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Razão e Administração: revisitando alguns elementos fundamentais

Razón y Administración: Revisando algunos de los elementos fundamentales

Resumo

As ações e os processos administrativos parecem estar em um período pós-racional, no qual a racionalidade se tornou uma palavra mal compreendida, sendo a ação racional comumente associada ao cientificismo e à tecnocracia. Acreditamos que esse estereótipo pode ter um fundo de verdade, mas é, sobretudo, baseado em um mal-entendido fundamental que buscamos esclarecer. Assim, o objetivo deste ensaio teórico é revisitar o conceito de razão, base de toda ciência social, a partir da argumentação de que ela é una e indivisível, sendo denominada aqui razão lúcida. Após um resgate da concepção clássica de razão e sua transavaliação do período moderno, essa contextualização forneceu bases para responder a seguinte pergunta: “como formular uma razão da práxis apta a guiar a própria práxis pelos caminhos de um procedimento racional?”. Sugerimos que a resposta se encontra na razão lúcida, constituída pela unidade entre a prudência (phrónesis), pautada por uma lógica contextual e instrumental, e as intenções, baseadas na razão em seu sentido substantivo. É a partir desse conceito que podemos compreender a tensão experimentada nas organizações, inerente à vida da razão, por meio de uma atitude parentética. Concluímos que, assim como a razão enquanto característica humana é única, a discussão da racionalidade no contexto das organizações também deve ser pautada pela não separação literal entre duas ou mais racionalidades, mas reconhecendo a ação administrativa como racional, em seu sentido singular, com as múltiplas faculdades que a compõem.

Palavras-chave:
Razão; Racionalidade; Administração; Práxis; Phrónesis

Resumen

Las acciones y procesos administrativos parecen estar en una era posracional, en la que la racionalidad se ha convertido en una palabra incomprendida y la acción racional se asocia comúnmente con el cientificismo y la tecnocracia. Suponemos que este estereotipo puede tener un trasfondo de verdad, pero, sobre todo, se basa en un malentendido primario que intentamos aclarar. Por lo tanto, el objetivo de este ensayo teórico es reconsiderar el concepto de razón -base de todas las ciencias sociales- desde el argumento de que esta es una e indivisible, llamada aquí “razón lúcida”. Después de discutir la concepción clásica de la razón y su transvaluación del período moderno, brindamos la base para dilucidar la siguiente pregunta: ¿Cómo formular una razón de la praxis, capaz de guiar la propia praxis a lo largo de un procedimiento racional? Sugerimos que la respuesta está en la razón lúcida, que consiste en el vínculo entre la prudencia (phrónesis), guiada por una lógica contextual e instrumental, y las intenciones, basadas en la razón en su sentido sustantivo. Es a partir de este concepto que podemos entender la tensión experimentada en las organizaciones, inherente a la vida de la razón, a través de una actitud parentética. Concluimos que, así como la razón como característica humana es única, la discusión de la racionalidad en el contexto de las organizaciones también debe guiarse por la separación no literal entre dos o más racionalidades, pero reconociendo la acción administrativa como racional, en su sentido singular con las múltiples facultades que la componen.

Palabras clave:
Razón; Racionalidad; Administración; Praxis; Phrónesis

Abstract

Administrative actions and processes are seen as part of a post-rational era, in which rationality has become a misunderstood word, and rational action is commonly associated with scientism and technocracy. We assume that this stereotype may have a background of truth, but it is actually based on a fundamental misunderstanding that we attempt to clarify. Thus, the objective of this theoretical essay is to revisit the concept of reason, which is at the foundation of social science, based on the argument that ‘reason’ is one and indivisible, defined here as “lucid reason.” After discussing the classical conception of reason and its trans-valuation to the modern period, we provide the basis for elucidating the following question: how can someone formulate a reason of praxis, capable of guiding their praxis along an entire rational procedure? We suggest that the answer lies in the lucid reason, which consists of the unity between prudence (phrónesis), guided by a contextual and instrumental logic, and intentions, based on reason in its substantive sense. From this concept we can understand the tension experienced in organizations, inherent to the life of reason, through a parenthetic attitude. We conclude that reason as a human characteristic is unique, and likewise, the discussion of rationality in the context of organizations must also be guided by the non-literal separation between two or more rationalities, recognizing administrative action as rational, in its singular sense, with the multiple faculties that compose it.

Keywords:
Reason; Rationality; Administration; Praxis; Phrónesis

INTRODUÇÃO

Cientistas motivados pelo propósito de provar que são desprovidos de propósito constituem um interessante caso para estudo.

(A. N. Whitehead)

Razão e racionalidade são conceitos clássicos e, como tais, têm sido objeto de trabalho de inúmeros autores ao longo dos séculos e dos mais diversos campos de estudo. Assim, não são poucos os trabalhos no Brasil que se dedicaram a uma revisão desses conceitos na área da Administração (PIZZA JUNIOR, 1994PIZZA JUNIOR, W. Razão substantiva. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 7-14, 1994.; SOUTO-MAIOR, 1998SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998.; SIQUEIRA, 2014SIQUEIRA, G. Epistemologia da razão substantiva de Guerreiro Ramos. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 4., 2014, Florianópolis. Anais... Florianópolis: [s.n], 2014.; AZEVEDO e ALBERNAZ, 2015AZEVEDO, A.; ALBERNAZ, R. A Razão d’a nova ciência das organizações. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. esp., p. 593-604, 2015.). No sentido de faculdade humana, a partir do qual discutimos, a razão continua sendo um atributo único e singular do homem - a essência da natureza humana - como o próprio Aristóteles (2009)ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009. a define. Dessa forma, seria adequado usar o termo razão quando nos referimos à faculdade da pessoa humana e o termo racionalidade quando consideramos sua expressão prática.

Essa prática, ou no termo grego prâksis, é um dos domínios em que a razão pode ser exercida. Nesse domínio, ela é concebida como razão da práxis ou racionalidade prática, sendo este último termo firmado por Tomás de Aquino (PINTO, 2013PINTO, J. Gobierno de trabajo y racionalidad práctica: fundamentos para una teoría de la dirección de empresas a partir del concepto de prudencia de Tomás de Aquino. Revista Empresa Y Humanismo, v. 16, n. 1, p. 27-52, 2013.). Ela corresponde às ações humanas ou práticas - do latim agire - domínio em que se exerce a virtude da phrónesis, traduzida como sabedoria prática ou prudentia. Além da práxis, o raciocínio prático também é relacionado ao domínio da produção - poiesis ou produzir - pela aplicação de conhecimento técnico ou techné. Segundo Kavanagh (2013KAVANAGH, D. Problematizing practice: MacIntyre and management. Organization, v. 20, n. 1, p. 103-115, 2013.), uma das distinções entre a poiesis e a praxis se refere ao seu propósito (telos). A primeira serve como meio para se conseguir um produto ou resultado, seja um artefato, produto ou tecnologia. A segunda não está estruturada em torno de um resultado; é um fim em si, que tem a ver com a conduta de alguém enquanto cidadão da pólis.

Em relação à palavra racionalidade, no momento atual - supostamente pós-moderno - têm-se atribuído conotações negativas e a ação racional é comumente associada ao cientificismo e à tecnocracia. Ações e processos administrativos parecem ingressar em seu período pós-racional. Nesse sentido, quando relacionada a um conhecimento especializado, a racionalidade parece rejeitar o conhecimento não científico ou subjetivo: pessoal, social ou valores humanos; intuição individual e senso comum; a cognição social e culturalmente construída; e visão imaginativa (ALEXANDER, 2000ALEXANDER, E. R. Rationality revisited: planning paradigms in a post-postmodernist perspective. Journal of Planning Education and Research, v. 19, n. 3, p. 242-256, 2000.).

São intrigantes esses sinais de estreitamento, tanto de profundidade quanto de extensão, nas concepções da razão e da racionalidade em teorias que parecem confundir uma das formas de racionalidade (quanto ao uso e produtos) com a faculdade humana da razão. Pode-se dizer que o conceito de racionalidade instrumental, por exemplo, tem em nosso campo uma carga pejorativa que desmerece a importância de tal capacidade. Assim como alguns estereótipos, esse pode ter um fundo de verdade, mas também pode ser baseado em mal-entendidos e preconceitos adquiridos. Nesse sentido, Bolan (1999BOLAN, R. S. Rationality revisited: An alternative perspective on reason in management and planning, Journal of Management History, v. 5, n. 2, p. 68-86, 1999., p. 68) argumenta que diversos conceitos relativos à ação administrativa têm sido trabalhados sob uma concepção “limitada e truncada de racionalidade”.

Em relação aos estudos da racionalidade na área da Administração no Brasil, de modo específico, diversos trabalhos têm auxiliado a construir o que hoje se denomina “campo de estudos da racionalidade nas organizações”. Dentro desse campo, Serva, Caitano, Santos et al. (2015SERVA, M. et al. A análise da racionalidade nas organizações: um balanço do desenvolvimento de um campo de estudos no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 414-437, 2015.) destacam o surgimento de duas gerações de trabalhos. Na primeira, os estudos realizaram uma vasta revisão sobre a razão clássica, a razão moderna e os estudos organizacionais, bem como tentaram identificar a predominância de um “tipo” de racionalidade nas organizações. A segunda geração dos estudos sobre a racionalidade na prática administrativa se inicia com a sistematização da aprendizagem dos primeiros trabalhos, reconhecendo suas principais contribuições, desafios e metodologias e buscando avançar ao incluir novos aspectos e olhares sobre a racionalidade, como é o caso da discussão sobre a tensão e dicotomias entre as racionalidades substantiva e funcional.

Quanto a essa separação, Raz (2005RAZ, J. The myth of instrumental rationality. Journal of Ethics and Social Philosophy, v. 1, n. 1, p. 1-28, 2005.) questiona se é a racionalidade funcional uma forma distinta da razão. Para o autor, há opiniões de que a racionalidade funcional é um domínio básico, talvez mais simples, de razões ou racionalidades. Para argumentar e explicar essa concepção, consideramos fundamental revisitar o conceito clássico, moderno e contemporâneo de razão, de modo a esclarecê-lo a partir de nosso ponto de vista, na tentativa de fazer uma pequena contribuição para o seu reestabelecimento como conceito central das Ciências Sociais, nas quais a Administração se insere.

Assim como Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. e Souto-Maior (1998)SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998. já alertavam nas décadas de 1980 e 1990, acreditamos que o tema da racionalidade está longe de ser ultrapassado ou superado, uma vez que continua sendo central para a Administração e a emancipação humana. Então, trazemos novamente a discussão para o contexto da Administração, de modo a contribuir para a compreensão de como uma razão da práxis está guiando a própria práxis pelos caminhos de um procedimento racional (VAZ, 1993VAZ, H. C. L. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993.). Para tanto, argumentamos que a razão, apesar das várias denominações existentes que se multiplicaram ao longo do século XX, é una e indivisível, a qual denominamos razão lúcida. Essas denominações são propriedades ou funções da razão lúcida, confundidas com essa razão por meio de um processo que denominamos reducionismo metonímico1 1 Para melhor compreensão sobre metonímia, sugerimos o trabalho de Ceia (2017). .

Tendo sido apresentado o pano de fundo que sustenta nossa argumentação, apresentamos nas seções seguintes: (a) uma breve revisitação ao conceito de razão em alguns autores, de diferentes períodos, fundamentais para sua compreensão; (b) a discussão quanto à transformação e divisão do conceito de razão; (c) considerações sobre a racionalidade e a Administração; e, por fim, (d) nossas considerações finais.

REVISITANDO O CONCEITO DE RAZÃO

Para compreender algumas das possibilidades de como a razão vem sendo conceituada, atualmente, é essencial revisitar o conceito de razão/racionalidade ao longo dos diferentes períodos, desde a antiguidade clássica, tal como o esforço já realizado e sistematizado por Alberto Guerreiro Ramos. Não se almeja, no entanto, apresentar uma revisão exaustiva, uma vez que existem trabalhos que se dedicaram a tal finalidade. Entretanto, faz-se um resgate mais pontual, de modo a esclarecer nosso principal ponto de interesse e discussão.

Na filosofia grega clássica, o “racionalismo” se refere à descoberta de que os seres humanos possuem uma faculdade denominada “razão”, que lhes dá acesso à estrutura da realidade (MINOGUE, 2001MINOGUE, K. Rationalism. In: BALTES, P. B.; SMELSER, N. J. (Ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Oxford: Elsevier, 2001. p. 12775- 12778.). Razão é um termo que tem sua origem em outros dois termos gregos: noûs e logos. Noûs significa “apreensão intelectual”, “apreender a realidade do ser”, podendo também significar “sentido” ou “propósito”. Os significados do termo logos (e seu correspondente latino ratio) incluem “reunir”, “juntar”, “medir”, “calcular”, assim, referem-se a pensar, falar ordenadamente, com medida, com clareza e de modo compreensível (MARÍAS, 1966MARÍAS, J. Introdução à filosofia. São Paulo: Duas Cidades, 1966.; HARVEY, 1998HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.). Em outras palavras, é um atributo dos indivíduos que os capacita a perceber a ordem e harmonia em si, na vida civil e no cosmos, bem como a transpor tal ordem e harmonia para a vida contemplativa e prática. Desse modo, os indivíduos não são meros produtos de seu meio, mas são capazes de ter consciência dos condicionantes sociais e julgá-los conforme parâmetros universais apreendidos pela razão.

A partir desse sentido, Aristóteles (2009)ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009. considerou o homem um animal racional - literalmente, “o animal que fala” (MARÍAS, 1966MARÍAS, J. Introdução à filosofia. São Paulo: Duas Cidades, 1966.) - que precisava treinar a razão para que não fosse conduzida pelas paixões, por meio da aquisição de bons hábitos operativos (virtudes). Seu objeto seria a sabedoria, prudência da atividade essencialmente humana, exercida no domínio da práxis. Ao viver sob os imperativos éticos da razão e do exercício de sua ética na ação, o homem se torna um ator político, que pensa e age (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989.), sendo capaz de estabelecer critérios abstratos e práticos para uma vida digna de ser vivida e para a boa sociedade, com vistas ao florescimento humano (eudaimonia) ou, em outras palavras, à realização das capacidades potenciais de cidadão. Assim, nesse sentido clássico, a razão “era entendida como a força ativa na psique humana que habilitava o indivíduo a distinguir entre o bem e o mal, entre o conhecimento falso e o verdadeiro e, assim, ordenar sua vida pessoal e social” (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 2).

Em sua versão grega clássica, essa função normativa da razão possibilita compreender a estrutura da realidade, ordenando e hierarquizando as prioridades e valores para si e para a vida humana associada. A alegoria da caverna de Platão (capítulo VII de sua obra A República) é uma das imagens fundadoras do racionalismo (MINOGUE, 2001MINOGUE, K. Rationalism. In: BALTES, P. B.; SMELSER, N. J. (Ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Oxford: Elsevier, 2001. p. 12775- 12778.). Ao apresentar a realidade como sendo composta por dois domínios, Platão nos mostra que, por meio da razão, é possível perceber o mundo das ideias (ou das formas), que transcende o mundo sensível (ou material).

Com a Escolástica (em torno de 1100 a 1500 d.C.), o ideário grego foi resgatado e incorporado à teologia cristã, com as devidas ressalvas e depurações, por meio de análise e síntese. Tomás de Aquino (1225-1274) foi o ápice desse período, tendo realizado, com êxito, uma verdadeira redução sociológica2 2 Sobre o conceito de redução sociológica, ver Guerreiro Ramos (1996). da obra de Aristóteles, ao integrá-la à teologia e filosofia medieval. Foi um momento da história de grande aposta na razão, ainda em seu sentido clássico: erigiram-se grandes fundamentos teóricos que buscaram explicações racionais para a verdade revelada do cristianismo. Stark (2007STARK, R. A vitória da razão: como o cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o sucesso do Ocidente. Lisboa: Tribuna da História, 2007.) explora esse período e mostra como a razão moldou a cultura e instituições ocidentais. A fonte dessa força de influência é a confiança na razão e na lógica como ferramentas fundamentais para a compreensão da verdade religiosa. Afirma o autor que “os fundadores da Igreja pregaram, desde sempre, que a razão é um bem supremo, um dom de Deus, e a ferramenta que permite um desenvolvimento progressivo na compreensão da Bíblia e da Revelação” (STARK, 2007STARK, R. A vitória da razão: como o cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o sucesso do Ocidente. Lisboa: Tribuna da História, 2007., p. 43, grifo do autor).

Dois exemplos podem ilustrar essa aposta. Anselmo de Cantuária (1038-1109), conhecido como o pai da Escolástica, foi autor de inúmeras obras, sendo uma das mais célebres o Proslogium, que oferece provas racionais da existência de Deus. Ela é considerada uma obra-prima da filosofia, a ponto de Immanuel Kant (1724-1804) ter se ocupado dessa obra de Anselmo quase 700 anos depois de ter sido publicada. O segundo exemplo é, novamente, Tomás de Aquino. Conhecido como o príncipe da Escolástica, teve entre seus interlocutores filósofos islâmicos. Acreditava que seria possível converter tais filósofos ao cristianismo por meio do debate racional e tendo por premissa o respeito ao livre-arbítrio dos envolvidos. Para ele, o debate tinha por método as famosas “Questões Disputadas”, também conhecidas por dialética escolástica, que consistia da seguinte estrutura lógica: a questão (hoje diríamos o problema de pesquisa) é exposta e são apresentados, em primeiro lugar, os argumentos existentes que são contrários ao que o expositor irá defender. Tais argumentos são refutados um por um, por meio da demonstração de suas inconsistências lógicas. Por fim, é apresentada a resposta como proposta de solução para a questão levantada e, em seguida, são respondidas todas as argumentações contrárias à solução, procurando desfazer todas as aparentes contradições.

Essa síntese entre fé e razão, porém, começou a desmoronar no início da Idade Moderna. O racionalismo de Descartes (1596-1650) e o empirismo de Hobbes (1588-1679) e Locke (1632-1704) foram uma espécie de revolta contra a filosofia aristotélica e escolástica e seu método, tendo por pano de fundo a rejeição da revelação cristã como parte do objeto de investigação e a adoção exclusiva do mundo natural como fenômeno a ser conhecido. A partir do século XVII, o conceito de razão passa a ser interpretado como um instrumento de previsão de cálculo e a tese defendida pelos grandes filósofos racionalistas e empiristas era de que a ciência moderna se constituía no modelo por excelência de entendimento do mundo. Dessa forma, a razão dos pensadores do século XVII estava cada vez menos associada à faculdade humana, à sabedoria, passando para aquilo que dizia respeito aos fins e valores daquilo que mais tarde veio a ser denominado razão instrumental (MINOGUE, 2001MINOGUE, K. Rationalism. In: BALTES, P. B.; SMELSER, N. J. (Ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Oxford: Elsevier, 2001. p. 12775- 12778.).

Thomas Hobbes tomou por base a razão instrumental para propor os princípios sobre os quais o Estado pode ser baseado e, assim, apresentou pela primeira vez a “razão moderna” ocidental de forma clara e articulada. Em Leviatã, Hobbes (1979HOBBES, T. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2. ed.São Paulo: Abril Cultural, 1979., p. 27) afirma que a razão “nada mais é do que cálculo, isto é, adição e subtração das consequências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos”. Na análise de Guerreiro Ramos (1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 3), “Hobbes pretendeu despojar a razão de qualquer papel normativo no domínio da construção teórica e da vida humana associada”. Em outras palavras, o que Hobbes fez foi um “reducionismo metonímico”, ou seja, tomou a parte (racionalidade instrumental) pelo todo (razão lúcida), pressupondo que havia nessa simplificação uma identidade real em vez de mera figura de linguagem.

Com o desenvolvimento da ciência empírica do século XVII, uma das bases de observação do conhecimento foi desenvolvida na obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano” por John Locke. Ele estava cético acerca do raciocínio silogístico e negou, em particular, a doutrina cartesiana, segundo a qual a razão é inata no homem. Entretanto, a filosofia empirista de Locke não estava totalmente livre do racionalismo, especialmente em sua concepção das faculdades da mente. Dando sequência, o empirismo foi refinado na obra de David Hume (1711-1776), em uma linha de desenvolvimento filosófico que, para alguns fins, culminou na síntese entre o racionalismo e empirismo de Kant (1740-1804), quando argumentou que podemos compreender o mundo fenomenal só em termos do conjunto de categorias (substância, causalidade etc.) já previamente constituído na mente humana, sendo impossível conhecer a realidade em si. Surge, então, o “sujeito epistemológico”: entidade intermediadora entre a realidade “lá fora” e o conhecimento adquirido pela mente humana.

No século seguinte muitos pensadores do Iluminismo francês consideraram a razão um instrumento de crítica à cultura ocidental, tendo em Rousseau (1712-1778) um de seus maiores expoentes. Esses movimentos de pensamentos eclodiram, em 1789, na Revolução Francesa, na qual a razão foi confrontada não apenas com a experiência na epistemologia, e contra a revelação na teologia, mas contra a tradição na política. A razão era, agora, um princípio revolucionário para reformar a vida social e política. No século XIX, o racionalismo influenciou a compreensão da história como uma doutrina do progresso. A visão positivista de Auguste Comte (1798-1857) era de que a humanidade havia mudado de uma fase teológica, por meio de um período de metafísica, e estava se movendo para uma era positivista. Dado que os seres humanos tinham aprendido a controlar a natureza, não deveriam eles também aprender a controlar a sociedade, no interesse da felicidade humana? Os aspectos práticos dessa forma de racionalismo têm como critério a razão instrumental, no sentido de que o pensamento descola da reflexão e interpretação do problema em si - desconsiderando a propriedade ético-normativa da razão - e o objetivo maior passa a ser o alcance de sua solução (MINOGUE, 2001MINOGUE, K. Rationalism. In: BALTES, P. B.; SMELSER, N. J. (Ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Oxford: Elsevier, 2001. p. 12775- 12778.), articulando os meios - geralmente técnicos e tecnológicos - para que tal objetivo seja atingido de modo eficiente e eficaz.

Percebendo o problema de distorção do entendimento moderno do conceito de razão, diferente daquele descoberto pelos pensadores gregos clássicos, Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. imergirá no trabalho de Max Weber (1864-1920), tido como fundador da análise funcional por ter reconhecido a lógica de mercado como um requisito funcional de determinado sistema social episódico, além de rejeitar o empirismo britânico, o naturalismo e o determinismo histórico.

Weber fez uma tentativa, porém pouco esclarecedora, de qualificar a noção de racionalidade, distinguindo a racionalidade formal ou instrumental (Zweckrationalität), orientada por fins calculados, da racionalidade material, substancial ou de valor (Wertrationalität) que não se caracteriza por ações humanas orientadas por resultados subsequentes (WEBER, 1991WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: UnB, 1991.; GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989.). Embora Weber tenha feito tal distinção, Guerreiro Ramos (1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 5-6) considera que a “Wertrationalität é apenas, por assim dizer, uma nota de rodapé em sua obra; não desempenha papel sistemático em seus estudos” e, assim, conclui que Weber optou pela “resignação” como posição metodológica em seus estudos da vida social.

Nessa imersão no trabalho de Weber, Guerreiro Ramos recorre ao trabalho de Karl Mannheim (1893-1947), que se apoiou em Max Weber para estabelecer sua distinção entre racionalidade substancial e funcional. Mannheim (1962)MANNHEIM, K. O homem e a sociedade: estudos sobre a estrutura social moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1962. definiu as racionalidades a partir de um propósito ético, pois acreditava que a racionalidade funcional pode limitar as qualificações éticas, o julgamento e a capacidade crítica dos indivíduos. Justificando sua percepção, o autor argumenta que a racionalidade funcional, como vista a partir do desenvolvimento da industrialização na sociedade moderna, tende a abranger a totalidade da vida humana, limitando a autonomia do indivíduo. Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. considerou a fundamentação de Mannheim um meio de atuar contra o estado das sociedades industriais modernas, mas sem oferecer uma perspectiva da ciência social em consonância com sua própria noção de racionalidade substancial.

A preocupação sobre a questão da racionalidade também esteve presente na Escola de Frankfurt, ao considerar que “na sociedade moderna, a racionalidade se transformou num instrumento disfarçado de perpetuação da repressão social, em vez de ser sinônimo de razão verdadeira” (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 8). Com base nessa noção, os autores da Escola de Frankfurt “pretendem restabelecer o papel da razão como uma categoria ética e, portanto, como elemento de referência para uma teoria crítica da sociedade” (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 8).

Max Horkheimer (1895-1973), um dos principais representantes da Escola, percebeu o homem moderno como aquele que tende a se tornar um ego encolhido prestes a evaporar, esquecendo-se de suas racionalidades que tempos atrás o faziam transcender sua posição na realidade (HORKHEIMER, 2002HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2002.). O autor justifica sua posição afirmando que o indivíduo moderno perdeu a capacidade de usar sua linguagem para transmitir significações e recusa-se a aceitar que as pessoas na sociedade moderna utilizem o usual comportamento como base para decidir o significado de racionalidade.

O filósofo e sociólogo Jürgen Habermas (1929- ) é considerado um dos herdeiros diretos da Escola de Frankfurt. Destacam-se em seus trabalhos a noção de racionalidade e a construção de uma teoria crítica da sociedade. Habermas se apoiou no Idealismo alemão e na ideia de emancipação do homem por meio do desenvolvimento de suas potencialidades de autorreflexão e defende que “uma consequência do domínio exercido pela racionalidade instrumental sobre as sociedades modernas é que a comunicação sistematicamente distorcida prevalece entre as pessoas” (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 14). Assim, o autor propôs uma distinção entre a ação instrumental e a ação de comunicação ou simbólica. A primeira estaria subordinada a regras técnicas, sendo demonstrada como correta ou incorreta, e a segunda - a interação simbólica ou a ação de comunicação - define-se pelas relações interpessoais livres de compulsão externa e tendo suas normas legitimadas “apenas através da intersubjetividade da mútua compreensão de intenções” (GUERREIRO RAMOS, 1983GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 14).

Apesar dessas valiosas abordagens, Guerreiro Ramos identifica que somente Eric Voegelin (1901-1984) sustentou que a “razão moderna exprime uma experiência deformada da realidade”, ou seja, a concepção de razão moderna é fruto de uma compreensão da relação deficiente com a realidade. Voegelin (1961VOEGELIN, E. On readiness to rational discussion. In: HUNOLD, A. (Ed.). Freedom and serfdom. Dordrecht: D. Reidel, 1961. p. 269-284., p. 284) fez uma crítica contundente ao esquecimento do conteúdo de textos clássicos, como de Platão e Aristóteles, e afirmou que essa situação se reflete na vida humana como um sintoma da deformação de sua psique, acarretando a uma “confusão sistemática da razão”, perpetrada durante o período moderno.

Em relação à racionalidade, Voegelin (1961VOEGELIN, E. On readiness to rational discussion. In: HUNOLD, A. (Ed.). Freedom and serfdom. Dordrecht: D. Reidel, 1961. p. 269-284.) a distingue entre pragmática e noética, que correspondem aos mesmos tipos de Weber e Mannheim. Sua intenção foi mostrar que “a qualidade de uma sociedade pode ser aferida à luz da razão noética. Esta qualidade é tanto maior quanto mais a razão noética assumir o caráter de força criadora e exercer influência sobre a vida humana” (GUERREIRO RAMOS, 1983GUERREIRO RAMOS, A. Administração e contexto brasileiro: esboço de uma teoria geral da administração. 2. ed.Rio de Janeiro: FGV, 1983., p. 39).

Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989.indica que ambas as racionalidades constituem categorias fundamentais da vida humana associada, em concepções distintas. Entretanto, denuncia que a ciência social moderna pressupõe o ser humano como uma criatura que apenas se comporta a partir do cálculo entre meios e fins, a tal ponto que não distingue entre vícios e virtudes. Dessa forma, o reducionismo metonímico - perpetrado por Hobbes, como mencionado - ecoa ainda hoje nas Ciências Sociais, ao buscar a legitimação teórica de uma visão de ser humano totalmente socializado e que não é capaz de transpor as fronteiras delimitadas pela influência cultural adquirida.

O SINGULAR VIROU PLURAL?

O recente interesse na natureza e nos pressupostos da racionalidade instrumental foi inspirado em um grau considerável de argumentos destinados a demonstrar que a razão pressupõe outras formas ou tipos de racionalidade (RAZ, 2005RAZ, J. The myth of instrumental rationality. Journal of Ethics and Social Philosophy, v. 1, n. 1, p. 1-28, 2005.). A questão que se apresenta é se o entendimento clássico de razão se dividiu em outros conceitos, sendo mais comumente encontrados nos Estudos Organizacionais brasileiros os outros “conceitos” de razão substantiva e razão instrumental (SERVA, CAITANO, SANTOS et al., 2015SERVA, M. et al. A análise da racionalidade nas organizações: um balanço do desenvolvimento de um campo de estudos no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 414-437, 2015.).

Sobre essa dicotomia, Raz (2005RAZ, J. The myth of instrumental rationality. Journal of Ethics and Social Philosophy, v. 1, n. 1, p. 1-28, 2005.) apresenta outras perguntas, que discutimos neste ponto:

  • São razões instrumentais tipos distintos de motivos, cuja normatividade difere em sua lógica subjacente de razões morais ou de outros tipos de razões?

  • Da mesma forma, é a racionalidade instrumental uma forma distinta da razão?

Para o autor, há opiniões de que a racionalidade instrumental é um domínio básico, talvez mais simples, de razões ou racionalidades que, segundo alguns, esgotam razões práticas e racionalidade prática, ao passo que, para outros, constitui a parte mais elementar e teoricamente menos problemática da razão - opinião com a qual concordamos e que defendemos. Em outras palavras, a racionalidade instrumental/funcional adquire significado quando “circunstanciado”, ou seja, quando se faz algo racionalmente em vista das circunstâncias da vida.

Azevedo e Albernaz (2015AZEVEDO, A.; ALBERNAZ, R. A Razão d’a nova ciência das organizações. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. esp., p. 593-604, 2015.) também apontam que, devido às circunstâncias históricas da modernidade - quando ocorreu o que Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989.denominou transvaloração (ou transavaliação) da razão -, e para evitar mal-entendidos interpretativos a respeito da peculiaridade de sua acepção do conceito de razão, Guerreiro Ramos optou por uma adjetivação da razão, designando-a razão substantiva. Max Weber, Karl Mannheim, Eric Voegelin e Jürgen Habermas foram importantes pensadores que, cientes do processo de transvaloração da razão, também adotaram, respectivamente, os termos razão substantiva, razão substancial, razão noética e razão comunicativa (AZEVEDO e ALBERNAZ, 2015AZEVEDO, A.; ALBERNAZ, R. A Razão d’a nova ciência das organizações. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. esp., p. 593-604, 2015.) para se contrapor ao reducionismo metonímico da razão. Dessa forma, a racionalidade substantiva adquire significado quando se transcende a realidade circunstancial (ou cultural) em busca de seu sentido.

Dessa forma, o que tivemos no período moderno foi um esforço intelectual para uma ressignificação da razão e do papel que possuía na condução da vida humana individual e pessoal (AZEVEDO e ALBERNAZ, 2015AZEVEDO, A.; ALBERNAZ, R. A Razão d’a nova ciência das organizações. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. esp., p. 593-604, 2015.). Assim, a razão deixava de ser aquela “força ativa na psique humana” para se tornar, em Hobbes e a partir dele, uma espécie de “capacidade” adquirida pelo “esforço” pessoal que “habilita” o indivíduo a “fazer o ‘cálculo utilitário de consequências’” (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 3).

Os efeitos dessa visão do indivíduo como aquele que apenas reage e conforma-se às circunstâncias exteriores foram sentidos em diversos campos da ciência, mas talvez seus maiores efeitos operacionais se fariam sentir na teoria das organizações, tais como as implicações apontadas por Azevedo e Albernaz (2015AZEVEDO, A.; ALBERNAZ, R. A Razão d’a nova ciência das organizações. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. esp., p. 593-604, 2015., p. 601):

[...] (a) rebaixou a atividade racional humana ao desconsiderar o papel do noûs e do logos (e mesmo da phrónesis) na razão; (b) possibilitou que a razão pudesse ser articulada não mais a partir de sua capacidade de possibilitar a transcendência, mas como um elemento de caráter exclusivamente imanente, o que (c) abriu ensejo para que a mesma fosse redefinida a partir dos aspectos mais operativos no mundo, culminando na acepção exclusiva de razão instrumental ou formal; (d) implicou, por fim, no expurgo da razão da psykhé (ou seja, perda definitiva de seu caráter antropocêntrico); e sua (e) recolocação no plano das relações sociais, nos sistemas sociais e na história; disso resultou (f) uma concepção de natureza humana definida a partir da dimensão sociocomportamental humana.

Retomando as questões apresentadas no início dessa discussão - se a racionalidade instrumental é uma forma ou conceito distinto de razão - e em busca de uma possibilidade de compreensão justificada, trazemos antes nossa definição de “conceito”. Santos (2015SANTOS, M. F. Filosofia e cosmovisão. São Paulo: É Realizações, 2015., p. 53) ressalta que

[...] não devemos confundir o conceito com a palavra que o expressa. O conceito é o produto de uma operação mental; a palavra, apenas o seu enunciado, um sinal verbal. Por isso, devemos evitar cair no verbalismo, que consiste no emprego exagerado de palavras, sem conteúdo preciso.

A partir desse esclarecimento, concluímos que a razão instrumental tal como apresentada aqui, no sentido atribuído pelos pensadores modernos e apontado por Guerreiro Ramos quando se remete à transavaliação da razão, nada mais é do que uma palavra (conjunto de palavras) que enuncia a visão sociomórfica do homem que se instaurou a partir do período moderno. Contudo, o conceito de razão - tal como defendido por Guerreiro Ramos e outros autores - foi adjetivado como substancial, noética e comunicativa para que se remetesse ao seu conceito primeiro, como entendida na visão clássica.

Dessa forma, o conceito de racionalidade instrumental está contido no conceito de razão (como noûs e logos), tal qual o da racionalidade substantiva. A unidade da razão é denominada neste estudo razão lúcida. A partir desse ponto, podemos responder à pergunta: O singular virou plural?

Para nós, o singular continua singular, conquanto que o conceito de razão continua vinculado às suas origens, enquanto que a possibilidade de falar dos “plurais” se dá em virtude da “transavaliação” do singular a partir do período moderno.

RACIONALIDADE E ADMINISTRAÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Nas Ciências Sociais, o conceito de racionalidade é plurissemântico. Contudo, não se nega o fato de que a racionalidade é um valor exibido por tipos desejáveis de comportamento e aceito pela maioria dos cientistas sociais, embora possam duvidar de que o ideal possa ser alcançado (KEKES, 1979KEKES, J. Rationality and the social sciences.Philosophy of the Social Sciences, v. 9, n. 1, p. 105-113, 1979.). Um sinal disso é que a racionalidade é usada em muitos sentidos diferentes por cientistas sociais.

Para a teoria da Administração, Souto-Maior (1998,SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998.p. 968) esclarece que o conceito de racionalidade é usado para

[...] explicar como indivíduos e organizações se comportam em geral, e tomam decisões em particular, para emitir julgamentos sobre esses comportamentos, para desenhar organizações e avaliá-las, para entender e prever a interação interorganizacional […] e, finalmente, mais importante de tudo, para compreender o que significa e como poderemos caminhar em direção à verdadeira emancipação como seres humanos.

Contudo, Kekes (1979KEKES, J. Rationality and the social sciences.Philosophy of the Social Sciences, v. 9, n. 1, p. 105-113, 1979.) considera necessária uma teoria própria da racionalidade, dado que, a partir dela, pode-se analisar e criticar os usos da racionalidade. No entanto, a situação se torna ainda mais complexa pelo fato de que a teoria da racionalidade não é apenas normativa. Também é empírica, para a previsão e explicação do comportamento humano, o que torna ainda mais difícil sua compreensão.

A possível existência de uma teoria contemporânea da racionalidade foi destacada por Spohn (2002SPOHN, W. The many facets of the theory of rationality. Croatian Journal of Philosophy, v. 2, p. 247-262, 2002.), indicando que ela tem se tornado extensa e rica por haver uma expansão pela busca de seus princípios mais gerais, embora muitas perguntas ainda estejam distantes de suas respostas. Para o autor, a teoria da racionalidade tem realmente crescido em uma ciência própria, porém muitos detalhes se tornaram tão especiais que a relevância filosófica tem sido perdida. Contudo, Spohn (2002) ainda defende que o tema geral é genuinamente filosófico.

Sobre essa discussão, Kekes (1979KEKES, J. Rationality and the social sciences.Philosophy of the Social Sciences, v. 9, n. 1, p. 105-113, 1979.) já havia percebido que a racionalidade tem sido objeto de análise acadêmica desde os tempos dos grandes filósofos gregos, mas em grande parte subjacente à ética, em sua preocupação com as metas, o raciocínio e a lógica. O estudo empírico do comportamento racional humano é bastante recente, embora também possa ser encontrado em importantes precursores, como Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Adam Smith (1723-1790).

As Ciências Sociais, com exceção da economia neoclássica, geralmente incorporam explicitamente limitações cognitivas humanas e influências sociais em suas teorias, usando alguma versão de racionalidade limitada, formulada principalmente por Simon (2001SIMON, H. A. Rationality in society. In: BALTES, P. B.; SMELSER, N. J. (Ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Oxford: Elsevier , 2001. p. 12782- 12786.). Sobre essa abordagem na Teoria Organizacional, Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. indica a necessidade de um reexame, uma vez que a concepção de racionalidade limitada está inserida na discussão da racionalidade humana na teoria econômica e trata-se, portanto, da racionalidade instrumental.

Essa ideia exprime a noção de que as pessoas tomam decisões buscando satisfazer seus níveis de aspiração em um ponto suficiente para se sentirem confortáveis, mas não necessariamente para atingir um resultado ótimo. Seus autores, March e Simon (1975)MARCH, J. G.; SIMON, H. A. Teoria das organizações. Rio de Janeiro: FGV , 1975., têm como ponto de partida a crítica ao conceito de racionalidade maximizadora, pois esta confere ao indivíduo a capacidade irrestrita de maximizar e atingir da melhor maneira seus objetivos. Nesse sentido, os autores afirmam que “o conceito de racionalidade limitada pressupõe a existência de uma racionalidade objetiva, em que as alternativas reais, as consequências reais e as utilidades reais estejam presentes” (MARCH e SIMON, 1975MARCH, J. G.; SIMON, H. A. Teoria das organizações. Rio de Janeiro: FGV , 1975., p. 194).

Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989.esclarece que nessa teoria os critérios de economicidade aparecem como únicos critérios da racionalidade, sem nenhum limite entre quais esferas esse conceito (racionalidade) tem validade. Essa teoria, portanto, diferencia-se do conceito clássico de racionalidade, no qual nos remetemos a Aristóteles, que expressava o reconhecimento de um homem ou sociedade fiel a um padrão objetivo de valores postos acima de quaisquer imperativos econômicos.

Partindo desse mesmo reconhecimento apontado por Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., autores como Lapintie (2002LAPINTIE, K. Rationality revisited: from human growth to productive power. Nordic Journal of Architectural Research, v. 15, n. 1, p. 29-40, 2002.) e Alexander (2000ALEXANDER, E. R. Rationality revisited: planning paradigms in a post-postmodernist perspective. Journal of Planning Education and Research, v. 19, n. 3, p. 242-256, 2000.) discutem uma visão mais ampliada de racionalidade para funções administrativas, como o planejamento, a partir de uma perspectiva que denominam “pós-posmoderna” (post-postmodernist perspective).

Alexander (2000ALEXANDER, E. R. Rationality revisited: planning paradigms in a post-postmodernist perspective. Journal of Planning Education and Research, v. 19, n. 3, p. 242-256, 2000.) argumenta que existem tipos diferentes de racionalidade e defende que ela é, em si, mais ampla e mais diversificada do que a dimensão conhecida como racionalidade instrumental, a qual tem sido associada ao planejamento organizacional, por exemplo. Para defender sua tese, o autor elabora um quadro integrador que associa paradigmas complementares de planejamento com várias formas de racionalidade. A partir da identificação desses diferentes paradigmas, Alexander (2000) sugere que diferentes tipos de racionalidade podem ser associados a diferentes tipos de planejamento e mostra que o planejamento, em princípio, não pode ser outra coisa que não racional, em seu sentido singular, mas com múltiplas partes que o compõem.

Superar uma concepção inadequada de racionalidade parece, para autores como Alexander (2000ALEXANDER, E. R. Rationality revisited: planning paradigms in a post-postmodernist perspective. Journal of Planning Education and Research, v. 19, n. 3, p. 242-256, 2000.) e Lapintie (2002LAPINTIE, K. Rationality revisited: from human growth to productive power. Nordic Journal of Architectural Research, v. 15, n. 1, p. 29-40, 2002.), essencial para o desenvolvimento de novas ferramentas para o profissional reflexivo. Entretanto, Lapintie (2002) argumenta que a transição entre a racionalidade instrumental de planejamento racional para suas alternativas dialógicas e substantivas muitas vezes não é tarefa fácil, pois vai além da definição de metas. O sentido da ação, das relações pessoais e da própria vida não se esgota na definição de metas. Para o autor, não há razão para supor que os significados não formulados, aqueles mais subjetivos, sejam menos importantes do que os objetivos formulados, refletindo a existência de uma constante tensão e existência de ambas as dimensões racionais na teoria e na prática administrativa.

Em relação a essa tensão, Guerreiro Ramos (1983)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. dedica um capítulo para explorar os temas “problemas éticos na organização” e “tensões éticas nas organizações”. Nesses textos, o autor apresenta os termos weberianos “ética da convicção” e “ética da responsabilidade”, na qual a primeira - também denominada ética do valor absoluto - encontra-se implícita nas ações referentes a valores, enquanto a segunda está contida nas ações referidas a fins. Tais éticas estão estreitamente relacionadas à racionalidade que orienta a ação dos indivíduos, entretanto, não necessariamente de maneira antagônica. O Quadro 1 apresenta a síntese dessas categorias weberianas.

Quadro 1
Síntese das principais categorias weberianas

Max Weber (2002WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002.) percebeu a existência de um tipo de dilema entre ética da convicção e entre princípios ligados à ética da responsabilidade em seu estudo sobre a vocação e o éthos dos agentes políticos, segundo a qual o homem de vocação política detém a ética da convicção e da responsabilidade de forma complementar e não diretamente oposta (ENDERLE, 2007ENDERLE, G. The ethics of conviction versus the ethics of responsibility: A false antithesis for business ethics. Journal of Human Values, v. 13, n. 2, p. 83-94, 2007.). Isso nos leva a perceber que o autor indica que a tensão está no encontro das éticas na práxis e não no encontro das chamadas racionalidade substantiva e racionalidade instrumental, pois, como já argumentamos, a razão não é um conceito dicotômico, mas que se passou a observar por diferentes perspectivas trazidas com a modernidade.

Nesse mesmo sentido, Freund (1970FREUND, J. Sociologia de Max Weber. São Paulo: Forense, 1970., p. 28) também observa que “esta distinção das duas morais, por mais típica que seja do ponto de vista teórico, não exclui, entretanto, a possibilidade de se agir com convicção e com o sentido da responsabilidade no devotamento a uma causa”. Guerreiro Ramos (1983GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 43) parece concordar ao afirmar que nas organizações

[...] pode-se admitir congruência entre as duas éticas, na proporção em que as qualificações e a natureza do trabalho se coadunem com os valores do indivíduo. Consequentemente, a não ser em casos extraordinários, nenhum indivíduo organiza sua conduta sob a espécie exclusiva de nenhuma das duas éticas.

Há, portanto,

[...] uma tensão contínua entre os sistemas organizacionais planejados e os atualizadores, e afirmar que o indivíduo deve esforçar-se para eliminar essa tensão, chegando assim a uma condição de equilíbrio orgânico com a empresa (exemplo de política cognitiva que uma psicologia motivacional defende, em bases supostamente científicas), corresponde a recomendar a deformação da pessoa humana. Somente um ser deformado pode encontrar em sistemas planejados o meio adequado à sua própria atualização (GUERREIRO RAMOS, 1989GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., p. 99, grifo nosso).

Sobre essa tensão no ambiente das organizações, Enderle (2007ENDERLE, G. The ethics of conviction versus the ethics of responsibility: A false antithesis for business ethics. Journal of Human Values, v. 13, n. 2, p. 83-94, 2007.) descreve como a área de ética nos negócios (business ethics) de hoje pode ser baseada em uma concepção nova e diferente que busca superar a “profunda antítese”, como chamado pelo autor, entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, sem desprezar as tensões entre as atitudes internas e resultados de ações externas. Os padrões éticos podem tanto ser baseados em convicções ou na responsabilidade, sem que uma ética de convicções seja o mesmo que irresponsabilidade ou uma ética de responsabilidade seja pautada pela indiferença para com convicções. A ética da convicção não é apenas uma questão de convicção interna e atitude, mas necessariamente se relaciona com a ação que também é de natureza externa, como objetivos políticos eticamente justificados (ENDERLE, 2007ENDERLE, G. The ethics of conviction versus the ethics of responsibility: A false antithesis for business ethics. Journal of Human Values, v. 13, n. 2, p. 83-94, 2007.). Nessa medida, as duas éticas não são diametralmente opostas, mas complementares.

Souto-Maior (1998)SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998., em seu estudo sobre as racionalidades, considerou que a ação racional referida a fins, ou seja, aquela estritamente relacionada à ética da responsabilidade conforme apresentado no Quadro 1, possui uma distinção entre racionalidade individual e coletiva. Segundo o autor,

[...] é amplamente difundida a ideia de que no cálculo meios fins da racionalidade instrumental não se incluem objetivos altruístas. Este equívoco vem da identificação desta racionalidade com a racionalidade econômica. […] Porém, a racionalidade instrumental exige apenas que a ação seja baseada no cálculo dos meios adequados para atingir os fins do indivíduo, sejam eles egoístas ou altruístas. […] Portanto, o cálculo meio fins pode ser ético, e de um modo mais responsável, que a escolha feita inteiramente baseada num valor intrínseco (SOUTO-MAIOR, 1998SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998., p. 971).

O autor também acredita ser perfeitamente admissível que as duas dimensões de racionalidades coexistam, em maior ou menor grau de conflito, reforçando o argumento aqui apresentado da existência de uma única razão, com diferentes dimensões intrínsecas. Ele conclui que, tanto a racionalidade substantiva como a racionalidade instrumental, como hoje conhecemos, são casos limites, isto é, situam-se nos extremos de um contínuo que comporta uma infinidade de posicionamentos intermediários, onde se encontra o que denominamos razão lúcida.

Visando a ilustrar o pensamento de Souto-Maior (1998)SOUTO-MAIOR, J. Racionalidades: alguns esclarecimentos. Estudos Avançados em Administração, v. 6, n. 2, p. 967-991, 1998., pesquisamos trabalhos de autores brasileiros sobre a racionalidade que agregam novos elementos como alternativa ao debate, acrescentando componentes que ajudam a compreender a razão no contexto das organizações, tais como: o conceito de phrónesis ou sabedoria prática, nas pesquisas de Caitano (2017CAITANO, D. Phrónesis: uma saída para os limites da razão. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 6., 2017, Florianópolis, Anais... Florianópolis: [s.n], 2017.) e Domenico e Pimentel (2017DOMENICO, S.; PIMENTEL, F. Phrónesis nas organizações: um caminho para a mudança emergente. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 7., 2017, Florianópolis. Anais...Florianópolis: [s.n], 2017.); dilemas e desenvolvimento moral nas pesquisas de Costa (2015COSTA, A. E. Desenvolvimento moral nas organizações: um estudo na associação de alcoólicos anônimos. 2015. 355 f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis.) e Ames, Costa e Serafim (2016AMES, M.; COSTA, A.; SERAFIM, M. O arcabouço metodológico da teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg em pesquisas sobre a racionalidade nas organizações: uma análise dos resultados obtidos com o uso do Defining Issues Test-2. In: ENCONTRO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 40., 2016, Mata de São João. Anais... Mata de São João: [s.n], 2016.); e intuição e tomada de decisão por Andriotti, Freitas e Martens (2014ANDRIOTTI, F.; FREITAS, H.; MARTENS, C. Proposição de um protocolo para o estudo da intuição e o processo de tomada de decisão. Revista de Gestão, v. 21, n. 2, p. 163-181, 2014.). Além disso, há discussões teórico-históricas, encontradas na revisão de Costa, Fragoso Júnior, Alves et al. (2017)COSTA, A. et al. Revisitando os estudos da análise da racionalidade nas organizações no Brasil (2013-2016): como se apresentaram as tendências nestes últimos anos? In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 6., 2017, Florianópolis, Anais... Florianópolis: [s.n], 2017. e na sistematização de três gerações de trabalhos sobre os estudos da racionalidade nas organizações, como apresentado por Serva, Caitano, Santos et al. (2015SERVA, M. et al. A análise da racionalidade nas organizações: um balanço do desenvolvimento de um campo de estudos no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 414-437, 2015.).

Dessa forma, a phrónesis tem sido considerada uma alternativa aos limites do conceito de razão e como abordagem metodológica, por Caitano (2017CAITANO, D. Phrónesis: uma saída para os limites da razão. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 6., 2017, Florianópolis, Anais... Florianópolis: [s.n], 2017.), e como a forma de sabedoria prática para a gestão de mudanças, por Domenico e Pimentel (2017DOMENICO, S.; PIMENTEL, F. Phrónesis nas organizações: um caminho para a mudança emergente. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 7., 2017, Florianópolis. Anais...Florianópolis: [s.n], 2017.). Em relação à intuição e tomada de decisão, Andriotti, Freitas e Martens (2014ANDRIOTTI, F.; FREITAS, H.; MARTENS, C. Proposição de um protocolo para o estudo da intuição e o processo de tomada de decisão. Revista de Gestão, v. 21, n. 2, p. 163-181, 2014.) sugerem que a intuição não pode ser colocada em oposição ao processo racional de tomada de decisão, mas sim como algo complementar, e que razão e intuição estão sempre presentes no processo decisório. Da mesma forma, Medeiros e Souza (2011MEDEIROS, J.; SOUZA, W. A racionalidade na gestão do setor social: estudos em organizações de caráter solidário. Revista de Gestão, v. 18, n. 2, p. 145-158, 2011.) encontram esse aspecto de complementaridade entre a razão instrumental e substantiva.

Costa, Fragoso Júnior, Alves et al. (2017COSTA, A. et al. Revisitando os estudos da análise da racionalidade nas organizações no Brasil (2013-2016): como se apresentaram as tendências nestes últimos anos? In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 6., 2017, Florianópolis, Anais... Florianópolis: [s.n], 2017.) encontram abordagens teórico-históricas especialmente em virtude da comemoração do centenário de Guerreiro Ramos, em 2016. Sua revisão de trabalhos indica uma redução no número médio de publicações, se comparada com a análise da produção de Serva, Caitano, Santos et al. (2015SERVA, M. et al. A análise da racionalidade nas organizações: um balanço do desenvolvimento de um campo de estudos no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 414-437, 2015.). Por outro lado, Costa, Fragoso Júnior, Alves et al. (2017)COSTA, A. et al. Revisitando os estudos da análise da racionalidade nas organizações no Brasil (2013-2016): como se apresentaram as tendências nestes últimos anos? In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 6., 2017, Florianópolis, Anais... Florianópolis: [s.n], 2017. afirmam que Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989. propõe uma organização substantiva3 3 Nesse caso, “organizações substantivas” é uma figura de linguagem. A rigor, e mantendo a coerência da abordagem de Guerreiro Ramos, o que há é uma “teoria substantiva das organizações”. como alternativa às organizações econômicas, ao estabelecer a delimitação do enclave de mercado e de sua dominação sobre as demais esferas da vida. Nesse caso, é preciso reforçar o pressuposto de Guerreiro Ramos (1989)GUERREIRO RAMOS, A. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV , 1989., baseado em Aristóteles, de que a razão é um atributo eminentemente do indivíduo, e não algo pertencente à organização ou a um grupo social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma pergunta inicial que trouxe diversos outros tipos de inquietações que foram sendo inseridas ao longo deste ensaio teórico, buscamos apresentar possíveis indicações de respostas que levassem o leitor a refletir sobre a configuração da razão na ação administrativa e, mais particularmente, aos indivíduos inseridos em organizações.

O objetivo deste artigo não foi, exatamente, revelar uma inovação no campo de estudos na racionalidade, mas trazer à tona uma discussão que, por vezes, tem sido esquecida ou negligenciada nos estudos que se dedicam a debater uma possível dicotomia entre a concepção da racionalidade. Nesse sentido, argumentamos a favor da não separação entre duas ou mais razões - uma vez que, como característica humana, ela é única -, mas sim da constatação de que, enquanto seres racionais, convivemos com dimensões da razão (que constituem a razão lúcida), formada pela unidade entre a prudência (phrónesis), pautada por uma lógica contextual e instrumental, e as intenções, baseadas na razão em seu sentido substantivo.

Dessa forma, a argumentação aqui desenvolvida resgata a concepção clássica de racionalidade e como essa concepção também está presente e relacionada aos estudos das organizações e dos indivíduos nelas inseridos. Como Alexander (2000ALEXANDER, E. R. Rationality revisited: planning paradigms in a post-postmodernist perspective. Journal of Planning Education and Research, v. 19, n. 3, p. 242-256, 2000.) alertou, o entendimento de racionalidade nas organizações revela que ela é, em si, mais ampla e mais diversificada do que a dimensão conhecida como racionalidade instrumental e, sendo assim, a ação administrativa é racional, em seu sentido singular, mas com múltiplas faculdades que a compõem.

A contextualização sobre a racionalidade apresentada nos forneceu bases para que fossem traçadas algumas possíveis conclusões sobre “como formular uma razão da práxis apta a guiar a própria práxis pelos caminhos de um procedimento racional?”. A resposta a essa questão parece repousar na “razão lúcida”, que se constitui na unidade entre a prudência - pautada por uma lógica instrumental (logos) - e as intenções, baseadas na razão em seu sentido substantivo (noûs). Essa prudência está relacionada ao conceito de phrónesis, ou seja, à sabedoria prática e à medida correta para suportar a tensão inerente à vida da razão lúcida por meio de uma atitude parentética4 4 Sobre a atitude parentética, ver Guerreiro Ramos (2001). .

Esse sentido de razão restaura uma questão fundamental: Qual é o propósito da Administração?

A busca pela eficiência/eficácia e pela sobrevivência da organização se torna um meio para um fim mais nobre: a emancipação humana e sua busca por significado. A teoria das organizações e sua prática passam a considerar, de fato, o indivíduo como um ser multidimensional em busca não apenas do atendimento de suas necessidades físicas e sociais, mas também pelo sentido de sua vida, possível somente se ponderarmos que ele é portador da razão lúcida. Dessa forma, problemas e dilemas podem ser equacionados diversamente sob essa base. Um exemplo são os problemas éticos enfrentados pelos indivíduos nas organizações: uma correta análise e proposições práticas acerca dessas questões apenas é possível sob a perspectiva da tensão entre as éticas da responsabilidade e da convicção, que requererem a compreensão da razão em sua totalidade, como tratado neste artigo.

Trabalhamos apenas o aspecto descritivo do tema. Para futuras pesquisas, sugerimos abordar aspectos explicativos quanto às raízes do reducionismo metonímico ou transavaliação da razão. Elencamos três tópicos que podem servir de guias:

  1. A supressão da causa final na ciência, tendo por base a teoria das causas de Aristóteles;

  2. A ênfase e adoção do nominalismo - em contraponto ao realismo de Aristóteles e da Escolástica - como principal pressuposto metafísico; e

  3. O pressuposto epistemológico do polilogismo, a crença de que há uma multiplicidade irreconciliável de estruturas lógicas da mente (logos) que depende das características de uma nação, grupo ou do corpo.

Estes três tópicos se tornam alguns dos alicerces latentes da modernidade e são adotados por boa parte das Ciências Sociais atuais. Guerreiro Ramos, ao formular sua teoria substantiva das organizações, buscou uma abordagem que não pressupusesse esses três tópicos. Isso constituirá tema de um futuro artigo.

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  • 1
    Para melhor compreensão sobre metonímia, sugerimos o trabalho de Ceia (2017)CEIA, C. Metonímia. In: CEIA, C. (Coord.). E-dicionário de termos literários (EDTL). [2017]. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em: 11 abr. 2017.
    http://www.edtl.com.pt...
    .
  • 2
    Sobre o conceito de redução sociológica, ver Guerreiro Ramos (1996)GUERREIRO RAMOS, A. A redução sociológica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996..
  • 3
    Nesse caso, “organizações substantivas” é uma figura de linguagem. A rigor, e mantendo a coerência da abordagem de Guerreiro Ramos, o que há é uma “teoria substantiva das organizações”.
  • 4
    Sobre a atitude parentética, ver Guerreiro Ramos (2001)GUERREIRO RAMOS, A. Modelos de homem e teoria administrativa. Caderno de Ciências Sociais Aplicadas, v. 3, p. 1-16, 2001..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019
  • Data do Fascículo
    Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2017
  • Aceito
    05 Mar 2018
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