Acessibilidade / Reportar erro

Entre a emergência, a submersão e o silêncio: LGBT como categoria de pesquisa em Administração

Entre la emergencia, la inmersión y el silencio: LGBT como categoría de estudio en Administración

Resumo

Este artigo discute a adoção da sigla LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), questionando a representatividade dos grupos que fazem parte desse acrônimo nas pesquisas em Administração. No Brasil, afirma-se que, embora se almeje construir um campo de pesquisas no assunto, sua agenda é majoritariamente destinada às pesquisas sobre gays (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014). De modo mais específico, o questionamento é: será que é possível tratar sob o mesmo prisma categorias identitárias tão distintas? A construção do trabalho está embasada em: 1) uma versão histórica sobre a constituição dos grupos LGBT, principalmente no Brasil, evidenciando de que modo eles se organizaram e se fragmentaram (FACCHINI, 2005); 2) uma discussão sobre a adoção da sigla LGBT como categoria universal, embasada no debate sobre identidades contingentes (BUTLER, 1998); e 3) um levantamento de literatura nacional sobre grupos LGBT em Administração na base de dados Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL). Foram encontrados 34 artigos sobre os grupos incluídos na sigla LGBT. Pesquisas sobre gays predominam enquanto grupos de lésbicas, travestis e transexuais estão sub-representados. Percebe-se que, embora haja similaridades do ponto de vista de que todas essas categorias identitárias são alvos de discriminação e violência - o que se justifica por se tratarem de categorias tidas como desviantes, as pesquisas levantadas demarcam as diferenças entre elas. É nessas diferenças que se encontram as possibilidades de a pesquisa em Administração questionar a adoção de siglas (como a LGBT) como conceitos universalmente representativos e unificados.

Palavras-chave:
LGBT; Diversidade; Inclusão; Sexualidade; Identidade de gênero

Resumen

Este trabajo discute la adopción de la sigla LGBT (lesbianas, gays, bisexuales, travestis y transexuales) cuestionando la representatividad de los grupos contenidos en ese acrónimo en las investigaciones en Administración. En Brasil, aunque se pretenda construir un campo de investigación en el asunto, su agenda es mayoritariamente destinada a los estudios sobre gays (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014). De forma más específica, el cuestionamiento es: ¿será posible tratar bajo el mismo prisma categorías identitarias tan distintas? La construcción del trabajo se basa en: (1) una versión histórica de la constitución de los grupos LGBT mostrando cómo se han organizado y fragmentado en Brasil (FACCHINI, 2005); (2) una discusión sobre la adopción de la sigla LGBT como categoría universal basada en el debate sobre identidades contingentes (BUTLER, 1998); (3) un levantamiento de literatura nacional sobre grupos LGBT en Administración en la base de datos Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL). Se han encontrado 34 artículos sobre los grupos incluidos en la sigla LGBT. Los estudios sobre gays predominan mientras que grupos de lesbianas, travestis y transexuales están subrepresentados. Se percibe que, aunque haya similitudes desde el punto de vista de que todas estas categorías identitarias son blancos de discriminación y violencia, lo que se justifica por tratarse de categorías tenidas como desviantes, los estudios planteados demarcan las diferencias entre ellas. Es en esas diferencias que yacen las posibilidades de que del estudio en Administración cuestione la adopción de siglas (como LGBT) como concepto universalmente representativo y unificado.

Palabras clave:
LGBT; Diversidad; Inclusión; Sexualidad; Identidad de género

Abstract

This article discusses the adoption of the abbreviation LGBT (lesbian, gay, bisexual, transvestite, and transsexual), questioning the representativeness of the groups contained in this acronym in Administration research. Some authors in Brazil state that, although there is the intention to construct a field of research on the subject, the agenda is mostly aimed at research on gay people (CARRIERI, SOUZA and AGUIAR, 2014). Therefore, the research question is: Is it possible to treat identity categories that are so different under the same prism? The article is grounded on (1) a historical version of the constitution of LGBT groups, showing how they are organized and fragmented in Brazil (FACCHINI, 2005); (2) a discussion on the adoption of the LGBT acronym as a universal category, based on the debate about contingent identities (BUTLER, 1998); (3) a literature review of Brazilian Administration using the SPELL database. A total of 34 articles approaching LGBT groups were found. Research on gays predominates while groups of lesbians, transvestites, and transsexuals are underrepresented. It is perceived that, although there are similarities from the point of view that all the identity categories are targets of discrimination and violence (which is justified because they are categories considered deviant), the articles mark the differences between them. It is in these differences that there are possibilities for Administration research to question the adoption of acronyms, such as LGBT, as a universally representative and unified concept.

Keywords:
LGBT; Diversity; Inclusion; Sexuality; Gender identity

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é compreender quais são as implicações da adoção da categoria LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) nas pesquisas publicadas nos periódicos brasileiros em Administração, a partir da representatividade dos grupos sociais que fazem parte da sigla. O interesse em responder esse questionamento surgiu por conta da percepção de que é necessário construir um desvelamento das lógicas de funcionamento que estão em jogo quando se realiza uma apropriação e aglutinação de grupos sociais tão distintos. De modo mais específico, o questionamento deste estudo é: será que podemos tratar sob o mesmo prisma categorias identitárias tão distintas? (FREITAS, 2015FREITAS, M. E. Contexto, políticas públicas e práticas empresariais no tratamento da diversidade no Brasil. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 4, n. 3, p. 87-135, 2015.; NG e RUMENS, 2017NG, E. S.; RUMENS, N. Diversity and inclusion for LGBT workers: current issues and new horizons for research. Canadian Journal of Administrative Sciences, v. 2, n. 34, p. 109-120, 2017.). Há que se fazer uma análise crítica dessa apreensão.

Vale ressaltar o sentido que se dá à análise crítica que norteia o trabalho. Não se entende neste estudo que o caráter crítico está vinculado apenas a uma tradição teórica exclusiva, como a Teoria Crítica ou ao materialismo histórico-dialético, mas como “um amplo conjunto de abordagens teóricas que possam ajudar a compreender o caráter opressivo da administração e sugerir diferentes caminhos” (ALCADIPANI, 2005ALCADIPANI, R. Réplica: a singularização do plural. Revista de Administração Contemporânea, v. 9, n. 1, p. 211-220, 2005., p. 211). Fournier e Grey (2000FOURNIER, V.; GREY, C. At the critical moment: conditions and prospects for critical management studies. Human Relations, v. 53, n. 1, p. 7-32, 2000., p. 179, tradução nossa) também coadunam essa perspectiva ao afirmar que “não há uma posição crítica unitária, o que significa que não existe uma forma única de distinguir a posição crítica da não crítica”. Aqui, a posição crítica consiste em debater as possibilidades a partir de uma compreensão das diferenças que estão obscuras sob o jogo da linguagem quando a categoria LGBT é utilizada como um acrônimo homogêneo.

Quanto à construção realizada para problematizar LGBT enquanto categoria de pesquisa, a inspiração teórica inicial veio de Scott (1986SCOTT, J. W. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, 1986., p. 1053) para entender que há uma “gramática social” construída historicamente em torno dessa sigla. Para entender essa gramática, a proposta teórica da autora é adotada para compreender alguns aspectos simbólicos que estão por trás da sigla LGBT, as questões normativas que são impostas em relação à compreensão unificada da sigla ou o que interessa à gestão compreender nessa sigla e como essa compreensão está relacionada ao campo organizacional, pois as questões das identidades sexuais e de gênero também se reproduzem e se enfrentam nessa esfera.

Entender LGBT como uma sigla homogênea parece assumir que ela compreende grupos de sujeitos estáveis e que vivenciam o mundo de modo uníssono. No entanto, segundo Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 13), “afirmar que a política exige um sujeito estável é afirmar que não pode haver oposição política a essa afirmação”. Nos estudos brasileiros, afirma-se que, embora se almeje construir um campo de pesquisas relacionado aos grupos LGBT, a agenda é majoritariamente destinada às pesquisas sobre gays (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.). Mesmo quando se considera todos os públicos, Carrieri, Souza e Aguiar (2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014., p. 80) chamam atenção para o fato de que LGBT “não é um grupo homogêneo”, argumento também apresentado por Freitas (2015FREITAS, M. E. Contexto, políticas públicas e práticas empresariais no tratamento da diversidade no Brasil. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 4, n. 3, p. 87-135, 2015.) e por pesquisadores internacionais (NG e RUMENS, 2017NG, E. S.; RUMENS, N. Diversity and inclusion for LGBT workers: current issues and new horizons for research. Canadian Journal of Administrative Sciences, v. 2, n. 34, p. 109-120, 2017.). Nesse contexto, cabe o questionamento: faz sentido unificar a categoria LGBT em um pensamento totalizante e homogeneizador desses grupos?

Repensar o posicionamento da sigla LGBT nos estudos em Administração implica o questionamento, a partir do que caracterizam Fournier e Grey (2000FOURNIER, V.; GREY, C. At the critical moment: conditions and prospects for critical management studies. Human Relations, v. 53, n. 1, p. 7-32, 2000.) no campo crítico: 1) do quanto a sigla acaba assumindo uma feição que é apenas performance, porque discursa sobre igualdade e inclusão, mas na prática só inclui o que já está incluído - a parcela de gays e lésbicas enquadrados no padrão normativo do que é masculino e feminino; 2) do quanto é preciso desnaturalizar as imagens estáveis do que é ser L, G, B ou T no mundo do trabalho, considerando que o campo da gestão pouco sabe sobre o que está além de parte do L e do G, e principalmente do que está fora do LGBT; e 3) a reflexão do que está em jogo quando a sigla LGBT é utilizada como categoria neutra, desconsiderando as relações de poder que entremeiam sua constituição. Para a construção do estudo, adotou-se o conceito de contingência das identidades de Judith Butler, para debater um levantamento da literatura nacional em Administração sobre os grupos identitários pertencentes à sigla LGBT.

O levantamento de literatura nacional sobre os grupos LGBT nos periódicos da área foi realizado na base de dados Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL), a partir dos termos LGBT, gay(s), lésbica(s), bissexual(ais), travesti(s), transexual(ais) e transgênero(s). Haja vista a pluralidade de termos de busca e o uso de um mecanismo digital de localização, há a possibilidade de que nem todos artigos tenham sido identificados, no entanto, pode-se afirmar que a maioria das pesquisas publicadas em Administração foi encontrada no levantamento.

Dessa forma, o trabalho se estrutura em outros cinco tópicos, além desta introdução. No segundo, a metodologia de construção do artigo é apresentada. No terceiro há uma versão histórica sobre a constituição do movimento organizado gay aos grupos LGBT. No quarto são discutidas as contingências da sigla LGBT como categoria unificadora. No quinto se apresenta o levantamento da produção nacional em Administração sobre os grupos LGBT, identificando os temas das pesquisas e a representatividade dos grupos identitários da sigla. No sexto temos a discussão e as considerações finais.

METODOLOGIA

Neste estudo, construiu-se uma narrativa centrada na apreciação da literatura nacional produzida na área de Administração sobre os públicos integrantes da sigla LGBT. Para isso, como referencial teórico, partiu-se de um breve panorama histórico sobre a sigla LGBT, evidenciando questões sobre a construção desses grupos no contexto brasileiro. Além disso, são refletidas as consequências da compreensão dessa categoria LGBT como um grupo identitário supostamente universal e homogêneo.

Como referencial empírico, o foco de análise foi a produção publicada em periódicos científicos da área. Embora o movimento de discussões e debates das questões de sexualidade e gênero também tenha sido e venha sendo desenvolvido junto aos principais eventos da área, a decisão de analisar apenas a produção oriunda de periódicos se deu porque, segundo definição da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad)1 1 A diferenciação entre trabalhos apresentados em eventos (working papers) e trabalhos publicados em periódicos foi divulgada pela ANPAD na chamada de trabalhos para o XLII Encontro da ANPAD (EnANPAD 2018). , trabalhos apresentados em eventos são considerados working papers, ou seja, são trabalhos que ainda não se encontram em sua versão de publicação definitiva. Ainda conforme a entidade, a publicação do trabalho em um periódico é uma fase posterior do movimento de divulgação científica, que tem início após a apreciação e o debate do trabalho no evento.

Como os estudos em sexualidade e gênero, sob a perspectiva LGBT, constituem um campo recente em Administração, o recorte histórico foi demarcado entre os anos de 2006 - quando os primeiros trabalhos sobre gays foram publicados nos periódicos da área (PEREIRA, AYROSA e OJIMA, 2006PEREIRA, B.; AYROSA, E. A. T.; OJIMA, S. Consumo entre gays: compreendendo a construção da identidade homossexual através do consumo. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 1-16, 2006.; SIQUEIRA e ZAULI-FELLOWS, 2006SIQUEIRA, M. V. S.; ZAULI-FELLOWS, A. Diversidade e identidade gay nas organizações. Gestão.Org: Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 4, n. 3, p. 69-81, 2006.) - e 2017 - quando os últimos trabalhos a respeito dos públicos da sigla LGBT foram identificados: sobre transexuais (BAGGIO, 2017BAGGIO, M. C. About the relation between transgender people and the organizations: new subjects for studies on organizational diversity. Revista de Gestão - REGE, v. 24, n. 4, p. 360-370, 2017.) e gays (SANTOS, SILVA e CASSANDRE, 2017SANTOS, N. S.; SILVA, L. F. M.; CASSANDRE, M. P. Quem disse Berenice, que ser gay é ser um bom vendedor de lojas de shopping? Revista de Carreiras e Pessoas, v. 7, n. 3, p. 88-112, 2017.).

O mapeamento de artigos foi feito na base de dados SPELL, que congrega a produção científica nacional nas áreas de Administração, Contabilidade e Turismo. Para este estudo, o levantamento considerou apenas os periódicos editados na área de Administração. As palavras-chave de busca adotadas foram os termos LGBT, lésbica(s), gay(s), homossexual(ais), travesti(s), transexual(ais), transgênero(s). A busca se deu nos campos “título do documento” e “resumo”.

No levantamento proposto foram identificados 34 artigos publicados, sendo que 2 analisaram o público LGBT em geral, 26 eram sobre gays, 5 sobre lésbicas e 4 sobre travestis e/ou transexuais (houve pesquisas que abordaram mais de uma categoria identitária). Nenhum artigo sobre bissexuais havia sido publicado em periódico até 2017. A partir disso, realizou-se um processo de leitura e posterior catalogação dos temas centrais de cada artigo. Assim, foi possível interpretar e sintetizar a diversidade de eixos temáticos e sentidos expressos na produção científica sobre os públicos LGBT dos periódicos em Administração. Na apresentação do levantamento, quando necessário, textos complementares foram consultados. No entanto, priorizou-se o material obtido no levantamento bibliográfico.

CONSTRUINDO UM SENTIDO HISTÓRICO PARA A SIGLA LGBT

A história do movimento LGBT é a história da apropriação e da disputa coletiva de sentido [...] O olhar retrospectivo mostra que essa trajetória tem trazido efeitos positivos para a vida dos sujeitos que visa beneficiar e que, apesar de todos os conflitos e desgastes no processo político cotidiano, debates importantes têm sido travados mesmo dentro do movimento. Nessa trajetória, passou-se de homossexuais, uma comunidade imaginada como separada e oprimida por uma sociedade descrita muitas vezes como mundo heterossexual, para um conjunto complexo de sujeitos políticos que procuram lidar com essa pluralidade e se afirmar como sujeitos de direitos (FACCHINI, 2012FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012., p. 151).

A constituição do que viria a ser denominado grupos LGBT a partir da década de 2000 tem uma história que, no Brasil, inicia-se na década de 1970, com a organização do movimento gay (FACCHINI, 2012FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012.). A opção de priorizar o contexto brasileiro nesse histórico se dá pelo fato de que, embora haja outros trabalhos em contexto internacional que abordem a história dos movimentos de gays, lésbicas, travestis e transexuais, há que se considerar que tais trabalhos estão contextualizados em um cenário cultural, histórico e social específico. Desse modo, compreende-se que as narrativas sobre o que são, como se construíram e o que significam as distintas identidades LGBT estão indissociadas do caráter fragmentário e contingente desses sujeitos, bem como de seus posicionamentos históricos e sociais (JENNINGS, 2004JENNINGS, R. Lesbian voices: the Hall Carpenter oral history archive and post-war british lesbian history. Sexualities, v. 7, n. 4, p. 430-445, 2004.).

O movimento gay brasileiro se articulou como forma de resistência à repressão da ditadura militar, operando como uma espécie de movimento de contracultura. Assim, do ponto de vista histórico, como argumentam Facchini e França (2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.), a homossexualidade enquanto categoria, além de ser recente na sociedade ocidental, estava vinculada ao corpus das ciências médicas, que designavam a sexualidade homossexual como doença (MOTT, 2006MOTT, L. Homo-afetividade e direitos humanos. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, p. 509-521, 2006.). O primeiro movimento gay organizado foi constituído em 1978, o grupo Somos. Do ponto de vista político e ideológico, consistia em um pensamento de esquerda, impulsionado pelos movimentos feministas e negros, também em expansão na época. É nesse grupo, inicialmente frequentado apenas por gays, que em 1981, quando as lésbicas passaram a frequentá-lo, que se constitui o grupo Lésbico-Feminista (LF) separado (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.).

Quanto à posição geográfica, os grupos estavam concentrados inicialmente no eixo Rio-São Paulo, no entanto, na década de 1980, essa concentração se deslocou para o eixo Rio-Nordeste. Nesses grupos nordestinos, onde se destaca o Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado por Luiz Mott, a tática de ação é deslocada do desejo inicial de transformação social para uma atividade mais “pragmática, voltada para garantia dos direitos civis e contra a discriminação e a violência dirigida aos homossexuais” (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009., p. 60). Também na década de 1980, as autoras registram o deslocamento da resistência dos grupos gays, porque com a adoção de intervenções sociais mais pragmáticas e a interação com os movimentos em contexto internacional, os movimentos passam a necessitar de ambientes organizados, com itens como escritório, telefone, organogramas. Por isso, as autoras argumentam que, nesse momento, os grupos já não são resistentes às instituições como eram anteriormente, no período da ditadura militar (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.).

No entanto, os movimentos que lutavam pelos grupos de gays e lésbicas tiveram sua consolidação ameaçada em meados da década de 1980, por conta da descoberta da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e do desconhecimento científico inicial do assunto, que atribuía à doença o status de uma doença gay. No entanto, apesar desse contratempo, em 1985 a homossexualidade deixa de ser considerada doença pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) do Brasil. Em contexto norte-americano, a orientação sexual homossexual já não era tida como doença pela American Psychology Association (APA) desde 1970 (MOTT, 2006MOTT, L. Homo-afetividade e direitos humanos. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, p. 509-521, 2006.; FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.).

Na década de 1990 houve uma ascensão da quantidade de grupos existentes, diversificando as organizações e reivindicações. É com essa expansão e diversificação da atuação que as relações entre esses grupos LGBT que existiam e começaram a existir passou a ser mais estreita com partidos políticos, como Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), bem como com outros atores sociais. Embora as autoras nesse momento histórico já utilizem a sigla LGBT, reconhecem que foi só a partir dos anos 2000 que a sigla ganha representatividade nas políticas públicas e pautas governamentais (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.).

Com a diversificação da pauta, a inclusão de outros atores sociais na discussão como a imprensa, agências de governo nos mais variados campos disciplinares, como Saúde e Direito, as organizações do movimento LGBT passaram a competir entre si, disputando espaços, recursos, legitimidade e, consequentemente, a reivindicação de seus sujeitos políticos de direito. A partir do que explicam as autoras, pode-se entender que essas organizações passam por processo semelhante a uma “empresarialização” do movimento LGBT (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.).

É no processo de reivindicações de sujeitos políticos de direito que se consolidam no Brasil as ideias das identidades coletivas LGBT. É nesse momento, na década de 1990, que as siglas passam a se diversificar, ampliando os sujeitos políticos de direito dos gays para considerar as lésbicas (a partir de 1993), as travestis (a partir de 1999) e os transgêneros (a partir de 2005) (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.). Facchini (2005FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.) já explicara o percurso histórico da sigla, em que se destaca uma análise da pesquisadora relativa ao termo lésbica, que pode ser tomada como uma possível justificativa para a invisibilidade da categoria (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.). Em pesquisa de campo realizada no grupo Corsa, a autora percebeu que as mulheres participantes resistiam à adoção do termo lésbica, preferindo se autodenominar “homossexuais” ou “entendidas”, alegando uma aceitação social mais favorável a esses termos. A pesquisadora identificou textos científicos no período entre 1985 e 1995, em que se relatava essa resistência ao termo lésbica. Uma ação para combater tal ostracismo em relação à adoção da categoria lésbica foi a mudança da sigla gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (GLBT) para LGBT, na Conferência Nacional GLBT em 2008, trazendo as lésbicas para o início da sigla (FACCHINI, 2005FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012.).

Quanto aos bissexuais, Facchini e França (2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009., p. 63) explanam que eles não desfrutaram de “reconhecimento efetivo como integrantes desse sujeito político”, no caso, LGBT. No interior dos movimentos há uma imagem negativa da bissexualidade. Hayfield, Clark e Halliwell (2014HAYFIELD, N.; CLARKE, V.; HALLIWELL, E. Bisexual women’s understandings of social marginalisation: ‘the heterosexuals don’t understand us but nor do the lesbians’. Feminism & Psychology, v. 24, n. 3, p. 352-372, 2014.) ilustram essa resistência no contexto britânico, mostrando que mulheres bissexuais se sentem incompreendidas tanto pelos segmentos LGBT como pelos heterossexuais. A bissexualidade é compreendida nos mais diversos círculos sociais como “uma fase temporária no caminho para uma identidade lésbica ou heterossexual […] e bissexuais são vistos como imaturos, confusos, não confiáveis, altamente sexualizados e incapazes de ser monogâmicos” (HAYFIELD, CLARK e HALLIWELL, 2014HAYFIELD, N.; CLARKE, V.; HALLIWELL, E. Bisexual women’s understandings of social marginalisation: ‘the heterosexuals don’t understand us but nor do the lesbians’. Feminism & Psychology, v. 24, n. 3, p. 352-372, 2014., p. 352, tradução nossa).

Por fim, a letra “T”, que congrega transexuais e travestis, foi uma tentativa de conciliar identidades que em determinados contextos podem ser consideradas opostas entre si. No fim da década de 1990 até se utilizava o termo transgênero, no entanto, convencionou-se nos Encontros LGBT de meados dos anos 2000 que essa palavra não era representativa do meio social brasileiro (FACCHINI e FRANÇA, 2009FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.). Reconhecendo a importância das conquistas sociais obtidas pelos movimentos LGBT nas últimas décadas, a partir da constituição dos sujeitos coletivos de direito, Facchini (2012FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012.) sugere como caminho para a pesquisa em gêneros e sexualidades que se considere o conceito de marcadores sociais da diferença. Tais marcadores incorporam não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas interseccionam questões geracionais, de classe, cor ou raça, indo ao encontro do que já havia sido defendido por Scott (1986SCOTT, J. W. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, 1986.) e por Irigaray e Freitas (2011IRIGARAY, H. A. R.; FREITAS, M. E. Sexualidade e organizações: estudo sobre lésbicas no ambiente de trabalho. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 625-641, 2011.).

A compreensão dos marcadores sociais da diferença permitiria, portanto, a percepção das hierarquizações produtoras de “vulnerabilidades e de possibilidades de manejo de convenções sociais” (FACCHINI, 2012FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012., p. 145). Nesse sentido, a autora argumenta que há uma incompletude na compreensão dos mecanismos de opressão que operam sobre as pessoas LGBT considerando apenas a imagem estável, cristalizada e universalizante dessas identidades.

O QUE A SIGLA LGBT REPRESENTA? O QUE ELA EXCLUI? REFLEXÕES A PARTIR DAS IDENTIDADES CONTINGENTES

[...] quanto à questão da problematização da sexualidade na escola, é decisivo que ela se dê no âmbito das novas perspectivas dos estudos pós-estruturalistas e pós-identitários de gênero, para que possamos recusar os lugares definidos para as dicotomias entre masculino e feminino, além de reconstruir os significados dos corpos, dos desejos e dos prazeres (CÉSAR, DUARTE e SIERRA, 2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013., p. 199).

Judith Butler coloca em xeque a questão da universalidade do sujeito. Ela explica, porém, que o questionamento não representa a negação do sujeito, mas a indagação do processo de construção desse sujeito e as implicações políticas de considerar o sujeito algo precedente à teoria. A autora questiona: “o esforço para colonizar e domesticar essas teorias sob uma única rubrica é uma simples recusa de conceder a especificidade dessas posições, uma desculpa para não ler, e não ler atentamente?” (BUTLER, 1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 14). É nesse contexto que se torna atrativo problematizar a pretensa existência de uma universalidade abrangente no conceito LGBT.

O questionamento do projeto modernista expresso pela autora visa a questionar as formas pelas quais se opera um mecanismo exclusivo que apaga aquilo que não está contido em um modelo, nessa noção de universal. Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 16) afirma que “a tarefa é interrogar o que o movimento teórico que estabelece fundamentos autoriza e o que precisamente exclui ou priva de direitos”. A totalização de qualquer fenômeno social sob o signo do universal produz novas exclusões, afirma Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.).

Entretanto, ao defender a ideia de que o universal não pode ser universal, a filósofa destaca que não está defendendo a inutilização das categorias que tentam compreender o mundo, mas defender a contingência, a abertura e a inclusão àquilo que futuramente se reivindique ser incluído. Conforme afirma Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 17): “nesse sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente”.

Ao compor e pressupor um sujeito, Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 22) afirma que “se recusa a reconhecer que a capacidade de agir é sempre uma prerrogativa política”. Por isso, a autora argumenta que é preciso se perguntar quais condições tornam a ação possível e de que formas se pode “retrabalhar a matriz de poder pela qual somos constituídos”. Para ilustrar o conceito de exclusão operado por meio de uma categoria, Butler toma como exemplo o movimento feminista. Como pode um conceito que visa à solidariedade produzir exclusão? É justamente esta a consequência do movimento universalizante proporcionado pelas categorias que, ao tentar produzir um nós, acaba produzindo um nós menos alguns.

Por mais que o movimento feminista tenha tentado historicamente produzir um “nós” feminista, como explica Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 24) em seu exemplo, é recorrente o retorno de parcelas excluídas que acabam por abalar a pretensa ordem que o “nós” tentava estabelecer. Butler percebe que o movimento feminista pretende falar por todas as mulheres e a autora não questiona esse movimento, porque é “certamente o modo como a política representativa funciona”. Ou seja, para que as mulheres tivessem alcançado avanços e conquistas legais, foi de fato necessário que se constituíssem grupos que fizessem os reclames em nome de todas as mulheres, enquanto um grupo universal.

No entanto, Butler chama a atenção que é preciso fazer uma reflexão paralela sobre as consequências dessa utilização do feminino enquanto categoria universalizante, porque ao impor limites sobre por quem fala, o feminismo se fragmenta a partir dos elementos descritivos que passam a ser considerados para definir o que pode ser incluído no movimento: é poder ser mãe em uma lógica biológica ou social que representa a mulher? Mas e as mulheres que não querem ser mães? As que não podem ser mães? De repente estão incluídas as mulheres brancas, mas como ficam as negras? Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.) explica as consequências da tentativa de universalização do feminino e de que qualquer tentativa de universalização consequentemente implicará exclusão, o que também é corroborado por Souza (2017SOUZA, E. M. A Teoria queer e os estudos organizacionais: revisando conceitos sobre identidade. Revista de Administração Contemporânea, v. 21, n. 3, p. 308-326, 2017.) ao elucidar a recusa da analítica queer às perspectivas essencialistas e universalistas das identidades.

Ao trazer o exemplo do feminismo, Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998., p. 25) explica que não está decretando a “morte da categoria”, mas trazendo à luz que mulher é um conceito que não pode ser universalizado por meio de uma “identidade descritiva”. A autora defende, assim, que as categorias estejam propensas à “lugar de permanente abertura e ressignificação”. Cabe ressaltar que Butler não defende uma possível conciliação desses lugares de abertura, porque as discordâncias constituem o “fundamento infundado da teoria feminista”. Desconstruir o ideal universal do sujeito na categoria, portanto, é a possibilidade de libertação de ontologias restritivas, de um único referente, permitindo a ampliação da possibilidade e “capacidade de agir”.

O exemplo de Butler sobre os riscos de produzir exclusão por meio da operação universalizante de uma categoria podem ser estendidos aos grupos LGBT. A operação de exclusão com a tentativa de universalizar a categoria LGBT pode ser compreendida por meio da pesquisa de César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.), que analisa a categoria LGBT sob a ótica das políticas públicas de Estado no campo da Educação.

Com referencial foucaultiano, mesma raiz ontológica do pensamento de Judith Butler, os autores realizam um percurso histórico pelas reivindicações do constituído movimento LGBT sob o qual foram conquistados direitos civis, como a união civil homossexual. O retorno às primeiras movimentações do movimento social brasileiro LGBT, capitaneado pelos homossexuais no fim da década de 1980, mostra a necessidade de combater a AIDS, pressionando o Estado para que interviesse no contexto com políticas públicas de saúde. César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013., p. 194) explicam que esse momento foi “o embrião daquilo que mais tarde, se tornará uma relação marcadamente pacificada entre o Estado brasileiro e aqueles movimentos sociais”.

A continuidade histórica das relações entre o movimento gay e o Estado apontada pelos autores dialoga com as ideias de identidade contingente de Butler, pois, como refletiu a autora, a criação de uma identidade abrangente comum para o grupo foi estratégica para que fosse possível obter do Estado intervenções que garantissem o acesso desses públicos até então marginalizados a conquistas e direitos antes negados, como o direito à união civil (CÉSAR, DUARTE e SIERRA, 2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.).

A consolidação do movimento homossexual foi acompanhada pela repartição das reivindicações a partir do ingresso de outros grupos identitários com necessidades específicas, aí sim consolidando o movimento LGBT a partir da década de 1990, com lésbicas, gays, bissexuais e travestis. César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.) destacam a importância desses movimentos enquanto fonte de escuta do Estado para criação de políticas públicas, no entanto, alertam para as possíveis consequências dessa relação colaborativa.

Ao se “aliarem” ao Estado no sentido de obterem dele direitos tidos como necessários a determinados grupos LGBT, possibilita-se a criação e manutenção de uma relação pacificada com o Estado, subvertendo a proposta inicial de transformação da ordem social, contida nos embriões do movimento homossexual em meados da década de 1980. César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013., p. 195) explicam que a ideia da identificação de um sujeito de direito, embora se reconheça a legitimidade desses direitos, “está associada à produção de novos mecanismos de controle e regulação dos corpos, modos de vida, práticas sexuais e sociais”. Nessa perspectiva, a reflexão dos autores permite inferir que se cria uma espécie de “LGBT pacificado”, circunscrito a uma margem de tolerância da cultura heteronormativa que permanece no centro.

Assim, a criação de uma identidade comum representativa de gays e lésbicas para implementação de políticas públicas, cria, na perspectiva dos autores, o gay e a lésbica “normais”. Travestis e transexuais são incluídas(os) nos protocolos médicos sob a ótica patológica, tendo sua sexualidade adequada por meio de intervenções para redesignação sexual. E assim se cria uma espécie ideal identitária estável de LGBT, à margem, mas tolerada pelo centro heteronormativo, porque não ameaça sua estabilidade (CÉSAR, DUARTE e SIERRA, 2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.).

Os autores problematizam essa pretensa universalidade do que eles denominam “sujeitos da diversidade sexual”, porque a criação desses sujeitos LGBT nas políticas públicas normaliza essas categorias, mas continua avessa àquilo ou àqueles que porventura não se enquadrem em nenhuma dessas descrições categóricas embutidas em cada letra (CÉSAR, DUARTE e SIERRA, 2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013., p. 197). Como exemplo dessa normalização na educação, os autores destacam os conteúdos referentes às identidades sexuais e de gênero: “nos textos educacionais, essas identidades são exemplificadas por meio de características ou estereótipos que deverão ser questionados”.

Historicamente, houve uma movimentação anterior em relação aos gays e às lésbicas para que esses fossem considerados “normais, assim como todos os outros [...] e merecedores da mesma chance de serem bem-sucedidos”. É o que relata Renn (2010RENN, K. A. LGBT and queer research in higher education: the state and status of the field. Educational Researcher, v. 39, n. 2, p. 132-141, 2010., p. 134, tradução nossa) referente ao surgimento dos movimentos de gays e lésbicas no contexto das universidades americanas na década de 1980. No entanto, atualmente também há uma movimentação em torno da “normalização” das identidades transexuais e travestis. Tomando o trecho citado anteriormente e o relato dos autores sobre as tentativas de normalização das identidades “T” sob a intervenção do Estado, pode-se reafirmar a institucionalização das intervenções cirúrgicas para adequação dos corpos trans às estéticas femininas ou masculinas. Em questionamento semelhante ao de Butler sobre as mulheres relacionando a ideia de maternidade, pode-se questionar: até que ponto toda transexual precisa readequar sua genitália? Toda trabalhadora trans precisa ter corpo semelhante ao da mulher cisgênero? Por quê? (CÉSAR, DUARTE e SIERRA, 2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.).

Novamente, vale ressaltar conforme Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.) e César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013., p. 197) que não cabe a negação da importância dos espaços sociais e políticos conquistados historicamente pelos movimentos sociais LGBT. Mas questionar a “primazia ou exclusividade da ideia de sujeito de direito, em razão de sua conformação normalizadora”. Logo, refletir sobre as exclusões promovidas por conta da consideração de uma identidade estável e homogênea e também sobre a recusa daquilo que esteja fora da curva das políticas assentadas sob representações fixas da identidade LGBT.

COMO AS CATEGORIAS LGBT SÃO TRATADAS NOS PERIÓDICOS BRASILEIROS EM ADMINISTRAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA?

Em que pese a pretensa universalidade expressa pela sigla LGBT, o corpus de artigos publicados em periódicos da Administração demonstra as diferenças no interior da sigla. A primeira diferença pode ser compreendida na representatividade percebida por meio da constituição quantitativa que permeia a sigla e cada categoria identitária, como ilustra o Quadro 1 ..

Quadro 1
Panorama das pesquisas sobre LGBT em periódicos de Administração brasileiros entre os anos de 2006 e 2017

Quadro 1
continuação

Entre os anos de 2006 e 2017, foram identificados 34 artigos contemplando a sigla LGBT e os grupos individuais que fazem parte do acrônimo. Nesse contingente, 2 artigos abordam questões afetas aos LGBT como um grupo em geral, 5 artigos abordam questões lésbicas, 26 abordam questões gays e 4 artigos lidam com questões das travestis e das(os) transexuais. Alguns trabalhos abordaram mais de uma categoria identitária, caso de Carrieri, Souza e Aguiar (2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.), que abordaram as lésbicas, travestis e transexuais e de Siqueira e Zauli-Fellows (2006SIQUEIRA, M. V. S.; ZAULI-FELLOWS, A. Diversidade e identidade gay nas organizações. Gestão.Org: Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 4, n. 3, p. 69-81, 2006.) e Souza Júnior, Cerquinho, Nogueira et al. (2013SOUZA, E. M.; PEREIRA, S. J. N. (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: a discriminação de homossexuais por homossexuais. Revista de Administração Mackenzie, v. 14, n. 4, p. 76-105, 2013.), que analisaram gays e lésbicas. Para cada artigo houve um processo de leitura e interpretação que possibilitou delimitar qual é a temática central apresentada pelos(as) autores(as) da pesquisa, dados compilados no Quadro 1.

Desse modo, foram identificados na literatura nacional sobre os grupos LGBT, genericamente, temas como: violência, discriminação, assédio moral, estigmatização, hábitos de consumo, masculinidades, identidade sexual e trabalho, vivências no trabalho e políticas de diversidade. Entre esses temas principais, duas narrativas principais são recorrentes nos estudos. A primeira evidencia a predominância das reações societais negativas nos achados das pesquisas, ou seja, os estudos expressam o quanto a convivência das pessoas LGBT na sociedade e nas organizações ainda está longe de ser respeitada. Para alguns grupos, como uma parcela de gays e lésbicas, esse convívio coletivo é apenas tolerado (IRIGARAY, 2012IRIGARAY, H. A. R. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Org.). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2012. p. 121-148.).

Nessa narrativa, pode-se destacar um dos dois estudos em que os autores se utilizam da coletividade LGBT para delimitar sua pesquisa (NATT, SARAIVA e CARRIERI, 2015NATT, E. D. M.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Criação de banheiros LGBTS: inclusão ou prática discriminatória? Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, v. 14, n. 1, p. 31-44, 2015.). Esse artigo é um exemplo para compreender a importância da constituição dos sujeitos coletivos de direito, porque os autores questionam a possível adoção de banheiros exclusivos ao grupo LGBT, demonstrando que, apesar da pretensa face inclusiva de tal prática, ela pode se tornar mais uma forma de segregação e hierarquização social dessas pessoas. Assim, a perspectiva construída pelos autores vai ao encontro do argumento de Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.) e César, Duarte e Sierra (2013CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.) de que é necessária a voz que se constrói em nome dos grupos, de modo a reivindicar e garantir espaços sociais e a efetivação de direitos.

A segunda narrativa principal do material obtido no levantamento é representada pelo consumo, porém, as pesquisas publicadas representam quase que exclusivamente o público de gays. A única exceção foi o outro estudo que adota a categoria LGBT (AZEVEDO, MARTINS e PIZZINATTO et al., 2012AZEVEDO, M. S. et al. Segmentação no setor turístico: o turista LGBT de São Paulo. Revista de Administração da UFSM, v. 5, n. 3, p. 493-506, 2012.) para mostrar, a partir de dados secundários, o perfil de consumo dos turistas da referida categoria. Porém, é importante ressaltar que, nos artigos que construíram seus temas sobre tal narrativa, distinguem-se dois focos analíticos distintos, ambos oriundos do campo do Marketing: o primeiro, de um ponto de vista dos negócios (mercado), homogeneíza os gays enquanto categoria demográfica com alta escolaridade e/ou alto potencial de consumo (ARAÚJO, ALEXANDRE e PEREIRA et al., 2010ARAÚJO, R. et al. Comportamento dos consumidores heterossexuais e homossexuais masculinos: um estudo comparativo em Shopping Center. Revista Ciências Administrativas, v. 16, n. 1, 2010.; SILVA e LEITE, 2014SILVA, J. P.; LEITE, Y. V. P. Reações do consumidor gay: a influência do ambiente de hotéis. Revista Ciências Administrativas, v. 16, n. 1, p. 180-198, 2014.; CURZIO, ALTAF e TROCCOLI, 2011CURZIO, P. H. A.; ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. R. Vai ao Musik? A satisfação do cliente gay com serviços e entretenimento. REUNA, v. 18, n. 1, p. 57-72, 2011.; TIRELLI, 2011TIRELLI, C. Consumo de entretenimento noturno por casais gays. Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 5, n. 2, p. 79-94, 2011.; ALTAF e TROCCOLI, 2012ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. G. Luxo sou eu: as marcas famosas e o consumidor homossexual. Revista Ciências Administrativas, v. 18, n. 2, p. 656-688, 2012.; ALTAF, TROCCOLI, PASCHOALINO et al., 2012ALTAF, J. G. et al. Luxury clothing: a mirror of gay consumers sexual option? Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, v. 11, n. 1, p. 162-177, 2012.; AZEVEDO, MARTINS e PIZZINATTO et al., 2012ALCADIPANI, R. Réplica: a singularização do plural. Revista de Administração Contemporânea, v. 9, n. 1, p. 211-220, 2005.; ALTAF, TROCCOLI e MOREIRA, 2013ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. R.; MOREIRA, M. B. Você é o que você veste? A associação da autoidentidade do gay masculino ao vestuário de luxo. Revista de Administração da UFSM, v. 6, n. 4, p. 760-782, 2013.).

O segundo foco analítico, do ponto de vista da cultura, implica a construção social das identidades gays por meio de consumo, considerando as características específicas de constituição identitária desses grupos estudados (PEREIRA, AYROSA e OJIMA, 2006PEREIRA, B.; AYROSA, E. A. T.; OJIMA, S. Consumo entre gays: compreendendo a construção da identidade homossexual através do consumo. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 1-16, 2006.; PEREIRA e AYROSA, 2012aPULLEN, A. et al. Critical diversity, philosophy and praxis. Gender, Work & Organization, v. 24, n. 5, p. 451-456, 2017., 2012bPEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Corpos consumidos: cultura de consumo gay carioca. Organizações & Sociedade, v. 19, p. 295-313, 2012b.). Destaca-se como ponto pertinente do ponto de vista cultural do consumo que há um olhar histórico para a construção social da identidade na categoria “homossexual”, reconhecendo-a como categoria não estável e que intersecciona outras categorias da vida social: trabalho, idade, classe social etc. Os trabalhos também evidenciam as diferenças culturais construídas pelos homens gays em relação aos heterossexuais, evidenciando as questões estéticas e corporais caras às experiências de consumo dos gays. Uma exclusão operada no eixo temático do consumo e cultura é que todas as pesquisas levantadas no campo se referem a experiências masculinas (PEREIRA, AYROSA e OJIMA, 2006PEREIRA, B.; AYROSA, E. A. T.; OJIMA, S. Consumo entre gays: compreendendo a construção da identidade homossexual através do consumo. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 1-16, 2006.; PEREIRA e AYROSA, 2012aPULLEN, A. et al. Critical diversity, philosophy and praxis. Gender, Work & Organization, v. 24, n. 5, p. 451-456, 2017., 2012bPEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Corpos consumidos: cultura de consumo gay carioca. Organizações & Sociedade, v. 19, p. 295-313, 2012b.).

Quanto às reações societais negativas, como discriminação, violência ou estigma, elas puderam ser percebidas tanto entre gays quanto entre lésbicas, travestis e transexuais. Em relação às lésbicas, a violência se expressa por meio da imposição da matriz heterossexual binária de gênero, tendo em vista que elas vivenciam a violência imposta pelo padrão reprodutivo heterossexual. Muitas delas têm casamentos heterossexuais e filhos antes de se assumirem lésbicas. Além disso, são obrigadas a assumir um comportamento social tido como feminino - cabelos compridos, andar “feminino” (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.). Inclusive, Irigaray e Freitas (2011IRIGARAY, H. A. R.; FREITAS, M. E. Sexualidade e organizações: estudo sobre lésbicas no ambiente de trabalho. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 625-641, 2011.) refletem, a partir de estudo empírico, que as lésbicas não compartilham dos mesmos espaços de expressão identitária dos gays, pois estes também têm atitudes que reproduzem a exclusão da mulher no espaço social.

No que diz respeito aos gays, as manifestações de discriminação e hostilidade social nas pesquisas em Administração incorporam a discussão sobre invisibilidade, pois se assumir homossexual no contexto do trabalho pode ser um risco, questão que também impacta a vida das trabalhadoras lésbicas (CAPRONI NETO, SARAIVA e BICALHO, 2014CAPRONI NETO, H. L.; SARAIVA, L. A. S.; BICALHO, R. A. Diversidade sexual nas organizações: um estudo sobre coming out. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 8, n. 1, p. 86-103, 2014.). Só “sobrevivem” no trabalho aqueles que se mantêm invisíveis. Quem se “assume” é maltratado, vira alvo de piadas e pode ser demitido (SOUZA JÚNIOR, CERQUINHO, NOGUEIRA et al., 2013SOUZA JÚNIOR, A. A. et al. Aspectos da dominação masculina no assédio moral ao profissional homossexual no Polo Industrial de Manaus. Pensamento & Realidade, v. 28, n. 1, p. 83-103, 2013.). Aliás, o humor como instrumento de violência e discriminação é um achado recorrente nas pesquisas levantadas, em que as manifestações por meio de piadas vêm de pessoas tanto heterossexuais quanto dos próprios gays e lésbicas (GARCIA e SOUZA, 2010GARCIA, A.; SOUZA, E. M. Sexualidade e trabalho: estudo sobre a discriminação de homossexuais masculinos no setor bancário. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 6, p. 1353-1377, 2010.; IRIGARAY, SARAIVA e CARRIERI, 2010IRIGARAY, H. A. R.; SARAIVA, L. A.; CARRIERI, A. P. Humor e discriminação por orientação sexual no ambiente organizacional. Revista de Administração Contemporânea, v. 14, n. 5, p. 890-906, 2010.; DINIZ, CARRIERI, GANDRA et al., 2013DINIZ, A. P. R. et al. Políticas de diversidade nas organizações: as relações de trabalho comentadas por trabalhadores homossexuais. Economia & Gestão, v. 13, n. 31, p. 93-114, 2013.). Outro estudo, um caso de ensino, traz como resultado que há empresa que até aceita que o trabalhador seja gay, desde que ele não aparente ser gay, afastando-se de qualquer vestimenta, conduta ou convivência com algum grupo que o caracterize como tal (COLARES e SARAIVA, 2016COLARES, A. F. V.; SARAIVA, L. A. S. O processo de construção identitária em organizações: uma releitura sobre identidade. Revista Alcance, v. 23, n. 4, p. 568-577, 2016.).

No que diz respeito à aparência, um dos artigos pioneiros do campo sobre identidade gay (SIQUEIRA e ZAULI-FELLOWS, 2006SIQUEIRA, M. V. S.; ZAULI-FELLOWS, A. Diversidade e identidade gay nas organizações. Gestão.Org: Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 4, n. 3, p. 69-81, 2006.) aborda justamente a questão da “saída do armário”, pois era preciso que as empresas se preparassem para lidar com a presença de trabalhadores gays e lésbicas nas empresas. Outro ponto recorrente nos artigos com gays é a hierarquização das identidades, em que aqueles tidos como “machos” discriminam e subalternizam as identidades gays tidas como “afeminadas” (ECCEL, SARAIVA e CARRIERI, 2015ECCEL, C. S.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Masculinidade, autoimagem e preconceito em representações sociais de homossexuais. Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 9, n. 1, p. 1, 2015.). Gays tidos como não afeminados discriminam e reproduzem a discriminação contra gays afeminados (MOURA, NASCIMENTO e BARROS, 2017MOURA, R. G.; NASCIMENTO, R. P.; BARROS, D. F. O problema não é ser gay, é ser feminino: o gay afeminado nas organizações. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, v. 4, n. 11, 1478-1541, 2017.). Ser afeminado, nesse contexto, é como se tal característica tornasse o indivíduo parte de uma identidade gay tida como “inferior” (SOUZA e PEREIRA, 2013SOUZA JÚNIOR, A. A. et al. Aspectos da dominação masculina no assédio moral ao profissional homossexual no Polo Industrial de Manaus. Pensamento & Realidade, v. 28, n. 1, p. 83-103, 2013.; SANTOS, SILVA e CASSANDRE, 2017SANTOS, N. S.; SILVA, L. F. M.; CASSANDRE, M. P. Quem disse Berenice, que ser gay é ser um bom vendedor de lojas de shopping? Revista de Carreiras e Pessoas, v. 7, n. 3, p. 88-112, 2017.).

Embora a hostilidade da sociedade tenha sido recorrente entre as pesquisas com gays e lésbicas, as populações travestis e transexuais estão em uma posição ainda mais subalterna na pesquisa em Administração. O trabalho formal também é achado de pesquisa praticamente inexistente, porque, como argumentam Caproni Neto e Saraiva (2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.), a presença das travestis não é aceita, tampouco tolerada, nos espaços de trabalho formal, restando-lhes como uma das poucas alternativas profissionais a prostituição. Um capítulo de livro publicado na área já apresentou o cenário social demarcador das impossibilidades para as travestis acessarem o mercado de trabalho e construírem carreiras corporativas, ainda que elas tenham qualificação para tal (IRIGARAY, 2012IRIGARAY, H. A. R. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Org.). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2012. p. 121-148.).

Com a pesquisa de Carrieri, Souza e Aguiar (2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.) foi corroborado o cenário de que, por não poderem esconder o que são no convívio social, com um corpo considerado anormal, as travestis estão mais propensas a sofrer violência, inclusive física, o que contribui para confirmar sua dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho (IRIGARAY, 2012IRIGARAY, H. A. R. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Org.). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2012. p. 121-148.; CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.). Porém, é caro reforçar o argumento de que antes do cenário corporativo, a própria carência de acesso a direitos sociais básicos como a educação, segurança e saúde, torna ainda mais crítica a situação das pessoas travestis e transexuais no Brasil, cujas experiências sociais são constituídas principalmente pelo sentimento de abjeção (MULLER e KNAUTH, 2008MULLER, M. I.; KNAUTH, D. R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é ‘babado’! Cadernos EBAPE.BR, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.; BERUTTI, 2010BERUTTI, E. B. Travestis: retratos do Brasil. In: COSTA, H. et al. (Orgs.). Retratos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2010. p. 843-852.; IRIGARAY, 2012IRIGARAY, H. A. R. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Org.). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2012. p. 121-148.; CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.).

Entre as transexuais femininas, uma das formas experienciadas de violência se dá por meio da reprodução do binarismo de gênero, ao se verem obrigadas a passar por procedimentos médicos e cirúrgicos para se enquadrar no que é estética e socialmente “adequado” como corpo de mulher (CARRIERI, SOUZA e AGUIAR, 2014CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.). Em relação ao trabalho, Baggio (2017BAGGIO, M. C. About the relation between transgender people and the organizations: new subjects for studies on organizational diversity. Revista de Gestão - REGE, v. 24, n. 4, p. 360-370, 2017.) demonstra, ainda, que a experiência de pessoas trans depende muito do que se denomina “passabilidade, o grau com que pessoas transgênero são tomadas como pessoas cisgênero” (BAGGIO, 2017BAGGIO, M. C. About the relation between transgender people and the organizations: new subjects for studies on organizational diversity. Revista de Gestão - REGE, v. 24, n. 4, p. 360-370, 2017., p. 365). Ou seja, quanto mais homens e mulheres transexuais se parecerem com as pessoas adequadas ao seu gênero de nascimento, menor é a probabilidade de serem vítimas de violência transfóbica no trabalho.

Quanto às identidades bissexuais, embora elas estivessem ausentes dos periódicos nacionais até o fim da pesquisa (2017), já começavam a ser debatidas nos eventos da área (CAPRONI NETO, 2017CAPRONI NETO, H. L. A bissexualidade (des)organizada: desenhos, estigmas e subversões. In: SEMINÁRIOS EM ADMINISTRAÇÃO DA FEA-USP, 20, 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: FEA-USP, 2017.). Algumas pistas sobre as possíveis causas para a invisibilidade desse grupo social nas pesquisas em Administração são a percepção dessa característica como uma etapa de trânsito, ou mesmo confusão e instabilidade entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Além disso, as organizações que dispõem de políticas de diversidade costumam endereçá-las apenas aos públicos de gays e lésbicas, sendo a bissexualidade uma dimensão esquecida da sexualidade. Ademais, os próprios colegas de trabalho, inclusive os homossexuais, podem criar ambientes excludentes para aqueles que se declaram bissexuais, o que demarca a existência da bifobia como um fenômeno organizacional distinto da homofobia e da transfobia (KÖLLEN, 2013KÖLLEN, T. Bisexuality and diversity management: addressing the B in LGBT as a relevant ‘sexual orientation’ in the workplace. Journal of Bisexuality, v. 13, n. 1, p. 122-137, 2013.; CAPRONI NETO, 2017CAPRONI NETO, H. L. A bissexualidade (des)organizada: desenhos, estigmas e subversões. In: SEMINÁRIOS EM ADMINISTRAÇÃO DA FEA-USP, 20, 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: FEA-USP, 2017.).

A lacuna de representatividade LGBT em Administração, principalmente em relação às lésbicas, às(aos) bissexuais, às(aos) transexuais e às travestis, portanto, é um ponto central para compreender o cenário desenhado no levantamento bibliográfico apresentado e, também, para pensar nas futuras oportunidades de pesquisa. A maioria das pesquisas realizadas na área de Administração se dá no contexto das empresas. Entretanto, há quase duas décadas já se propunha que as fronteiras para a análise do fenômeno organizacional fossem ampliadas. A gestão deveria ser um fenômeno compreendido para além dos limites corporativos, porque nas mais diversas esferas da sociedade há processos coletivos e sociais de gestão a ser investigados (FISCHER, 2001FISCHER, T. M. D. Difusão do conhecimento sobre organizações e gestão no Brasil: seis propostas de ensino para o decênio 2000/2010. Revista de Administração Contemporânea, v. 5, n. esp., p. 123-139, 2001.). A expansão das fronteiras para a análise do fenômeno organizacional se confirmou, haja vista o reconhecimento de que as pesquisas organizacionais mais recentes têm se preocupado em incluir no seu escopo pessoas externas ao ambiente empresarial, “mas que atuam em uma esfera organizativa de dimensão mais social” (TEIXEIRA, SARAIVA e CARRIERI, 2015TEIXEIRA, J. C.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, v. 22, n. 72, p. 161-178, 2015., p. 176).

No contexto das pessoas que compõem os grupos LGBT, portanto, outros cenários de pesquisa podem ser vislumbrados na Administração. Embora muitos desses sujeitos não estejam em postos de trabalho formais nas empresas, a luta por direitos e espaços na sociedade mobiliza uma série de atores inseridos em diversos movimentos sociais organizados. Um exemplo desse tipo de organização é que, em grandes metrópoles, já se registra o surgimento de organizações que funcionam como espaço de acolhimento das pessoas LGBT vítimas de violência e/ou expulsas do seu lar. No próprio campo anglófono de pesquisa em diversidade organizacional é reconhecida a necessidade de que formas alternativas de organização sejam pesquisadas para que a busca por maior justiça social se viabilize na prática (PULLEN, VACCHANI, GAGNON et al., 2017PULLEN, A. et al. Critical diversity, philosophy and praxis. Gender, Work & Organization, v. 24, n. 5, p. 451-456, 2017.).

DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS: POSSIBILIDADES PARA A PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO

A partir desse panorama das pesquisas sobre os grupos LGBT publicadas em periódicos nacionais em Administração, percebeu-se que, embora haja similaridades do ponto de vista de que todas essas categorias identitárias são alvos de manifestações sociais discriminatórias e violentas, o que se justifica por se tratarem de categorias identitárias tidas como desviantes, demarcam-se diferenças entre elas. É nessas diferenças, problematizadas a partir da analítica de Judith Butler, que se encontram as possibilidades para a pesquisa em Administração pensar a (im)possibilidade de adotar a categoria LGBT como um conceito universal e unificado. Entretanto, essa diferença precisa ser construída permanentemente, sempre estando aberta a reinterpretações, como sugeriu Butler (1998BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.).

A representatividade das pesquisas LGBT na Administração indica que o campo permanece aberto a abordar questões de outras sexualidades e gêneros, haja vista a quantidade de trabalhos publicados (pouco mais de 30). Porém, é importante destacar que o debate construído até então permanece predominantemente restrito às experiências organizacionais masculinas, reforçando o cenário histórico de desigualdade entre homens e mulheres.

Dessa forma, as publicações dos periódicos em Administração ainda estão em um estágio de construção da ideia de sujeito político da diversidade, porque ainda não foi possível contemplar o amplo espectro das identidades LGBT, mesmo quando elas são tomadas por uma categoria coletiva de sujeitos. Quem dirá abarcar as outras identidades não contempladas nas descrições categóricas do que é gay, lésbica, travesti ou transexual, haja vista que a sigla LGBT está envolta por uma dinâmica histórica de grupos que têm reivindicado nos últimos anos a inclusão de outras letras representativas de outros sujeitos políticos, como LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, queers e intersexuais) - incluindo pessoas queer e intersexuais.

Ainda que se esteja debatendo um campo de pesquisas recente, emergente no debate internacional entre as décadas de 1980 e 1990, a SPELL é uma base de dados que contém hoje mais de 45.000 documentos. Por que, então, há pouco mais de 3 dezenas de pesquisas publicadas sobre grupos LGBT, sendo que, desse contingente, a maior parcela tratava de gays? Tal contexto leva ao questionamento: até que ponto as pesquisas em Administração são guiadas pelo reconhecimento da existência dos outros, ou melhor, dos outros, das outras e dxs outrxs?

Refletindo o levantamento de referencial LGBT à luz da teorização discutida no artigo, talvez no campo brasileiro da Administração ainda se esteja no momento histórico semelhante àqueles iniciais dos movimentos LGBT de reivindicação de direitos no início da década de 1990, haja vista que, além da pouca representatividade das categorias identitárias, principalmente de lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, o eixo temático dominante das pesquisas publicadas se encontra em manifestações negativas, evidenciando que o ambiente de trabalho nas empresas não é favorável sequer às lésbicas e gays “comportados”, tidos como “normais”. Porém, mesmo que se considerasse o eixo temático do consumo, ele está circunscrito a uma parcela muito específica da sociedade de gays: em geral brancos e com alto nível de escolaridade.

Vale retornar, aqui, à reflexão dos elementos de Fournier e Grey (2000FOURNIER, V.; GREY, C. At the critical moment: conditions and prospects for critical management studies. Human Relations, v. 53, n. 1, p. 7-32, 2000.) para caracterizar um estudo crítico e que subsidiaram a elaboração deste estudo. Primeiramente, quanto à adoção performática das identidades LGBT, o retrato encontrado nas pesquisas parece demonstrar que o ambiente empresarial é hostil, mesmo àquilo que inicialmente se supunha que já estava incluído, ou seja, homens gays ou mulheres lésbicas cisgênero, sem trejeitos. Aliás, a hostilidade no ambiente de trabalho é reproduzida pelos próprios gays e lésbicas. Travestis e transexuais, então, se não acessam serviços de saúde pública e educação, também têm portas fechadas para acessar o trabalho nas empresas.

Quanto à desnaturalização, mais uma vez cabe refletir: como desnaturalizar a pretensa universalização dos sujeitos LGBT se a própria construção categórica “universal” da sigla se mostra marginal nos debates dos periódicos em Administração? Por fim, no aspecto reflexivo, sustenta-se ainda assim que é preciso pensar tanto nas particularidades da sigla quanto naquilo que está entre e para além do que é difundido como sendo uma identidade LGBT. Ou seja, compreender que existem múltiplas identidades possíveis para além dos limites impostos do que pode ser lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual, embora ainda seja necessário que mais conhecimento sobre os próprios sujeitos dos grupos LGBT seja produzido e publicado.

O cenário atual em Administração é propício para que mais pesquisadores se insiram no debate, porque as diferenças identitárias entre os grupos sociais LGBT ainda podem ser articuladas diante de outros tipos de diferenças, como: as geográficas, porque artigos do levantamento apresentaram pesquisas realizadas em diversos estados e cidades do Brasil; as profissionais, porque a experiência de fazer parte de algum grupo LGBT pode variar conforme a profissão das pessoas e alguns estudos do levantamento trouxeram o olhar de ocupações específicas, como bancários e secretários executivos, por exemplo; e as socioeconômicas, porque questões como classe social e raça têm sido reivindicadas nas pesquisas que compreendem a diversidade nas organizações, oportunizando muitos cenários de pesquisa (ZANONI, JANSSENS, BENSCHOP et al., 2010ZANONI, P. et al. Unpacking diversity, grasping inequality: rethinking difference through critical perspectives. Organization, v. 17, n. 1, p. 9-29, 2010.; IRIGARAY e FREITAS, 2011IRIGARAY, H. A. R.; FREITAS, M. E. Sexualidade e organizações: estudo sobre lésbicas no ambiente de trabalho. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 625-641, 2011.).

Neste estudo, considerou-se apenas a produção científica originada de periódicos acadêmicos. No entanto, também é pertinente contemplar a produção apresentada e debatida em eventos da área, o que denota uma das limitações da pesquisa apresentada. Parece ser plausível, por exemplo, pesquisar o processo completo de divulgação científica. Na prática, uma alternativa pode ser articular um levantamento dos trabalhos apresentados em eventos da área, fazendo a interlocução com os respectivos autores sobre a posterior divulgação das pesquisas nos periódicos. Com isso, seria possível investigar se existem barreiras junto aos periódicos da área para publicação de pesquisas no tocante às diversas experiências de públicos LGBT.

Em suma, embora este artigo tenha apresentado um debate orientando os pesquisadores a refletir sobre as apropriações homogêneas e universalizantes da sigla LGBT, tal apropriação está mais presente e consolidada na literatura anglófona, embora já se reconheça a necessidade de atentar para as diferenças no interior do acrônimo (KÖLLEN, 2013KÖLLEN, T. Bisexuality and diversity management: addressing the B in LGBT as a relevant ‘sexual orientation’ in the workplace. Journal of Bisexuality, v. 13, n. 1, p. 122-137, 2013.; NG e RUMENS, 2017NG, E. S.; RUMENS, N. Diversity and inclusion for LGBT workers: current issues and new horizons for research. Canadian Journal of Administrative Sciences, v. 2, n. 34, p. 109-120, 2017.). Com isso, evidenciam-se as lacunas de pesquisa no Brasil no que se refere às experiências sociais e organizacionais das pessoas em grupos LGBT, porque há carência de trabalhos, tanto se a sigla LGBT for tomada como uma coletividade de sujeitos de direito como se forem considerados os grupos sociais contidos na sigla, com suas nuances e peculiaridades. Porém, é importante destacar que a sub-representatividade dos públicos LGBT não é própria apenas ao contexto da pesquisa em Administração, mas reflexo da própria sociedade brasileira, porque, como analisou Freitas (2015FREITAS, M. E. Contexto, políticas públicas e práticas empresariais no tratamento da diversidade no Brasil. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 4, n. 3, p. 87-135, 2015.), ao fazer um balanço sobre as políticas de diversidade organizacional no país, ainda é preciso que políticas públicas sejam criadas e viabilizem um melhor tratamento dos públicos LGBT por parte dos agentes do mercado de trabalho.

Cabe, portanto, retornar às metáforas para caracterizar as identidades no título do artigo. Pensando na emergência, os gays permitem essa analogia, haja vista que são a categoria mais representativa no levantamento realizado. Quanto à submersão, temos as lésbicas, cuja sub-representação nas pesquisas é dupla, porque além da orientação sexual, também se dá por serem mulheres. O silêncio atribuído às identidades travestis e transexuais cabe à analogia, porque, embora já comecem a ser pesquisadas na Administração brasileira, são as pessoas que se mostram mais marginalizadas na gestão e no trabalho nas empresas - que é o principal contexto de pesquisas da área.

REFERÊNCIAS

  • ALCADIPANI, R. Réplica: a singularização do plural. Revista de Administração Contemporânea, v. 9, n. 1, p. 211-220, 2005.
  • ALTAF, J. G. et al. Luxury clothing: a mirror of gay consumers sexual option? Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, v. 11, n. 1, p. 162-177, 2012.
  • ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. G. Luxo sou eu: as marcas famosas e o consumidor homossexual. Revista Ciências Administrativas, v. 18, n. 2, p. 656-688, 2012.
  • ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. R.; MOREIRA, M. B. Você é o que você veste? A associação da autoidentidade do gay masculino ao vestuário de luxo. Revista de Administração da UFSM, v. 6, n. 4, p. 760-782, 2013.
  • ARAÚJO, R. et al. Comportamento dos consumidores heterossexuais e homossexuais masculinos: um estudo comparativo em Shopping Center. Revista Ciências Administrativas, v. 16, n. 1, 2010.
  • AZEVEDO, M. S. et al. Segmentação no setor turístico: o turista LGBT de São Paulo. Revista de Administração da UFSM, v. 5, n. 3, p. 493-506, 2012.
  • BAGGIO, M. C. About the relation between transgender people and the organizations: new subjects for studies on organizational diversity. Revista de Gestão - REGE, v. 24, n. 4, p. 360-370, 2017.
  • BERUTTI, E. B. Travestis: retratos do Brasil. In: COSTA, H. et al. (Orgs.). Retratos do Brasil homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2010. p. 843-852.
  • BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.
  • CAPRONI NETO, H. L. A bissexualidade (des)organizada: desenhos, estigmas e subversões. In: SEMINÁRIOS EM ADMINISTRAÇÃO DA FEA-USP, 20, 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: FEA-USP, 2017.
  • CAPRONI NETO, H. L.; SARAIVA, L. A. S. Estigma na trajetória profissional de uma travesti. Teoria e Prática em Administração, v. 4, n. 2, p. 234-256, 2014.
  • CAPRONI NETO, H. L.; SARAIVA, L. A. S.; BICALHO, R. A. Diversidade sexual nas organizações: um estudo sobre coming out. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 8, n. 1, p. 86-103, 2014.
  • CARRIERI, A. P.; AGUIAR, A. R. C.; DINIZ, A. P. R. Reflexões sobre o indivíduo desejante e o sofrimento no trabalho: o assédio moral, a violência simbólica e o movimento homossexual. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 165-180, 2013.
  • CARRIERI, A. P.; SOUZA, E. M.; AGUIAR, A. R. C. Trabalho, violência e sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, v. 18, n. 1, p. 78-95, 2014.
  • CÉSAR, M. R. A.; DUARTE, A.; SIERRA, J. C. Governamentalização do Estado, movimentos LGBT e escola: capturas e resistências. Educação, v. 36, n. 2, 2013.
  • COLARES, A. F. V.; SARAIVA, L. A. S. O processo de construção identitária em organizações: uma releitura sobre identidade. Revista Alcance, v. 23, n. 4, p. 568-577, 2016.
  • CURZIO, P. H. A.; ALTAF, J. G.; TROCCOLI, I. R. Vai ao Musik? A satisfação do cliente gay com serviços e entretenimento. REUNA, v. 18, n. 1, p. 57-72, 2011.
  • DINIZ, A. P. R. et al. Políticas de diversidade nas organizações: as relações de trabalho comentadas por trabalhadores homossexuais. Economia & Gestão, v. 13, n. 31, p. 93-114, 2013.
  • ECCEL, C. S.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Masculinidade, autoimagem e preconceito em representações sociais de homossexuais. Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 9, n. 1, p. 1, 2015.
  • FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
  • FACCHINI, R. Entre compassos e descompassos: um olhar para o “campo” e para a “arena” do movimento LGBT brasileiro. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 3, n. 4, p. 131-158, 2012.
  • FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n. 3, p. 54-81, 2009.
  • FISCHER, T. M. D. Difusão do conhecimento sobre organizações e gestão no Brasil: seis propostas de ensino para o decênio 2000/2010. Revista de Administração Contemporânea, v. 5, n. esp., p. 123-139, 2001.
  • FOURNIER, V.; GREY, C. At the critical moment: conditions and prospects for critical management studies. Human Relations, v. 53, n. 1, p. 7-32, 2000.
  • FREITAS, M. E. Contexto, políticas públicas e práticas empresariais no tratamento da diversidade no Brasil. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 4, n. 3, p. 87-135, 2015.
  • GARCIA, A.; SOUZA, E. M. Sexualidade e trabalho: estudo sobre a discriminação de homossexuais masculinos no setor bancário. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 6, p. 1353-1377, 2010.
  • HAYFIELD, N.; CLARKE, V.; HALLIWELL, E. Bisexual women’s understandings of social marginalisation: ‘the heterosexuals don’t understand us but nor do the lesbians’. Feminism & Psychology, v. 24, n. 3, p. 352-372, 2014.
  • IRIGARAY, H. A. R. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (Org.). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2012. p. 121-148.
  • IRIGARAY, H. A. R.; FREITAS, M. E. Sexualidade e organizações: estudo sobre lésbicas no ambiente de trabalho. Organizações & Sociedade, v. 18, n. 59, p. 625-641, 2011.
  • IRIGARAY, H. A. R.; SARAIVA, L. A.; CARRIERI, A. P. Humor e discriminação por orientação sexual no ambiente organizacional. Revista de Administração Contemporânea, v. 14, n. 5, p. 890-906, 2010.
  • JENNINGS, R. Lesbian voices: the Hall Carpenter oral history archive and post-war british lesbian history. Sexualities, v. 7, n. 4, p. 430-445, 2004.
  • KÖLLEN, T. Bisexuality and diversity management: addressing the B in LGBT as a relevant ‘sexual orientation’ in the workplace. Journal of Bisexuality, v. 13, n. 1, p. 122-137, 2013.
  • MOTT, L. Homo-afetividade e direitos humanos. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, p. 509-521, 2006.
  • MOURA, R. G.; NASCIMENTO, R. P.; BARROS, D. F. O problema não é ser gay, é ser feminino: o gay afeminado nas organizações. Farol: Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, v. 4, n. 11, 1478-1541, 2017.
  • MULLER, M. I.; KNAUTH, D. R. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é ‘babado’! Cadernos EBAPE.BR, v. 6, n. 2, p. 1-14, 2008.
  • NATT, E. D. M.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Criação de banheiros LGBTS: inclusão ou prática discriminatória? Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, v. 14, n. 1, p. 31-44, 2015.
  • NG, E. S.; RUMENS, N. Diversity and inclusion for LGBT workers: current issues and new horizons for research. Canadian Journal of Administrative Sciences, v. 2, n. 34, p. 109-120, 2017.
  • OLIVEIRA, M. J.; TROCCOLI, I. R.; ALTAF, J. G. Corpos tatuados: Uma expressão identitária do consumidor homossexual?. Revista Administração em Diálogo, v. 15, n. 3, p. 57-88, 2013.
  • PEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Between two worlds: an ethnographic study of gay consumer culture in Rio de Janeiro. Brazilian Administration Review, v. 9, n. 2, p. 211-228, 2012a.
  • PEREIRA, S. J. N.; AYROSA, E. A. T. Corpos consumidos: cultura de consumo gay carioca. Organizações & Sociedade, v. 19, p. 295-313, 2012b.
  • PEREIRA, B.; AYROSA, E. A. T.; OJIMA, S. Consumo entre gays: compreendendo a construção da identidade homossexual através do consumo. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 1-16, 2006.
  • PULLEN, A. et al. Critical diversity, philosophy and praxis. Gender, Work & Organization, v. 24, n. 5, p. 451-456, 2017.
  • RABELO, A. M.; NUNES, S. C. “Sair ou ficar no armário”? Eis a questão! Estudo sobre as razões e os efeitos do coming out no ambiente de trabalho. Revista Economia & Gestão, v. 17, n. 48, p. 82-97, 2017.
  • RENN, K. A. LGBT and queer research in higher education: the state and status of the field. Educational Researcher, v. 39, n. 2, p. 132-141, 2010.
  • SANTOS, N. S.; SILVA, L. F. M.; CASSANDRE, M. P. Quem disse Berenice, que ser gay é ser um bom vendedor de lojas de shopping? Revista de Carreiras e Pessoas, v. 7, n. 3, p. 88-112, 2017.
  • SCOTT, J. W. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5, p. 1053-1075, 1986.
  • SILVA, A. et al. Sentido do trabalho e diversidade: um estudo com homossexuais masculinos. Revista ADM.MADE, v. 17, n. 2, p. 85-105, 2013.
  • SILVA, J. P.; LEITE, Y. V. P. Reações do consumidor gay: a influência do ambiente de hotéis. Revista Ciências Administrativas, v. 16, n. 1, p. 180-198, 2014.
  • SIQUEIRA, M. V. S.; ZAULI-FELLOWS, A. Diversidade e identidade gay nas organizações. Gestão.Org: Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 4, n. 3, p. 69-81, 2006.
  • SOUZA, E. M. A Teoria queer e os estudos organizacionais: revisando conceitos sobre identidade. Revista de Administração Contemporânea, v. 21, n. 3, p. 308-326, 2017.
  • SOUZA, E. C. P.; MARTINS, C. B.; SOUZA, R. B. As representações sociais de secretários executivos gays: questões de gênero e diversidade no trabalho. Revista Gestão & Conexões, v. 4, n. 1, p. 116-139, 2015.
  • SOUZA, E. M.; PEREIRA, S. J. N. (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: a discriminação de homossexuais por homossexuais. Revista de Administração Mackenzie, v. 14, n. 4, p. 76-105, 2013.
  • SOUZA JÚNIOR, A. A. et al. Aspectos da dominação masculina no assédio moral ao profissional homossexual no Polo Industrial de Manaus. Pensamento & Realidade, v. 28, n. 1, p. 83-103, 2013.
  • TEIXEIRA, J. C.; SARAIVA, L. A. S.; CARRIERI, A. P. Os lugares das empregadas domésticas. Organizações & Sociedade, v. 22, n. 72, p. 161-178, 2015.
  • TIRELLI, C. Consumo de entretenimento noturno por casais gays. Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 5, n. 2, p. 79-94, 2011.
  • ZANONI, P. et al. Unpacking diversity, grasping inequality: rethinking difference through critical perspectives. Organization, v. 17, n. 1, p. 9-29, 2010.
  • 1
    A diferenciação entre trabalhos apresentados em eventos (working papers) e trabalhos publicados em periódicos foi divulgada pela ANPAD na chamada de trabalhos para o XLII Encontro da ANPAD (EnANPAD 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2018
  • Aceito
    12 Jun 2018
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br