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Morar-trabalhar e a axiomatização capitalista: um estudo baseado em mídia do segmento de arquitetura, decoração e design

Habitar-trabajar y la axiomatización capitalista: un estudio a partir de los medios de comunica-ción del segmento de arquitectura, decoración y diseño

Resumo

Novas formas de produzir e trabalhar transcendem limites tradicionais de espaço e tempo e (re)desenham a vida cotidiana. Buscou-se responder como a axiomática capitalista, na atual configuração do trabalho sob a noção de trabalho imaterial, interfere no lar - espaço por excelência da privacidade e da intimidade. Para identificar, apresentar e analisar formas simbólicas relativas à operação da axiomática capitalista no âmbito do lar, o estudo exploratório longitudinal tomou a mídia - afeita à modulação de formas de consumo e produção da vida - um dos elementos que serve à propagação da axiomática capitalista. Da coleta de dados, tomou-se formas simbólicas veiculadas em 120 edições (2006-2016) de Casa Cláudia, mídia dos segmentos de arquitetura, decoração e design. A análise à luz da Metodologia da Interpretação mostrou dois eixos: (i) (com)posição do tema na revista, e (ii) (re)funcionalização, rentabilização e naturalização do lar para o trabalho. Ambos os eixos indicam o morar-trabalhar como mais um axioma da axiomática capitalista. Por meio da mídia - numa captura estimulada, disseminada e dissimulada - a axiomática capitalista tem no morar-trabalhar a extensão do capital/trabalho sem constrangimentos, até mesmo nos menores e mais inusitados espaços da vida íntima.

Palavras-chave:
Trabalho imaterial; Axiomática capitalista; Morar-trabalhar

Resumen

Nuevas maneras de producir y trabajar trascienden los límites tradicionales de espacio y tiempo y (re)diseñan la vida cotidiana. Se buscó una respuesta a la pregunta de cómo la axiomática capitalista, en la actual configuración del trabajo y desde la noción de trabajo inmaterial, interfiere en el hogar, espacio por excelencia, de la privacidad y la intimidad. Para identificar, presentar y analizar formas simbólicas relacionadas con la operación de la axiomática capitalista en el ámbito del hogar, el estudio exploratorio longitudinal consideró los medios de comunicación -acostumbrados a la modulación de formas de consumo y producción de la vida - como uno de los elementos que favorecen la propagación de la axiomática capitalista. De los datos colectados, se consideraron formas simbólicas difundidas en 120 ediciones (2006-2016) de Casa Cláudia, revista de los segmentos de arquitectura, decoración y diseño. El análisis bajo la Metodología de la Interpretación mostró dos ejes: (i) (com)posición y comportamiento del tema en la revista y (ii) (re)funcionalización, rentabilización y naturalización del hogar para el trabajo. Ambos ejes indican que el habitar-trabajar es otro axioma más de la axiomática capitalista. A través de los medios (en una captura estimulada, difundida y disimulada), la axiomática capitalista considera que el habitar-trabajar es la extensión del capital/trabajo sin constreñimientos, incluso en los espacios más pequeños e insólitos de la vida íntima.

Palabras clave:
Trabajo inmaterial; Axiomática capitalista; Habitar-trabajar

Abstract

New ways of manufacturing and working transcend the traditional limits of space and time, (re)designing everyday life. This article explains how the axiomatic of capitalism, within the current labor configuration and under the notion of immaterial labor, enters the home environment - a space quintessentially related to privacy and intimacy. In order to identify, present and analyze symbolic forms related to the operation of the axiomatic of capitalism with regard to the home environment, this longitudinal exploratory study considers media outlets - used for the modulation of methods of consumption and production of material life - as one of the elements that disseminates the axiomatic of capitalism. In addition to collecting information, symbolical forms were taken from 120 issues (2006-2016) of Casa Cláudia, a publication in the architecture, decoration and design segments. The analysis, based on the Methodology of Interpretation indicated: (i) the (com)position and behavior of the topic in the magazine, and (ii) the (re)functionalization, profitability, and naturalization of the home environment for labor purposes. Both indicate the living-working pair as an axiom of the axiomatic of capitalism. Through this media outlet - with a stimulated, disseminated and dissimulated apprehension - the axiomatic of capitalism deems the living-working pair as an extension of capital/labor without constraints, even in the smallest and most unusual spaces of intimate life.

Keywords:
Immaterial labor; Axiomatic of capitalism; Living-working

INTRODUÇÃO

Frente à intensificação e ao transbordamento do trabalho (DAL ROSSO, 2012DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2012.), o presente estudo associa a axiomática capitalista (DELEUZE e GUATTARI, 2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.; HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.) e o trabalho imaterial (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.; LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.); e argumenta que tal associação permite identificar novos axiomas a modularem modos de viver atinentes ao avanço sem limites do capital/trabalho.

A teoria dos axiomas, ou axiomática capitalista, contribui para a compreensão do modo como o “[...] capitalismo se empenha em uma espécie de ‘gestão’ [...] onde tenta tanto fomentar a sua expansão quanto lhe impor limites” (GUÉRON, 2017GUÉRON, R. A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia: Aurora, Curitiba, v. 29, n. 46, p. 257-282, jan./abr. 2017., p. 259). Tanto global quanto localmente, a axiomática capitalista se faz onipresente em um funcionamento que modula as condutas e o ser. Em vez de mais um código, surge um “[...] modo de funcionamento, um esquema imaterial, uma combinatória, que ressoa, reverbera e se multiplica em todas as instâncias da vida” (HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015., p. 166), fomentando uma subjetividade capitalística relativa ao trabalho imaterial, que acompanha o indivíduo em constante mobilização de si.

Novas formas de produzir e trabalhar - teletrabalho, organizações em rede e por projeto, trabalho por demanda - transcendem limites espaço-temporais tradicionais, (re)desenham a vida cotidiana surpreendentemente, e ilustram que o dentro e o fora já não se diferenciam e “[...] tudo é escola, tudo é empresa, tudo é família” (PELBART, 2000PELBART, P. P. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000., p. 30).

Nessa perspectiva, nem mesmo o lar, espaço por excelência da privacidade, refúgio do descanso, da proteção, reduto da família, do afeto, é poupado da intensificação e do transbordamento do trabalho. Espacialidades híbridas, uma arquitetura pós-paredes (ELEB, 2011ELEB, M. Lugares, gestos e palavras do conforto em casa. V!rus, São Carlos, v. 5, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=3&item=1&lang=pt >. Acesso em: 4 abr. 2018.
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; MENDONÇA, 2010MENDONÇA, M. A inclusão dos “home offices” no setor residencial no município de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; TRAMONTANO e REQUENA, 2007TRAMONTANO, M.; REQUENA, G. Living ways: design processes of a hybrid spatiality. International Journal of Architectural Computing, v. 5, n. 3, p. 535-549, 2007.) reforçam que a casa/lar vem sendo invadida por elementos que não dizem respeito à sua natureza intimista. Diante disso, indaga-se: como a axiomática capitalista, na atual configuração do trabalho sob a noção de trabalho imaterial, interfere na casa/lar? Objetivando identificar, apresentar e analisar formas simbólicas relativas à operação da axiomática capitalista no âmbito do lar, considerou-se a pertinência da mídia para o estudo, pois, (i) para além da divulgação de produtos, ela é afeita à modulação de formas de consumo e produção da vida ao sabor do mercado (BAUER e AARTS, 2002BAUER, M.W.; AARTS, B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: BAUER, M.W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, p. 39-63, 2002.); e (ii) ao fazer circular formas simbólicas, produz sentidos e molda modos de ser, pensar e agir (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.). Tomou-se como base de dados a revista Casa Cláudia - expoente da mídia dos segmentos de arquitetura, decoração e design - do período de julho de 2006 a junho de 2016, em que o trabalho imaterial já é visto como fonte de rentabilização e competitividade. Dois eixos de análise - (com)posição do tema na revista, e (re)funcionalização, rentabilização e naturalização da casa/lar para o trabalho - apontaram o axioma morar-trabalhar.

O presente estudo divide-se em quatro seções: referencial teórico, procedimento metodológico, resultados e análises e conclusão.

REFERENCIAL TEÓRICO

Condizente à sociedade disciplinar, vê-se os indivíduos continuamente demandados e segmentarizados - família, escola, fábrica -, de modo que cada segmento representa um episódio. “Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos ou grupos, ora é o mesmo indivíduo ou o mesmo grupo que passa de um segmento a outro” (DELEUZE e GUATTARI, 1996DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1996., p. 84). À fábrica, espaço de produção por excelência, destinam-se os maquinários, a linha de produção; à casa/lar, reduto da privacidade e da intimidade, os vínculos da familiaridade, dos afetos, das memórias. Configurada com paredes que delimitavam funções e setores, a casa era espaço sanitário e local de reposição de energias para o trabalho (CORREA, 2004CORREA, T. B. A construção do habitat moderno no Brasil: 1870-1950. São Carlos: Rima, 2004.). A noção de conforto buscava transformá-la num santuário, refúgio de harmonia e convívio salutar dos membros familiares (ELEB, 2011ELEB, M. Lugares, gestos e palavras do conforto em casa. V!rus, São Carlos, v. 5, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=3&item=1&lang=pt >. Acesso em: 4 abr. 2018.
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).

Fábrica e casa correspondiam entre si na lógica da segmentarização que caracterizava ambas e distinguia produtores e consumidores. A fábrica conforme a natureza dos trabalhos e das operações, a casa conforme o destino de seus cômodos (DELEUZE e GUATTARI, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1997.) em setores de serviços, social e íntimo a enaltecerem, inclusive, a passagem que leva o indivíduo de um episódio a outro. Em casa, o indivíduo se encontraria “[...] fora do alcance da disciplina da fábrica” (HARDT, 2000HARDT, M. A sociedade mundial de controle. In: ALLIEZ, É. (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 357-372., p. 368). Nesse contexto de fronteiras entre a fábrica e a casa/lar, ressalta-se a imobilidade do trabalho/trabalhador e do capital.

No trânsito da sociedade disciplinar à de controle, “[...] os muros das instituições desabam, de modo que se torna impossível distinguir fora e dentro” (HARDT, 2000HARDT, M. A sociedade mundial de controle. In: ALLIEZ, É. (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 357-372., p. 369), códigos/formas/formatos/normas adquirem outras aparências em virtude de um modo de funcionamento que não mais setoriza e imobiliza nos termos antes apresentados.

Uma nova relação produção-consumo configura-se na fluidez das fronteiras, no distanciamento dos padrões espaço-temporais do modelo de produção fordista, e nas possibilidades advindas das tecnologias da informação e comunicação, que permitem estender controles da gestão sobre indivíduos em movimento. Ela condiz com a intensificação do trabalho que remete a “[...] processos de quaisquer naturezas que resultam em um maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados” (DAL ROSSO, 2012DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 23). Na forma de rede e fluxo, o trabalho liberta o capital que, sem limites espaço-temporais, toma relações familiares e sociais, e alcança modos de viver - circular, brincar, estudar, morar.

Tais processos favorecem a hegemonia do trabalho imaterial (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.; LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.), que “[...] é fundamentalmente uma performance: o produto é o próprio ato em si” (HARDT e NEGRI, 2005HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005., p. 261). Dele resultam bens materiais e imateriais - informação, afeto, antecipação e resolução de problemas, cuidado, conforto, segurança, satisfação - por meio da bagagem cultural, proatividade, flexibilidade, amarrando o indivíduo à lógica de disponibilidade total de si ao trabalho, em que “[...] deve ‘se dar’ ou ‘se entregar’ de maneira contínua a essa gestão de fluxo; ele tem de se produzir como sujeito para assumi-lo” (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., p. 17).

Sobre o trabalhador, é dito que:

[...] são muitas as maneiras de salvar sua honra e ‘sua alma’. Para subtrair uma parte de sua vida à aplicação integral no trabalho, os ‘trabalhadores do imaterial’ dão às atividades lúdicas, esportivas, culturais e associativas, nas quais a produção de si é a própria finalidade, uma importância que enfim ultrapassa a do trabalho (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., p.23).

Publicitários, estilistas, artistas, arquitetos, designers exemplificam trabalhadores que satisfazem uma demanda do consumidor e ao mesmo tempo a constituem, sendo compartícipes dessa lógica de produção-consumo. “O fato de que o trabalho imaterial produz ao mesmo tempo subjetividade e valor econômico demonstra como a produção capitalista tem invadido toda a vida” (LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001., p. 47). Embora o termo imaterial seja considerado equivocado - mesmo por seus autores -, posto que o trabalho chamado desta forma tem também uma materialidade que lhe é inerente, o fenômeno que ele nomeia continua sendo muito importante, decisivo mesmo, para a compreensão das transformações do capitalismo nos últimos 40 anos aproximadamente.

O trabalho imaterial se prolifera no teletrabalho, trabalho por projetos e trabalho on demand, executáveis em espaços e tempos flexíveis, e associa-se à ideia de espacialidades híbridas, de uma arquitetura pós-paredes (ELEB, 2011ELEB, M. Lugares, gestos e palavras do conforto em casa. V!rus, São Carlos, v. 5, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=3&item=1&lang=pt >. Acesso em: 4 abr. 2018.
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; MENDONÇA, 2010MENDONÇA, M. A inclusão dos “home offices” no setor residencial no município de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; TRAMONTANO e REQUENA, 2007TRAMONTANO, M.; REQUENA, G. Living ways: design processes of a hybrid spatiality. International Journal of Architectural Computing, v. 5, n. 3, p. 535-549, 2007.). Em seu estudo, Tramontano e Requena (2007TRAMONTANO, M.; REQUENA, G. Living ways: design processes of a hybrid spatiality. International Journal of Architectural Computing, v. 5, n. 3, p. 535-549, 2007., p. 538) alertavam, até mesmo, que os indivíduos tendem a “[...] assumir funções de produção, edição e transmissão de mensagens, antes reservadas a terceiros, passíveis de serem difundidas a partir de blogs/flogs, ou compondo produtos complexos, eventualmente comercializáveis”, no âmbito da casa. A expansão de redes sociais e a sofisticação de gadgets vêm a reforçar sua observação.

Aumento de vãos, supressão de paredes e cômodos (AMORIN, GRIZ e LOUREIRO, 2011AMORIN, L.; GRIZ, C.; LOUREIRO, C. É permitido permitir: das alterações do produto imobiliário e dos modos de morar contemporâneo no Recife. V!rus, São Carlos, n. 5, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=4&item=1&lang=pt >. Acesso em:4 abr. 2018
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; FERREIRA, 2015FERREIRA, A. Menos é mais. Casa Cláudia, São Paulo, nov. 2015.) ganham destaque em projetos de incorporadoras, e materiais midiáticos parecem transpor a necessidade da economia construtiva para atender desejos pós-paredes a tornar o espaço, sensorial e fisicamente, mais amplo, versátil e dinâmico (FONSECA JORGE, 2013FONSECA JORGE, P. A. A dinâmica do espaço na habitação mínima. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 157.01, jun. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.157/4804 >. Acesso em:6 abr. 2018.
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).

Ao operar no material e no imaterial, a axiomática capitalista alcança as mais diversas instâncias da vida - econômica, política, afetiva, cognitiva, em uma subjetividade capitalística. Com Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1997., p. 202) cabe lembrar que o capitalismo “[...] já não opera tanto através de uma quantidade de trabalho como através de um processo qualitativo complexo, que coloca em jogo os modos de transporte, os modelos urbanos, a mídia, a indústria do entretenimento, as maneiras de perceber e sentir” (grifo nosso). Assim, a axiomática modula “[...] as condutas na mesma marcha incessante da lógica da produtividade, por mais que elas possam adquirir as mais distintas roupagens [...]. O formato é substituído pelo funcionamento; as formas mudam, mas a axiomática do capital permanece a mesma” (HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015., p. 166-167). Ao substituir códigos desfeitos por uma combinatória, a axiomática “[...] captura por um extremo o que perde por outro” (DELEUZE, 2005DOREA, G. Gilles Deleuze e Feliz Guattari: heterogênese e devir. Margem, São Paulo, n.16, p. 91-106, 2002., p. 105).

Desse modo, se algo escapa, novos axiomas são adicionados em contínuos/incessantes processos de criação-produção-consumo-incorporação. A axiomática se refaz por meio de um funcionamento - deslocamento/deslizamento/hibridização - que configura não somente a expansão dos limites do capital, mas a diluição dos mesmos (DELEUZE e GUATTARI, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1997.; GUÉRON, 2017GUÉRON, R. A axiomática capitalista segundo Deleuze e Guattari. De Marx a Nietzsche, de Nietzsche a Marx. Revista de Filosofia: Aurora, Curitiba, v. 29, n. 46, p. 257-282, jan./abr. 2017.; HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.) pela via do trabalho imaterial (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.). O capitalismo se diferencia, assim, das relações sociais de produção que condiziam com a codificação dos fluxos do desejo, e opera a partir de um sistema de axiomatização.

Embora opere em escala global, é imprescindível à axiomática capitalista operar também em escala local “[...] para garantir a sua reprodução e deslocar os seus limites. O fato de o capitalismo procurar abarcar a questão vital nesses dois extremos ou níveis torna a situação atual ainda mais desesperadora” (SANTOS, 2000SANTOS, L. Código primitivo - código genético: a consistência de uma vizinhança. In: ALLIEZ, É. (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34 , 2000. p. 397-414., p. 420).

Sendo assim, vê-se que:

[...] os estilos de vida mais elaborados devem ser representados como universalmente disponíveis se querem ser introduzidos com sucesso no mercado. Sua suposta acessibilidade é a condição necessária para sua capacidade de seduzir. Eles inspiram as motivações de compra e o interesse dos consumidores porque compradores potenciais acreditam que os modelos que procuram são atingíveis. Além disso, eles devem ser admirados a fim de que sejam objetos legítimos da ação prática e não apenas de respeitosa contemplação (BAUMAN e MAY, 2010BAUMAN, Z.; MAY, T. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 253).

Há que se considerar a afluência e a influência da mídia na produção de sentidos, o que se evidencia por textos e/ou imagens, relativos ao que é pensado, falado, sentido, praticado a respeito de um tema (BAUER e AARTS, 2002BAUER, M.W.; AARTS, B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: BAUER, M.W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, p. 39-63, 2002.; THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.). Sobretudo porque os “[...] axiomas do capitalismo não são evidentemente proposições teóricas, nem fórmulas ideológicas, mas enunciados operatórios [...] que entram como partes componentes nos agenciamentos de produção, de circulação e de consumo” (DELEUZE e GUATTARI, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1997., p. 163), promovendo, encorajando, reforçando um estilo de vida e uma estratégia existencial consumista (BAUMAN, 2008BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.).

É nesse sentido que os materiais midiáticos fazem circular “[...] construções simbólicas complexas, as quais algo é expresso ou dito. Formas simbólicas são produtos contextualizados e algo mais, que, em virtude de suas características estruturais, têm capacidade, e têm por objetivo dizer alguma coisa sobre algo” (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 369). Materiais midiáticos se mostram cruciais à propagação da axiomática capitalista, pois passam “[...] a ter, na mente do indivíduo, um efeito ainda mais importante do que a sua própria realidade imediata, transformando-se em ‘realidade virtual’, ou seja, a mídia tende a ultrapassar e a se antecipar ao acontecimento, antes que ele venha a se tornar, ou não, realidade de fato” (DOREA, 2002DOREA, G. Gilles Deleuze e Feliz Guattari: heterogênese e devir. Margem, São Paulo, n.16, p. 91-106, 2002., p. 101). É na multiplicidade de seus operadores, dos meios pelos quais opera, que não resta espaço para o dissenso “[...] em relação ao modo de vida estabelecido pelo capitalismo” (DOREA, 2002DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1997., p. 102).

Por fazer circular formas simbólicas que produzem sentidos e moldam modos de ser, pensar e agir (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.) sobre o lar, este estudo tem como fonte para coleta de dados de análise a mídia dos segmentos da arquitetura, da decoração e do design.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

Dado o objetivo proposto, e a carência de estudos na mesma direção, optou-se por um estudo exploratório longitudinal, considerando-se conjuntamente: (i) o caráter processual e permanente da axiomática capitalista; (ii) a mídia como uma das vias pelas quais ela opera; e (iii) a legitimidade do uso da mídia como campo (ITUASSU e TONELLI, 2014ITUASSU, C. T.; TONELLI, M. J. Sucesso, mídia de negócios e a cultura do management no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 86-86, 2014.; RODRIGUES, MORIN e STREHLAU, 2009RODRIGUES, A.; MORIN, E.; STREHLAU, S. A imagem de executivos na mídia: um estudo com jornais de Québec. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 232-251, 2009.). Optou-se pela revista Casa Cláudia considerando-se seu conteúdo (produção), abrangência nacional (circulação) e alcance em número de leitores (recepção).

Seu conteúdo corresponde a formas simbólicas (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.) que têm aspectos: intencional (são expressões de um sujeito a outro - apresenta, antecipa, sugere aos leitores ações relativas à arquitetura, decoração e design); convencional (sua construção, seu emprego, e a interpretação por quem as recebe dizem de processos que envolvem regras e convenções de vários tipos - leitores são apresentados a uma produção que parte de uma pauta mensal); estrutural (mostra estrutura articulada - capa, sumário, carta do editor, corpo); referencial (necessariamente referem-se a algo e dizem alguma coisa sobre algo - casa/lar); e contextual (são inseridas em contextos e processos sócio-históricos, nos quais e pelos quais são produzidas, transmitidas e recebidas - trabalho imaterial).

A revista se apresenta como a “[...] maior e melhor revista de decoração e design do Brasil” (CASA CLÁUDIA, 2018CORREA, T. B. A construção do habitat moderno no Brasil: 1870-1950. São Carlos: Rima, 2004., p. 1). Em 2017, ao completar 40 anos de publicação, alcançou 1,1 milhão de leitores, entre versões impressa e digital, dois milhões de seguidores no Facebook e 970 mil no Instagram. Seu público-alvo é feminino (81%) - mulheres com mais de 30 anos (87%) -, das classes A e B (66%), com interesse em arquitetura, decoração e design (47%) e/ou pretensões de construir/reformar em curto prazo (48%). Mensalmente compartilha “histórias inspiradoras”, “informações práticas para que as pessoas conquistem o refúgio dos seus sonhos, levando em conta história pessoal, estilo de vida e orçamento” (CASA CLÁUDIA, 2018CASA CLÁUDIA CASA CLÁUDIA. [Site]. Disponível em: <Disponível em: https://casaclaudia.abril.com.br >. Acesso em: 12 mar. 2018.
https://casaclaudia.abril.com.br...
, p. 1).

A coleta de dados deu-se com a busca extensiva a acervos particulares, bibliotecas, revistarias e sebos, que recolheu 120 edições impressas da revista - julho de 2006 a junho de 2016. Uma vez que elas foram cronologicamente organizadas e exaustivamente lidas, tomou-se a integralidade do conteúdo disposto em planilha Excel, considerando-se as formas simbólicas no que elas têm de “[...] escrito, falado, mapeado, figurativamente desenhado e/ou simbolicamente explicitado” (MINAYO, 2003MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2003., p. 74). Na formação do corpo de análise, deu-se atenção ao texto e/ou imagem, e considerou-se, a priori, termos comumente associados ao morar e trabalhar - escritório, trabalhar/trabalho em casa, home office -, aos quais acrescentaram-se, a posteriori, aqueles que emergiram na revista - estação de trabalho, canto de trabalho/do computador, casa-ateliê, casa-escritório, cozinha-laboratório -, além de elementos relacionados ao estilo de vida dos moradores - histórias, memórias e atividades profissionais. Ocorrências associadas a crianças e/ou adolescentes não foram consideradas.

Tomando como base a Metodologia da Interpretação (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.), este estudo relaciona: o contexto de trabalho imaterial com a análise sócio-histórica; a composição dos elementos do morar e do trabalhar a partir das formas simbólicas com a análise formal; a interpretação de editores, jornalistas, fotógrafos da revista, já expressas nos textos e/ou imagens com a (re)interpretação ou “construção criativa de possíveis significados” (THOMPSON, 2005, p. 375).

Da relação empreendida resultou a identificação de dois eixos de análise: (i) (com)posição do tema na revista; e (ii) (re)funcionalização, rentabilização e naturalização do lar para o trabalho. As matérias analisadas foram escolhidas conforme a sua representatividade na elaboração de formas simbólicas do morar/trabalhar.

RESULTADOS E ANÁLISES

A (com)posição do tema na revista

Confeccionada com material agradável ao toque, texto coloquial e fotografias em abundância, a revista seduz ao manuseio. Inúmeras entradas possíveis emergem ao passar os olhos por suas folhas, antecipando um entrever relativo à identificação/(com)posição do tema em Casa Cláudia. Constatou-se que um único termo - escritório - foi usado para designar tanto um cômodo isolado e exclusivamente voltado ao trabalho, como um criado-mudo de quarto de casal. Destacam-se ainda outros temos inusitados para designar e destinar espaços como sendo de trabalho, tais quais: casa-escritório, casa-ateliê, cozinha-laboratório, espaço híbrido, hall de entrada, corredor e cabeceira de cama.

Identificou-se a temática morar-trabalhar atentando-se tanto àquilo que de tão explícito acostuma o olhar, como àquilo que se imiscui em algo implícito, que a princípio não lhe diz respeito, demandando atenção redobrada no (entre)ver. Por isso, a (com)posição que segue toma-o de vários prismas.

Inicialmente, mapeou-se 448 ocorrências do tema morar-trabalhar. De modo oscilante, elas distribuíram-se continuamente nas 120 edições da revista (Gráfico 1).

Gráfico 1
Distribuição das ocorrências

Constatada a distribuição das ocorrências, buscou-se ver sua localização e modo de apresentação na estrutura da revista. Para as 150 localizadas na Capa, Carta do Editor e Sumário, dado seu caráter de anúncio, considerou-se ocorrência Anunciada (A) - estando o tema evidente, explícito numa ou noutra. Para as 298 localizadas no Corpo - como matérias -, considerou-se ocorrência Não-anunciada (N) (Quadro 1) - correspondendo a todas as matérias em que o tema, explicitamente ou não, está presente no Corpo da revista.

Quadro 1
Mapeamento do tema

O que é anunciado (33,5% ocorrências registradas) tem maior visibilidade e indica maior relevância atribuída pela revista. Cada edição, considerando-se a estrutura, possibilita uma combinatória relativa à ocorrência Anunciada (A) e Não-anunciada (N) (Quadro 2).

Quadro 2
Mapeamento do tema - Anunciada (A) e Não-Anunciada (N)

Das oito combinações possíveis, quatro destacaram-se pela repetição nas edições - NNN (49); NNA (31); ANA (21); AAA (10). No conjunto, mostra que: (i) a visibilidade e relevância atribuída ao tema - ANA (21) e AAA (10) - se concentram na primeira metade do período analisado (Figura 1); (ii) em 80 edições, as ocorrências relativas ao tema não foram anunciadas, ou o foram somente no Sumário - NNN (49) e NNA (31) (Quadro 2) - sugerindo que, ao longo do período, o tema passa a prescindir de anúncio.

Figura 1
Mapeamento do tema - modo de apresentação no período

A axiomática capitalista constitui-se e mantém-se justamente no (entre)ver relativo à identificação e à (com)posição da temática morar-trabalhar ao longo do período em termos de uma combinatória: Anunciada - Não-anunciada. Ela opera no/pelo deslocamento do tema na estrutura da revista na totalidade das edições, que assim ressoa, reverbera e se multiplica em formas simbólicas (HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.; THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.). O Quadro 3 exemplifica duas combinatórias que mostram as nuances da presença/visibilidade do tema.

Quadro 3
Presença do tema - estrutura da revista

A (com)posição do tema guarda, ainda, especificidades relativas à Capa - Chamada Principal e Secundária, Carta do Editor, ao Sumário e Corpo (Gráficos 2, 3, 4e 5).

Gráfico 2
(Com)posição do tema - Capa (A)

Gráfico 3
(Com)posição do tema - Carta do Editor (A)

Gráfico 4
(Com)posição do tema - Sumário (A)

Gráfico 5
(Com)posição do tema - Corpo (N)

Os quatro gráficos evidenciam que, à medida que a presença do tema diminui na Capa, Carta do Editor e no Sumário, aumenta no Corpo da revista como ocorrência Não-anunciada, sugerindo a assimilação da casa/lar como espaço de trabalho e produção. Se a notoriedade dada ao tema em forma de anúncio amaina-se na revista ao longo do período, é porque já se naturalizou. Não havendo mais dissenso em relação ao modo de vida estabelecido (DOREA, 2002DOREA, G. Gilles Deleuze e Feliz Guattari: heterogênese e devir. Margem, São Paulo, n.16, p. 91-106, 2002.), o anúncio do morar-trabalhar pode ser prescindível.

Capa, Carta do Editor e Sumário apresentam mais peculiaridades (Quadro 4).

Quadro 4
Distribuição de ocorrências na Capa, Carta do Editor e Sumário

Em Casa Cláudia, cada Capa tem uma única Chamada Principal, que se destaca quanto ao tamanho, à posição, à cor e ao tipo de fonte utilizada em relação às Secundárias. Distribuídas em 36 Capas (30% do total das edições), as 43 ocorrências de Capa - 18 Chamadas Principais e 25 Secundárias - atestam a relevância que a revista atribuiu ao tema. As 18 Principais correspondentes a 18 edições (15% do total de edições) são, proporcionalmente, ainda mais expressivas que as Secundárias, em virtude de sua menor possibilidade de ocorrência no local de mais visibilidade e notoriedade que um conteúdo pode ter na revista. Os Quadros 5 e 6 exemplificam Chamadas de Capa do período.

Quadro 5
Tema - Chamada Principal

As Principais associam o termo trabalho a multifuncionalidades - salas multiuso -; à ação - trabalhar, trabalha -; remetem ao objeto para trabalhar - escrivaninha -; ao espaço de trabalho no lar - escritório -; impelem à ação trabalhar com uso de imperativos - veja, dê, use, inspire-se, mude e desfrute. A ação trabalhar se associa à novidade - as salas agora são multiuso -; à rentabilização do espaço doméstico - usar bem a sala ou usá-la de verdade -; e ao estilo - decoração flexível. Objeto de uso explícito para trabalhar alinha-se à ideia de decoração e a itens de conforto; e espaço de trabalho no lar, à tecnologia e organização.

Quadro 6
Tema - Chamada Secundária

As Secundárias referem-se a facilidades e vantagens de quem trabalha em casa; à possibilidade de escolhas; à ampliação das denominações associadas ao espaço de trabalho - canto de trabalho, do computador, casa-ateliê; e ao estilo de vida associado ao jeito de receber.

Elas remetem à ação trabalhar e ao espaço de trabalho no lar. A ação trabalhar associa-se a facilidades do cotidiano, vantagens, opções diversas de móveis e mobilidade. O objeto que servia exclusivamente para o trabalho sai de cena e reverte-se em bancadas e estantes multifuncionais. Espaço de trabalho no lar alinha-se à tecnologia, à ideia de baixo-custo, à reversibilidade, ao aproveitamento inusitado do espaço debaixo da escada e do hall de entrada.

As Secundárias referem-se, ainda, aos moradores em termos de profissão, chefs e artista plástica; e de identificação, apresentação de nome e sobrenome. Ao apresentar moradores que reconfiguraram seu lar para o trabalho e compartilharam seus estilos de morar e receber com leitores, se enaltecem a nova relação produção/consumo e a rentabilização do lar e de si para o trabalho (LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.).

Aproximando-se as Principais e as Secundárias, nas edições iniciais, observa-se que as Principais apontam novidades quanto à multiplicidade; e as Secundárias quanto às vantagens e facilidades que se avizinham. Nas edições finais, as Principais se voltam para a otimização do lar reconfigurado para o trabalho; e as Secundárias para a mudança que sofre o modo de trabalhar em casa, bem como para a apresentação dos moradores e de suas profissões, algo que não foi referido em nenhuma das Principais.

A Carta do Editor dá o tom de cada edição, anunciando e ressaltando o conteúdo por vir. A presença do tema encontra-se em trechos de 17 Cartas (14% do total de Cartas analisadas) assinadas por três diretores de redação que se intercalam ao longo do período. Ressalta-se que 13 delas se concentram na primeira metade do período (Quadro 7).

Quadro 7
Tema - Carta do Editor

As primeiras Cartas reconhecem incertezas a respeito das transformações relativas ao trabalho na casa/lar, algo a ser dissipado frente às ideias e inspirações contidas na revista. A tecnologia, sempre ressaltada, é tomada como um dos elementos desencadeadores das mudanças ditas aceleradas, até que sua inserção na casa/lar de modo a reconfigurá-la, passa à mera lembrança.

Se faltam centímetros, dados os espaços cada vez mais exíguos, a mensagem é de que não há com o que se preocupar em relação ao exercício do trabalho na casa/lar, pois os ambientes se tornam multifuncionais. Atendendo às necessidades e aos desejos presumidos dos leitores - conjugar lazer e trabalho em espaços diminutos -, são indicados recantos funcionais simultaneamente a diversos afazeres. A exploração da multifuncionalidade dos cômodos vai adquirindo ares de desafio e necessidade, até que esse tipo de utilização se torne inquestionável e seja apresentada como sinal dos tempos.

Se, inicialmente, as Cartas aludem às dúvidas, aos desafios, aos desejos e benefícios dos moradores supostamente necessitados de acolher o trabalho na casa/lar, ao final indicam que tudo - jantar, receber, dormir e até trabalhar no mesmo espaço em que crianças brincam - justifica-se pela vantagem de uma rotina com menos desgaste.

Quanto às novas nomenclaturas relativas ao espaço e aos objetos de trabalho na casa/lar, destacam-se: espaço do computador, sala multiuso, bancada de trabalho, casa-ateliê, quarto-escritório.

As últimas Cartas remetem ao tema somente para enfatizar as consolidações do mercado e dos profissionais da área. Cômodo designado a uma única função foi substituído por quarto-escritório e quarto-banheiro, remetendo à ideia de espacialidades híbridas (TRAMONTANO e REQUENA, 2007TRAMONTANO, M.; REQUENA, G. Living ways: design processes of a hybrid spatiality. International Journal of Architectural Computing, v. 5, n. 3, p. 535-549, 2007.) e indicando à refuncionalização, rentabilização e naturalização da casa/lar.

Todas as referências ao trabalho no lar são feitas de forma positiva e de modo a atender aos interesses dos moradores. Relacionam-se à novidade, ao lazer, ao convívio com a família, à sustentabilidade, ao menor desgaste no trânsito, ao estilo de vida, à beleza, de forma ora agradável, ora vantajosa, ora prazerosa, ora prática e organizada, ora lúdica.

Se a Capa e a Carta do Editor são os primeiros contatos dos leitores com a revista, o Sumário lhes facilita a busca de conteúdo. Identificaram-se 90 ocorrências no Sumário, distribuídas em 65 edições (54% do total de edições). O texto apresentado no Sumário que indica a presença do tema nem sempre coincide com o texto das Chamadas de Capa e com o título das matérias do Corpo, e vice-versa, conforme exemplifica o Quadro 8.

Quadro 8
Tema - Sumário em relação à Capa

O quadro 8também ilustra como, ao longo do período observado, a (com)posição da revista favorecia que o tema fosse (entre)visto, pois, mesmo que Não-anunciado, ele podia se encontrar imiscuído em outro, o que constitui o próximo eixo de análise deste trabalho.

(Re)funcionalização, rentabilização e naturalização do lar para o trabalho

Ao atentar para a diversidade das histórias pessoais, dos estilos de vida e para o orçamento dos leitores, a revista empenha-se em mostrar algo passível de realização por todos, uma condição necessária à sedução e à garantia de sucesso no mercado (BAUMAN e MAY, 2010BAUMAN, Z.; MAY, T. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.). Divulga até mesmo a profissão, os objetos e os gostos pessoais dos moradores, sua imagem e a de seus familiares e animais de estimação; em síntese, a forma como a vida se anima, inclusive em relação ao trabalho, no contexto da casa/lar apresentada.

A matéria “6 espaços de trabalho em casa” (CASA CLÁUDIA, ago./2006) mostra espaços especificamente configurados para o trabalho, diferenciados dos relativos às demais atividades domésticas. Já em “Como revitalizar a decoração. Era assim... e ficou assim!” (CASA CLÁUDIA, set./2007SANTANA, C. Editorial. Casa Cláudia, São Paulo, ago. 2007.), o escritório migrou para a sala de jantar, depois que o designer se questionou acerca do confinamento do trabalho ao quarto de hóspedes, uma vez que ele pode ser realizado em um local mais espaçoso e iluminado, propício até mesmo à recepção de clientes”. Ademais, o ambiente concebido na sua reversibilidade pode funcionar como escritório no dia a dia, e canto de refeições quando necessário”.

“59 ideias para decorar espaços pequenos” (CASA CLÁUDIA, out./2007SANTANA, C. Editorial. Casa Cláudia, São Paulo, ago. 2007.) compartilha a história de uma nutricionista e reproduz a planta-baixa da obra que transformou dois quartos unidos de sua casa em uma suíte com escritório. “Marcenaria poderosa”, na mesma edição, ilustra como a cabeceira da cama passou a resguardar uma mesa de trabalho. Mesmo tendo como foco o trabalho da marcenaria, a matéria alude à suposta garantia de privacidade, desconsiderando, portanto, que o trabalho já adentrara a intimidade da casa/lar.

Isso também se observa na matéria “Parece uma galeria” (CASA CLÁUDIA, set./2012), que retrata a casa/lar de uma designer de interiores e de um marchand. Com o subtítulo “Adaptações que a vida traz”, a matéria relata que o ambiente que servia de escritório transformou-se em quarto com a chegada da filha do casal. Consequentemente, o escritório tornou-se um pedacinho entre a porta de correr do closet e a mesa de cabeceira. A dica para conviver tranquilamente com a escrivaninha tão próxima à cama, segundo a designer, é não lotá-la de papéis, o que significa não problematizar o morar-trabalhar em conjunto, mesmo que ele ocorra em espaços exíguos, como indica o diminutivo “pedacinho” utilizado. Conforme a gestão de fluxo da axiomática capitalista (DELEUZE e GUATTARI, 2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.; HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.), o que se observa é o deslocamento/minimização da precariedade da situação.

Em “Descubra as vantagens de trabalhar em casa” (CASA CLÁUDIA, fev./2008), relata-se como cinco profissionais - uma arquiteta, um advogado, uma artista plástica e dois designers - adaptaram a rotina e a decoração para trabalharem em suas próprias casas. Vantagens de trabalhar em casa foram apontadas: não enfrentar o trânsito e ter liberdade de horário; passar mais tempo com os filhos e com os animais de estimação. Por outro lado, pegar a bolsa, apagar as luzes e sair do escritório; atravessar a porta da sala e sentir-se em casa; impor-se disciplina dobrada para não ficar o dia inteiro de pijama; almoçar fora para não se alimentar mal; sair para caminhar à tardinha e espairecer; impor-se um momento de repouso são alguns dos métodos, mesmo que pueris, recomendados para não se sucumbir aos riscos visíveis relativos ao morar-trabalhar.

“Morar com estilo” (CASA CLÁUDIA, nov./2009) associa o trabalho à decoração flexível, que é apontada como adequada para viver e trabalhar. Uma porta camuflada faz adentrar ao escritório; o tablado da bailarina serve de cama para hóspedes; as portas-biombo tomam o lugar de paredes; a disposição dos móveis e a circulação no ambiente assumem diversas configurações, como a configuração-trabalho ao oferecerem espaços para computadores utilizados por uma equipe, e a configuração-gourmet para a recepção dos amigos. Tudo atendendo aos desejos de uma morada híbrida.

Design é para sempre” (CASA CLÁUDIA, set./2012) retrata a casa/lar de uma consultora de vendas e de um administrador, enaltece a liberdade da mudança de função dos espaços, considerando, por exemplo, que o sofá pode mudar de lugar, e que a mesa de jantar de altura regulável pode virar bar ou escritório.

“Salas lindas para usar de verdade”, “O templo do artista” e “Trabalho em movimento”, que têm Chamada de Capa intitulada “Mobilidade é tudo” (CASA CLÁUDIA, mar./2013), destacam, respectivamente: (i) espaço múltiplo ao apresentar a cozinha contígua à sala de estar, jantar e biblioteca em que a chef testa suas receitas publicadas em blogs e em livros; (ii) espaço chamado casa-ateliê, no qual o arquiteto/pintor recebe os amigos, trabalha horas a fio e expõe suas obras ao público; (iii) presença de home office em qualquer ambiente da casa, o que se toma como homeofficing na perspectiva de um funcionamento (HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.) que modula as condutas e o ser no âmbito do lar.

O sótão como um estiloso escritório, em “Diversão em dose dupla” (CASA CLÁUDIA, jan./2014); escritório irreverente em “Design, humor e Rock’n’Roll” (CASA CLÁUDIA, set./2015); o colorido do piso a preservar a memória dos tons de uma viagem em “No centro da cidade” (CASA CLÁUDIA, abr./2016). A casa/lar destinada ao trabalho é caracterizada por adjetivos que se referem à estilos, afetos e memórias, vistos como mobilizadores de si na perspectiva do trabalho imaterial, e, portanto, produtivos.

Destaca-se que a profissão informada dos moradores corresponde à noção de trabalho imaterial (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.; LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.). Todas as atividades mobilizadoras de si para além de delimitações espaço-temporais potencializam-se na forma de redes e fluxos e condizem com atividades culturais na perspectiva de conteúdo cultural-informativo-colaborativo - jornalista, publicitário, fotógrafo, produtor executivo de fotografias, professor, escritor, marchand, ator -; com atividades manuais imbricadas à criatividade, imaginação e ao trabalho técnico-manual - arquiteto, decorador, estilista, figurinista, artista plástico, florista, construtor, cenógrafo, ceramista, chef, designer de interiores, de joias, gráfico -; com atividades empreendedoras relativas à capacidade de gestão - empresário, executivo, administrador, profissional do mercado financeiro -; com relações sociais, de comunicação e de cooperação - consultor de mercado de luxo, corretor de imóveis, advogado, economista, profissional de marketing, diretor de arte, médico, nutricionista, terapeuta ocupacional.

Os moradores desejavam montar showroom; criar escritório; obter espaços multiusos; integrar áreas privada e de trabalho; ocupar, transformar, unir e eliminar cômodos pré-existentes; otimizar os espaços da casa; adaptar o mobiliário. O trabalho invadiu o corredor, o quarto, o banheiro, o canto de 1m², com a retirada de paredes, a criação/deslocamento de aberturas, as substituições de paredes por esquadrias - painéis de correr, aberturas camufladas, vazadas, de vidro - e por móveis flexíveis e leves. Vê-se, claramente, paredes versáteis-reversíveis-customizáveis (FONSECA JORGE, 2013FONSECA JORGE, P. A. A dinâmica do espaço na habitação mínima. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 157.01, jun. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.157/4804 >. Acesso em:6 abr. 2018.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/rea...
), e uma arquitetura pós-paredes (ELEB, 2011ELEB, M. Lugares, gestos e palavras do conforto em casa. V!rus, São Carlos, v. 5, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=3&item=1&lang=pt >. Acesso em: 4 abr. 2018.
http://www.nomads.usp.br/virus/virus05/?...
; MENDONÇA, 2010MENDONÇA, M. A inclusão dos “home offices” no setor residencial no município de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; TRAMONTANO e REQUENA, 2007TRAMONTANO, M.; REQUENA, G. Living ways: design processes of a hybrid spatiality. International Journal of Architectural Computing, v. 5, n. 3, p. 535-549, 2007.). Mas, também, marcadores do trabalho distribuídos/amainados na casa/lar, na perspectiva de um gradiente - espaços isolados, compartimentados, semi-integrados, integrados, cantos, estantes dupla-face, bancadas, aparadores multiuso, sofá, cama.

Tem-se, assim, o deslizamento de uma codificação para um funcionamento (DELEUZE e GUATTARI, 2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.; HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.; GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.; LAZZARATO e NEGRI, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.). Na lógica do trabalho imaterial e, à distância, o capital controla o trabalhador que tem “[...] muitas maneiras de salvar sua honra e ‘sua alma’ (GORZ, 2005GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005., p. 23)”, inclusive, publicizando que, no lar, ele trabalha na sala reunindo-se com colegas, no corredor recebendo clientes, no quarto preparando reuniões, respondendo a e-mails, postando na internet.

No espaço híbrido da casa/lar circulam parentes, amigos, clientes, colegas de trabalho, conectados por mensagens, chats, videoconferências, redes sociais. O trabalho imaterial promove, portanto, o confinamento para além das fronteiras fabris/empresariais, mesmo que os indivíduos se percebam em liberdade. Contudo, na perspectiva apresentada pela revista, o trabalho no lar é reduzido tão somente à ideia de atender aos objetivos pessoais: deixar de trabalhar confinado; manter a convivência e ficar perto dos filhos; trabalhar em casa como prioridade e com mais prazer; espalhado em cama turca; com liberdade; concentrado; com tudo acontecendo ao redor; concomitantemente com outros afazeres; à noite. Singelos assim parecem não coincidir com as demandas do trabalho imaterial, tampouco com a axiomática capitalista. Tomados à reinterpretação (THOMPSON, 2005THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2005.), frente aos eixos apresentados, constituem-se elementos de mais um axioma incorporado ao fluxo da axiomática capitalista - o morar-trabalhar.

CONCLUSÃO

Quando capital e trabalho imaterial, desamarrados de padrões espaço-temporais, mostram notória mobilidade, aludem à equivalente mobilidade/liberdade do trabalhador. As aquisições do presente estudo permitem considerar, entretanto, que enquanto o capital se expande e se liberta, a mobilidade repercute de modo diferente para o trabalhador que, aprisionado, se vê em uma suposta liberdade.

Os eixos de análise apresentados - (com)posição do tema na revista e (re)funcionalização, rentabilização e naturalização da casa/lar para o trabalho - permitem considerar a mídia analisada como um dos elementos que serve à ação/manutenção/propagação da axiomática capitalista na casa/lar, considerando o morar-trabalhar como mais um axioma (DELEUZE e GUATTARI, 2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.; HUR, 2015HUR, D. Axiomática do capital e instituições: abstratas, concretas e imateriais. Revista Polis e Psique, v. 5, n. 3, p. 156-178, 2015.).

Em Casa Cláudia, novos modos de vida e de organização da produção no capitalismo contemporâneo são axiomatizados com base em novas tendências dos segmentos da arquitetura, da decoração e do design para o lar. Mostrou-se como o enfraquecimento da divisão entre trabalho e casa e como a axiomatização desta transformação produtiva passam, não apenas, pelas tendências arquitetônicas sugeridas pela revista, como também pelo fato de estas tendências serem, inicialmente, anunciadas como uma novidade nas capas das edições para, pouco a pouco, serem mostradas nas matérias internas já como algo definitivamente assimilado - axiomatizado.

Por meio da mídia dos segmentos de arquitetura, decoração e design, a axiomática capitalista age, de modo insuspeito e não confrontador, reforçando o “[...] modo de vida estabelecido pelo capitalismo” (DOREA, 2002DOREA, G. Gilles Deleuze e Feliz Guattari: heterogênese e devir. Margem, São Paulo, n.16, p. 91-106, 2002., p. 102). Numa captura estimulada, disseminada e dissimulada, a axiomática capitalista interfere na casa/lar de modo a afetar/alterar sua característica tradicional de refúgio e local de reposição de energias para o trabalho (CORREA, 2004CORREA, T. B. A construção do habitat moderno no Brasil: 1870-1950. São Carlos: Rima, 2004.), para local de realização do trabalho e possibilidade de extensão e abrigo do capital. Aliada às novas tecnologias e aos novos meios de controle do trabalhador, a axiomática capitalista opera no global e no local, no material e no imaterial, dominando o espaço mais minimamente localizado (SANTOS, 2002), inclusive os menores e mais inusitados cantos da vida íntima - pedacinho entre a porta de correr do closet e a mesa de cabeceira do quarto de casal. Eliminar papéis da escrivaninha, pegar a bolsa, apagar as luzes e sair do escritório, atravessar a porta da sala e sentir-se em casa, ainda que possam ser tomadas como ações de resistência, mostram-se inócuas à axiomática capitalista.

Dada a relevância dos resultados alcançados acerca de como a vida se anima na casa/lar em razão da axiomática capitalista, recomenda-se que futuros estudos atentem também para outras mídias, ampliando o recorte temporal e local, e considerando especificidades de gênero, geração e classe social.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2018
  • Aceito
    11 Jan 2019
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