a motivação da deserção pode residir em problemas concretos: falta de dinheiro, de espaço, de tempo, de conforto; impactos negativos na saúde, bem-estar do consumidor etc. A solução desses problemas relaciona-se com o desenvolvimento de novas tecnologias e conceitos de produto capazes de minimizar esses contratempos. Responder ao abandono contingencial exige a atenção de áreas como pesquisa e desenvolvimento, P&D, compras, custos e marketing com ações relacionadas ao ajuste e ampliação do portfólio de ofertas, de forma a contemplar segmentos que não se sentem mais atraídos pela solução oferecida atualmente pela empresa.

No abandono posicional, os entraves residem nos aspectos simbólicos que o produto ostenta. A categoria representa significados ultrapassados ou em conflito com os valores dos consumidores. Outra possibilidade é que a oferta tenha sido "abraçada" por grupos dissociativos, rejeitados pelo público-alvo. A solução, portanto, reside principalmente na articulação de setores de marketing e comunicação, liderando o processo de renovar as associações da categoria ou marca e a criação de conexões com grupos positivos (em detrimento dos segmentos indesejados pela empresa).

Já o abandono ideológico exige o engajamento da empresa em discussões mais amplas da sociedade e mobiliza decisões relacionadas ao conselho de administração e discussão de aspectos estratégicos, como os valores e a missão da organização (que podem estar em conflito com os da sociedade); a revisão de tecnologias de produção e ofertas mais sustentáveis. A tarefa pode exigir a ação não apenas da área de marketing e comunicação corporativa, mas também jurídica, de P&D e produção.

A atenção ao abandono ideológico é fundamental mesmo nos casos em que ele representa uma pequena fração dos desertores da oferta da empresa. Como se viu neste artigo, consumidores que praticam o abandono ideológico tornam-se um polo ativo de produção de conteúdo simbólico que pode ser adotado por futuros desertores contingenciais ou posicionais, e legitima o abandono de maneira geral.

Do ponto de vista dos governos e das organizações não governamentais, o entendimento dos diferentes tipos de abandono pode trazer recursos para a realização de esforços de Demarketing. Assim, no lugar de empreender um esforço para que todos os indivíduos compartilhem uma consciência coletiva (transformando todo abandono no tipo ideológico), os gestores envolvidos nesse desafio podem reforçar lógicas já existentes, oferecendo exemplos de práticas e representações simbólicas alinhadas com os outros tipos de abandono. Por exemplo, mais do que engajar o consumidor na causa ecológica, um caminho para se alcançar a mudança de comportamento pode estar na criação de uma áurea positiva e alinhada com a identidade do indivíduo. Essa abordagem pode minimizar a resistência usualmente associada ao discurso ativista - algumas vezes visto como atitude panfletária, criticada por diversos entrevistados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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