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Desfazendo silêncios e estereótipos sobre diferenças nos estudos organizacionais da cidade

Disolviendo silencios y estereotipos sobre las diferencias en los estudios organizacionales de la ciudad

Saraiva, L. A. S. . (2020). Diferenças e territorialidades na cidade (1a ed., 158 p.). Ituiutaba, MG: Barlavento. ISBN: 978-65-87563-02-2.

Palavras-chave:
Estudos organizacionais; Cidades; Diferenças

Palabras clave:
Estudios organizacionales; Ciudades; Diferencias

Um livro ousado e criativo do ponto de vista de conteúdo e forma. Aliás, ousado e criativo até mesmo na área das Ciências Administrativas; em particular, nos Estudos Organizacionais, e que tem como foco a organização plural da cidade (Mac-Allister, 2004Mac-Allister, M. (2004). A cidade no campo dos estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 11(spe.), 171-181. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9110012
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). É assim que a obra Diferenças e territorialidades na cidade (Saraiva, 2020 Saraiva, L. A. S . (2020). Diferenças e territorialidades na cidade. Ituiutaba, MG: Barlavento.) poderia ser definida sob a égide da abordagem organizacional, para além da convencional, baseando-se na filosofia das diferenças (Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição. São Paulo, SP: Paz e Terra.). A obra, publicada no singular ano de 2020, reflete diferentes questões relacionadas à vizinhança dos “estranhos” que habitam os espaços das cidades, organizando e significando as suas territorialidades por meio de descontinuidades e diferenças e, assim, desafiando o conceito de “normalidade”. As discussões que relacionam a questão das diferenças na territorialidade por meio de “histórias contadas” motivaram a escrita desta resenha, bem como a indicação de leitura da obra, na medida em que faz o leitor compreender os diferentes aspectos relacionados à organização das cidades a partir dos seus habitantes.

Possui uma linguagem que se pauta em diferentes enredos históricos como uma “narrativa a ser contada”. Por conta desse estilo, é acessível a diferentes públicos, entre eles, pesquisadores da área dos Estudos Organizacionais em geral, sobretudo relacionados a cidade, pesquisadores da área de gestão urbana, interessados na área da filosofia e sociologia por meio da temática “produção da diferença” e estudiosos em geral de psicologia, artes, literatura e geografia, devido à interdisciplinaridade que a obra apresenta em seus capítulos, visando compreender o uso do espaço urbano. O estudo da obra e as discussões presentes no livro podem ser enriquecidos, ainda, à luz de outras publicações, tais como Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro (Agier, 2015Agier, M. (2015, dezembro). Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21, 483-498. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483
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) e Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos (Agier, 2019Agier, M. (2019). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome.), ambas de Michel Agier.

A obra, disponível gratuitamente no formato eletrônico, é composta de seis capítulos redigidos no estilo narrativo por diferentes pesquisadores do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sob a organização e orientação do professor Luiz Alex Silva Saraiva (UFMG), esta proposta inovadora problematiza as maneiras pelas quais se manifestam e se territorializam as diferenças nas cidades mediante aspectos relacionados: i) à loucura, ii) à arte contemporânea, iii) aos quilombos urbanos e iv) ao trabalho subalterno. Tem como fio condutor a perspectiva da vida social organizada para compreender a experiência do inesperado e do “estranho” como uma marca presente que existe e resiste no ambiente urbano. Estes aspectos relacionados chamam atenção para discussões que não compõem o mainstream da Administração, o que permite ampliar o alcance da relação entre “diferença” e “cidade” sob a égide dos estudos que apresentam a temática da diversidade e das minorias nos Estudos Organizacionais.

Para problematizar os diferentes grupos sociais, cada autor da obra foi convidado a criar um personagem sobre o tema tendo por inspiração os tipos ideais de Max Weber (1973Weber, M. (1973). Metodologia das ciências sociais - parte 2 (2a ed.) São Paulo, SP: Cortez.) no nível de análise. Os dados da pesquisa, todos reais, são corporificados em personagens fictícios com o objetivo de reconstruir o sentido heurístico de comparabilidade weberiano e retratar as vivências e tensões que habitam esses grupos nas sombras da cidade.

O prefácio, de autoria da professora Ana Sílvia Rocha Ipiranga (Universidade Estadual do Ceará - UECE), abre o livro com diferentes concepções do filósofo e crítico literário Walter Benjamin ensejando uma reflexão sobre as cidades que se desenvolveram sob a perspectiva da modernidade e na busca pelo “progresso” e, em razão disso, tornaram-se divididas em margens ao receber diferentes grupos sociais discutidos na obra. A autora aborda essa questão baseada em um dos mais famosos trabalhos benjaminianos, o livro Passagens, que retrata uma historiografia crítica da “moderna” cidade de Paris.

O primeiro capítulo, escrito pelo organizador, abriga uma explanação de alguns dos principais conceitos abordados na obra, como a vida social organizada, a questão das diferenças, a territorialidade e a problematização em torno da ideia de disputa como coexistência com outros grupos e a ideia de território diversificado, por exemplo. Além disso, o autor explicita a metodologia que está ancorada no tipo ideal weberiano, como mencionado, e os pontos que originaram a ideia da obra. Os demais capítulos abordam os caminhos percorridos pelos grupos sociais tidos como “diferentes” nas cidades.

No capítulo dois, a autora Fabiane Louise Bitencourt Pinto inspira-se na narrativa de Jorge Amado para refletir sobre a posição do entre-lugar na figura do capataz a partir das duas primeiras obras amadianas relacionadas ao ciclo do cacau, tomadas como fonte de pesquisa pela autora: Cacau (Amado, 1933Amado, J. (1933). Cacau. Rio de Janeiro, RJ: Ariel.) e Terras do sem-fim (Amado, 1943Amado, J. (1943). Terras do sem-fim. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). À luz das concepções de uma modernidade periférica brasileira e da relação entre Literatura, História e Estudos Organizacionais, a autora brinda o leitor com a figura de Algemiro, um trabalhador subalterno que atua no contexto da zona cacaueira do sul da Bahia e que tangencia temas como opressão, adaptação e dominação.

O capataz Algemiro faz o leitor refletir sobre o entre-lugar de um proletário e questiona sua posição à sombra do coronel e, ao mesmo tempo, a sua posição de subordinado, um lugar subalterno de fronteira situado entre o real e o imaginário. Esse personagem revela-se como um reflexo da hierarquia de grupos hegemônicos, na qual diferentes camadas sociais são colocadas em situação de desigualdade e segregação social.

O capítulo três apresenta o enredo pautado na história de Vicente, um artista em meio às tensões entre a estética e a mercantilização da arte. O texto, assinado por Felipe Mateus Assis Soares, é delineado pela dinâmica do ethos profissional do artista na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais) e seu reflexo no desenvolvimento do espaço em disputa, compreendendo as diferenças e a forma como esse grupo territorializa o espaço da cidade.

Uma questão salta aos olhos no personagem Vicente quando o autor apresenta um ponto de tensão na relação “galeria versus ateliê”, desvelando uma ambiguidade em forma de dilema na vida do artista. Vicente leva o leitor a refletir sobre como a ação do sujeito pode alterar e reivindicar determinados espaços na cidade. Nesses diferentes pontos, o autor consegue fazer uma relação que explicita a disputa no espaço urbano, no entanto, outras questões ficaram de fora dessa discussão e caberia um olhar mais específico do autor. Entre elas, em particular, considero que seria relevante uma aproximação com o conceito da “aura” abordado por Walter Benjamin, sendo está um elemento estético de valor e que nos faz refletir sobre reprodução, mercantilização e exclusividade na obra de arte (Benjamin, 2013Benjamin, W. (2013). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo, SP: Contraponto.).

Vicente estudou em uma das escolas de artes mais renomadas da cidade, e mesmo assim foi empurrado para as margens urbanas. Dessa forma, trago a seguinte reflexão: qual lugar na cidade seria destinado a outros artistas como Vicente, mas que nem chegaram a frequentar escolas de artes ou ambientes de ensino? Como eles significam e territorializam seus espaços?

No capítulo quatro, intitulado “Meu nome é Pedro, mais conhecido como Pedro Louco”, Fabiana Florio Domingues trata de um grupo específico de pessoas excluídas na cidade: os considerados loucos ou desviantes, abordando a história da loucura e as relações de poder inerentes aos espaços de confinamento dos corpos (Foucault, 2012Foucault, M. (2012). História da loucura na idade clássica. São Paulo, SP: Perspectiva.). A autora reúne diferentes reflexões permitindo ao leitor ponderar sobre a história de pessoas que são consideradas invisíveis na sociedade e que, em vez de desistir, encontram maneiras de resistir no ambiente urbano dentro das suas próprias concepções de vida, reconstruindo maneiras de viver na cidade.

Antes de dar vida à história de Pedro, a autora reconta a história da cidade de Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo), e da construção de um grande hospital psiquiátrico no centro da cidade na década de 1970. Assim, permite a aproximação com a história de Pedro, seus dilemas e as inúmeras vezes em que foi internado no hospital, onde conheceu os horrores daquele lugar. Com isso, o leitor é levado a supor que a lógica empregada nesses ambientes é mais comum do que se pensa: trata-se de um lugar para depositar e ocultar os indesejados, estranhos e diferentes, e, assim, calá-los por não se adequarem. Na medida em que esses grupos não pertencerem a lugar nenhum, acabam territorializando o espaço com o “perambular”, termo que a autora utiliza para demonstrar a forma como vivenciam e percebem a cidade.

O ápice nesse texto se dá quando a autora discute esses diferentes elementos abordando a questão da higienização das cidades e a limpeza social com a retirada dos considerados exóticos, vagabundos e loucos. Nesse momento, destaco, acrescento e comparo essa relação com o processo de urbanização pautado na belle époque, que traduzia a euforia europeia de aformoseamento urbano por qual diversas cidades brasileiras passaram, em que se empreendeu um embelezamento estético das ruas, avenidas e praças, e se retirou tudo que se mostrasse como feio, diferente, anormal e sujo, inclusive as pessoas. O texto finaliza questionando para quem é, de fato, a cidade.

O quinto capítulo, assinado por Elisângela de Jesus Furtado da Silva, relata a história de Ana Luiza Silva, uma mulher negra e quilombola de 45 anos. Ela é líder do seu povo e vive em meio a conflitos por sua cor de pele, seu gênero, sua classe social e, consequentemente, marginalizada na cidade de Belo Horizonte.

O caminho percorrido pela autora para narrar a história de Ana Luiza perpassa o movimento do quilombo brasileiro, as tensas relações do processo de urbanização do bairro onde ela mora e atua como líder comunitária, a relação com o quilombo e os diferentes conflitos sociais, bem como contradições pessoais, culminando em questões relacionadas ao racismo e à intolerância às diferenças na dimensão territorial. Nesse texto, a autora apresenta diferentes elementos de ordem racial, política, religiosa, cultural, histórica e até educacional, para compreender a forma como os quilombos territorializam o seu espaço na cidade e desafiam a utilização do espaço e as políticas urbanas.

O sexto e último capítulo, escrito pelo organizador da obra, sintetiza alguns horizontes na pesquisa sobre diferenças e territorialidades na cidade. Ele cita uma agenda de pesquisa com base em três dos principais temas dos Estudos Organizacionais a respeito das cidades: i) territorialidade; ii) sociabilidades, simbolismos e culturas; e iii) desigualdades sociais e segregação urbana. Todos esses temas acabam por tangenciar as ideias discutidas na obra. O autor cita a interdisciplinaridade como um dos primeiros pontos de agenda e segue mencionando a necessidade de abertura e flexibilidade ao diálogo com outras fontes de saber. Além disso, enfatiza a importância de desenvolver estudos centrados nas diferenças e não nas hegemonias. O autor finaliza a agenda de pesquisa problematizando o uso de novas metodologias nos Estudos Organizacionais que sejam mais sensíveis e humanizadas. Nesses diferentes pontos, o livro assume uma visão contra-hegemônica de organização, possibilitando que os Estudos Organizacionais avancem ao considerar a cidade e sua complexidade também como organização (Mac-Allister, 2004Mac-Allister, M. (2004). A cidade no campo dos estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 11(spe.), 171-181. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9110012
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).

A obra é provocativa e seu conteúdo indica a imersão em temas silenciados nos estudos em Administração e consideravelmente marginais na área, assinalando a necessidade de expandir uma lacuna considerável de conhecimento sobre a questão das diferenças e seus modos de territorialização. Os autores constroem uma ponte entre a temática abordada e as diferentes possibilidades de utilização desse debate no campo dos Estudos Organizacionais ao relacionar a temática com outras áreas de conhecimento por meio de um olhar interdisciplinar sobre a urbe, sobretudo no que diz respeito à pungente necessidade de uma problematização filosófica e crítica nos Estudos Organizacionais (Cooper, 1976Cooper, R. (1976). The open field. Human relations, 29(11), 999-1017. Recuperado de https://doi.org/10.1177/001872677602901101
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). A obra abre novos horizontes ao instigar caminhos para estudos futuros e inovadores de gestão, do ponto de vista crítico, sobre identidade e diversidade, ampliando a discussão de temas como raça e etnia, gênero, sexualidade e neurodiversidade, por exemplo, incluindo também debates com relação à questão do poder e da subjetividade (Souza, 2014Souza, E. M. (2014, junho). Poder, diferença e subjetividade: a problematização do normal. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 113-160. Recuperado de https://doi.org/10.25113/farol.v1i1.2556
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), nos seus processos de territorialização. Dessa forma, auxilia os Estudos Organizacionais a avançar como campo de conhecimento.

Ademais, a discussão sobre as diferenças nos Estudos Organizacionais em relação a cidade pode também direcionar novos olhares sobre o processo de significação nos espaços marginais das cidades e, sobretudo, na sua relação com o centro por meio da problematização entre o público e o privado, o morro e o asfalto e a zona sul e a periferia. Amplia, desse modo, o escopo de abordagem que compõe a área dos Estudos Organizacionais, desenhando novas configurações urbanas ao repensar a relação do centro nas e/ou das margens (Das & Poole, 2004Das, V., & Poole, D. (2004). Anthropology in the margins of the state. Santa Fe, NM: School of American Research Press.).

Portanto, trata-se de uma obra que representa um esforço dos autores de problematizar questões que desfazem alguns dos mitos ligados aos grupos sociais que são e/ou estão nas margens das cidades, além de oferecer um mosaico de grande potencial para o avanço na área, ao mesmo tempo que revelam o desafio de produzir conhecimento, na medida em que descartam estereótipos.

REFERÊNCIAS

  • Agier, M. (2015, dezembro). Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro. Mana, 21, 483-498. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p483
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  • Agier, M. (2019). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome.
  • Amado, J. (1933). Cacau Rio de Janeiro, RJ: Ariel.
  • Amado, J. (1943). Terras do sem-fim São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Benjamin, W. (2013). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica São Paulo, SP: Contraponto.
  • Cooper, R. (1976). The open field. Human relations, 29(11), 999-1017. Recuperado de https://doi.org/10.1177/001872677602901101
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  • Das, V., & Poole, D. (2004). Anthropology in the margins of the state Santa Fe, NM: School of American Research Press.
  • Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição São Paulo, SP: Paz e Terra.
  • Foucault, M. (2012). História da loucura na idade clássica São Paulo, SP: Perspectiva.
  • Mac-Allister, M. (2004). A cidade no campo dos estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 11(spe.), 171-181. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9110012
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  • Saraiva, L. A. S . (2020). Diferenças e territorialidades na cidade Ituiutaba, MG: Barlavento.
  • Souza, E. M. (2014, junho). Poder, diferença e subjetividade: a problematização do normal. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 113-160. Recuperado de https://doi.org/10.25113/farol.v1i1.2556
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  • Weber, M. (1973). Metodologia das ciências sociais - parte 2 (2a ed.) São Paulo, SP: Cortez.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2020
  • Aceito
    15 Maio 2021
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