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Ethos do trabalho no Agreste das Confecções

Ethos del trabajo en el agreste de las confecciones

Resumo

O presente caso para ensino, adaptado do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, dirigido por Marcelo Gomes e lançado em julho de 2019 no Brasil, tem como objetivo principal discutir os diferentes ethos do trabalho na atividade de confecção no Agreste Pernambucano sob as narrativas de trabalhadores e trabalhadoras da cidade de Toritama. O caso também permite analisar as repercussões da ausência do Estado e da fragmentação das narrativas sobre o trabalho para trabalhadores e trabalhadoras da região. As narrativas são reunidas com base em Léo, personagem principal. O dilema do caso se refere à pergunta “o que leva as pessoas a trabalhar com jeans em Toritama?”, à qual Léo busca responder ao longo do documentário. O caso pode ser utilizado por docentes que atuam no curso de graduação em administração, nas disciplinas de sociologia e relações de trabalho.

Palavras-chave:
Ethos do trabalho; Narrativas; Agreste das Confecções; Toritama. Caso para ensino

Resumen

El presente caso de enseñanza, adaptado del documental “Me reservo para cuando llegue el carnaval”, dirigido por Marcelo Gomes y lanzado en julio de 2019 en Brasil, tiene como objetivo principal discutir los diferentes ethos laborales existentes en un centro de confecciones en la región del agreste de Pernambuco a partir de las narrativas de trabajadores de la ciudad de Toritama-PE. El caso también permite analizar las repercusiones de la ausencia del Estado y de la fragmentación de las narrativas sobre el trabajo para los trabajadores de la región. Las narrativas se recogen de Léo, protagonista principal del documental. El dilema del caso se refiere a la pregunta “¿qué hace que la gente trabaje con jeans en Toritama?”, a la que Léo busca responder a lo largo del documental. El caso puede ser utilizado por profesores que se desempeñen en la carrera de grado en Administración, en las disciplinas de Sociología y Relaciones Laborales.

Palabras clave:
Ethos del trabajo; Narrativas; Agreste de las confecciones; Toritama; Caso de enseñanza

Abstract

This teaching case, adapted from the documentary “I’m saving myself for when the carnival arrives,” directed by Marcelo Gomes and launched in July 2019 in Brazil, has the main objective of discussing the different ethos of work existing in the clothing industry in the region of Agreste Pernambucano from the narratives of male and female workers in the city of Toritama-PE. The teaching case also allows analyzing the repercussions of the absence of the government and the fragmentation of the narratives about work for men and women in the region. The narratives are gathered from Léo, the main character of the documentary. The dilemma of the case refers to the question “what makes people work with jeans in Toritama?”, which Léo seeks to answer throughout the documentary. The case can be used by professors who work in the undergraduate course in administration, in the disciplines of sociology and labor relations.

Keywords:
Ethos of work; Narratives; Clothing production; Agreste. Toritama; Teaching case

O “OURO AZUL” NO AGRESTE PERNAMBUCANO

O dia amanheceu, e Léo seguiria a rotina de trabalho de todas as manhãs. Enquanto se arrumava para a labuta, podia imaginar as atividades a realizar na chegada à lavanderia de beneficiamento. No dia anterior, com o acúmulo de peças cruas de roupas no apertado galpão no qual trabalhava, não era possível parar para pensar em tempo livre ou imaginar o período de folga com a chegada do Carnaval. Léo se orgulhava de morar e trabalhar em Toritama, uma pequena cidade, com população estimada de 46.164 habitantes, localizada na região agreste do estado de Pernambuco, que, com outras 9 principais, forma o Agreste das Confecções, voltado à fabricação e à comercialização de uma variedade de roupas. Em Toritama, o foco é o jeans, também chamado de ouro azul pela população local, em virtude da cor e do valor econômico que tem para a região. Toda a área é considerada uma terra de oportunidades para trabalhar e ganhar dinheiro.

Quando Léo se mudou para Toritama, demorou para compreender a dinâmica da confecção local. Como sempre foi bastante curioso, logo descobriu que, no passado, a atividade com confecções da região do agreste de Pernambuco ganhou contornos iniciais graças à produção da “sulanca”, peças de roupas produzidas, sobretudo por mães que não podiam comprar roupas para os filhos, com retalhos de tecidos - principalmente helanca - que vinham inicialmente do descarte de indústrias da capital do estado, Recife, e depois do Sul do país. Ele entendeu, portanto, que o Agreste das Confecções surgiu da busca por sobrevivência de famílias que, dados o contexto rural e a predominância de faixas secas, se viram diante da impossibilidade de manter o trabalho com agricultura. Essas famílias passaram a trabalhar com as confecções, feitas em ambiente doméstico-familiar e em caráter de subsistência, atraindo compradores pelos preços baixos, e por muito tempo se mantiveram sem apoio do Estado nos níveis federal, estadual e municipal.

Depois de um tempo, Léo entendeu a cadeia produtiva local e que, para produzir e comercializar o jeans, vários são os agentes e os espaços envolvidos, como as facções, que são unidades produtivas sem registro como firma, encarregadas de desenvolver uma ou mais etapas da produção do jeans; os fabricos, pequenas “fábricas” também à margem do aparato legal que assumem todas as fases do processo de confecção das roupas ou as externalizam para as facções; as feiras de rua e o centro comercial, onde boa parte da produção é vendida; e as lavanderias, onde Léo trabalha, espaço importante na etapa de acabamento das peças, mas muitas vezes um ambiente perigoso para o(a) trabalhador(a).

Na lavanderia, as roupas são beneficiadas em lavagens e enxágues sucessivos com produtos químicos, sob altas temperaturas, em máquinas industriais de lavar (entre 15 e 350 kg), com a finalidade de retirar a goma do tecido (desengomagem) e o excesso de produto químico (redução), tornar o jeans esbranquiçado (alvejamento), introduzir amaciantes (amaciado), entre outros. Nas lavanderias também são aplicados diversos efeitos nas peças, realizados manualmente com o auxílio de lixas, pinos, esmeril, esponjas e pistolas com produtos químicos.

“MEU NOME É TRABALHO”

A inserção de Léo no mundo do trabalho remonta aos 13 anos, como cortador de cana, quando ganhava cerca de 12 reais por semana. Desde então, ele trabalha de maneira informal, atendendo às demandas que surgem eventualmente, como cortar toco de árvore, cavar buraco, ajudar na construção de casas como servente de pedreiro etc. Em troca, nem sempre recebe dinheiro, mas amplia os vínculos sociais com moradores da região e abre novas possibilidades de auferir renda, como na situação do trabalho na construção de uma casa que lhe deu em troca a possibilidade de trabalhar, em melhores condições, numa lavanderia instalada depois naquele mesmo espaço.

Seu maior sonho é nunca deixar de trabalhar, pois o trabalho, para ele, é “a coisa mais importante da vida”. Esse é o significado que Léo atribui ao trabalho, sobretudo na lavanderia, espaço socioprodutivo no qual percebe que seu talento e sua criatividade se revelam nas inúmeras possibilidades de beneficiar o jeans para atender às demandas dos clientes.

Sua rotina de trabalho é frenética, e o manuseio com produtos químicos tóxicos acarreta alto risco para a saúde, uma vez que, apesar de os equipamentos de proteção individual (EPIs) serem obrigatórios, ele pouco os utiliza, sob o argumento de que é preciso “dar produtividade”. Léo diz que seu nome é “trabalho” e seu sobrenome é “hora extra”. Para ele, na dinâmica socioprodutiva da cidade de Toritama, não se pode perder tempo conversando ou brincando, pois, quanto mais se trabalha, mais se ganha na produção de jeans, o que avalia como positivo, haja vista que “a melhor profissão do mundo é não precisar trabalhar para ninguém”.

Assim como tantos(as) outros(as) trabalhadores e trabalhadoras de Toritama e do Agreste das Confecções, Léo deseja aproveitar o único período do ano de descanso, o Carnaval, no qual Toritama se transforma numa “cidade fantasma”, como dizem os moradores, já que todos viajam para as praias. Para conseguir viajar no Carnaval, as pessoas que não têm dinheiro vendem tudo o que podem: máquina, geladeira, televisão, moto etc. Na loja de Dior, amigo de Léo que realiza tais transações, o movimento aumenta substancialmente no período que antecede o Carnaval. Léo lembra que, certo dia, numa de suas conversas, Dior comentou que “bate certo desespero do povo quando vê todo mundo indo embora para sair da correria do dia a dia de Toritama”, o que faz com que as pessoas tentem, de todo jeito, arrecadar dinheiro para as viagens, mesmo que, ao voltar, precisem comprar novamente o maquinário vendido, pegando dinheiro emprestado.

Por não ter dinheiro ou bens disponíveis para vender e ir à praia, Léo decidiu aceitar o convite de um produtor de cinema para participar da produção de um documentário que mostrasse a realidade dos(as) trabalhadores(as) da cidade. Para isso, precisaria gravar algo que mais gostasse de fazer: conversar. Essas conversas se dariam com pessoas do seu convívio, e, ao fim de algumas semanas, ele apresentaria o material à produtora do documentário. A película gira em torno de uma questão central: “O que leva as pessoas a trabalhar com jeans em Toritama?”, que deveria ser também respondida por Léo nas conversas que gravaria.

Léo decidiu, portanto, aproveitar os dias de folga para conversar com pessoas ligadas à cadeia produtiva do jeans com quem tratava diretamente na lavanderia. Começou conversando com Maria, dona da facção responsável por costurar o jeans beneficiado na lavanderia. Com o celular, fez um pequeno vídeo conversando com ela e descobriu que, moradora de Toritama, Maria trabalhou numa grande fábrica durante 7 anos e, após a falência desta, comprou máquinas de costura para abrir o próprio negócio em sua casa. Desse modo, seguindo o caminho de vários de seus conhecidos na cidade, a mulher abriu uma facção de jeans, o que alguns chamam de “unidade de fundo de quintal”, o que lhe permitiu sair da condição de desempregada, após o desligamento do último trabalho, e se tornar empreendedora, como ela se autodefine. Maria explica que, ao ficar desempregada, não quis trabalhar para os outros novamente: “Não estudei e já estou com 50 anos. Nas fábricas, dão preferência a costureiras mais novas para poder treinar, colocar do jeito deles. Aqui, você sabe, com 10 anos as meninas já estão em cima de uma máquina de costura.”

Seu maior sonho, disse ela para Léo, é ver seu negócio crescer e “deixar sua marca”. Para isso, diz ser muito importante que as pessoas que trabalham na região se vejam como empreendedoras, como aprendeu na última palestra a que assistiu sobre como alavancar os negócios.

Quando perguntou sobre a rotina de Maria, Léo descobriu que o trabalho dela, incluindo atividades domésticas, se inicia às 5 horas da manhã e se encerra entre 9 e 10 da noite, o que ela considera uma boa rotina quando há demanda, pois, “quanto mais se trabalha, mais se ganha”, diz, pegando as calças jeans costuradas em grandes pilhas no chão da facção, dobrando uma por uma e colocando-as em novas pilhas, em cima de uma mesa improvisada no canto da parede, com a ajuda do genro.

Ao observar o trabalho feito na facção de Maria, Léo percebeu que os movimentos são repetitivos e monótonos, dependem de maquinário manuseado, muitas vezes sem nenhuma proteção, como no caso do corte dos blocos com várias camadas de jeans - o acabamento é feito com estiletes e outros equipamentos afiados. Também notou que a maioria das pessoas que trabalha nas facções recebe por peça produzida. Logo, é fácil entender por que a pressa na produção. “Não há tempo a perder!”, diziam os trabalhadores na facção de Maria. Tanto que a refeição, com frequência, é feita em frente à máquina e o cochilo pós-almoço é tirado em meio às montanhas de tecido e de peças de roupa em produção. Léo se deu conta de que sua rotina na lavanderia não era tão diferente da daquelas pessoas na facção de Maria. As condições de trabalho eram as mesmas, e a percepção dos trabalhadores sobre essa realidade parecia estar pautada numa ética do trabalho, de certa maneira, compartilhada por todos(as).

Outra facção que Léo visitou para realizar conversas com os(as) trabalhadores(as) foi a organizada por Lourdes, na qual são colocadas “bocas de bolso” nas peças previamente costuradas na facção de Maria. Costureira desde a juventude, Lourdes contou o que a fazia se identificar com o trabalho numa facção de jeans em Toritama. Ela realçou a possibilidade de fazer o próprio horário de trabalho, em vez de bater ponto, caso fosse “fichada”, ou seja, tivesse a carteira de trabalho assinada. Ela associa o não cumprimento de horário a ter liberdade no trabalho. Seu maior sonho, contou, é ter uma casa própria e confortável para a família e poder viajar. Em suas palavras: “Quero luxar um pouco.”

Lourdes explicou que cada peça produzida tem um valor específico. Cada “boca de bolso” costurado, por exemplo, equivale a 10 centavos, cada braguilha de zíper equivale a 20 centavos etc. “A vida da gente não é ruim [...] não é todo mundo que tem o privilégio de ter saúde, trabalhar, ganhar seu dinheiro, ter sua feira dentro de casa”, diz, comparando sua situação a realidades de guerra e extrema pobreza em outros países.

Durante a conversa, que aconteceu num cômodo próximo à cozinha, na casa pequena de Lourdes, Léo percebeu que ela não parava de costurar as braguilhas enquanto conversava com ele e que seu esposo e um de seus filhos pequenos faziam a refeição que ela preparara antes de “pegar na máquina”. O filho mais novo, de aproximadamente 3 anos, brincava com uma das máquinas até a mãe mandá-lo se distrair em outro lugar. Após a conversa, Léo ficou pensativo sobre o tempo corrido de Lourdes, que, além de trabalhar costurando, ainda precisava cuidar dos filhos. Ele começou a perceber, por onde passava, que era comum ver crianças pequenas nesses espaços de produção, uma vez que muitas costureiras das facções são mães e acumulam atividades domésticas e de cuidado junto à produção do jeans. Ele nunca parara para pensar nisso antes da conversa com Lourdes.

As outras pessoas com quem conversou foram Rosilda e Manoel, que moram na zona rural de Toritama, num pequeno sítio. Lá, a criação de galinhas foi substituída pelas máquinas de costura e o galinheiro é usado como depósito de tecidos, assim como acontece em vários sítios vizinhos, que antes eram mantidos pelas atividades voltadas à agricultura e à criação de animais. Rosilda, Manoel e alguns filhos fazem o acabamento das peças, ou seja, tiram as linhas das peças e empacotam assim que saem das lavanderias. Léo percebeu que, nesses locais, o discurso dos trabalhadores e das trabalhadoras não é muito diferente daquele que se escuta na cidade: eles dizem que trabalhar com jeans em Toritama os permite ganhar mais trabalhando “para si” do que para terceiros, com carteira assinada, no regime CLT. Nesse contexto rural, chama a atenção o relato de Manoel, de 55 anos, que destoa dos demais. Ele disse que, trabalhando “clandestino”, não há proteção social e que contribui para a previdência, pois está próximo de se aposentar como agricultor, mas entende que os mais jovens têm certa urgência em “fazer dinheiro”.

“NÃO É SÓ IR ATRÁS DO DINHEIRO E O ‘CABRA’ SE ACABAR... O DINHEIRO NÃO VAI LEVAR NINGUÉM A CANTO NENHUM”

Pensativo sobre tudo o que viu, ouviu, e impactado com as narrativas de Rosilda e Manoel, indo ao encontro de outra pessoa que pudesse ajudá-lo a entender o trabalho desenvolvido em Toritama, Léo viu Canário passando e se deu conta de que, apesar de as atividades produtivas ligadas à agricultura e à criação de animais terem sido majoritariamente substituídas pela produção do jeans na cidade, há pessoas que não desejam ingressar no mundo das confecções. Canário cuida de bodes, que caminham pela cidade em momentos específicos, em busca de pastagem para a alimentação.

Os animais passando pelas ruas, a ave-maria na rádio às 6 da tarde, as ruas sem infraestrutura básica, as casas pequenas e simples transformadas em facções, as pessoas sentadas nas calçadas tirando linhas excedentes das peças de jeans (os chamados “pelos”), as motos passando nas ruas carregando pilhas de jeans, o calor constante, a paisagem seca e o barulho das máquinas de costura fizeram Léo pensar quão complexo é o cenário híbrido e contraditório de Toritama e de tantas outras cidades do Agreste das Confecções.

Pensando nessas questões, foi à feira conversar com alguns conhecidos que vendem as peças produzidas nas facções e nos fabricos locais a um preço muito baixo, se comparado com o praticado em shoppings ou outros centros comerciais. A feira, que acontece aos domingos, às margens da BR104, sempre foi um dos lugares favoritos de Léo, onde ele tem a oportunidade de conferir as peças produzidas na região, encontrar amigos e amigas e conhecer pessoas de lugares distantes.

Lá, são vistos carrinhos de mão lotados de mercadoria passando pelos corredores estreitos da feira, bancos e lojas sendo abastecidos, manequins sendo vestidos com as peças recém-trazidas, vendedores chamando os fregueses para conferir a mercadoria - shorts, calças, saias, macacões feitos de jeans, de diferentes tipos, tamanhos e preços -, compradores de todo o Brasil, a rádio local divulgando as marcas… Essa é a dinâmica da feira de Toritama, que acontece no Parque das Feiras. Apesar do barulho e do aperto, muitas pessoas gostam de trabalhar ali, como João, amigo de Léo e vendedor há muitos anos.

Ao encontrar Léo, João logo se animou em responder às perguntas do amigo. Ao longo da conversa, João disse: “Eu me empolgo com o poder da nossa região de produzir tanto produto de qualidade e de receber tantos compradores! [...] O que faço aqui é por prazer e alegria, e me torno amigo dos fregueses, que sempre voltam aqui.” Ao perguntar sobre como João se via, Léo obteve a seguinte resposta: “Antes, a gente, que trabalhava vendendo roupa na feira, era chamado de sulanqueiro, né? Mas hoje me vejo como empresário, com meu próprio negócio, que é pequeno, mas que me traz muita alegria.”

Ao caminhar pela feira, Léo encontrou Lourdes novamente, que, além de costurar as peças na sua facção, também tem um banco na feira. Ela contou a Léo que chega à feira no domingo pela manhã e fica até 6 horas do outro dia vendendo as peças, apesar de conhecer pessoas que ficam até às 14 horas da segunda-feira. Também comentou que, na madrugada do domingo para a segunda-feira, é comum ver os vendedores cochilando nos bancos da feira, dada a intensa carga horária de trabalho nesse espaço. Ao fim da feira, segundo ela, veem-se animais de carga, como burros, conduzidos por seus proprietários, carregando as estruturas improvisadas de madeira que constituem os bancos.

Revisitando as gravações das conversas, Léo se deu conta da diversidade de experiências e de diferentes visões sobre o trabalho com o jeans em Toritama, apesar de perceber algumas vivências em comum, como o grau de insalubridade e periculosidade do trabalho, a ausência de garantias sociais, a situação dos mais idosos, o trabalho intenso das mães costureiras etc. Ao fim das conversas e das reflexões que lhe foram proporcionadas, ele se viu questionando a própria narrativa sobre o trabalho: “Será que trabalho para mim mesmo?” No dia marcado para a entrevista com a produtora do documentário, viu-se aflito por não ter uma resposta à pergunta que lhe fora colocada antes: “O que leva as pessoas a trabalharem com jeans em Toritama?” De repente, sentiu que brincar o Carnaval não era mais seu principal problema.

Com base nas indagações de Léo, é possível refletir sobre os diferentes ethos do trabalho observados sob narrativas dos trabalhadores e das trabalhadoras no Agreste das Confecções e sobre as repercussões da fragmentação de narrativas acerca do trabalho para trabalhadores e trabalhadoras naquele contexto. Ainda é possível refletir a respeito das repercussões da ausência institucional do Estado para os trabalhadores e das possibilidades para esses trabalhadores diante das condições de trabalho lá postas. O caso, por fim, nos leva a refletir acerca do que leva as pessoas a trabalharem com jeans em Toritama.

NOTAS DE ENSINO

Objetivo do caso

Discutir os diferentes ethos do trabalho na atividade de confecção no Agreste Pernambucano com base nas narrativas de trabalhadores e trabalhadoras da cidade de Toritama, reunidas por Léo, para a elaboração de documentário. Como desdobramentos, o presente caso para ensino permite também analisar as repercussões da ausência do Estado e da fragmentação das narrativas a respeito do trabalho para trabalhadores e trabalhadoras da região.

Desse modo, entende-se que o caso é de cunho interdisciplinar ao trazer à tona o debate sobre o mundo do trabalho, contextualizando os marcos institucionais de regulação da atividade de confecção no Agreste Pernambucano e as repercussões da ação estatal (e/ou ausência desta) e da fragmentação das narrativas sobre o trabalho na construção de subjetividades e identidades de trabalhadores e trabalhadoras, historicamente atravessados pelo trabalho precário e informal na região. O caso pode ser usado por docentes que atuam no curso de graduação em administração, nas disciplinas de sociologia e relações de trabalho.

Fonte dos dados

Os dados para a elaboração do caso foram extraídos e adaptados do documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, dirigido por Marcelo Gomes e lançado em julho de 2019 no país. Consideramos que a prática pedagógica pode se basear em conteúdo fílmico ao mobilizarmos o cinema como uma nova linguagem mediadora da aprendizagem (Napolitano, 2003Napolitano, M. (2003). Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo, SP: Contexto.). Assim, os relatos das histórias reais encarnadas nos personagens trazem para o debate em sala de aula determinada problemática, protagonizada por atores e personagens que, naquele momento, representam grupos sociais periféricos, muitas vezes invisibilizados e silenciados nos textos acadêmicos.

Em paralelo, realizou-se consulta à bibliografia especializada para fins de contextualizar a origem, o desenvolvimento e a modernização da atividade de confecção no agreste pernambucano, dando subsídio às narrativas de trabalhadores e trabalhadoras sobre os ethos do trabalho nesse segmento.

Aspectos pedagógicos

De início, no 1º encontro programado para a atividade do caso para ensino, sugere-se organizar a aula em 3 momentos. Em primeiro lugar, projetar rapidamente trechos do documentário para apresentar Léo, personagem central, e introduzir a turma no contexto da confecção agrestina. Na sequência, sugere-se recuperar o dilema trazido por Léo e fazer uma leitura coletiva do caso com a participação de todos(as). De posse do dilema, solicitar aos estudantes que se reúnam em subgrupos e reflitam sobre o dilema trazido por Léo com base nas narrativas de trabalhadores e trabalhadoras.

Na segunda parte da aula, fazer uma rodada rápida de compartilhamento das impressões iniciais sobre o dilema. No terceiro e último momento, as questões a serem respondidas são anunciadas à turma e é informada a centralidade do debate sobre o ethos do trabalho para analisar o caso. Pode-se pedir aos estudantes que levem o caso para casa, a fim de realizar leitura individual aprofundada, pesquisas adicionais na internet sobre a região e a dinâmica socioprodutiva nela existente, bem como proceder à leitura de textos acadêmicos acerca do ethos do trabalho, de modo a responderem individualmente às questões propostas.

No 2º encontro, o professor ou a professora pode iniciar apresentando o conteúdo teórico, em diálogo com os estudantes, com base nas leituras realizadas. Outro ponto importante nessa construção coletiva é destacar alguns conceitos básicos, que ajudem a analisar o caso, como as noções de modernidade, rareamento institucional, fragmentação da metanarrativa pública sobre o trabalho e os diferentes ethos do trabalho etc. O docente também pode selecionar outros trechos do documentário, como as falas de Léo, que são ricas em elementos para discussão.

Após essa introdução, é possível dar início à discussão das questões e fazer uma consequente análise do caso. Para isso, vislumbramos 2 possibilidades. Na primeira, o professor ou a professora pode retomar o formato dos pequenos grupos, solicitar que eles discutam entre si as respostas individuais que elaboraram, aprofundando as reflexões feitas no 1º encontro e desenvolvendo respostas do grupo às questões.

Após o término dessa construção coletiva, o professor ou a professora pode desfazer os pequenos grupos e formar um círculo com os estudantes, a fim de que cada grupo exponha as respostas que desenvolveu. Essa possibilidade é interessante para que os estudantes discutam entre si as respostas individuais às questões de modo mais descontraído nos subgrupos. Também é mais interessante para aulas que tenham maior tempo de duração.

Para aulas mais curtas, sugere-se discutir o caso, solicitando diretamente que os estudantes apresentem as respostas construídas em casa para toda a turma, considerando a reflexão inicial feita nos subgrupos com outros colegas. Nesse caso, é importante que o professor ou a professora assuma papel de mediador, levantando outras questões baseadas nas respostas expostas, apontando caminhos e resgatando o foco do debate sempre que necessário. Para isso, sugerem-se recursos didáticos como lousa, quadro, construção de mapa mental etc.

Os estudantes podem ser avaliados pelas respostas individuais às questões, pela participação na reflexão e pela construção de respostas coletivas nos subgrupos e/ou na discussão em sala.

Questões

  1. Quais são os diferentes ethos do trabalho observados com base nas narrativas de trabalhadores e trabalhadoras reunidos por Léo?

  2. Quais são as repercussões da ausência institucional do Estado para trabalhadores e trabalhadoras de Toritama?

  3. Quais são as repercussões da fragmentação de narrativas sobre o trabalho para trabalhadores e trabalhadoras de Toritama?

  4. Quais são as possibilidades para esses trabalhadores e trabalhadoras diante das condições de trabalho postas?

  5. Caso você estivesse no lugar de Léo, como responderia à questão “o que leva as pessoas a trabalharem com jeans em Toritama”?

GUIA TEÓRICO PARA ANÁLISE

O Agreste das Confecções e a cidade de Toritama

Agreste das Confecções é como ficou conhecido um dos maiores polos de confecções do Brasil, localizado no agreste setentrional do estado de Pernambuco (Souza, 2012Souza, V. S. (2012). Trabalho e proteção social na experiência do Polo de Confecção de Pernambuco: os fios dessa relação (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.). Refere-se a um aglomerado de atividades produtivas, comerciais e de serviços, especializado na confecção de roupas, que envolve diferentes agentes, lugares, espaços e dinâmicas. Apesar de sua expansão ao longo dos anos, 10 municípios se destacam como os mais importantes na atividade, sendo que Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe se mantêm como os principais, por serem responsáveis por 77% do PIB produzido por todo o polo e concentrarem 66% do conjunto da população (Sebrae, 2013Sebrae. (2013). Estudo econômico do arranjo produtivo local de confecções do agreste Pernambucano 2012: relatório final. Recife, PE: Sebrae.).

No passado, esse polo ganhou contornos iniciais graças à produção da “sulanca”, peças de roupas confeccionadas, sobretudo por mães que não podiam comprar roupas para os filhos, com retalhos de tecidos (principalmente helanca) que vinham inicialmente do descarte de indústrias da capital do estado, Recife, e depois do Sul do país. Dados o contexto rural e a predominância de faixas secas na região, a agricultura logo perdeu lugar para essas confecções, feitas em ambiente doméstico-familiar e em caráter de subsistência, atraindo compradores pelos preços baixos (Burnett, 2014Burnett, A. (2014). O “ponto de mutação” da Sulanca no Agreste de Pernambuco. História Oral, 17(2), 153-171.).

O principal local de comércio dessas produções eram as feiras da sulanca, que, nos anos 1960, já tomavam as ruas de Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe. Em Toritama, contudo, havia, desde 1930, uma forte produção de calçados em couro, que, em 1970, passou a ser substituído por materiais sintéticos. Dada a emergência de desenvolver alguma atividade de confecções que integrasse Toritama às cidades vizinhas, o maquinário usado para a produção de calçados foi adaptado a confecções de jeans. Assim, a feira da sulanca de Toritama só tomou corpo em meados de 1980, após algumas tentativas frustradas, e alguns toritamenses seguiram vendendo suas produções nas feiras das vizinhas Caruaru e Santa Cruz (Oliveira & Braga, 2014Oliveira, R. V., & Braga, B. M. (2014). Território comercial de Toritama: persistência e metamorfoses da informalidade. Política e Trabalho, 2(41), 193-225.).

Nos anos 2000, aconteceram movimentos no sentido de modernizar o território da sulanca, mobilizados por diferentes agentes, como Sindicato das Indústrias do Vestuário (Sindivest), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Estado. Reelaborações discursivas foram feitas para nomear esse território, no sentido de ser chamado de Polo de Confecções do Agreste, transformando a “sulanca” em “moda”, o “sulanqueiro” em “empresário” (Oliveira, 2013Oliveira, R. V. (2013). O Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco: elementos para uma visão panorâmica. In R. V. Oliveira, & M. A. Santana (Orgs.), Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa, PB: Editora UFPB.).

Junto a esses movimentos de modernização, surgiram os centros comerciais, sendo o primeiro deles inaugurado em Toritama - o Parque das Feiras -, em função de articulações entre empresas privadas da região e o Estado. Logo em seguida, foram inaugurados também o Polo Comercial de Caruaru e o Moda Center Santa Cruz.

Nesses centros comerciais, existem os boxes - alugados pelos feirantes para comercializar seus produtos - e as lojas - mais formalizadas que os boxes -, algumas maiores que outras. Apesar desses espaços, as feiras da sulanca persistem. No caso de Toritama, ela está localizada, atualmente, no Parque das Feiras, o que aumentou a fiscalização pública, ainda que não tenha sido alterada, de modo significativo, a dinâmica familiar e informal. Constituem essa feira, basicamente, 3 perfis de sulanqueiros: os que atuam nos bancos, os que vendem a mercadoria em lonas (no chão) e os vendedores ambulantes (Oliveira & Braga, 2014Oliveira, R. V., & Braga, B. M. (2014). Território comercial de Toritama: persistência e metamorfoses da informalidade. Política e Trabalho, 2(41), 193-225.).

Além das feiras e dos centros comerciais, outros espaços se fazem importantes nessa dinâmica de confecções: os fabricos e as facções, onde as roupas são produzidas para, depois, serem comercializadas. Os fabricos são fábricas sem registro como empresa ou espaços de produção, muitas vezes dentro das residências, cujos proprietários assumem os riscos do negócio ao se responsabilizar pela compra dos insumos e pela venda das peças acabadas. As facções são um tipo de unidade produtiva, também localizada nas residências, que prestam serviços especializados numa etapa ou tarefa da confecção de determinada peça de roupa, conectando-se ao fabrico e às fábricas de modo subcontratado, “terceirizado informalmente” (Pereira & Oliveira, 2013Pereira, E., & Oliveira, R. V. (2013). Modos de atuação do Senai no Polo de Confecções de Pernambuco: mudanças recentes e implicações recíprocas. InR. V. Oliveira , & M. A. Santana (Orgs.), Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa, PB: Editora UFPB.).

No que concerne à produção da roupa em jeans, outra unidade foi introduzida na cadeia de confecção, as lavanderias, que são prestadoras de serviços para as fábricas, os fabricos e as facções na fase de acabamento das peças. Nesse espaço socioprodutivo, as roupas são beneficiadas em lavagens sucessivas e enxágues com produtos químicos, sob altas temperaturas, em máquinas industriais de lavar (entre 15 e 350 kg), submetidas a operações básicas com a finalidade de retirar a goma do tecido (desengomagem) e o excesso de produto químico (redução), tornando o jeans esbranquiçado (alvejamento) e introduzindo amaciantes (amaciamento), entre outros. Nas lavanderias, também são aplicados diversos efeitos diferenciados, realizados manualmente com o auxílio de lixas, pinos, esmeril, esponjas/pistolas com produtos químicos: os denominados lixados, amassados, puídos, bigodes, respectivamente, além de outros, que têm o objetivo de desgastar as peças. Na região agreste, algumas lavanderias, as mais estruturadas, vêm adquirindo máquina a laser para aplicação do efeito bigode, pois, dos citados acima, é o que mais expõe os trabalhadores à inalação de substâncias químicas tóxicas (Pereira, 2018Pereira, A. M. B. A. (2018). Dinâmica formal-informal em lavanderias de jeans e suas implicações nas relações de trabalho (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.).

Particularmente na fabricação das peças jeans, Toritama responde por 15% da produção nacional, estando posicionada como segundo maior produtor, após o Polo de Confecções do Brás-Bom Retiro, em São Paulo (Sebrae, 2013). No entanto, a atividade se mantém, ainda no presente, tendo como lastro o trabalho informal, de base familiar, desprotegido.

Ethos do trabalho

O mundo contemporâneo, no qual se inserem trabalhadores e trabalhadoras, é marcado por forte insegurança na relação entre trabalho e identidade. Dito em outros termos, o contexto atual não se caracteriza mais pelas certezas modernas, e sim por instabilidade, flexibilidade e fluidez, que alcançam todas as esferas da vida humana, inclusive a do trabalho. Nesse contexto, as instituições modernas perdem a força que outrora tinham e as metanarrativas que guiavam a construção da identidade dos indivíduos. O Estado é um exemplo de instituição que entra em crise na contemporânea era pós-moderna. E o trabalho, importante metanarrativa pública sustentada por forte base institucional na modernidade, também entra em declínio, deixando de ter papel central na construção da identidade do indivíduo. Esse é o contexto de “rareamento institucional”, do qual fala Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras..

O contexto observado na cidade de Toritama e relatado na narrativa do caso é marcado pelo rareamento institucional mencionado por Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras., uma vez que o Estado, importante instituição moderna, teve pouca participação na constituição inicial dessa experiência socioprodutiva. Como mencionado na descrição do caso para ensino, o Agreste das Confecções se formou da necessidade das pessoas que ali viviam de encontrar meios de subsistência, visto que o investimento estatal naquela região sempre foi diminuto. Desse modo, encontraram alternativas usando os restos da produção têxtil de grandes centros, como São Paulo e Recife, desenvolvendo, assim, uma forma particular de produção, com problemas próprios de uma atividade produtiva sem condições adequadas de trabalho.

Cabe destacar aqui que, em contextos periféricos, como o Brasil, a modernidade parece assumir um caráter seletivo (Souza, 2000Souza, J. (2000). A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, DF: Editora UnB.), mantendo estruturas sociais nas quais alguns são privilegiados em detrimento de outros. Logo, instituições modernas como o Estado, por meio de sua ausência deliberada ou ações pontuais, podem construir e/ou manter o status quo, fazendo com que áreas historicamente desfavorecidas, como é o caso de Toritama e da região do agreste pernambucano, se mantenham numa posição de subalternização.

Desse modo, pode-se inferir que o rareamento institucional, em particular do Estado na região, fez se instituir uma situação de forte precariedade do trabalho, tendo a informalidade como principal alicerce. No conjunto das unidades produtivas, a informalidade é persistente e se expressa em múltiplas dimensões, conforme modelo de Pereira (2018Pereira, A. M. B. A. (2018). Dinâmica formal-informal em lavanderias de jeans e suas implicações nas relações de trabalho (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.), tanto na ausência de registro do negócio como firma - em fabricos, facções e lavanderias clandestinas - quanto nos modos de gestão, mas principalmente nas relações de trabalho fora do aparato legal, pautadas em laços de familiaridade, proximidade e confiança.

Esses vínculos sociais, historicamente constituídos na região retratada no documentário, escamoteiam as relações de exploração, e os trabalhadores ficam submetidos a condições laborais degradantes e atravessados por jornadas extrapoladas, ritmo intenso, movimentos repetitivos, ambientes inadequados à execução das atividades, o que configura exposição continuada aos riscos à saúde e à segurança no trabalho, situação agravada nos dias que antecedem as feiras de confecções locais, pois é preciso aumentar a produtividade (Pereira, 2018Pereira, A. M. B. A. (2018). Dinâmica formal-informal em lavanderias de jeans e suas implicações nas relações de trabalho (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.).

Percebe-se, portanto, que o rareamento institucional marca a experiência com o trabalho na contemporaneidade (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.) e se expressa, de modo particular, no contexto do Agreste das Confecções, por meio da ausência do Estado, levando à forte informalidade. De modo a problematizar o fenômeno do rareamento institucional, Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras. faz um importante resgate histórico sobre os vários ethos do trabalho ao longo da história, mostrando como este passou a ser visto como uma atividade central com base na economia clássica, na ética protestante, nas doutrinas patronais, na visão do trabalho como exteriorização do sujeito disseminadas em Marx e Engels e na visão de Émile Durkheim sobre o valor moral da divisão do trabalho.

É na segunda metade do século XX, para o autor, que o trabalho, que se tornara uma questão central do ponto de vista econômico, moral, ideológico, filosófico e contratual, passa por uma desmontagem em todos esses aspectos. Assim, há uma crise do trabalho como fonte de valor; uma transformação da ética protestante e tradicional do trabalho, que passa a se ancorar em valores instrumentais e no consumo; crise do sujeito do trabalho e perda de sentido, discussão fortemente marcada pelo interacionismo simbólico; e uma desinstitucionalização do trabalho, causando a individualização.

Antunes, tendo como base a tradição marxista, realiza forte crítica ao capital e seu caráter destrutivo, denunciando o aumento da exploração do trabalhador, com intensificação do tempo e do ritmo do trabalho. Para ele, os trabalhadores na contemporaneidade são desprovidos de direitos e de sentido por um sistema que não só degrada a natureza, como também precariza “a força humana que trabalha, desempregando ou subempregando-a”. Desse modo, observadas todas as metamorfoses pelas quais o mundo do trabalho tem passado, percebe-se uma significativa “heterogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho” na atualidade (Antunes, 2009Antunes, R. (2009). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo.).

Entre os aspectos que compõem essa heterogeneização e complexificação do mundo do trabalho na atualidade, podem-se destacar a terceirização e a subproletarização, presentes em formas de trabalho precário, parcial, informal etc., que tem atingido de modo expressivo a população feminina (Antunes, 2009Antunes, R. (2009). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo.). No presente debate, a noção de informalidade ganha destaque por estar fortemente presente no contexto do Agreste das Confecções e é compreendida como noção multidimensional, com base em Pereira (2018Pereira, A. M. B. A. (2018). Dinâmica formal-informal em lavanderias de jeans e suas implicações nas relações de trabalho (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.), ao articular simultaneamente as dimensões jurídico-institucional - referentes ao vínculo de trabalho e registro do negócio - e socioeconômica - que dizem respeito à relação de assalariamento, organização da produção e gestão do trabalho - às dimensões sociocultural - relativa aos vínculos sociais entre os sujeitos - e contextual - relações históricas e atuais entre fatores locais e globais-nacionais-regionais.

Numa dimensão mais subjetiva, pode-se dizer que essa fragmentação do trabalho se apresenta fortemente no fenômeno da individualização. Sobre esse fenômeno, num contexto de rareamento institucional, parece ser cada vez mais exigido dos indivíduos uma ação, mas não mais tão bem ancorada nas instituições com suas referências e seus modelos, como outrora. A experiência com o trabalho é privatizada, cabendo ao indivíduo definir sua carreira, que reflete seu estilo, suas preferências, e lhe garante ou não certo status. É valorizado o indivíduo móvel, autônomo, independente, capaz de encontrar suas referências por si mesmo e de realizar-se por meio de sua ação pessoal, o que envolve riscos e incertezas cada vez maiores.

Assim, as palavras de ordem na construção do sentido do trabalho e da própria identidade parecem ser “risco” e “incerteza”. É o que Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.demonstra ao destacar que, a partir da metade do século XX, a então metanarrativa pública do trabalho - grande sistema discursivo que explicava as particularidades das experiências com trabalho, absorvendo-as em tramas partilhadas coletivamente - foi diluída em narrativas menores, com base institucional frágil.

É, portanto, essa pluralidade de experiências com o trabalho, expressadas por narrativas diferentes, que Léo percebe ao realizar as conversas para a elaboração do documentário. Desse modo, diferentes respostas à pergunta “o que levam as pessoas a trabalharem com o jeans em Toritama?” são possíveis, podendo estar ligadas aos sonhos dos personagens apresentados, como a ascensão do negócio, relatada por Maria, ou à compra da casa própria e a ter certo conforto para a família, como dito por Lourdes. A resposta à pergunta que é mote do documentário também pode dizer respeito à necessidade de superar a condição de desemprego se tornando “empresária”, como exposto por Maria, bem como à oportunidade de lidar com pessoas diferentes, como apontado por João.

A possibilidade de maior flexibilidade, como destacado na narrativa apresentada por Lourdes, de modo a aliar os trabalhos com confecção e o doméstico, chamou a atenção de Léo para a situação das trabalhadoras, que, em sua maioria, exercem dupla jornada, pois são responsáveis pelas atividades relativas ao cuidado. Tal realidade vivenciada pelas mulheres é algo evidenciado pela literatura, que aponta a permanência das mulheres na execução do trabalho reprodutivo, reforçando a distinção entre “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”, gerando situação de sobrecarga para as trabalhadoras (Bezerra, 2018Bezerra, E. M. (2018). “Trabalho de mulher, trabalho de homem” no Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.; Bezerra, Corteletti, & Araújo, 202Bezerra, E. M., Corteletti, R. F., & Araújo, I. M. (2020). Relações de trabalho e desigualdades de gênero na indústria têxtil e de confecções do Nordeste. Caderno CRH, Dossiê, 33, 1-20.0; Heleno, 2013Heleno, E. A. (2013). Configurações do trabalho a domicílio nas confecções de roupas de jeans no município de Toritama-PE (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.).

Percebe-se, portanto, que essas diferentes narrativas apresentadas a Léo são construídas coletivamente, evidenciando sonhos, necessidades e realidades plurais num mesmo complexo produtivo. Apesar dessa pluralidade discursiva, baseado nas conversas para o documentário, Léo percebeu que quase todos(as) os(as) entrevistados(as) compartilham da mesma realidade de número elevado de horas trabalhadas, baixos salários, alto grau de risco e ausência de garantias sociais. Essas percepções sobre o trabalho desenvolvido em Toritama vão ao encontro do que diz a literatura sobre as condições do trabalho desenvolvido no Agreste das Confecções, como apontam os estudos de Santos (2017Santos, T. H. L. (2017). A judicialização das condições e relações de trabalho no APL de confecções do agreste de Pernambuco (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.), Souza (2012Souza, A. M. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: a vida social das relações econômicas - parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das Confecções (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.), Pereira (2018Pereira, A. M. B. A. (2018). Dinâmica formal-informal em lavanderias de jeans e suas implicações nas relações de trabalho (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.), por exemplo.

As diferentes narrativas sobre o trabalho percebidas por Léo em Toritama, construídas pelos indivíduos ao longo dos anos e que expressam suas subjetividades, se alinham ao que Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras. chama de ethos, que tem por objetivo fornecer um meio para o indivíduo construir e organizar o significado de sua existência e lidar com seus relacionamentos sociais (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.).

Quais, porém, seriam essas narrativas diluídas sobre o trabalho? Bendassolli as descreve como: moral-disciplinar, romântico-expressivo, instrumental, consumista e gerencialista. No primeiro ethos, o trabalho é entendido como dever, um papel social e público a ser cumprido, separado do prazer, e tipicamente masculino. Nele, são realçados “o caráter reprodutivo e o sentido social do trabalho” (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.), visto com rigidez, em que normas, horários e produção deveriam ser obedecidos e cumpridos fielmente.

No segundo, o trabalho é visto como criação, dando ênfase à perícia e ao talento do indivíduo que cria, possibilitando a articulação entre trabalho e prazer. Esse ethos “realça a natureza expressiva do trabalho, seu potencial de concretizar a verdadeira essência humana por meio do domínio sobre a obra. Aqui, a ênfase é na dimensão ‘pericial’ do trabalho, isto é, em algo que alguém domina ou executa com maestria” (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.).

No terceiro, não são enfatizadas as características subjetivas do trabalho, o qual é entendido como recurso de troca, “submetido à lógica capitalista de eficiência e produtividade”. Bendassolli, aqui, “enfatiza a dimensão liberal do trabalho, quer dizer, sua característica de emprego; pode-se dizer que esse ethos é resultado da matriz de pensamento econômico na qual trabalho é uma troca, submetido à lógica capitalista de eficiência e produtividade” (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.). Ainda sobre esse ethos instrumental, destacam-se 3 dimensões do trabalho: a meritocracia individual, a busca pela renda e a procura por status social.

No quarto, o sentido do trabalho está diretamente ligado à satisfação que ele é capaz de proporcionar ao trabalhador ou à trabalhadora, em termos de visibilidade, status ou prestígio. O trabalho é apenas um meio para obtenção do prazer e da satisfação que ele traz. Segundo Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras., nesse ethos, “acredita-se que, quanto maior a satisfação, maior a chance de o profissional alcançar altos níveis de desempenho e produtividade”.

Por fim, o ethos gerencialista tem como base, o culto da excelência e da performance, além das culturas de negócios, do management e do empreendedorismo. Ele está centrado em características individuais do profissional, indicando que deve “constituir uma empresa de si mesmo, sem dependência de instituições, apenas confiante em seu próprio capital social, humano ou intelectual” (Bendassolli, 2007). O trabalho aqui passa a ser privatizado e se confunde com a própria expressão de cada um, com a própria identidade. Cabe ao indivíduo, assim, se ver como um empreendedor de si mesmo, obter alta performance, maximizar seu prazer. “O conceito de emprego é substituído pelo de projeto. Trabalhar é, portanto, ter um projeto pessoal no qual o profissional reflita seus gostos, necessidades, desejos, competências e potenciais” (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.).

Com isso, podem-se perceber, no caso apresentado, diferentes narrativas para o trabalho desenvolvido no contexto produtivo da cidade de Toritama e recuperadas durante as conversas. O ethos moral-disciplinar, por exemplo, pode ser observado sobretudo na fala inicial de Léo, que vê o trabalho como uma obrigação e deve ser realizado sem distrações, separado do prazer. Para ele, seu nome é trabalho e seu sobrenome é hora extra, deixando clara a importância que dá a essa atividade.

Algo similar ao ethos romântico-expressivo pode ser visto na fala de João, vendedor da loja na feira, que diz, demonstrando empolgação, fazer seu trabalho com alegria e prazer. Desse modo, ele ressalta um caráter subjetivo dado ao trabalho, de forma que quem o executa o faz com certa mestria, demonstrando sua natureza expressiva.

O ethos instrumental, no qual o trabalho é entendido como recurso de troca, se encontra no posicionamento de Lourdes e de Maria quando enfatizam que trabalham muito para ganhar mais, uma vez que o ganho é por produção. Destaca-se a importância da eficiência e da produtividade para garantir ganhos essencialmente econômicos possibilitados por meio do trabalho.

Na fala de Lourdes, destaca-se também o ethos consumista, associado ao significado de “luxar” quando projeta as viagens futuras e a casa do tipo “confortável” para a família. Isso porque, por meio do trabalho, é possível ocupar certo status social ou adquirir satisfação com o consumo de bens ou serviços validados socialmente, como uma casa ou um carro.

O ethos gerencialista é percebido sobretudo nas narrativas de Maria e de João, que se veem como donos dos próprios negócios, “empresas” de si mesmo, “empreendedores”, ao vislumbrar essa forma de inserção social pelo trabalho. Essas narrativas ligadas têm sido impulsionadas pela atuação de instituições modernas, que passaram a atuar recentemente no Agreste das Confecções, promovendo o discurso do empreendedorismo, vendo o sulanqueiro como empresário. Para Negreiros, a valorização da ideia de empreendedorismo na região “segue a tendência de transferir para o trabalhador a responsabilidade sobre seu potencial de empregabilidade e de condições satisfatórias de emprego e renda, ignorando o processo histórico de seletividade no mercado de trabalho, reduzindo a responsabilidade de intervenção do Estado” (Negreiros, 2010). Desse modo, numa leitura mais crítica, o ethos gerencialista parece responsabilizar trabalhadores e trabalhadoras pelas questões estruturais por eles(as) vivenciadas.

Bendassolli (2007)Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras. analisa que essa fragmentação de uma metanarrativa pública do trabalho reflete a falência de um modelo moderno de agregar indivíduo, sociedade e Estado. Esse modelo não se efetivou em contextos que passaram pelo processo de colonização, conforme destaca a literatura sobre o assunto (Quijano, 2009Quijano, A. (2009). Colonialidad y clasificación social. Journal of World Systems Research, 6(2), 342-388.), uma vez que a modernidade foi usada como retórica de subalternização de territórios e gentes. Pode-se dizer, portanto, que a modernização acontece de modo seletivo no Brasil, de forma geral, conforme tese de Souza (2000Souza, J. (2000). A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, DF: Editora UnB.), afinal ela mantém a “ordem social”, na qual alguns grupos são favorecidos em detrimento de outros.

Ademais, essa diluição da metanarrativa do trabalho apresenta um desalinhamento entre instituições sociais, expectativas sociais e individuais em relação ao trabalho, ou seja, uma ambiguidade, que parece marcar a experiência atual com o trabalho e que, consequentemente, provoca um estado de insegurança ontológica no indivíduo. Essa insegurança seria marcada, sobretudo, pela dificuldade do indivíduo de encontrar um senso de continuidade biográfica em seu contato com o trabalho, pela preocupação excessiva com riscos à própria existência como profissional e pela falta de confiança e segurança na capacidade de autointegridade pessoal, situação em que o indivíduo não consegue justificar suas ações, não sabe por que as faz e, mesmo quando sabe, não consegue reconhecer nisso um sentido, uma coerência Souza (2000Souza, J. (2000). A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, DF: Editora UnB.).

Desse modo, percebe-se que a narrativa do caso apresenta exemplos da insegurança ontológica experimentada pelos indivíduos em função da fragmentação da narrativa do trabalho. Essa insegurança fica clara na fala do amigo de Léo, Dior, que reflete a experiência daqueles que vendem desesperadamente seus equipamentos para brincar o Carnaval. De acordo com o personagem, não há certeza sobre o amanhã, por isso é necessário viver o hoje, divertir-se. De forma geral, esse estado de insegurança e de risco sempre esteve presente na região, pois sua principal atividade econômica surge do improviso e da urgência de garantir a subsistência de pessoas, como as mães que não podiam comprar roupas para os filhos e passaram a produzir em casa.

Esse foi o caso de Maria, que se viu desempregada após trabalhar anos numa fábrica, sendo impelida a abrir a própria facção para sobreviver e cuidar dos filhos e da família. Na trajetória de Léo, também é possível perceber essa insegurança, haja vista que ele foi levado a desenvolver diferentes trabalhos ao longo da vida para garantir sua sobrevivência, muitos deles arriscados e sem garantias, como cortar toco de árvore, cavar buraco e trabalhar com produtos químicos nocivos à saúde. Desse modo, percebe-se que a condição de insegurança ontológica desses trabalhadores acaba por submetê-los a condições precárias de trabalho, na qual não existem limites além dos físicos, sendo comum observar pessoas cumprindo jornadas exaustivas de trabalho, como as costureiras que trabalham muitas horas por dia e têm dupla jornada, acumulando atividades domésticas, de cuidado e de confecção de jeans.

Sobre esse assunto, o estudo de Lira, Gurgel, Albuquerque, e Amaral (2020Lira, P. V. R. A., Gurgel, I. G. D., Albuquerque, P. C. C, & Amaral, A. S. (2020). Superexploração e desgaste precoce da força de trabalho: a saúde dos trabalhadores de confecção. Trabalho, Educação e Saúde, 18(3), e00275107.) alerta para o desgaste precoce da força de trabalho atuante na indústria de confecções da região do Agreste de Pernambuco, dada a superexploração de trabalhadores e trabalhadoras observada na ampliação das cargas de trabalho nas facções, por exemplo. Essa situação é agudizada pela condição de desproteção social vivenciada por tais sujeitos, impossibilitando uma recuperação adequada da força de trabalho, levando a casos de invalidez cada vez mais precoces, tendo em vista que o ingresso nesse mercado de trabalho se dá na juventude, sendo possível evidenciar o trabalho infantil em muitos casos (Lira et al., 2020Lira, P. V. R. A., Gurgel, I. G. D., Albuquerque, P. C. C, & Amaral, A. S. (2020). Superexploração e desgaste precoce da força de trabalho: a saúde dos trabalhadores de confecção. Trabalho, Educação e Saúde, 18(3), e00275107.).

Ademais, é importante perceber que o discurso de muitos personagens é o de que essas condições de trabalho são interessantes por lhes garantir certa liberdade em comparação com o trabalho formalizado. O que parece estar presente nessas elaborações discursivas é uma internalização das condições precárias de trabalho, graças à ausência de alternativas decentes de trabalho para esses sujeitos. Utilizando os termos de Antunes (2009Antunes, R. (2009). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo.), esse discurso parece indicar repercussões da crise desse século nas subjetividades e nas formas de ser.

Como respostas a essa insegurança ontológica, os indivíduos podem, de acordo com Bendassolli (2007), adotar uma visão irônica, sendo capazes de se desligar das instituições e dos empregos com facilidade, entendendo o mundo como algo mutável, flexível, sem autoridade; eleger uma visão reflexiva, conscientes de suas bases conceituais e das consequências de suas ações, monitorando-se e controlando-se, buscando proteção dos processos de desfragmentação de modo individual e incerto; construir falsos selfs, adaptando-se a qualquer situação para serem aceitos, mas sendo incapazes de ser quem são, levando a sentimentos como sensação de vazio, falsidade, futilidade etc.

Assim, para Bendassolli, diante das várias descrições e ideais sobre o sentido e o valor do trabalho com fraco embasamento institucional, resta ao indivíduo uma “ação individual sem assistência”, que leva a restrições de acessos, garantidos pelas instituições, ou a uma situação de “impotência”, ideal para a ação de oportunistas como gurus da autoajuda (Bendassolli, 2007Bendassoli, P. (2007). Trabalho e identidade em tempos sombrios: insegurança ontológica na experiência atual com o trabalho. São Paulo, SP: Ideias e Letras.).

Diante das incertezas e dos riscos nos quais vivem trabalhadores e trabalhadoras do caso analisado, pode-se pensar na alternativa vislumbrada por Bendassolli (2007) de criação dos sujeitos reflexivos que buscam proteção dos processos de desfragmentação. Essa busca por proteção pode se dar de modo individual, como pontua o autor, mas também coletivamente, o que é mais difícil de construir, visto o grande estímulo à ação individual sem garantias no mundo contemporâneo. De toda forma, com a conscientização dos sujeitos por meio de processos de reflexão, acredita-se ser possível pensar em alternativas como a construção de associações, comunidades, movimentos sociais etc., que, de maneira organizada, levantem demandas de trabalhadores e trabalhadoras, pensem em soluções coletivas e pressionem o poder público.

O documentário elaborado com base nos relatos coletados por Léo, os quais exploram as diferentes narrativas sobre o trabalho em Toritama, pode ser visto como uma possível ferramenta de conscientização de trabalhadores e trabalhadoras, na medida em que sejam levados a refletir sobre sua condição, como acontece com Léo ao longo da narrativa do caso. Ao participar do documentário, coletando informações em conversas com diferentes agentes, Léo assume uma postura mais questionadora sobre sua realidade de trabalho, importante para a construção de sujeitos reflexivos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2021
  • Aceito
    13 Ago 2021
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