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A academia em vertigem: em busca de novos caminhos

Renato Terra (2020TERRA, R. Imparcialidade em documentários é ideia superada há muito tempo. Folha de São Paulo, São Paulo, 03 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/imparcialidade-em-documentarios-e-ideia-superada-ha-muito-tempo.shtml . Acesso em: 05 fev. 2020.
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), um dos diretores de Uma Noite em 67, documentário lançado em 2010 sobre o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, contou, em recente artigo veiculado na Folha de São Paulo, que numa das versões preliminares do filme havia um trecho sobre a famosa cena na qual Sérgio Ricardo quebrava o violão. Na obra, o episódio seria intercalado com depoimentos que sublinhavam a sua gravidade. Todavia o produtor executivo João Moreira Salles convenceu os diretores

(o próprio Renato e Ricardo Calil) a abandonarem a ideia, pois, entendia que a longa apresentação do cantor sem interrupções levaria os espectadores a vivenciarem a angústia do artista, que foi vaiado, interrompido e hostilizado até que, num rompante, quebrasse o violão e abandonasse o palco.

No recente Democracia em Vertigem, a diretora Petra Costa provoca um debate sobre a democracia brasileira, ao analisar os últimos anos da política brasileira, sobretudo o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. É um documentário no qual a diretora coloca-se abertamente na trama por meio de narrações. Em nenhum momento ela omite seu posicionamento à esquerda e seu entendimento de que o impeachment teria sido um “golpe”. Isso tornaria o documentário uma obra de ficção?

Resgatando o depoimento de Renato Terra (2020TERRA, R. Imparcialidade em documentários é ideia superada há muito tempo. Folha de São Paulo, São Paulo, 03 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/imparcialidade-em-documentarios-e-ideia-superada-ha-muito-tempo.shtml . Acesso em: 05 fev. 2020.
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), um bom documentário não é o que busca, de forma didática, ensinar alguma coisa; para isso existe o Wikipédia.

O que a Academia pode aprender com o depoimento de Ricardo e as críticas sofridas por Petra?

Inicialmente que qualquer pesquisa é composta por um ambiente societal, constituído, por sua vez, por quatro campos. O campo da demanda social abarca como - e por que - nós pesquisadores somos cooptados pelos nossos temas, o que inclui nossas histórias de vida, vaidade e, até mesmo, retorno pecuniário. Esse campo também nos cobra que, necessariamente, contextualizemos não apenas a sociedade do discurso (Bourdieu), mas também como esta exerce controle sobre a nossa pesquisa.

Não podemos negligenciar o campo axiológico, composto pelos valores sociais, individuais, culturais e técnicos que condicionam a pesquisa. Não há como negar o fato de que os valores culturais da nossa sociedade nos impõem a escolha de nossas problemáticas - fato o qual Weber (1946WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1946.) apontou como “relação dos valores”.

O terceiro campo é o doxológico, o do saber não sistematizado, da linguagem e das evidências da prática cotidiana; nele a prática científica deve esforçar-se para arrancar as problemáticas específicas, a famosa “certeza sonambúlica” (MANNHEIM, 1928MANNHEIM, K. Beitrage zur Theorie der Weltanschauungsinterpretation. 1928. Arquivo capturado eletronicamente. Acesso em: 05 fev. 2020.). Nesse campo, devemos propor uma nosografia (WITTGENSTEIN, 1993WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1993.) para purgar a linguagem científica de contaminações por prenoções vagas e imprecisas.

Por último, há o campo epistêmico, o qual contempla o estado da arte não apenas das teorias, mas também da reflexão epistemológica, das estratégias de investigação e da multidisciplinaridade.

Neste momento em que assumo como Editor-chefe do periódico Cadernos EBAPE.BR, gostaria de reiterar que acolhemos trabalhos de todos os olhares ontológicos, sejam eles teóricos ou empíricos. Mais do que isso, buscamos trabalhos surpreendentes; isto é, que apresentem e discutam fatos que não são facilmente preditos ou previstos pelas teorias. Para tal, os autores de tais artigos devem garantir o rigor metodológico de seus trabalhos, bem como discutirem a importância e as implicações dessas descobertas para a pesquisa gerencial e organizacional.

Que sejamos capazes, na Academia, de ousar como o Renato, o Ricardo e a Petra. O importante é sermos fiéis a nossa verdade e, juntos, mesmo trilhando diferentes caminhos, construirmos e fortalecermos nosso campo do saber.

Assim, é com muito orgulho, que apresento-lhes a primeira edição de 2020, na qual as autoras Marcia Prezotti Palassi, Raiane Gonçalves de Oliveira Martinelli e Ana Paula Paes de Paula discutem a dinâmica da consciência política no Movimento Empresa Júnior em “Entre o discurso empreendedor e a consciência política: estudo exploratório do Movimento Empresa Júnior em uma universidade pública no Sudeste do Brasil”.

No artigo “Entre a emergência, a submersão e o silêncio: LGBT como categoria de pesquisa em Administração”, Maurício Donavan Rodrigues Paniza reflete sobre a representatividade dos grupos que fazem parte do acrônimo LGBT nas pesquisas em Administração.

Fernando Filardi, Rachel Mercedes P. de Castro e Marco Tulio Fundão Zanini, por sua vez, por meio da análise das experiências do Serpro e da Receita Federal, desvelam as vantagens e desvantagens do teletrabalho na administração pública em “Vantagens e desvantagens do teletrabalho na administração pública: análise das experiências do Serpro e da Receita Federal”.

Já no ensaio “O rizoma deleuze-guattariano nas pesquisas em Estudos Organizacionais”, os autores Raquel de Oliveira Barreto, Alexandre de Pádua Carrieri e Roberta Carvalho Romagnoli discutem sobre a utilização do conceito de rizoma, desenvolvido por Deleuze e Guattari, no âmbito da pesquisa em Estudos Organizacionais.

Em “Política Pública de apoio ao desenvolvimento de APLs: uma análise do impacto em Minas Gerais”, a política pública de apoio ao desenvolvimento dos APLs de Minas Gerais, levando em conta seus impactos no desenvolvimento, é analisada por Cecilia Alves da Silva Antero, Cristiana Tristão Rodrigues, Magnus Luiz Emmendoerfer e Valdir Roque Dallabrida.

A sistematização do conhecimento produzido sobre a aprendizagem interorganizacional em redes de micro e pequenas empresas é o tema central do artigo “Aprendizagem interorganizacional em redes de micro e pequenas empresas: um olhar integrativo da literatura”, escrito por Abimael Magno do Ouro Filho, Maria Elena Leon Olave e Ikaro Daniel de Carvalho Barreto.

Em a “Construção de um modelo de análise de redes de políticas públicas em contextos de federalismo e de presidencialismo de coalizão”, Luciana Nunes Goulart e Diego Mota Vieira propõem um modelo útil para a análise de redes de políticas públicas brasileiras, o qual inova ao incorporar à análise de redes os aspectos do federalismo e do presidencialismo de coalizão, por considerá-los aspectos cruciais das relações de poder no Brasil.

No artigo “A racionalidade das decisões na transição interprofissão de professores universitários”, escrito por Elza Fátima Rosa Veloso, Joel Souza Dutra, Rodrigo Cunha da Silva e Leonardo Nelmi Trevisan, os autores analisam a racionalidade das decisões tomadas por professores universitários em sua transição de outras profissões para a carreira docente.

Rodrigo Seefeld e Natália Rese, por sua vez, analisam como a mídia traduz o papel dos envolvidos, os eventos, as relações, seus antecedentes e suas consequências, produzindo versões narrativas consumidas pela sociedade, em “’Para bom entendedor, meia palavra basta?!’: um estudo sobre as narrativas produzidas por agentes de mídia na tradução do papel dos envolvidos na Operação Lava Jato”.

Para identificar, apresentar e analisar formas simbólicas relativas à operação da axiomática capitalista no âmbito do lar, Ana Carolina dos Santos Bortolini, Carmem Ligia Iochins Grisci e Ana Elísia da Costa produziram o estudo exploratório “Morar-trabalhar e a axiomatização capitalista: um estudo baseado em mídia do segmento de arquitetura, decoração e design”.

“Carreiras vulneráveis: uma análise das transformações no jornalismo a partir da demissão como um ponto de inflexão”, produzido por Liana Haygert Pithan, Marcia Cristiane Vaclavik e Andrea Poleto Oltramari, aborda como a demissão afeta a perspectiva do sujeito e força o trabalhador a refletir sobre as projeções futuras da profissão e da carreira.

Da perspectiva de Michel de Certeau sobre o estudo do cotidiano, Luana Furtado Vilas Boas e Elisa Yoshie Ichikawa estudaram como ocorrem as práticas cotidianas de territorialização de trabalhadores alagoanos, cortadores de cana-de-açúcar, que, em meio ao trabalho precário, migram para trabalhar em usinas no Paraná. Este é o tema de “Migrantes cortadores de cana-de-açúcar no Paraná: práticas cotidianas e processos de territorialização em meio ao trabalho precário”.

“Estratégias políticas empresariais: o caso do setor ferroviário brasileiro de cargas”, escrito por Rodrigo Oliveira da Silva, Teresia Diana Lewe van Aduard de Macedo-Soares e Sérgio Augusto Pereira Bastos, teve como propósito identificar as estratégias políticas empresariais empregadas por concessionárias ferroviárias de cargas brasileiras.

Ainda nesta edição, Evangelina da Silva Sousa, Luis Eduardo Brandão Paiva, Alexandre Rodrigues Santos, Sílvia Maria Dias Pedro Rebouças, Raimundo Eduardo Silveira Fontenele nos convidam a refletir sobre “A influência das crenças religiosas na intenção empreendedora: uma análise sob a perspectiva da Teoria do Comportamento Planejado”.

Concluindo a edição, temos a resenha do livro “Influência do pós-doutorado sobre produção científica da pós-graduação: o caso da USP”, escrita por Luis Faria Aboim Tavares.

Boa leitura!

PROF. DR. HÉLIO ARTHUR REIS IRIGARAY

EDITOR-CHEFE

REFERÊNCIAS

  • MANNHEIM, K. Beitrage zur Theorie der Weltanschauungsinterpretation. 1928. Arquivo capturado eletronicamente. Acesso em: 05 fev. 2020.
  • TERRA, R. Imparcialidade em documentários é ideia superada há muito tempo. Folha de São Paulo, São Paulo, 03 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/imparcialidade-em-documentarios-e-ideia-superada-ha-muito-tempo.shtml Acesso em: 05 fev. 2020.
    » http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/02/imparcialidade-em-documentarios-e-ideia-superada-ha-muito-tempo.shtml
  • WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1946.
  • WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020
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