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EBAP e ISEB na busca por uma administração brasileira: uma imersão nos anos 1950 para iluminar o século XXI

EBAP e ISEB en búsqueda de una administración brasileña: Una inmersión en los años 1950 para iluminar el siglo XXI

Resumo

O curso de administração se tornou o maior do Brasil e forma hoje um em cada cinco concluintes de curso superior. Dessa maneira, aumenta nossa responsabilidade como educadores em refletir sobre o conteúdo que ministramos. Nossa proposta de reflexão é um mergulho nos anos 1950 − momento da criação das primeiras escolas de graduação −, com base num diálogo entre documentos daquele período e três fontes de depoimentos de ex-alunos e ex-professores da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP): em periódicos da época, depoimentos para o livro comemorativo dos 50 anos da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) e entrevistas atuais com alunos e professores da época. A ciência da administração que se construía na década de 1950 era vinculada ao desenvolvimento, rejeitava o apriorismo da gerência científica recebida dos EUA e buscava, a partir das ciências sociais, promover de maneira crítica conteúdo que propiciasse a adaptação das técnicas importadas à nossa realidade. Nessa busca por representar o contexto local, a EBAP se aproximou das proposições do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). A apreensão do contexto local é fundamental para a formação de bons profissionais. Resgatar os esforços produzidos pela EBAP nos anos 1950 para a construção de uma administração brasileira, e as contribuições que ISEB e CEPAL deram nesta empreitada, podem ajudar a nos mostrar caminhos de como (re)conectar a ciência da administração com o contexto nacional e, consequentemente, fornecer conteúdo relevante para nossos egressos.

Palavras-chave:
CEPAL; Desenvolvimento; EBAP; História da administração brasileira; ISEB

Resumen

El curso de Administración se transformó en el mayor de Brasil, y hoy es responsable de la formación de uno de cada cinco graduados de la educación superior. Por eso, como educadores, aumenta nuestra responsabilidad de reflexionar sobre el contenido que impartimos. Nuestra propuesta de reflexión es una inmersión en los años 1950, cuando se crearon las primeras escuelas de graduados, fundamentada en un diálogo entre documentos de la época y tres fuentes de testimonios de exalumnos y exprofesores de la Escuela Brasileña de Administración Pública (EBAP): periódicos de la época, testimonios del libro conmemorativo del 50º aniversario de la Escuela Brasileña de Administración Pública y de Empresas (EBAPE), y entrevistas actuales con estudiantes y profesores de la época. La ciencia de la administración que se construía en la década de 1950 estaba relacionada con el desarrollo, rechazaba el apriorismo de la gestión científica recibido de EE.UU. y, con base en las ciencias sociales, promovía de manera crítica contenido que propiciase la adaptación de las técnicas importadas a nuestra realidad. En esa búsqueda para representar el contexto local, la EBAP se aproximó a las proposiciones del Instituto Superior de Estudios Brasileños (ISEB) y de la Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL). La aprehensión del contexto local es fundamental para la formación de buenos profesionales. Rescatar los esfuerzos realizados por la EBAP en la década de 1950 para la construcción de una administración brasileña, y las contribuciones que el ISEB y la CEPAL aportaron a esta iniciativa, pueden ayudar a mostrarnos cómo (re)conectar la ciencia de la administración al contexto nacional y, consecuentemente, proporcionar contenido relevante a nuestros estudiantes.

Palabras clave:
CEPAL; Desarrollo; EBAP; Historia de la administración brasileña; ISEB

Abstract

Administration is currently the most offered course in Brazil, responsible for 20% of undergraduate students. Therefore, educators have a big responsibility to reflect on the content of the courses. The reflection proposed here is an immersion into the 1950’s, when the first graduation schools were created. It is a reflection based on a dialogue between documents of that time and three sources of testimonies of former students and former professors of the Brazilian School of Public Administration (EBAP): a) journals of that time; b) testimonies collected for a book published to celebrate the Brazilian School of Public and Business Administration’s (EBAPE) 50th anniversary; and c) interviews with students and professors who attended EBAP in the 1950s. The science of administration in the 1950s was associated to development. It rejected the apriorism of the scientific management received from the US, it also sought - through the social sciences - to critically promote content that fostered the adaptation of imported techniques to our reality. In this quest to represent the local context, EBAP approached the propositions of the Superior Institute of Brazilian Studies (ISEB) and the Economic Commission for Latin America and the Caribbean (ECLAC). The apprehension of the local context is critical to form good professionals. Looking at the efforts of EBAP in order to build a Brazilian administration field in the 1950s, and the contributions that ISEB and ECLAC gave to this endeavor, can help to find ways to (re)connect the science of administration to the national context and, consequently, provide relevant content to our graduates.

Keywords:
ECLAC; Development; EBAP; History of Brazilian administration; ISEB.

INTRODUÇÃO

O censo do ensino superior de 2016 deixou clara a importância que o curso de graduação em administração alcançou. O número um do Brasil, na linha “Gerenciamento e administração”, o total de alunos matriculados foi de 1.348.616 − 17,23% do total −, enquanto os ingressantes representaram 19,84% e os concluintes atingiram 22,36% de todos os cursos. Ou seja, 1,1 de cada cinco concluintes do ensino superior no Brasil se formou em “gerenciamento e administração” em 2014 (INEP, 2016INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Censo Educacional do Brasil, 2016. Brasília, 2016.). O número de ingressantes aponta para que essa proporção de 1/5 dos concluintes venha a se manter num futuro próximo. Esse gigantismo do curso de administração acontece no mesmo momento em que diversos autores sugerem que a administração é a mais norte-americana das disciplinas (BERTERO, 2006BERTERO, C. Ensino e pesquisa em administração. São Paulo: Thomson, 2006.), e em que pesquisas indicam que o conteúdo do curso é desconectado do contexto nacional (BERTERO, VASCONCELOS e BINDER, 2003BERTERO, C.; VASCONCELOS, F.; BINDER, M. Estratégia empresarial: a produção científica brasileira entre 1991-2002. Revista de Administração de Empresas, v. 43, n. 4, p. 48-62, 2003.; BIGNETTI e PAIVA, 2002BIGNETTI, L.; PAIVA, E. Ora (direis) ouvir estrelas! Estudo das citações de autores de estratégia na produção acadêmica brasileira. Revista de Administração Contemporânea, v. 6, n. 1, p. 105-125, 2002.), e que seu conteúdo é predominantemente anglo-saxão (SARAIVA e CARRIERI, 2009SARAIVA, E.; CARRIERI, A. Citações e não citações na produção acadêmica no Brasil: uma reflexão crítica. Revista de Administração USP, v. 44, n. 2, p. 158-166, 2009.). Estamos, portanto, diante de um paradoxo que precisa ser enfrentado pela área: o maior curso do país parece desconectado do contexto local.

Nossa proposta de pesquisa para buscarmos caminhos visando superar esse paradoxo é uma volta ao passado para iluminarmos o futuro. A historiografia das primeiras escolas de ensino de graduação em administração já foi relatada por diversos autores. A Escola Superior de Administração de Negócios (Esan) foi a primeira − criada no início dos anos 1940 por iniciativa do padre Saboia, e inspirada na escola de Chicago −, apesar de ser a que até hoje temos menos informações a respeito disponíveis (CARNEIRO e BARROS, 2015CARNEIRO, A.; BARROS, A. A Escola Superior de Administração e Negócios (ESAN): uma análise sobre o currículo dos primeiros cursos superiores de administração de empresas. In: ENCONTRO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO (EnANPAD), 39, 2015. Anais... Belo Horizonte: EnANPAD, 2015.). As duas escolas da Fundação Getulio Vargas (FGV)FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Estatutos da Fundação Getulio Vargas. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1995., a Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap) e a Escola de Administração do Estado de São Paulo (Eaesp) surgiram na década de 1950: a Ebap, criada em 1952, foi a primeira escola de administração pública da América Latina, tendo colocado no mercado até o final daquela década 180 profissionais (MACHADO, 1966MACHADO, M. O ensino de administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1966., p. 40), enquanto a Eaesp, criada em 1954, promoveu curso intensivo de administração (CIA) a partir de sua fundação como um curso de especialização, só criando a graduação em 1959 (ALCADIPANI e BERTERO, 2012ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Guerra Fria e ensino do management no Brasil: o caso da FGV-EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 52, n. 3, p. 284-299, 2012.). Quanto à Faculdade de Administração e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Ciências Econômicas (UFMG/Face), criou as escolas de administração pública (1952) e de empresas (1954), tendo colocado 60 formandos no mercado até o final da década, sendo 41 de administração pública e 19 de administração de empresas (MACHADO, 1966MACHADO, M. O ensino de administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1966., p. 83). Portanto, somando os formandos da Ebap com os da Face, temos um total de 240 graduados em administração ao longo da década de 1950.

Além das escolas de ensino de graduação em administração, outras instituições privadas e públicas promoviam a disseminação do management do contexto estadunidense para o brasileiro. Uma das pioneiras foi o Instituto de Organização Racional do Trabalho (Idort) criado em 1931, em São Paulo, que foi “a primeira sociedade civil criada no Brasil para a disseminação e debate das ideias do taylorismo e das outras doutrinas clássicas do management” (VIZEU, 2008VIZEU, F. Management no Brasil em perspectiva histórica: o projeto do IDORT nas décadas de 1930 a 1940. Tese (Doutorado em Administração) − Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2008., p. 139). O governo, dentro do espírito da reforma administrativa implementada por Getúlio Vargas no regime do Estado Novo criou, em 1938, o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). O Dasp foi inspirado no modelo de governo dos EUA e, sendo assim, foi criado para exercer as “funções tanto da Comissão de Serviço Público Civil como a do Bureau de Orçamento, na forma que a estes dois órgãos havia dado F. D. Roosevelt” (FURTADO, 1985FURTADO, C. A fantasia organizada. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985., p. 48). Ambos Idort e Dasp promoveram cursos para a formação de técnicos e tinham publicações que ajudaram a impulsionar a disseminação do management no Brasil (VIZEU, 2008VIZEU, F. Management no Brasil em perspectiva histórica: o projeto do IDORT nas décadas de 1930 a 1940. Tese (Doutorado em Administração) − Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2008.; WAHRLICH, 1983WAHRLICH, B. M. de S. Reforma administrativa na era de Vargas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1983.).

A proliferação das escolas de graduação em administração ocorreu somente na década de 1960, a partir da assinatura do convênio PBA-1 firmado, em 1959, entre os governos dos EUA e do Brasil (FISCHER, 1984FISCHER, T. O ensino da administração pública no Brasil, os ideais do desenvolvimento e as dimensões da racionalidade. Tese (Doutorado em Administração) − Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984.). Assim, os administradores formados até meados da década de 1960 representavam um pequeno grupo, o que nos levou a formular a pergunta que orientou esta investigação: O que era considerado como a “ciência da administração” ministrada aos formandos da década de 1950?

Este artigo se propõe a fazer um mergulho nos anos 1950 para revisitar a construção da ciência da administração com o objetivo de apontar caminhos futuros que nos indiquem como (re)conectar o curso de administração com a realidade nacional. Essa imersão se dá por meio de documentos produzidos na época, de entrevistas com ex-alunos e ex-professores da Ebap e a partir de sua interseção com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).

A Ebap foi escolhida por seu pioneirismo. Já a escolha do Iseb se deu pelo fato de alguns autores terem mencionado sua influência no pensamento de administração (ALCADIPANI e BERTERO, 2012ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Guerra Fria e ensino do management no Brasil: o caso da FGV-EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 52, n. 3, p. 284-299, 2012., 2014ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Uma escola norte-americana no ultramar? Uma historiografia da EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 54, n. 2, p. 154-169, 2014.), e de afirmarem que essa instituição teria influenciado a formação das primeiras levas de administradores (BERTERO, 2006BERTERO, C.; VASCONCELOS, F.; BINDER, M. Estratégia empresarial: a produção científica brasileira entre 1991-2002. Revista de Administração de Empresas, v. 43, n. 4, p. 48-62, 2003.). Contudo, essas pesquisas não indicaram qual foi o papel do Iseb na construção da ciência da administração, nem que este teria atuado diretamente na formação de técnicos e dirigentes, com uma forte inter-relação com a Ebap (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.). De toda forma, entender a proximidade do Iseb com a Ebap pode ajudar a explicar o que era a ciência da administração nos anos 1950 e, assim, apontar futuros caminhos. A importância do Iseb no período foi mencionada por todos os entrevistados, assim como mencionaram a atuação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que incluímos na análise de dados.

Na próxima seção, convidamos o leitor a uma imersão no Brasil dos anos 1950 para criarmos o contexto no qual germinou a ciência da administração no Brasil. Depois, apresentamos a abordagem metodológica, a qual é sucedida pela análise e discussão dos dados e que está dividida em três partes: discussão sobre o que era a ciência da administração nos anos 1950; o circuito Iseb-Ebap e as contribuições da Cepal. Em seguida, temos as considerações finais.

UMA IMERSÃO NO BRASIL DOS ANOS 1950: DE GHIGGIA A PELÉ, OU DO COMPLEXO DE VIRA-LATAS E DO SUBDESENVOLVIMENTO À UTOPIA DE BRASÍLIA

O objetivo desta seção é conduzir o leitor a uma imersão no Brasil dos anos 1950, período em que a busca pela modernidade se refletiu na política, na economia e na cultura. Para tanto, lançamos mão de canções, temas e textos da época, entrelaçados com pesquisas atuais sobre o período.

Se partirmos do entendimento de que “cada tempo tem a sua marca específica, definida pelas ações dos sujeitos históricos e pelos valores que o conformam”, podemos afirmar que o Brasil dos anos 1950 teve como marca a “crença na transformação do presente com o objetivo de construção de um futuro alternativo ao próprio presente” (NEVES, 2001NEVES, L. A. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA, J. (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 167-204., p. 170-171). Esse futuro alternativo poderia ser representado por “um avião em rota para a impossível Utopia, [mas cujo projeto] logo dá a iniciativa que parecia uma aventura um ar plausível”, segundo as palavras de Manuel Bandeira sobre o projeto de Lúcio Costa para Brasília (LUCIO COSTA, 1957LÚCIO COSTA por Manuel Bandeira. Jornal do Brasil, 24 Mar.1957. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_07&pasta=ano%20195&pesq=24/03/1957 >. Acesso em: 12 mar. 2017
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). A construção da nova capital em tempo recorde e sua inauguração na data prevista, 21 de abril de 1960, representam a materialização do sonho de um Brasil grande que foi vivido nos anos 1950, e um importante traço de nossa biografia (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).

Contudo, se Brasília representou a concretização - em concreto e aço - da utopia dos anos 1950, podemos demarcar o início dessa época pela tragédia nacional que representou a derrota para o Uruguai de Gigghia na final da Copa do Mundo de futebol, em pleno estádio do Maracanã, em 1950. O Maracanazo permanece na memória popular (HEIZER, 2010HEIZER, T. Maracanazo: 16 de julho de 1950: tragédias e epopeia de um estádio com alma. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2010.), e, assim, não poderia deixar de ser relembrado na Copa de 2016 quando da derrota do Brasil para a Alemanha, no que viria a ser chamado de Mineirazo. Para o cronista esportivo e dramaturgo Nelson Rodrigues, o Maracanazo deu início a nosso “complexo de vira-latas...a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol” (RODRIGUES, 2007RODRIGUES, N. Complexo de vira-latas. In: Joaquim Ferreira dos Santos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2007., p. 116).

Portanto, se delimitarmos os anos 1950 pelo Maracanazo e pela inauguração de Brasília, estaremos descrevendo uma época em que partimos do complexo de vira-latas (RODRIGUES, 2007RODRIGUES, N. Complexo de vira-latas. In: Joaquim Ferreira dos Santos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2007.) para chegarmos até a celebração de que “com brasileiro não há quem possa” (MAUGERI, MÜLLER, MAUGERI SOBRINHO et al., 1958MAUGERI et al. A taça do mundo é nossa, 1958. Disponível em: <Disponível em: https://www.letras.mus.br/temas-diversos/564467 >. Acesso em:12 mar. 2017.
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). Apesar do lapso de apenas 10 anos, foi um longo caminho percorrido em pouco tempo, “cinquenta anos em cinco”, no slogan de JK, ou como define Vinícius de Moraes na Sinfonia da Alvorada, com música de Tom Jobim, composta para a inauguração de Brasília: “era necessário convocar todas as forças vivas da Nação, todos os homens que, com vontade de trabalhar e confiança no futuro, pudessem erguer, num tempo novo, um novo Tempo...” (MORAES e JOBIM, 1961MORAES, V.; JOBIM, A. C. Brasília, sinfonia da alvorada, 1961. Disponível em: <Disponível em: https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/87259 >. Acesso em: 18 mar. 2017.
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). Essa foi a crença que permeou todo aquele período, a de que um “novo Tempo” estaria ao nosso alcance, o que dependeria somente de nosso próprio esforço para compreender o “nosso tempo na perspectiva do Brasil e para compreender o Brasil na perspectiva do nosso tempo”, como pregavam os intelectuais que compunham o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (Ibesp) − antecessor do ISEB − dos quais muitos atuavam simultaneamente na Ebap (CADERNOS DO NOSSO TEMPO, 1953CADERNOS CADERNOS DO NOSSO TEMPO. São Paulo: Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política - IBESP, n. 1, out./dez. 1953., p. 1-2).

A eleição de Getúlio Vargas, poucos meses após a derrota para o Uruguai, representou o retorno da esperança popular que pode ser descrita pela marchinha mais tocada no Carnaval de 1951: “bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar” (ALVES, 1951ALVES, F. Retrato do Velho, 1951. Disponível em: <Disponível em: https://www.letras.mus.br/francisco-alves/1313875/ >. Acesso em: 15 mar. 2017.
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). Todavia, antes ainda da posse de Getúlio e do Carnaval, as atenções no país estavam voltadas para a estreia da radionovela O direito de nascer, que ficou no ar até setembro de 1952 na Rádio Nacional, a radiotransmissora PRE-8. Na época, o aparelho de rádio tinha lugar de destaque na sala de todo lar brasileiro e, “nos anos dourados, as ondas da Nacional fizeram a integração cultural e política do Brasil” (AGUIAR, 2007AGUIAR, R. C. Almanaque da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007., p. 129). Apesar da difusão via televisão ter sido lançada no início da década de 1950, a liderança da Rádio Nacional permaneceu inabalada durante todo o período. “E atenção amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história...”: foi assim que Heron Domingues abriu diariamente seu programa na Rádio Nacional, de 1944 a 1962, e que foi o noticiário mais respeitado no país, lugar que seria ocupado pelo Jornal Nacional da Rede Globo no século atual. Foi esse locutor o primeiro a anunciar, em edição extraordinária, o suicídio de Getúlio Vargas, lendo em seguida sua carta-testamento. A penetração da Nacional era tamanha que, “em todo o país, carente de lideranças políticas que conduzissem a sua revolta, o povo saiu às ruas, depredando jornais antigetulistas e bancos e firmas americanas” (AGUIAR, 2007AGUIAR, R. C. Almanaque da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007., p. 121).

A revolta tendo como alvo firmas americanas encarnou o nacionalismo que caracterizou os anos 1950. Se o Maracanazo simbolizou a união nacional na tragédia, a “Campanha do Petróleo” encarnou a defesa da soberania do país e se transformou num dos “maiores movimentos de opinião pública da nação” (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 402). A lei da Petrobras permaneceu quase dois anos em negociação no Congresso e foi sancionada por Vargas no final de 1953, período durante o qual a “Campanha” varreu o país. A criação da Petrobras é o principal símbolo do nacional-desenvolvimentismo que marcou a época, com base na visão de que “a construção de uma nova sociedade dependia da vontade do Estado e do desejo coletivo de um povo que, enfim, teria encontrado seu lugar e destino” (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 417).

A maior presença do Estado na economia foi teorizada a partir do reconhecimento de nossa condição de subdesenvolvimento, um conceito criado nos anos 1950. Seu principal teórico foi o economista brasileiro Celso Furtado, diretor de desenvolvimento da Cepal, de 1951 até 1957, e o principal disseminador das teorias econômicas da comissão no Brasil. Segundo essas teorias, para vencer a condição de subdesenvolvimento, era necessária a participação ativa do Estado na promoção da industrialização. Essas concepções tiveram forte impacto nas políticas públicas dos anos 1950 e serviram de base para o Plano de Metas de JK (BIELSCHOWSKY, 1988BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.; SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), tendo sido amplamente divulgadas tanto no Iseb quanto na Ebap (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.).

A rápida industrialização do país durante os anos 1950 e a busca pelas raízes nacionais manifestaram-se de diversas maneiras no campo cultural. Por exemplo, a peça teatral Orfeu da Conceição, apresentada em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, combinou a criação de Vinícius de Moraes e a orquestração de Tom Jobim com a representação feita pelo Teatro Experimental do Negro - TEN (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.). O TEN fora criado na década anterior por Abdias do Nascimento para que representasse “um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias que representasse” (NASCIMENTO, 2004NASCIMENTO, A. do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos avançados, v. 18, n. 50, p. 209-224, 2004., p. 201). Abdias, no mesmo ano da apresentação de Orfeu, defendeu no Iseb a tese “O valor sociológico do Teatro Experimental do Negro no Brasil”, orientado por Guerreiro Ramos (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.), que também participou do TEN e que, certamente, deve ter assistido ao espetáculo. Orfeu representa, assim, a ebulição cultural dos anos 1950 e a comunhão da busca por novos caminhos no teatro, na música, na sociologia e na representação de um Brasil novo que se descobria e que ansiava por se autoconhecer. Orfeu representava o cotidiano em uma favela no Rio de Janeiro e ganhou uma adaptação para o cinema pelas mãos do diretor francês Marcel Camus, que levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.).

Ainda no campo teatral, em São Paulo, em 1958, o grupo Teatro de Arena apresentou a peça “Eles não usam black tie”, na qual representou o cotidiano dos operários nas fábricas, defendeu o direito à greve e destacou o poder do capital. A peça foi “um sucesso de público e abriu as portas para uma nova dramaturgia com timbre brasileiro” (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 418). Era o Brasil industrial se manifestando nas artes, tanto através da revelação dos bolsões de miséria quanto do cotidiano das novas fábricas.

No cinema, surgiu uma nova linguagem com o lançamento de Rio zona norte, em 1957, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, seguido de Rio, 40 graus, do mesmo diretor, no qual apresentou “sem preconceito, num tom de realismo até então inédito” a realidade do cotidiano de uma favela no Rio, capital da república (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 419). Durante as gravações de Rio zona norte, Glauber Rocha se encontrou com seu diretor e, em seguida, criaram um núcleo que incluía “Leon Hirszman, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni, que formam o que seria conhecido como o ‘grupo do Rio’[...] e esboçam as diretrizes do que viria a ser o Cinema Novo” (SILVA, 2016SILVA, H. P. Glauber Rocha: cinema, estética e revolução. São Paulo: Paco Editorial, 2016., p. 33-34).

Na arquitetura, a representação do traço nacional não se limitou aos feitos de Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer que se revelaram ao mundo através das curvas de concreto de Brasília. Em 1957, o arquiteto carioca Sérgio Rodrigues criou a Poltrona mole que, entre outras criações suas, revolucionou o mobiliário nacional. Em 1961, a Mole ganhou um prêmio na Itália com o nome de Sheriff, que a tornaria conhecida mundialmente. Rodrigues incorporou o experimentalismo de vanguarda da época e deu “maior ênfase aos materiais brasileiros... principalmente o jacarandá e o couro... buscando no móvel a atmosfera de descontração, de informalidade, decorrentes das novas maneiras de estar e de se sentar” (SANTOS, 2000SANTOS, M. C. L. dos. Sergio Rodrigues. In: CALS, S. (Org.). Sergio Rodrigues. Rio de Janeiro: Sindicato dos Editores de Livros, 2000. p. 17-174., p. 32); afinal, a turma da bossa nova precisava de uma nova sala, que combinasse com seus acordes dissonantes. A efervescência cultural do período se revelou também na invenção da bossa nova que, da zona sul do Rio de Janeiro, ganharia o mundo na década seguinte (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.).

Porém, antes que a turma da bossa nova pudesse se divertir com as novas batidas de violão do baiano João Gilberto na sua primeira gravação no disco de Elizeth Cardoso, em 1958 (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.), o país passou por momentos trágicos no ano de 1954. Sim, claro, o suicídio de Getúlio Vargas em agosto foi o mais marcante de todos, mas não foi o único, e foi o terceiro momento consecutivo de comoção nacional daquele ano. No mês anterior, a também baiana Marta Rocha ficou em segundo lugar no concurso de Miss Universo numa perda tão sentida no país quanto a Copa do Mundo de 1950. Ainda o fantasma do complexo de vira-latas nos perseguia, segundo lugar novamente. A perda de Marta Rocha foi ainda mais marcante, pois no mês anterior, na Copa do Mundo de futebol, na Suíça, o Brasil fora precocemente eliminado nas quartas de final pela poderosa seleção da Hungria do craque Ferenc Puskas. Talvez, essa sequência de eventos desastrosos no ano de 1954 tenha catalisado a explosão popular após o suicídio de Vargas, que levou um milhão de pessoas a acompanhar seu corpo do Palácio do Catete até o aeroporto Santos Dumont (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.; SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Então, se 1958 foi “o ano que não devia terminar” (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997.), 1954 foi o “ano para ser esquecido”, pois foi o ano que fez calar fundo na alma nacional o complexo de vira-latas.

Foi somente na Copa de 1958, na Suécia, que começamos a nos livrar desses fantasmas e revelamos ao mundo os gênios de Pelé e Garrincha, que nos deram a taça Jules Rimet. Com a taça, “o brasileiro deixava de ser um vira-lata entre os homens e o Brasil, um vira-lata entre as nações” (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997., p. 15). Assim era o Brasil dos anos 1950, que usava as pernas tortas de Garrincha para driblar seus complexos e construir o Brasil grande, impulsionado pelos “ares modernos e desenvolvimentistas” do governo de JK, que “assopravam e inspiravam o país rumo ao sonho” (SANTOS, 1997SANTOS, J. F. dos. Feliz 1958: o ano que não devia terminar. Rio de Janeiro: Editoria Record, 1997., p. 21).

Assim, durante os anos 1950, reconhecemos nossa condição de subdesenvolvimento para vencermos nosso complexo de vira-lata e, na tabelinha Orfeu-Pelé-JK, pavimentamos o caminho para a modernidade. É nesse contexto, impregnado “por um discurso e um imaginário de forte teor nacionalista” (NEVES, 2001NEVES, L. A. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA, J. (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 167-204., p. 193) que se gestava a ciência da administração e se estruturavam os cursos destinados à formação de administradores. Ora, para preparar o Brasil grande, sonhado nos anos 1950 e, “compreendido assim o desenvolvimento brasileiro como algo que se faz dentro da órbita do estado e sob sua orientação direta, claro se torna o papel reservado ao administrador em geral e ao administrador profissional em particular”, segundo as palavras do orador da turma da Ebap formada em 1959, Reynaldo de Barros (SEMANÁRIO, 1959SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: discursos do ministro da Guerra (paraninfo) e de Reynaldo de Barros (orador) da Turma Getulio Vargas da Escola Brasileira de Administração Pública, no 142, semana de 8 a 14 de janeiro de 1959. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=149322&pasta=ano195&pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 6).

Foi tão singular aquele período que, no apagar dos anos dourados, o presidente bossa-nova JK entregou a faixa para Jânio Quadros, numa cena que só se repetiria quando Fernando Henrique Cardoso passou a faixa a Lula. Passaram-se mais de quarenta anos até que um presidente eleito pelo voto popular passasse a faixa a outro igualmente eleito (SCHWARCZ e STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). O período que se seguiu foi igualmente de desenvolvimento e (re)descobrimento, como haviam sido os anos 1950.

ABORDAGEM METODOLÓGICA

Como fazer uma imersão nos anos 1950 para entender, a partir dos agentes que vivenciaram a época, o que era considerada a ciência da administração? Este foi o desafio metodológico com o qual nos defrontamos. Diante do fato de que a ciência da administração era pouco conhecida até meados da década de 1960, decidimos investigar documentos da época produzidos pela Ebap e por (ex-)alunos e (ex-)professores da escola, onde, teoricamente, tínhamos um centro por excelência do desenvolvimento e aplicação dessa ciência. Um primeiro documento importante é o livro comemorativo de 50 anos da escola, que traz entrevistas com diversos ex-integrantes dos corpos docente e discente, e que traz toda a grade de disciplinas e professores desde o primeiro curso (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). As entrevistas desse livro nos deram indicações de novas entrevistas a serem feitas, bem como apontaram novos documentos a serem investigados. Por exemplo, a entrevista com o ex-professor Nelson de Mello e Sousa indicou o jornal O Semanário que, publicado nos anos 1950, trazia a coluna “Núcleo de estudos brasileiros - Nebras”, produzida por alunos da Ebap e do Iseb. A consulta desta coluna foi possível através da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, na qual todos os artigos aí produzidos entre 1958 e 1959 foram analisados. O Semanário fez parte do que se denomina imprensa nacionalista do período e seu conteúdo era voltado para a propagação da “ideia de que o desenvolvimento nacional passava, necessariamente, pela não concessão ao capital ‘alienígena’” (BRITO, 2010BRITO, L. A imprensa nacionalista no Brasil: o periódico, o semanário (1956-1964). São Paulo: Paco Editorial, 2010., p. 88). Não por menos, o periódico foi depredado e fechado após o golpe militar de 1964, e seus jornalistas perseguidos (BRITO, 2010BRITO, L. A imprensa nacionalista no Brasil: o periódico, o semanário (1956-1964). São Paulo: Paco Editorial, 2010.).

Com o objetivo de aprofundarmos a imersão na construção da ciência da administração, investigamos as publicações de Benedicto Silva, diretor da Ebap entre 1953 e 1959. Encontramos alguns artigos de Silva na Revista do Serviço Público (todos os números disponíveis na Biblioteca Mário Henrique Simonsen [BMHS], da FGV). Nessa pesquisa, também apareceram os Cadernos de administração pública (CAP), publicados pela Ebap por iniciativa de Silva, a partir de 1954, para desenvolver conteúdo em língua portuguesa. Todos os números disponíveis do CAP na BMHS foram consultados. Entre os cahiers publicados − como eram chamados por Silva −, estão os fascículos que viriam a compor o primeiro livro de introdução à administração pública em português (AMATO, 1958AMATO, P. M. Introdução à administração pública. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1958.), bem como o caderno número dois, publicado por Roberto Campos (1954CAMPOS, R. Planejamento do desenvolvimento econômico de países subdesenvolvidos. Cadernos de Administração Pública, n. 2, 1954.), que se mostraram importantes fontes de investigação.

Outras fontes da época consultadas, produzidas pelo governo, foram os discursos oficiais de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK), o decreto lei no 37.608, de 14 de julho de 1955, de criação do Iseb e a respectiva exposição de motivos, consultados no Arquivo Nacional. À medida que nos embrenhávamos nos anos 1950 e produzíamos as entrevistas com ex-alunos e ex-professores daquela época, a relevância do Iseb foi se tornando ainda mais clara. Para investigar o Iseb, os documentos básicos foram o “Relatório de cinco anos de atividades” (ISEB, 1960ISEB. Relatório sucinto das atividades do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB, durante o período de janeiro de 1956 a novembro de 1960. Biblioteca Nacional; Seção de Manuscritos; Arquivo INL (Instituto Nacional do Livro) (52, 30, 49), 1960.) e duas teses sobre a instituição (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.; OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, M. T. C. A “educação ideológica” no Projeto de Desenvolvimento Nacional do ISEB (1955-1964). Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006.). Ao todo, foram realizadas quatro entrevistas no período de outubro de 2015 até abril de 2016. Cabe salientar que todos os entrevistados mencionaram a importância do Iseb na construção do conhecimento de e sobre o Brasil naquele período.

A dificuldade para realizar as entrevistas reside no fato de que todos os possíveis entrevistados têm mais de 80 anos. Realizamos entrevistas abertas a partir do método de história oral temática, em que nosso objetivo era investigar não a história de vida do entrevistado, mas sim a parte de sua trajetória que cruza com nossa investigação (ALBERTI, 2005ALBERTI, V. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.). Nosso desafio foi ir além das entrevistas que já estavam no livro dos cinquenta anos da EBAP (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). Começamos por um entrevistado que já estava no livro, o professor Mello e Sousa (E1), mas depois conseguimos entrevistas inéditas. Entrevistamos mais um professor, Candido Mendes (E2), que esteve na Ebap entre 1952-1968, e entrevistamos também dois alunos: Jorge Hori (E3), da turma de 1956, e Hermes Tavares, da turma de 1959 (E4).

Dessa maneira, a partir de três fontes de depoimentos de ex-alunos e ex-professores da Ebap, construímos um diálogo entre os relatos realizados nos anos 1950 e registrados no OSemanário (1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: O administrador no desenvolvimento nacional, por Jorge Hori, n. 130, semana de 9 a 16 de outubro de 1958. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=149322&PagFis=1990&Pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, 1959), os depoimentos feitos para o livro comemorativo dos 50 anos da Ebap (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.) e as novas entrevistas que realizamos.

As entrevistas, junto com os documentos pesquisados, compuseram o corpus a partir do qual traçamos nossa narrativa. Estamos cientes de que o investigador é parte da narrativa e de que não devemos confundir história com passado. Não entendemos o passado como uma construção fixa que está lá a nossa espera para que, a partir de vestígios, possamos fielmente reconstruí-lo como ele foi. Podemos tão somente construir um mosaico num processo de bricolagem a partir de nossas fontes que mantêm uma verossimilhança com o passado (CURADO, 2001CURADO, I. O desenvolvimento dos saberes administrativos em São Paulo: Uma análise histórica. Tese (Doutorado em Administração) − Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2001.). Nesta narrativa que se segue, estamos presentes como investigadores que, influenciados pelo momento presente, descrevemos − à nossa maneira − algo que já aconteceu e que não é passível de ser descrito em sua plenitude.

ANÁLISE E DISCUSSÃO: “CIÊNCIA OU ARTE”? A CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO NOS ANOS 1950

Naquela época se discutia se isso [administração] era ciência ou arte... 80% dos alunos estava preocupada [sic] com a formalização do diploma para a consequente regulamentação da carreira. O espírito corporativo já dominava (HORI, E3).

Organizamos as três partes da análise de dados a seguir a partir de nossa pergunta de pesquisa e dos temas que emergiram dos documentos e das entrevistas: o que era a ciência da administração nos anos 1950; o circuito Iseb-Ebap; e as contribuições da Cepal. Assim como o Iseb, a Cepal emergiu dos dados como uma instituição que atuou nos anos 1950 e que influenciou a construção da ciência da administração. É importante ressaltar que as três instituições, Ebap, Iseb e Cepal, atuaram no Rio de Janeiro, capital federal até 1960, e tinham localização próxima aos principais órgãos do governo federal.

DA VINCULAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO E DA BASE DE CIÊNCIAS SOCIAIS NA BUSCA DE UMA ADMINISTRAÇÃO BRASILEIRA

Ao falar da década de 1950, julgamos ser útil aos propósitos deste estudo recuperar o discurso de Vargas na abertura do primeiro ano legislativo daquela década, o qual apontava para a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no qual o presidente enfatizou que (BRASIL, 1951BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional do presidente Getúlio Vargas por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1951. Disponível em: <Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br >. Acesso em: 19 ago. 2014.
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; grifo nosso):

O sistema educacional brasileiro não atende às necessidades de mão de obra especializada do país. Carece o nosso ensino superior de institutos de ensino e pesquisas no setor de economia e das ciências administrativas, em número suficiente aos reclamos do meio e com equipamento adequado. O governo pretende realizar vasto programa de formação de mão de obra técnica e de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, não somente para suprir deficiências de pessoal da Administração Pública, como também das atividades privadas.

A formação desses técnicos, em nível superior, seria feita para enfrentar o “desaparelhamento da organização administrativa”, que impedia o Estado de assumir suas novas funções no processo de desenvolvimento econômico do país (BRASIL, 1951BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional do presidente Getúlio Vargas por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1951. Disponível em: <Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br >. Acesso em: 19 ago. 2014.
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). É para cumprir essa missão de formar os técnicos para promover o desenvolvimento nacional que foram criadas tanto as instituições de ensino de graduação em administração surgidas na década de 1950, quanto o “Curso Regular” do Iseb, cujo objetivo era “a formação de quadros de técnicos e dirigentes” (BRASIL, 1955aBRASIL. Exposição de motivos no 627 de 13 de julho de 1955 do ministro Candido Mota Filho para a criação do Instituo Superior de Estudos Brasileiros - ISEB. Caixa 292, maço13. Arquivo Nacional, 1955a.).

Assim, nesta pesquisa, o primeiro aspecto que transpareceu de nossa imersão nos anos 1950 foi a forte relação do desenvolvimento da ciência da administração com o desenvolvimento do país. Recorrendo ao depoimento de Paulo Motta (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 238): “As Nações Unidas disseminaram a ideia de que a administração dos países em desenvolvimento deveria ser mais avançada do que a própria sociedade e funcionar como promotora do desenvolvimento”. Este imbricamento da administração com o desenvolvimento fica claro no discurso do orador da turma da Ebap que se formou em 1958 − primeira turma formada no currículo de quatro anos − (MACHADO, 1966MACHADO, M. O ensino de administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1966.), Reynaldo de Barros (SEMANÁRIO, 1959SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: discursos do ministro da Guerra (paraninfo) e de Reynaldo de Barros (orador) da Turma Getulio Vargas da Escola Brasileira de Administração Pública, no 142, semana de 8 a 14 de janeiro de 1959. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=149322&pasta=ano195&pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 6):

Compreendido assim o desenvolvimento brasileiro como algo que se faz dentro da órbita do Estado e sob sua orientação direta, claro se torna o papel reservado ao administrador em geral e ao administrador profissional em particular. Pois, se o desenvolvimento brasileiro é problema que diz respeito sobretudo ao Estado, a quem compete a realização da tarefa senão àqueles que o dirigem, ou seja, os administradores? Efetivamente, é à administração que cabe traçar as linhas do desenvolvimento, providenciar para que estas sejam cumpridas e reformulá-las quando necessário.

E o que seria esta “ciência administrativa” na década de 1950 que Vargas cita em seu discurso, e que era necessária para apoiar o Estado em suas novas funções para promover o desenvolvimento (BRASIL, 1951BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional do presidente Getúlio Vargas por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1951. Disponível em: <Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br >. Acesso em: 19 ago. 2014.
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)? Recorremos novamente ao discurso de Reynaldo de Barros para ilustrar essa questão. Por este discurso vemos que os profissionais formados à época tinham “um conhecimento razoável de ciências sociais, com uma visão global da sociedade brasileira”, que os colocaria numa “posição intermediária entre o técnico e o cientista social”, e que rejeitava “as leis clássicas da economia, forjadas em países de estruturas inteiramente diferentes das nossas” (SEMANÁRIO, 1959SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: discursos do ministro da Guerra (paraninfo) e de Reynaldo de Barros (orador) da Turma Getulio Vargas da Escola Brasileira de Administração Pública, no 142, semana de 8 a 14 de janeiro de 1959. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=149322&pasta=ano195&pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 6). Esses “administradores profissionais” viam como seu papel auxiliar o Estado no processo de planificação da economia para atender às necessidades da sociedade brasileira; ou seja, claramente uma vinculação de administração e desenvolvimento.

Apesar dessa visão do papel do administrador por um deles, a dificuldade em apresentar para a sociedade o que era de fato o seu papel transpareceu no mesmo discurso de Reynaldo de Barros (SEMANÁRIO, 1959SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: discursos do ministro da Guerra (paraninfo) e de Reynaldo de Barros (orador) da Turma Getulio Vargas da Escola Brasileira de Administração Pública, no 142, semana de 8 a 14 de janeiro de 1959. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=149322&pasta=ano195&pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 6):

Que significa, entretanto, um diploma de administrador profissional? Qual o papel do administrador profissional? São indagações que se hão de apresentar por certo a muitos espíritos e (por que não dizê-lo?) talvez a nós mesmos... O jovem que entra numa Faculdade de Direito, de Medicina, de Engenharia, não tem as mesmas dúvidas e os mesmos problemas. Todos sabem o que vai fazer um engenheiro, um advogado, um médico. Mas poucos sabem que tarefas cabem a um administrador profissional.

Ainda no início dos anos 1960, essa incompreensão sobre o que é administração é ilustrada no depoimento de Paulo Motta, que entrou na Ebap como aluno do curso de graduação em 1961 (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 240):

“Administração, o que é isso? Você está louco!” Eu tinha que explicar o que era a escola, o que eu estava fazendo aqui. Passávamos a vida inteira explicando, porque ninguém sabia o que significava estudar administração. A concepção da época era: as pessoas fariam carreira como engenheiro ou como médico, e, lá no final, seriam diretores de hospitais ou de empresas; aí virariam administradores.

“Na época, ninguém sabia que profissão era aquela, essa é a verdade”, ratificou Mello e Sousa, professor que entrou na Ebap em 1954 (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 34). O que ele reafirmou na entrevista (E1):

Ninguém sabia o que era administração, não tinham a menor ideia do que era [sic] estudos de administração. Administração era entendida como algo... assim como respirar. Era absolutamente natural; todo mundo administra tudo, desde a própria casa até o Estado. Era assim que se entendia administração; então, estudar administração era como estudar, respirar; ou seja, não fazia o menor sentido.

Devido a essa incompreensão sobre a profissão de administrador, na Ebap, por se tratar de um novo projeto em educação, ocorreu que “a constituição do primeiro grupo de alunos tornou-se difícil... e para vencer a dificuldade, teve de desenvolver, nos anos de 1952 e 1953, forte campanha para atrair número suficiente de candidatos”, e, no ano seguinte, a escola lançou um sistema de bolsas para atrair alunos (MACHADO, 1966MACHADO, M. O ensino de administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1966., p. 37). A alternativa que a Ebap encontrou para conseguir formar turmas foi enviar professores aos estados para recrutar alunos:

os professores da escola eram enviados para o interior do país... Os professores eram os recrutadores. Eu mesmo fui a vários estados recrutar alunos, afirmou Mello e Sousa (E1).

Tanto Jorge Hori (E3), em São Paulo, quanto Hermes Tavares (E4) na Bahia confirmaram que receberam a visita de professores recrutadores da Ebap em seus respectivos estados. Isso, entretanto, parece não ter sido o fator preponderante na atração de alunos:

eu resolvi tentar porque eles ofereciam bolsa e passagens para o Rio. A bolsa era suficiente para garantir uma vida de estudante no Rio, era um salário mínimo daquela época, afirmou Tavares (E4).

A atratividade da bolsa também ficava clara aos olhos do professor recrutador Mello e Sousa (E1):

...e, se você for aprovado e aceitar, você tem uma bolsa para se adaptar no Rio de Janeiro. Aí o rapazinho, a mocinha ficava logo animado.

Já Hori (E3) afirmou que sua opção por administração foi, na verdade, por falta de opção, mas ratificou que foi a bolsa que o permitiu se manter no Rio durante os quatro anos do curso: “Eu diria que foi por um acidente, ou melhor, por uma falta de oportunidade, é que eu me envolvi com política estudantil e na época do vestibular eu não estava preparado”.

Apesar de todo este esforço, segundo Mello Sousa (E1), “a cada ano, a gente não sabia se ia formar turma”. Ou seja, mesmo com professores visitando os estados e com a oferta de bolsa, a barreira do desconhecimento do que era a administração na época dificultava a formação de turmas.

E qual era a formação em ciência administrativa oferecida pela Ebap? O currículo da escola, ao longo da década de 1950, tinha uma sólida formação em ciências sociais, que depois foi modificado em meados da década de 1960. Segundo o depoimento de Paulo Motta (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 239):

nos dois primeiros anos, estudávamos psicologia, antropologia, direito público, as ciências sociais clássicas - ciência política, história, sociologia - e um pouco de matemática, estatística e línguas: português, inglês e francês; só no terceiro ano, entravam as matérias de administração propriamente.

Na entrevista, Mello e Sousa (E1) deixou clara essa divisão do curso em duas etapas de dois anos cada, sendo a primeira totalmente dedicada à formação humanística e somente nos dois últimos anos, à especialização:

Ele tinha dois anos de formação humanística em que praticamente não se falava em administração. A única cadeira de administração destes dois anos iniciais era uma história da administração com os principais nomes para ir familiarizando o aluno com a matéria. Mas era um curso de história. E, os cursos desta primeira fase eram todos eles de sociologia, antropologia, psicologia, relação de trabalho, legislação de trabalho e etc. Praticamente, não se falava em administração. Nos últimos dois anos, em função do curso de história da administração que dava uma ideia geral do que era orçamento, do que era administração de pessoal, do que era administração de material e tudo isto; aí, nos dois anos finais em que o aluno ia se especializar, ele escolhia. Então, ele saía com uma base humanística muito boa e com uma especialização bastante razoável.

Foi esse modelo da Ebap, com o início do curso focado em ciências sociais para só depois ministrar a especialização, que, particularmente, atraiu o aluno Hori (E3) para a escola:

O que me interessou mesmo no curso da Ebap foi a conexão com as ciências sociais, mas também a antropologia, a economia. Isso era bom, mas tinha momentos que nós nos perguntávamos: quando é que vamos aprender a administrar? Mas foi uma ótima formação eclética para o administrador público. E não digo eclético em termos ideológicos, mas em termos de conhecimentos gerais mesmo. Essa base multidisciplinar é muito importante. É importante ser holístico.

A ênfase nas ciências sociais e a proposta de formação de líderes e dirigentes estão presentes em outros depoimentos que reunidos no livro comemorativo de 50 anos da Ebap (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). Um aluno da turma de 1955, Gilnei Mourão Teixeira, confirmou que “nos dois primeiros anos, a Escola possuía um currículo como poucas faculdades de ciências sociais tinham... Naquela época, ninguém estudava antropologia cultural ou ciência política neste país” (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 90).

Ainda segundo Motta, o objetivo da escola era formar “grandes líderes; não estavam numa escola para serem técnicos de administração” (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 239). Fato também corroborado no depoimento de Diogo Lordello de Mello, que se tornou professor da escola em 1956: “a ideia original da criação da Ebap era a preparação de uma elite de funcionários públicos” (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 25). Contudo, parece que esta pretensão da escola não se confirmou na prática, segundo Tavares (E4):

[...] uma coisa que diziam tanto, vocês aqui estão aprendendo para serem dirigentes, vão ser chefes. Mas na verdade, você aprendia era ser chefe de coisas burocráticas, colocar caixinha aqui e acolá.

Fato que foi corroborado por Hori (E3):

Mas a Ebap não conseguiu cumprir muito bem o seu objetivo de formar as lideranças para administração pública do país... no sentido de que o ebapiano alcançaria os grandes postos da administração pública... Nenhum chegou a ser ministro ou alto dirigente de estatal.

Sobretudo, a ciência da administração que se procurava criar na Ebap era algo ligado ao contexto local, que seria diferente do que era emanado dos EUA. Um dos fundadores e diretor da Ebap, entre 1953 e 1959, Benedicto Silva (1959SILVA, B. Introdução à administração pública. Revista do Serviço Público, v. 82, n. 1-3, p. 27-41, 1959., p. 29), reconheceu a superioridade dos EUA em “aperfeiçoar técnicas e métodos administrativos”, mas salientou que “a eficiência administrativa americana só servirá de modelo nos países deste continente, se for latinizada”. Segundo as palavras de Silva (1959SILVA, H. P. Glauber Rocha: cinema, estética e revolução. São Paulo: Paco Editorial, 2016., p. 29), os ensinamentos administrativos dos EUA:

Estão saturados de tal maneira do ambiente institucional americano, que dificilmente poderiam ser úteis nos outros países do continente. O virtuosismo administrativo americano, rico e variado, somente se tornará transplantável para os países latino-americanos, se passar pelo filtro crítico da adaptação.

Isto é, na década de 1950, a principal escola de ensino de administração pública da América Latina, através de seu diretor à época, Benedicto Silva, reconhecia os EUA como principal fonte das modernas “técnicas e métodos administrativos”, mas afirmava que as mesmas não seriam diretamente aplicáveis, em particular, ao Brasil. Em outras palavras, ao menos na Ebap, na década de 1950, rejeitava-se uma aceitação incondicional do modelo de administração sugerido pelos EUA e se buscava construir uma administração brasileira.

Corroborando a posição de Silva (p. 29, 1959SILVA, B. Introdução à administração pública. Revista do Serviço Público, v. 82, n. 1-3, p. 27-41, 1959.) de que “muitos compêndios americanos sobre administração não satisfazem aos objetivos do estudo dessa disciplina nos países latinos”, e para tentar aplicar nestes um “filtro crítico da adaptação”, a Ebap passou a editar em 1954 o Cadernos de Administração Pública. O objetivo era produzir no Brasil o material didático necessário aos seus cursos, “uma vez que não existe no idioma materno de seus estudantes - português e espanhol - um montante suficiente de trabalhos sobre administração pública, que possam ser adotados como guias pelos alunos” (SILVA, 1954SILVA, B. A era do administrador profissional. Cadernos de Administração Pública, n. 19, 1954., p. 1).

O artigo de Hori (E3), então aluno da Ebap, intitulado “O administrador no desenvolvimento nacional”, resume bem as discussões feitas até aqui (SEMANÁRIO, p. 4, 1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: discursos do ministro da Guerra (paraninfo) e de Reynaldo de Barros (orador) da Turma Getulio Vargas da Escola Brasileira de Administração Pública, no 142, semana de 8 a 14 de janeiro de 1959. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=149322&pasta=ano195&pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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; grifo nosso):

Papel da Ebap na formação do administrador

Os múltiplos estudos sobre Administração demonstraram a possibilidade de seu ensino sistemático; e o preparo de administradores só poderá ser realizado em nível universitário pelas exigências do conhecimento em ciências sociais que possibilitem a apreensão da realidade brasileira, sem a qual o Administrador será apenas uma máquina de pouca utilidade. Este nível ainda se impõe pela necessidade de se criar uma Administração Brasileira...O processo de desenvolvimento...exige uma ordenação e racionalização das atividades econômicas dentro de um planejamento, e com isso a participação ativa e eficiente do Estado. Assim, uma das grandes tarefas do nosso desenvolvimento está no preparo e formação de números técnicos em Administração Pública e Administração Privada, que hoje encontram grandes oportunidades. É sob este aspecto que a Ebap assume grande importância e validade.

Vemos que há uma tentativa de justificar o “ensino sistemático de administração”, que ele tem o objetivo de “formação de técnicos para apoiar o Estado no processo de planejamento do desenvolvimento”, e vemos que o “conhecimento em ciências sociais para apreender a realidade brasileira” é o que daria o diferencial para que o administrador não se tornasse uma simples “máquina de pouca utilidade” (SEMANÁRIO, 1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: O administrador no desenvolvimento nacional, por Jorge Hori, n. 130, semana de 9 a 16 de outubro de 1958. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=149322&PagFis=1990&Pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 4).

Temos assim que a Ebap procura construir uma administração brasileira, a partir de uma base de ciências sociais, que estava vinculada com o desenvolvimento econômico do país. Desse esforço também participou o Iseb, que propiciou a construção de uma visão de Brasil (ALCADIPANI e BERTERO, 2014ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Uma escola norte-americana no ultramar? Uma historiografia da EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 54, n. 2, p. 154-169, 2014.), que, junto com a Ebap, rejeitavam o apriorismo da gerência científica insuflada a partir dos EUA (SILVA, 1959SILVA, B. Introdução à administração pública. Revista do Serviço Público, v. 82, n. 1-3, p. 27-41, 1959.). Os cursos ministrados por Ebap e Iseb, apesar de suas diferentes propostas, tiveram o objetivo de formar técnicos e dirigentes “para suprir deficiências de pessoal da Administração Pública, como também das atividades privadas” (BRASIL, 1951) e “colaborar na solução de problemas básicos do desenvolvimento econômico e do bem-estar social do país”, como estava assinalado nos estatutos da FGV já na década de 1940 (FGV, 1995, p. 7).

Destarte, a criação das escolas de ensino de administração e o surgimento do curso de pós-graduação ministrado pelo Iseb, a partir da década de 1950, são frutos do mesmo processo de vinculação da administração com o desenvolvimento econômico e da consequente necessidade de formação de técnicos e dirigentes.

DA EBAP AOS PORÕES DO ISEB

Por conta de alguns professores nós formamos um grupo de estudos que funcionava nos “porões” do Iseb. Essa coisa de dizer “porões” é justo, porque na casa da rua das Palmeiras havia uma sala que ficava embaixo e aí é que aquela ideia dos alunos [da Ebap] de salvar o Brasil aparecia (HORI; E3).

As menções ao Iseb em todas as entrevistas nos interessaram, especialmente, para saber qual teria sido a interação do Iseb com a Ebap e qual teria sido seu papel na formação do pensamento em administração (ALCADIPANI e BERTERO, 2012ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Guerra Fria e ensino do management no Brasil: o caso da FGV-EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 52, n. 3, p. 284-299, 2012.). O Iseb nasceu como uma escola de governo que tinha por missão básica a “formação de quadros de técnicos e dirigentes” (BRASIL, 1955aBRASIL. Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política - IBESP, n. 3, jan./mar. 1955.) e a produção de pesquisas que servissem de base ao governo “no planejamento e na elaboração de um programa administrativo” (BRASIL, 1957BRASIL. Discurso do presidente Juscelino Kubitschek no ato de inauguração da nova sede do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) sobre suas finalidades - em 8 de agosto de 1957. Disponível em: <Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br >. Acesso em: 19 ago. 2014.
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). O Iseb foi criado como um “curso permanente” (BRASIL, 1955bBRASIL. Decreto-Lei no 37.608 de 14 de julho de 1955. Caixa 292, maço 13. Arquivo Nacional, 1955b.) e que promovia o “curso regular”, em nível de pós-graduação, com duração de um ano, que exigia defesa de tese ao final (ISEB, 1960): “exigia um trabalho de pesquisa que naquela época já era similar ao caminho de uma pós-graduação”, segundo Candido Mendes (E2). Entre 1956 e 1960, um total de 205 profissionais se formaram com a presença de funcionários de diversos ministérios e órgãos públicos (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.). Segundo Mello e Sousa (E1):

O Iseb foi concebido no modelo da escola de altos estudos de Paris. O Iseb foi concebido como um êmulo brasileiro da escola de altos estudos. Era um grupo de intelectuais, os melhores do Brasil, queriam se reunir para refletir sobre o Brasil, estudar o Brasil. Este foi o objetivo que levou à fundação do Iseb.

O desenvolvimento econômico implicava que o Estado deveria assumir novas funções e, para tanto, era necessária a formação de um novo tipo de quadros de técnicos e dirigentes. É exatamente por esses motivos que o governo JK, que herda o Iseb como uma instituição de ensino criada no curto governo de Café Filho, iria apoiá-lo ao invés de abandoná-lo, como poderia se esperar dada a mudança de governo. Não queremos aqui afirmar que o Iseb nasce como uma escola de ensino de administração como as demais que criadas ao longo dos anos 1950, mas o Iseb representou a alternativa do governo para a formação de técnicos e dirigentes para atuação na administração pública, principalmente, e também na administração privada, que fazia sentido a partir das condições de tempo e espaço daquela década (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.).

As práticas de ensino e pesquisa do Iseb tiveram como foco “o ensino e a divulgação do projeto de desenvolvimento do país”. Para atingir tal objetivo, baseavam-se em algumas premissas: “concentração de esforços no estudo, na pesquisa e no planejamento de tudo o que se relacionasse com a realidade brasileira; busca e construção de um entendimento histórico do país; investimento numa abordagem metodológica voltada para as especificidades nacionais” (OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, M. T. C. A “educação ideológica” no Projeto de Desenvolvimento Nacional do ISEB (1955-1964). Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006., p. 204). O curso do Iseb era fortemente concentrado nas ciências sociais como forma de compreensão da realidade nacional, o que coincidia com o foco dos dois primeiros anos do curso da Ebap. Além disso, o Iseb era o centro por excelência de formulação do conceito de desenvolvimento nacional (OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, M. T. C. A “educação ideológica” no Projeto de Desenvolvimento Nacional do ISEB (1955-1964). Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006.). Estes foram, então, os principais fatores de atração entre os professores e alunos das duas escolas. Segundo Tavares (E4), o que o atraía no curso da Ebap “não era a parte técnica, era a parte de ciências sociais, o nacionalismo e a possibilidade de interação com o Iseb”. Nacionalismo que perpassa toda a década de 1950.

Como se deu, então, a influência do Iseb na Ebap? A Ebap foi criada no Rio de Janeiro em 1952, mesmo ano em que o “Grupo de Itatiaia” começou a se reunir no embrião do que mais tarde se tornaria o Iseb (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.; OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, M. T. C. A “educação ideológica” no Projeto de Desenvolvimento Nacional do ISEB (1955-1964). Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006.). Quando o ISEB se mudou, em 1957, para o casarão em Botafogo na Rua das Palmeiras, n. 55 (ABREU, 1975), ele passou a ficar muito próximo do casarão da Ebap na Praia de Botafogo: “tinha um bonde que subia a Voluntários da Pátria, ou mesmo íamos a pé. Era uma boa caminhada. Nessa época, para jovens, 3 km não é muito”, afirmou Hori (E3), no que foi corroborado por Tavares (E4): “tinha o bonde, que ia direto. Bem perto”. Quando Tavares entrou na Ebap, em 1959, ele se disse naturalmente atraído para o Iseb, pois “os [alunos] antigos faziam propaganda”, o que deixa claro que as ideias do Iseb circulavam plenamente nos corredores da Ebap.

O professor Guerreiro Ramos é o caso mais conhecido de um professor que lecionou simultaneamente em ambas as instituições: professor da Ebap de 1953 até meados da década de 1960 (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.), Guerreiro já participava das discussões do Grupo de Itatiaia antes mesmo de se tornar professor desta escola (WANDERLEY, 2015aWANDERLEY, S. Desenvolviment(ism)o, descolonialidade e a geo-história da administração no Brasil: a atuação da CEPAL e do ISEB como instituições de ensino e pesquisa em nível de pós-graduação. Tese (Doutorado em Administração) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2015a.). É, então, natural se esperar que Guerreiro tenha sido um dos principais fertilizadores cruzados entre esses dois meios acadêmicos. Guerreiro foi também o responsável por contratar alunos da Ebap como estagiários do Iseb para desenvolver diversas pesquisas no Centro de Estudos do Departamento de Sociologia (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.). Essas pesquisas, com os recursos do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) − ganhos após apoio do Iseb a uma campanha do industrial Mattarazzo − foram coordenadas por Guerreiro, pelo economista Gilberto Paim e pelo demógrafo Mario Magalhães (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.). Este havia lecionado na Ebap em 1953 (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 392). Ambos os professores, Paim e Magalhães, trabalhariam depois, na década de 1960 numa escola da Ebap, a Escola Interamericana de Administração Pública (EIAP, 1967ESCOLA INTERAMERICANA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Informe I Curso de Administração para o Desenvolvimento Econômico, 1967.). Segundo Mello e Sousa (E1), Paim trabalhou ativamente na Ebap e no Iseb: “o Gilberto Paim era um jornalista, não era professor, não tinha nem formação universitária, mas era um pesquisador destes pés de ferro mesmo. Ele levantava aqueles dados todos e abastecia os cursos e fazia também textos tradicionais que ele não assinava, mas fazia”.

Um caso mais longevo do que o de Guerreiro Ramos, de um professor que atuou tanto na Ebap quanto no Iseb, é o do professor Candido Mendes. Este é um dos “isebianos históricos” que, como Guerreiro, participou desde o Grupo de Itatiaia. Candido Mendes entra na Ebap no mesmo ano de Guerreiro, 1953, mas permanece após sua saída, e tem atuação ininterrupta até 1968 (BONEMY e MOTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). Além disso, numa coincidência histórica, foi Candido Mendes quem assumiu a cátedra de “Introdução ao desenvolvimento brasileiro” quando esta foi incluída na graduação da Ebap em 1964, tendo lecionado esta disciplina até 1966 (BONEMY e MOTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). Ou seja, o conceito de desenvolvimento do Iseb sendo ministrado na Ebap. Candido Mendes é mencionado por alunos e professores da época como referência da Ebap deste período com a mesma frequência com que Guerreiro Ramos é citado, sendo lembrado, também, pela característica de sua retórica, “seu estilo gongórico, altamente rebuscado” (ver BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 114). Para Candido Mendes (E2), este era “um período de intelectuais em busca da identidade nacional”. Ainda segundo ele:

O pensamento que começa com o Ibesp [Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, antecessor do Iseb] é um pensamento de opinião, chegar à ideia de nação para si. Quer dizer, não para outrem. Isso daria a noção de que não é possível se pensar isso sem entrar na tese do nacionalismo. Quer dizer, e evidentemente é preciso se entender que para realizar esse processo econômico, social, político e cultural; e, aí, falávamos na época do “fato social total” sem entender que, na simples inércia de uma mudança, não se chega realmente a sua modificação estrutural... e o desenvolvimento é essa situação que envolve um momento fundador, onde o fundador é interdisciplinar; não se pode dizer que seja só econômico. E, aí, o Guerreiro Ramos teve muita influência.

Ainda digno de nota, sobre professores que atuaram simultaneamente nas duas instituições, são os casos de Michel Debrun e Themístocles Cavalcanti − este também lecionou na EIAP na década de 1960 - (EIAP, 1967ESCOLA INTERAMERICANA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Informe I Curso de Administração para o Desenvolvimento Econômico, 1967.), apesar do curto espaço de tempo em que lecionaram simultaneamente em ambas as instituições. Debrun, como professor visitante, lecionou entre 1958 e 1960, tendo publicado pelo Iseb o livro Ideologia e realidade (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.). Já Cavalcanti, era membro do Conselho Curador do Iseb, e ministrou palestras tanto nos cursos extraordinários do Ibesp (CADERNOS DO NOSSO TEMPO, 1955CADERNOS CADERNOS DO NOSSO TEMPO. São Paulo: Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política - IBESP, n. 1, out./dez. 1953.), quanto do Iseb, e foi professor da Ebap em seus dois primeiros anos (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.). Cavalcanti participou das reuniões nos EUA e Brasil que levaram à criação da Ebap, e ministrou aulas no curso piloto oferecido por esta escola (MACHADO, 1966MACHADO, M. O ensino de administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1966., p. 21). Cândido Mendes e Themístocles Cavalcanti, entre outros, foram professores homenageados na formatura da primeira turma da Ebap em 1954 (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 100). O principal mentor do Iseb, Hélio Jaguaribe, também teve presença marcante na Ebap, segundo Hori (E3):

O único que cedia e estimulava, mas não participava era o Roland Corbisier. Mas, que eu lembre, ele era um dos que menos iam à Ebap. O Hélio Jaguaribe foi várias vezes. O Álvaro Vieira Pinto foi algumas vezes. O Werneck Sodré não foi muito, mas foi algumas vezes. Quem mais ia era mesmo o Hélio, o Guerreiro e o Cândido Mendes, que já eram professores dos dois lados.

Portanto, fica claro que há uma proximidade entre o Iseb e a Ebap, pelo menos, ao longo da década de 1950, momento nodal da construção da ciência da administração no Brasil. Essa proximidade pode ser ilustrada pelo fato de que no primeiro ano completo da EBAP, 1953, em que foram ministradas 16 disciplinas (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002.), um total de quatro contavam com professores que ministravam simultaneamente nas organizações antecessoras do Iseb. Uma importante confirmação dessa proximidade entre Iseb e Ebap é o depoimento do professor Mello e Sousa. Quando perguntado se “eram próximas as relações entre a Ebap e outras instituições que também pensavam o Brasil” na época em que ele entrou na escola, o professor Mello e Sousa respondeu (BONEMY e MOTTA, 2002BONEMY, H.; MOTTA, M. (Org.). A escola que faz escola EBAPE 50 anos: Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV Editora , 2002., p. 38; grifo nosso):

Mais que relações próximas, havia uma interpenetração. Cândido Mendes, Guerreiro Ramos e Roland Corbisier, por exemplo, eram professores da Ebap e do Iseb − Roland não era professor nosso, mas tinha uma presença muito ativa nos programas de conferências organizados pelos alunos. Isso tudo compunha uma grande interação entre nós. Eu próprio não era professor do Iseb, mas ajudava nas pesquisas conduzidas pelo Instituto. Além disso, dirigi, num jornal nacionalista, o Semanário, uma página chamada Nebras, Núcleo de Estudos Brasileiros. Os textos eram preparados por nossos alunos, em sintonia com o grupo do Iseb e com grande penetração na UNE. Havia um circuito institucional ligando Iseb, Ebap e UNE.

Sobretudo, o amálgama desse circuito institucional entre Iseb e Ebap era a busca pela formação de técnicos e dirigentes para promover o desenvolvimento nacional, que fossem profundos conhecedores da realidade brasileira, e também das técnicas importadas para sua transformação, mas que deveriam passar por necessárias adaptações para que se tornassem passíveis de aplicação em nossa realidade. O conhecimento das ciências sociais ministrado nessas duas escolas era o que daria esse diferencial para promover a adaptação das técnicas importadas, e que propiciaria a diferenciação de um verdadeiro administrador profissional de uma máquina que simplesmente reproduzisse os conhecimentos recebidos de fora.

DA CEPAL X “ECONOMISTAS ESCOLÁSTICOS”

Além das menções ao Iseb, as entrevistas trouxeram ainda menções à Cepal, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) − criado após a II Guerra Mundial que, durante toda a década de 1950 e início dos anos 1960, formulou teorias que afrontavam o apriorismo da gerência científica importada dos EUA, e que muito tem a contribuir com os estudos organizacionais (WANDERLEY, 2015bWANDERLEY, S. Estudos organizacionais, (des)colonialidade e estudos da dependência: as contribuições da Cepal. Cadernos EBAPE. BR, v. 13, n. 2, p. 237-255, 2015b.). As posições da Cepal nesse período geraram uma relação conflituosa com as autoridades dos EUA e marcaram uma forma diferenciada de analisar o desenvolvimento da América Latina. Pela posição da Cepal, o desenvolvimento da região deveria ser pautado pela atuação forte do Estado através do planejamento econômico, o que, para as autoridades dos EUA, era perigosamente similar ao modelo de planejamento centralizado dos países comunistas (POLLOCK, 1978POLLOCK, D. Some changes in United States attitudes towards CEPAL over the past 30 years. CEPAL Review, n. 6, p. 57-80, 1978.).

Um exemplo da propagação das ideias da Cepal tanto na Ebap quanto no Iseb foi a palestra de Guerreiro Ramos feita no Iseb, intitulada “O controle ideológico da programação econômica”, publicada na íntegra na coluna “Problemas nacionais - Direção do Núcleo de Estudos Brasileiros (NEBRAS) (SEMANÁRIO, 1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: O administrador no desenvolvimento nacional, por Jorge Hori, n. 130, semana de 9 a 16 de outubro de 1958. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=149322&PagFis=1990&Pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 8):

[...] tampouco valerá o assessoramento de economistas “especializados”, isto é, homens que se limitam ao plano econômico-financeiro, dentro de uma linha de raciocínio ortodoxo, perdendo de vista a realidade histórico-social como um todo. Justamente, esta é a tese central do texto apresentado pelo

Nebras à meditação de nossos leitores. O planejamento econômico não pode ser “peripécia de economistas escolásticos”, como diz Guerreiro Ramos.

Se os “economistas escolásticos” deveriam ser evitados, a coluna deixou claro quais os economistas que deveriam ser seguidos: “Celso Furtado, Ignácio Rangel e Gilberto Paim devem figurar, obrigatoriamente, na biblioteca de todo brasileiro que se interessa pelos problemas nacionais” (SEMANÁRIO, 1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: O administrador no desenvolvimento nacional, por Jorge Hori, n. 130, semana de 9 a 16 de outubro de 1958. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=149322&PagFis=1990&Pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 4). Furtado era o principal representante brasileiro na Cepal (BIELSCHOWSKY, 1988BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.); e assim como Gilberto Paim, Ignácio Rangel também participou de atividades de ensino no Iseb (ABREU, 1975ABREU, A. A. Nationalisme et action politique au Brésil: une étude sur l’ISEB. Thèse pour le Doctorat de 3e Cycle. Paris: Université René-Descartes, 1975.). Esta edição do Semanário (1958) trouxe como propaganda a imagem da capa do livro A redução sociológica, de Guerreiro Ramos (1958RAMOS, A. G. A redução sociológica (Introdução ao estudo da razão sociológica). Rio de Janeiro: ISEB, 1958.), publicado pelo Iseb, com a sugestão de que este deveria constar, junto com os “estudos de economia” de Furtado, Rangel e Paim, da lista “de todo brasileiro que se interessa pelos problemas nacionais” (SEMANÁRIO, 1958SEMANÁRIO, O. Núcleo de Estudos Brasileiros: O administrador no desenvolvimento nacional, por Jorge Hori, n. 130, semana de 9 a 16 de outubro de 1958. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=149322&PagFis=1990&Pesq=NEBRAS >. Acesso em: 22 dez. 2014.
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, p. 4).

Vemos, assim, que tanto na Ebap quanto no Iseb prevalecia uma rejeição da economia liberal e havia uma adesão aos pressupostos da economia estruturalista defendida pela Cepal. No caso da Ebap, isso chega a surpreender, dado que a escola de economia da FGV, o Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), seguia claramente a linha liberal comandada por Gudin (BIELSCHOWSKY, 1988BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.). Segundo Mello e Sousa (E1), havia mesmo uma resistência dos alunos da Ebap com o pessoal do Ibre: “os alunos tinham uma certa irritação com eles. E eram muito hostilizados”. Ficava claro que havia duas visões de mundo em competição, “essa linha estruturalista era Prebisch X Gudin”, segundo Hori (E3) ou, nas palavras de Tavares (E4), “era centro-periferia via Iseb. Também Iseb irmanado com Cepal”. Nessa competição, o grupo de Mello e Sousa (E1) tinha uma posição clara ao lado do pensamento de Iseb e Cepal, e contrário ao grupo de Gudin/Ibre, que ele chama de escola de Chicago:

Nós tínhamos um grupo que tinha conexão com a Cepal, com o Iseb e com uma serie de ramificações de professores de economia ou de sociologia que defendiam uma tese completamente diferente. [Gudin/Ibre] Defendiam uma tese sem o estímulo do Estado, sem o apoio do Estado, sem a proteção do Estado. Sem investimentos liderados pelo Estado a nossa indústria iria padecer, não aguentava a competição internacional. Se não tivesse proteção tarifaria não aguentava e não ia deslanchar, não era possível. Este era o caminho da industrialização no Brasil. Essa era o que nós defendíamos.

Consequentemente, é essa a visão de economia, a estruturalista da Cepal, e não a liberal, abraçada pelo Iseb, e que foi ministrada tanto em seu “curso regular”, que penetra na Ebap e que influenciou a formação da ciência da administração e das primeiras turmas de administradores (BERTERO, 2006BERTERO, C. Ensino e pesquisa em administração. São Paulo: Thomson, 2006.). Estes fatos ilustram a importância do Iseb na construção da ciência da administração e ajudam a explicar por que o Iseb teria influenciado o pensamento de administração no Brasil (ALCADIPANI e BERTERO, 2012ALCADIPANI, R.; BERTERO, C. Guerra Fria e ensino do management no Brasil: o caso da FGV-EAESP. Revista de Administração de Empresas, v. 52, n. 3, p. 284-299, 2012.). Fica claro que, ao longo dos anos 1950, e início da década de 1960, o curso de administração pública que a Ebap procurava construir estava muito mais próximo do conteúdo dos cursos do Iseb do que do curso ministrado na Eaesp. Fica claro também que o conteúdo de economia ministrado na Ebap estava mais próximo da Cepal e do Iseb do que da própria escola de economia da FGV, o Ibre, que seguia os preceitos liberais, opostos ao estruturalismo da Cepal. Entretanto, ao longo da década de 1960, com a aceleração do processo de americanização − marcadamente após a assinatura do convênio PBA-1 com o governo dos EUA - Iseb e Ebap seguiriam caminhos bastante distintos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos anos 1950, assumimos nosso complexo de vira-lata e nosso subdesenvolvimento para (re)descobrir o Brasil por meio do nacionalismo que nos guiou na rota para a impossível utopia de Brasília. Perdemos a Copa de 1950 em pleno Maracanã, mas erguemos a taça Jules Rimet na Suécia. As ondas da Rádio Nacional nos fizeram chorar por Getúlio Vargas e Marta Rocha, mas, no teatro, vibramos com o herói Orfeu Negro de uma favela carioca e conhecemos o novo cotidiano das fábricas que produziam o Brasil novo em Eles não usam blacktie. As primeiras experiências do Cinema Novo mostravam o país por um novo ângulo, seus bolsões de miséria, enquanto a bossa nova exaltava “sal, céu, sol e sul” de Ipanema. Foi em plena efervescência cultural, política e econômica do período, com o Brasil questionando suas entranhas na busca de autoconhecimento, que se gestou a ciência administrativa.

Nesse ambiente de busca das raízes nacionais, o administrador profissional que se desejava formar devia ser um profundo conhecedor da realidade nacional. Ele se imaginava como o condutor que nos levaria a um novo patamar de desenvolvimento e de sociedade através de seus conhecimentos e do planejamento. Nossa imersão na década de 1950 para investigar as origens da construção da ciência da administração foi feita a partir da investigação de documentos produzidos na época e por depoimentos de ex-professores e ex-alunos da Ebap. O objetivo foi não somente (re)visitar o passado, mas também iluminar o futuro do curso de administração, que é hoje o principal no país. A partir de nossa investigação, sugerimos que a ciência da administração surgiu no país intimamente ligada ao tema do desenvolvimento nacional, bem como ao planejamento desse desenvolvimento.

Imbuído dessa missão, o administrador devia ser alguém que rejeitasse o apriorismo da gerência científica recebido dos EUA, e que buscasse nas ciências sociais a melhor forma de adaptar os preceitos importados ao nosso contexto. Era a busca por uma administração brasileira que, na Ebap, defendia que a eficiência administrativa americana só nos serviria de modelo se fosse latinizada. Esse processo de construção de uma ciência da administração brasileira nos anos 1950 teve a forte influência do Iseb e da Cepal. No Iseb, as ciências sociais formavam a base para a compreensão da realidade nacional e o meio para transformá-la. Foi esse apoio nas ciências sociais como instrumento de compreensão e meio para a construção de um Brasil novo que aproximou a Ebap do Iseb. Ambas as instituições se apoiaram nos aportes teóricos da Cepal, que diagnosticou o subdesenvolvimento da periferia como inerente ao desenvolvimento do centro, e que prognosticou a industrialização com apoio e indução do Estado como forma de superá-lo.

Mormente, a busca por uma administração brasileira teve como pano de fundo o nacional-desenvolvimentismo, que permeou todos os anos 1950, e que teve na Campanha do Petróleo, do início do período, a mais forte materialização de seu espírito e, na construção de Brasília, sua concretização − em concreto e aço.

Atualmente, talvez estejamos mais ocupados em dominar as técnicas importadas do que em apreender nossa realidade. É necessário inverter essa ordem: primeiro, conhecer nossa realidade, dominar as ciências sociais e as contribuições dos intérpretes do Brasil, por exemplo. Depois, e somente depois, conhecermos e adaptarmos as técnicas necessárias para a transformação de nossa realidade. A mera replicação de conteúdo e técnicas importadas sem a devida avaliação crítica nos transforma em “máquinas de pouca utilidade” (HORI, E3), máquinas que podemos estar reproduzindo em grande número na legião de egressos dos cursos de administração que colocamos no mercado todos os anos. Em 2014 foram exatos 229.722 formados em “gerenciamento e administração” (INEP, 2016INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Censo Educacional do Brasil, 2016. Brasília, 2016.).

A partir da massificação do ensino de administração no século atual, aumenta ainda mais nossa responsabilidade como educadores. Devemos, então, refletir não somente sobre a conexão do que ensinamos com o contexto nacional, como também sobre a compatibilidade entre o ensino ministrado para esses graduandos e a profissão que irão exercer. Sobre o ensino, podemos afirmar que a influência dos EUA na expansão dos cursos a partir dos anos 1960 ainda se faz presente. Por exemplo: na área de marketing, Philip Kotler é o autor com o maior número de livros vendidos; na área de estratégia, tivemos forte impacto das teorias de Michael Porter e de Jay Barney que até hoje ecoam entre nós. Mesmo na área de estudos organizacionais, com viés mais crítico, predomina o conhecimento de origem anglo-saxônica. Podemos partir do pressuposto de que autores como Kotler, Porter e Barney desenvolveram seus modelos teóricos, predominantemente, para a grande indústria dos EUA. Se ainda hoje são esses modelos os principais dentro dos cursos de administração, será que estamos preparando nossos alunos adequadamente para o mercado de trabalho? O fato é que a indústria não é mais o principal mercado de trabalho para os egressos de administração; haja visto que em 2015 esse setor representou menos de 10% do PIB do país.

Portanto, nosso mergulho nos anos 1950 para iluminar o século XXI deve nos fazer recordar as palavras do diretor da Ebap Benedicto Silva (1959SILVA, B. Introdução à administração pública. Revista do Serviço Público, v. 82, n. 1-3, p. 27-41, 1959., p. 29) que buscava uma administração genuinamente brasileira: “o virtuosismo administrativo americano, rico e variado, somente se tornará transplantável para os países latino-americanos, se passar pelo filtro crítico da adaptação”.

Além disso, devemos refletir se nas últimas décadas nossos egressos passaram a ter colocação em outro setor enquanto a tendência para o ensino voltado para a indústria se consolidou com a influência dos EUA. Ou seja, além da falta de conexão com o contexto local e da forte influência estrangeira, será que o conteúdo ministrado nos cursos de administração também está apartado das funções que os egressos exercerão no mercado de trabalho? Questões que certamente teremos que enfrentar para que o curso de administração que hoje se apresenta como o número um no Brasil ministre, de fato, conhecimento relevante para nossos alunos.

Resgatar os esforços produzidos pela Ebap nos anos 1950 para a construção de uma administração brasileira, e as contribuições que Iseb e Cepal deram nessa empreitada podem nos ajudar a encontrar caminhos de como (re)conectar a ciência da administração com o contexto nacional e, consequentemente, fornecer conteúdo relevante para que nossos egressos prossigam em suas rotas para a impossível utopia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2015
  • Aceito
    12 Abr 2017
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