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Lucro ou crescimento: em qual focar? O caso do Grupo Fleury

Rentabilidad o crecimiento: ¿en qué centrarse? El caso del Grupo Fleury

Resumo

Este caso para ensino reflete as escolhas estratégicas do Grupo Fleury frente ao cenário econômico brasileiro e às particularidades do setor privado de serviços de saúde no Brasil, convidando o leitor a refletir sobre os possíveis desafios que emergem sob uma orientação estratégica para a lucratividade, para o crescimento ou ambos. O Grupo Fleury serve como rica fonte de informações para análises acadêmicas, principalmente no que diz respeito à estratégia empresarial e à ambidestria organizacional. Assim, sugere-se que este caso seja usado em programas voltados a executivos e em cursos de pós-graduação lato e stricto sensu, em temas ligados à estratégia e inovação.

Palavras-chave:
Serviços de saúde; Estratégia; Lucro; Crescimento

Resumen

Este caso de enseñanza refleja las decisiones estratégicas del Grupo Fleury frente al escenario económico brasileño y las particularidades del sector privado de servicios de salud en Brasil e invita al lector a reflexionar sobre los desafíos relacionados con la orientación estratégica hacia la rentabilidad, hacia el crecimiento o hacia ambos. El Grupo Fleury sirve como una rica fuente de información para el análisis académico, especialmente en lo que respecta a la estrategia empresarial y la ambidestreza organizacional. Así, se sugiere que este caso se utilice en programas ejecutivos y posgrados, tanto lato como stricto sensu, en temas relacionados con la estrategia y la innovación.

Palabras clave:
Servicios de salud; Estrategia; Rentabilidad; Crecimiento

Abstract

This teaching case reflects the strategic choices of the Fleury Group in the face of the Brazilian economic scenario and the particularities of the private health services sector in Brazil. The teaching case invites the reader to reflect on challenges related to a strategic orientation for profitability, growth, or both. The Fleury Group serves as a rich source of information for academic analysis, especially about business strategy and organizational ambidexterity. Thus, this teaching case can be used in executive programs and graduate programs (specialization or leading to a Ph.D.), in themes related to strategy and innovation.

Keywords:
Health services; Strategy; Profit; Growth

INTRODUÇÃO

Era fevereiro de 2018 e o Brasil festejava sua maior festa popular: o Carnaval. As escolas de samba aguardavam a apuração das notas dadas pela comissão julgadora do Rio de Janeiro e de São Paulo, que definiria a vencedora em suas respectivas cidades. Uma das grandes emoções da avaliação do desfile das escolas de samba é que as notas dos jurados são dadas numa escala decimal de 0,1 ponto, diminuindo a chance de empate, e essa é uma situação contrária à trazida neste caso.

Enquanto as notas eram apuradas, no Grupo Fleury, um dos maiores players do mercado privado de medicina diagnóstica no Brasil, outra decisão precisava ser tomada pelo diretor executivo e pelos dez membros do conselho de administração: o foco estratégico da empresa seria gerar lucro ou crescer?

A decisão vinha num momento crítico para o Grupo Fleury, que enfrentava, desde 2014, um dos principais sintomas de crises que afetam a macroeconomia de um país: o aumento da taxa de desemprego. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no Brasil, cerca de 70% dos planos privados de assistência à saúde são concedidos pelas empresas aos seus funcionários como forma de benefício. Por consequência, quando a taxa de desemprego aumenta, a quantidade de beneficiários de planos privados de assistência à saúde tende a diminuir.

Sendo as operadoras de planos de assistência à saúde a principal fonte pagadora do Grupo Fleury, começava a ficar cada vez mais evidente que, se a empresa não promovesse uma transformação significativa no escopo de negócios e serviços oferecidos aos clientes, estaria arriscando o crescimento futuro e definindo sua atuação nos anos seguintes como uma instituição cada vez mais focada num nicho de mercado.

O dilema enfrentado pelo diretor executivo do Grupo Fleury era que ele precisava tomar uma decisão diante de um empate entre as opiniões dos dez membros do conselho de administração, já que metade favorecia a expansão dos negócios atuais e a outra metade, a busca de novos caminhos para a empresa. Naquela situação, alguns questionamentos começaram a surgir: quais seriam os riscos se o foco estratégico naquele ano fosse direcionado apenas para fortalecer os negócios atuais? Quais seriam os riscos se o foco estivesse somente na identificação de oportunidades futuras? E quais seriam os riscos em conciliar estratégias que beneficiassem ambas as opções ao mesmo tempo?

O GRUPO FLEURY1 1 Construído com base em Trivelin e Ortega (2006), bem como em informações e dados recuperado de www.grupofleury.com.br

Quando criado pelo médico Gastão Fleury da Silveira, em 1926, no centro da cidade de São Paulo, o laboratório Fleury contava apenas com quatro equipamentos: um microscópio, uma estufa, uma centrífuga e uma autoclave. Todos os processos do hemograma, um dos poucos exames de análises clínicas realizados no local à época, eram feitos de maneira artesanal, com mão de obra apenas de Gastão.

Olhando para trás, era difícil imaginar que, em 2018, o Grupo Fleury se tornaria um dos maiores players do mercado privado de medicina diagnóstica no Brasil, oferecendo cerca de 3,5 mil tipos de exames, com o apoio de mais de 8,8 mil colaboradores e 2,2 mil médicos, em vários estados brasileiros, sendo uma empresa de capital aberto para o mercado, com ações negociadas no segmento de Novo Mercado da bolsa de valores oficial do Brasil (B3).

Os negócios do Grupo Fleury

Em 2018, o grupo tinha quatro linhas principais de negócios em suas operações: unidades de atendimento, operações diagnósticas em hospitais, laboratório de referência e diagnósticos odontológicos por imagem, sendo as duas primeiras as maiores em percentual de receita, conforme a Tabela 1.

Tabela 1
Composição da receita do Grupo Fleury por linhas de negócios

As unidades de atendimento são responsáveis pela prestação dos serviços privados de medicina diagnóstica a pacientes particulares e beneficiários de planos privados de saúde. Em 2018, tratava-se do principal negócio da empresa, sendo responsável por mais de 80% da composição da receita no ano anterior. Não à toa, por muitos anos, a empresa tem investido na expansão de suas operações por meio da aquisição de laboratórios e marcas locais.

O Grupo Fleury começou o processo de aquisições de outras empresas do setor em diferentes mercados em 2001, com o objetivo de entrar em novas regiões, complementar o mix de serviços e aumentar a base de conhecimento. Tais aquisições permitiram o ganho de escala e o acesso ao público de outros segmentos de mercado. Isso se deu pela eficiência operacional da padronização e da otimização dos processos, permitindo a oferta de serviços de saúde mais acessíveis aos clientes do segmento intermediário-alto, bem como pelo investimento na experiência do segmento premium, por meio da diferenciação e da inovação dos processos.

Em 2018, a instituição contava com operações em seis estados brasileiros e no Distrito Federal, atuando nos segmentos premium e intermediário-alto de medicina diagnóstica, com as marcas Fleury Medicina e Saúde, Weinmann, a+ Medicina Diagnóstica, Labs a+, Clínica Felippe Matoso, Diagnoson a+ e Serdil. Além disso, tinha operações no ramo de soluções de diagnósticos odontológicos por imagem com a marca Papaiz, a qual foi adquirida em parceria com a Odontoprev (49% de participação), tratando-se de uma joint venture. Já as operações diagnósticas em hospitais - modelo business to business (B2B) - dizem respeito à realização de diagnósticos de análises clínicas, de imagem e outras especialidades em hospitais parceiros.

Em 2018, o grupo prestava serviços para mais de 20 instituições hospitalares renomadas nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná, além do Distrito Federal, por meio das marcas a+ Medicina Diagnóstica, Fleury Medicina e Saúde e Weinmann.

Indicadores financeiros do Grupo Fleury

Em termos dos principais indicadores financeiros, a empresa apresentou crescimento sustentável ao longo de quase dez anos, conforme a Tabela 2.

Tabela 2
Indicadores financeiros do Grupo Fleury

Cientes de que quase toda a receita do grupo era gerada pelas unidades de atendimento e pelas operações diagnósticas feitas em outras instituições, o diretor executivo e os membros do conselho de administração do Fleury sabiam que era necessário pensar em alternativas que sustentassem o crescimento em longo prazo, preservando as margens e a geração de caixa. No entanto, antes de qualquer decisão, era necessário analisar as operações dos principais concorrentes da empresa e o setor de serviços de saúde no Brasil.

OS PRINCIPAIS CONCORRENTES DO GRUPO FLEURY

Em 2018, o mercado privado de medicina diagnóstica no Brasil era composto por cerca de 16 mil laboratórios, gerando uma receita próxima de R$ 30 bilhões. Desse mercado, 25% de market share era obtido pelos seguintes grupos: Diagnósticos da América S. A. (Dasa), Grupo Fleury, Centro de Imagens Diagnósticos S. A. (Alliar Médicos à Frente) e Hermes Pardini. Os laboratórios (ou marcas) que compõem cada um dos quatro principais grupos são apresentados na Figura 1.

Figura 1
Marcas do Grupo Fleury e de seus principais concorrentes

Grupo Dasa2 2 Construído com base em informações e dados recuperado de http://dasa.com.br/

O Grupo Dasa, considerado o maior player de medicina diagnóstica da América Latina e o quarto maior do mundo, oferecia, em 2018, mais de 3 mil tipos de exames laboratoriais e de diagnósticos por imagem, em mais de 500 unidades de atendimento em território brasileiro (veja Figura 2B). As amostras biológicas coletadas em todas as unidades de atendimento do grupo eram analisadas em 13 laboratórios centrais, denominados de núcleos técnicos operacionais. Além das unidades de atendimento próprias, o Grupo Dasa oferecia serviços de apoio a cerca de outros 3 mil laboratórios no Brasil por meio da marca Álvaro, operando como líder no mercado de atendimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) com a marca CientíticaLab, nos estados de Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

Figura 2
Distribuição geográfica das unidades de atendimento do Grupo Fleury e de seus principais concorrentes

Em 31 de março de 2017, o Grupo Dasa era responsável por 11% da receita gerada pelo setor privado de medicina diagnóstica no Brasil e, em 2018, era composto por cerca de 30 marcas (veja Figura 1B), resultado da expansão orgânica complementada pelas aquisições de empresas do setor, as quais eram distribuídas em três níveis de atendimento ao setor privado de saúde (premium, executive e standard), alinhados com a segmentação própria dos planos privados de assistência médica no Brasil.

Grupo Alliar Médicos à Frente3 3 Construído com base em informações e dados recuperados de http://alliar.com/

O Grupo Alliar Médicos à Frente, considerado o terceiro maior player de medicina diagnóstica do Brasil, era responsável por 3% da receita gerada pelo setor privado de medicina diagnóstica no país em 2017. Fundado em 2011, foi pioneiro na utilização da telerradiologia no país e, em 2015, realizou a primeira parceria público-privada de diagnósticos por imagens em território nacional, com a criação da Rede Brasileira de Diagnóstico (RDB), na qual era responsável pelos serviços de imagem de 11 hospitais públicos na Bahia. O Grupo Alliar Médicos à Frente contava, em 2018, com mais de 5 mil colaboradores e 900 médicos parceiros, estando presente em 10 estados (veja Figura 2C), resultado das mais de 20 empresas que formam o grupo (veja Figura 1C).

Grupo Hermes Pardini4 4 Construído com base em informações e dados recuperados de www.hermespardini.com.br

O Grupo Hermes Pardini, considerado o quarto maior player de medicina diagnóstica do Brasil, era responsável por 3% da receita gerada pelo setor privado de medicina diagnóstica no país em 2017. Fundado em 1959, contava, em 2018, com 68 unidades de atendimento próprias em Minas Gerais, além de mais cinco em São Paulo, resultado da aquisição de empresas referências do setor, como a Cemedi, a Biocod, a Diagnóstika, a Digimagem, a Progenética, o Laboratório Padrão, o Centro de Medicina Nuclear da Guanabara e a Ecoar Medicina Diagnóstica (veja Figura 1D e Figura 2D), além de ter parceria com aproximadamente 5 mil laboratórios no Brasil.

O SETOR DE SERVIÇOS DE SAÚDE NO BRASIL

Após a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a saúde como um direito social fundamental de todos os cidadãos, o Brasil passou a adotar um sistema público de saúde universal, em adição aos serviços prestados pelo setor privado. Entretanto, desde sua criação, o SUS tem apresentado dificuldades em atender o expressivo crescimento da demanda, principalmente em razão do baixo investimento dos governos federal, estaduais e municipais. De acordo com dados do Banco Mundial, o setor privado de saúde no Brasil apresenta gastos equivalentes aos do governo, porém atende apenas cerca de um quarto da população.

Infelizmente, com o aumento da taxa de desemprego - de quase 7%, em 2014, para mais de 12%, em 2018 -, o setor de serviços de saúde se tornou mais desafiador, tanto na esfera pública quanto na privada, uma vez que a taxa de desemprego se relaciona de maneira inversa com a quantidade de beneficiários de planos privados de assistência à saúde. Ou seja, quando um aumenta, o outro diminui. Isso não se dá apenas pela descontinuidade do plano privado como um benefício corporativo - cuja condição representa quase 70% dos planos privados -, mas também pelo comprometimento da fonte de renda, que impõe pressão financeira sobre o consumidor, conduzindo-o à inadimplência e a cancelamentos dos planos, corporativos ou não. Tal condição impõe um aumento na quantidade de cidadãos que demandam pelos serviços públicos de saúde, os quais já são responsáveis por atender quase três quartos da população.

Outras duas variáveis que direcionam o setor de serviços de saúde, o índice de envelhecimento da população e a parcela de pessoas com 65 anos ou mais têm se apresentado como uma ameaça à esfera pública e como uma oportunidade para a esfera privada, em razão da necessidade de cuidados com a saúde, que cresce à medida que o cidadão envelhece. Na Tabela 3, é apresentado o histórico dos principais drivers do setor de serviços de saúde.

Tabela 3
Histórico dos principais drivers do setor de serviços de saúde

O diretor executivo do Grupo Fleury e os membros do conselho de administração sabiam que, em termos macroeconômicos, havia tanto uma oportunidade quanto uma ameaça para os negócios da empresa.

O FOCO ESTRATÉGICO DO GRUPO FLEURY PARA O ANO DE 2018

Era chegado o momento de tomar uma decisão. O diretor executivo e os membros do conselho de administração já haviam analisado os negócios que sustentavam a geração de lucro da empresa, a estratégia e as operações das principais concorrentes do grupo, além das ameaças e das oportunidades do setor de serviços de saúde no Brasil.

Por ser uma empresa de capital aberto e de governança resultante de estrutura societária composta por Bradesco Seguros, médicos sócios e acionistas minoritários de mercado free float, as decisões estratégicas do Grupo Fleury devem ser tomadas pela maioria dos membros que compõem o conselho de administração, os quais levantaram uma nova discussão, provocada pelo diretor executivo, em torno de duas escolhas estratégicas: alimentar o plano de expansão dos negócios atuais ou estender a atuação da empresa para além do processo diagnóstico.

Escolha estratégica 1: expansão dos negócios atuais

Desde os anos 2000, o Grupo Fleury tem investido em aquisições de empresas de medicina diagnóstica - exames laboratoriais e diagnóstico por imagem - locais e em alianças estratégicas com instituições do ramo para atender às suas necessidades de expansão e crescimento. Essa estratégia contribuiu para o crescimento orgânico do grupo, para o aumento da lucratividade e para a melhoria de diversos indicadores operacionais, como frequência de oferta de testes diagnósticos inéditos e nível elevado de satisfação de clientes.

Com o objetivo de continuar alimentando o plano de expansão dos negócios atuais, a primeira escolha se tratava da aquisição de uma nova marca com operações no Rio Grande do Norte, pelo valor aproximado de R$ 90,5 milhões, expandindo a zona geográfica de influência do grupo e incorporando dezenas de profissionais que contribuiriam para o contínuo aumento da inteligência médica.

Escolha estratégica 2: estender a atuação da empresa para além do processo diagnóstico

Ao longo de mais de 90 anos de trajetória, o Grupo Fleury se destacou de forma inovadora em diversas frentes do setor de saúde. Por exemplo, entre as décadas de 1980 e 1990, foi o primeiro laboratório no Brasil a implementar um sistema informatizado para atendimento ao cliente, o primeiro a reunir diversas especialidades médicas sob uma mesma estrutura - o conceito de centro de diagnóstico - e a primeira empresa do mundo a disponibilizar resultados de exames na internet, permitindo que médicos e clientes consultassem o histórico de exames realizados nos últimos sete anos.

Nos anos 2000, o grupo inaugurou um centro de telerradiologia, possibilitando que imagens fossem adquiridas localmente, em território nacional e internacional, e enviadas pela internet para que o laboratório analisasse e emitisse os laudos. Além disso, nessa época, a empresa investiu na metodologia de espectrometria de massa para testes em grande escala, iniciando, em 2016, um investimento na estruturação e na aceleração de sua área de genômica, com o objetivo de constituir os pilares da prestação de serviço em medicina personalizada.

Nesse contexto, o Grupo Fleury também firmou parceria inédita com a unidade IBM Watson Health na América Latina, a fim de testar e validar uma ferramenta de informações para auxiliar a tomada de decisão médica em genômica - a Watson for Genomics -, permitindo, com o uso de computação cognitiva, auxiliar os médicos a identificar medicamentos e ensaios clínicos relevantes com base em alterações genômicas de um indivíduo e com dados extraídos da literatura médica. Um resumo dessas inovações é apresentado na Figura 3.

Figura 3
Inovações adotadas pelo Grupo Fleury

Com base no perfil inovador da empresa, a segunda escolha estratégica levada à discussão era a aquisição de uma companhia de serviços de gestão na área de saúde corporativa, no valor aproximado de R$ 15,5 milhões. Essa compra inseriria o grupo em novos elos, como a atenção primária em saúde e medicina preventiva, além de ocupacional, criando um esboço de algo que poderia se tornar uma plataforma mais completa no futuro.

A decisão

Naquela Quarta-Feira de Cinzas, em que foi definido que a escola campeã do Carnaval de 2018 era a Beija-Flor, no Rio de Janeiro, e a Acadêmicos do Tatuapé, em São Paulo, o diretor executivo do Grupo Fleury conduzia uma discussão estratégica entre os dez membros do conselho de administração. Ao contrário da apuração das notas pela comissão julgadora do Carnaval, não havia uma decisão final na empresa, já que metade das opiniões favorecia a expansão dos negócios atuais e a outra metade estava a favor da busca por novos caminhos.

Os tomadores de decisão ali presentes começaram a analisar os três cenários possíveis: focar apenas em crescimento, focar apenas em lucratividade ou focar em ambos. Havia ameaças e oportunidades em cada um dos cenários analisados. Qual decisão deveria ser tomada pelo diretor executivo diante de tal situação?

NOTAS DE ENSINO

Objetivos Educacionais

O presente caso para ensino está desenhado para atender a alguns objetivos em disciplinas referentes às temáticas de estratégia e inovação, ilustrando horizontes de crescimento atual e emergente. No primeiro, a empresa tem concentrado esforços para manter em funcionamento as operações que geram receita - unidades de atendimento. No segundo, tem identificado futuras oportunidades de crescimento sustentável, como a busca por se tornar uma plataforma de saúde. Essas escolhas permitem analisar se o Grupo Fleury pode ser considerado uma empresa ambidestra, ou seja, se é capaz de conciliar ações tanto para a inovação incremental quanto para a disruptiva.

Dessa forma, os objetivos didáticos deste caso são discutir o posicionamento estratégico da empresa estudada e realizar o enquadramento na base teórica, elaborar uma análise de estratégia competitiva com base nos dados apresentados, desenvolver a integração entre estratégia e inovação, compreender o conceito de ambidestria organizacional e discutir oportunidades e desafios do foco estratégico em inovação incremental, em inovação disruptiva ou em ambas.

Utilização recomendada

O caso de ensino foi estruturado para ser aplicado em programas para executivos e em cursos de pós-graduação lato e stricto sensu, em disciplinas ligadas à estratégia e inovação, e em cursos customizados para empresas (in company) que tratem de estratégia empresarial e, mais especificamente, do conceito de ambidestria organizacional.

Sugestão para um plano de ensino

Sugere-se a utilização do método da Harvard Business School, que tem quatro etapas (Applegate, 1988Applegate, L. M. (1988, agosto). Case teaching at Harvard Business School: some advice for new faculty. Harvard Business School Background Note, 189-062. Recuperado de https://www.hbs.edu/faculty/Pages/item.aspx?num=3134
https://www.hbs.edu/faculty/Pages/item.a...
, p. 3):

  1. Análise individual e preparação - Os discentes devem ser instruídos a ler o caso de maneira antecipada e individual, de modo a levantar questões, argumentos e dúvidas. A leitura de artigos complementares, como Chen (2017Chen, Y. (2017). Dynamic ambidexterity: how innovators manage exploration and exploitation. Business Horizons, 60(3), 385-394.); Christensen, Raynor, e Mcdonald (2015Christensen, C. M., Raynor, M. E., & Mcdonald, R. (2015). What is disruptive innovation?Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2015/12/what-is-disruptive-innovation
    https://hbr.org/2015/12/what-is-disrupti...
    ); Lawson e Samsom (2001Lawson, B., & Samsom, D. (2001). Developing innovation capability in organisations: a dynamic capabilities approach. International Journal of Innovation, 5(3), 377-340.); O’Reilly e Tushman (2004O’Reilly, C. A., & Tushman, M. L. (2004). The ambidextrous organization. Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2004/04/the-ambidextrous-organization
    https://hbr.org/2004/04/the-ambidextrous...
    ); Porter (1979Porter, M. E. (1979). How competitive forces shape strategy. Harvard Business Review. Recuperado de https://www.hbs.edu/faculty/Pages/item.aspx?num=10692
    https://www.hbs.edu/faculty/Pages/item.a...
    , 1996Porter, M. E. (1996). What is strategy? Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/1996/11/what-is-strategy
    https://hbr.org/1996/11/what-is-strategy...
    ), pode ser solicitada a critério do docente, desde que recomendada pelo menos uma semana antes da aplicação do caso.

  2. Discussões em pequenos grupos - Podem ser formados pequenos grupos de trabalho, de preferência em quantidade ímpar, a fim de que os discentes discutam o caso e preparem uma proposta de solução. Sugere-se que esta etapa tenha duração de 20 a 30 minutos.

  3. Discussão do caso no grande grupo - Trata-se da discussão principal em sala, quando os discentes podem apresentar suas propostas como sujeitos ativos da aprendizagem, devendo o docente agir como facilitador. A duração estimada para esta etapa é de 90 minutos.

  4. Finalização do caso - O docente deve buscar uma generalização do aprendizado, demonstrando a importância da aplicação dos conceitos teóricos. Recomenda-se retomar os conceitos de estratégia e vantagem competitiva de Porter, bem como o sucesso da estratégia do Grupo Fleury, aprofundando as discussões sobre as fusões e as aquisições feitas pela empresa e os desafios para a implantação do modelo ambidestro numa organização. Sugere-se que sejam programados 15 minutos para esta etapa.

Fonte dos dados

O presente caso para ensino é baseado em informações verdadeiras e fidedignas a respeito do Grupo Fleury, coletadas sobretudo de documentos institucionais públicos, entrevistas e artigos (Guedes & Di Serio, 2013Guedes, L. F. A., & Di Serio, L. C. (2013) Inovação na organização ambidestra: estudo de caso em um centro de medicina diagnóstica. In Anais do 16º Simpósio de Administração da Produção, Logística e Operações Internacionais, São Paulo, SP.; Guedes, Di Serio, & Duarte, 2006Guedes, L. F. A., Di Serio, L. C., & Duarte, A. L. C. M. (2006). O caso Fleury: alinhamento estratégico da tecnologia da informação. In Anais do 9º Simpósio de Administração de Produção, Logística e Operações Internacionais, São Paulo, SP.; Trivelin & Ortega, 2006Trivelin, V. T., & Ortega, L. M. (2006). Estudo de caso: Fleury S/A - a inovação tecnológica como estratégia do negócio. In Anais do 24ºSimpósio de Gestão da Inovação Tecnológica, Gramado, RS.). No entanto, para efeitos didáticos, os autores criaram uma situação problema capaz de instigar a curiosidade do leitor sobre qual direção seguir para a resolução do caso. Como se trata de um debate em ambiente acadêmico, a situação problema não compromete a finalidade exclusiva de ensino.

Vale comentar que um dos coautores deste estudo era executivo do Grupo Fleury até 2017. Todo o material foi revisado e aprovado pela diretoria de relações institucionais e pelos investidores antes de seguir para a publicação. Dados de instituições governamentais e não governamentais ligadas à área da saúde também foram consultados.

Sugestão de questões para discussão

As possibilidades de reflexão e indagação sobre o caso não se limitam ao conjunto de questões sugeridas pelos autores. No entanto, indicamos algumas que podem auxiliar a discussão do dilema:

  1. O que levou o diretor executivo e os membros do conselho administrativo a explorarem novas alternativas?

  2. Quais seriam os riscos para a empresa caso o diretor executivo e os membros do conselho administrativo optassem por focar somente nos negócios que já geram receita (unidades de atendimento)?

  3. O Grupo Fleury pode ser considerado uma organização ambidestra? Analise a aplicação desse conceito e explique-o.

  4. Quais dificuldades podem ser enfrentadas por uma organização ambidestra?

Análise do caso

Questões 1 e 2: motivação para a exploração de novas oportunidades e os riscos associados ao foco apenas nos negócios atuais

Próximo da conclusão do caso, são apresentadas as variáveis que direcionam o setor de serviços de saúde no Brasil (veja Tabela 3). Uma das mais importantes, a penetração dos planos privados de assistência à saúde na população brasileira, estava em queda havia pelo menos quatro anos consecutivos, sobretudo em razão do aumento do desemprego no país. Como quase toda a receita do Grupo Fleury é gerada pelos negócios que dependem das operadoras de planos de assistência à saúde como fonte pagadora, era cada vez mais arriscado continuar focada só no core business.

Além disso, é possível fazer uma análise competitiva do Grupo Fleury com base no modelo das cinco forças de Porter: rivalidade entre os concorrentes (nível de competição), poder de barganha dos fornecedores (nível de dependência destes), poder de barganha dos clientes (nível de dependência destes, que aumenta com a competitividade do mercado), ameaças/barreiras à entrada de novos concorrentes (nível de dificuldade para a entrada de novos concorrentes no mercado) e ameaça de produtos ou serviços substitutos (existência de produtos ou serviços com funções equivalentes) (Porter, 1979Porter, M. E. (1998). Competitive strategy: techniques for analyzing industries and competitors. New York, NY: Free Press., 2008Porter, M. E. (2008). The five competitive forces that shape strategy. Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2008/01/the-five-competitive-forces-that-shape-strategy
https://hbr.org/2008/01/the-five-competi...
).

Em relação à rivalidade entre concorrentes, é possível identificar que o mercado privado de medicina diagnóstica é bastante fragmentado, com muitos concorrentes de pequeno porte e apenas quatro grandes grupos que se destacam: Dasa, Fleury, Hermes Pardini e Alliar. Também é possível verificar que uma estratégia comum entre esses grupos é a aquisição de outras marcas. Esses fatores tendem a pressionar as margens para baixo e as empresas para a competição baseada em custos, com perda do potencial de diferenciação.

Em decorrência do porte acumulado ao longo de mais de 90 anos, o Grupo Fleury tem maior poder de negociação com fornecedores, inclusive ao adquirir equipamentos de última geração no exterior. Já a estrutura da clientela é complexa, pois o principal contratante - e quem de fato efetua a maioria dos pagamentos - são as operadoras de planos de saúde, que têm poder de negociação graças ao seu porte - há inclusive reclamações sobre falta de critérios para glosas e pagamentos. Porém, o cliente final -quem efetivamente recebe os serviços - é um trunfo a favor do Grupo Fleury, pois eles são fidelizados na segmentação high end, havendo casos em que clientes selecionam os planos por terem o Grupo Fleury na rede. Além disso, a empresa conta com outros clientes empresariais - hospitais e laboratórios - oriundos da diversificação de seus serviços, mais um fator positivo para o grupo.

Quanto às barreiras à entrada de novos concorrentes, é possível citar várias vantagens para o Grupo Fleury: altos custos de investimento inicial no mercado high end; marca e reputação robustas, consolidadas no mercado; postura proativa no lançamento de inovações; vantagem em custos por processos automatizados; aquisições de outras empresas do mesmo segmento.

Por fim, quanto à ameaça de produtos substitutos, é possível perceber algumas práticas de “blindagem”, como investimentos e parcerias em pesquisa e desenvolvimento (P&D); diferenciação e qualidade em produtos e serviços; tradição em inovação e diversificação no portfólio de produtos. A Figura 4 sintetiza a análise das cinco forças de Porter para o Grupo Fleury.

Figura 4
As cinco forças de Porter no caso Fleury

É possível perceber que o Grupo Fleury tem o objetivo de oferecer serviços diferenciados de alto valor agregado e únicos aos clientes, mas com foco de atuação somente no mercado high end - premium e, recentemente, intermediário-alto. Isso significa que, com base nas estratégias competitivas genéricas de Porter (1998Porter, M. E. (1998). Competitive strategy: techniques for analyzing industries and competitors. New York, NY: Free Press.), o posicionamento estratégico da empresa é enfoque, ou seja, busca a atuação num nicho específico do mercado, podendo obter baixos custos e produtos diferenciados. Entretanto, essa estratégia não garante vantagem competitiva em longo prazo, especialmente em tempos de crise macroeconômica e de profundas mudanças tecnológicas na sociedade.

Dessa forma, a análise das cinco forças de Porter para o Grupo Fleury, combinada com os dados dos drivers do setor de serviços de saúde no Brasil (veja Tabela 3), mostra que as inovações nos produtos e nos mercados atuais não sustentam a rentabilidade e a vantagem competitiva em longo prazo para a empresa, mesmo com as forças do grupo - clientes altamente fidelizados na segmentação high end, altos custos de investimento inicial no mercado high end e aquisições sinérgicas de outras empresas do mesmo segmento. Tal análise dá suporte para avaliar os motivos que levaram os membros do conselho administrativo a buscar novas alternativas.

Por outro lado, de acordo com Barney (1991Barney, J. B. (1991). Firm resources and sustained competitive advantage. Journal of Management, 17(1), 99-110.), as firmas podem obter vantagem competitiva graças à heterogeneidade dos recursos gerados e à dificuldade de imitação deles pelos concorrentes, o que sugere que os recursos precisam ser valiosos, raros e inimitáveis. Barney e Hesterly (2007) introduziram o modelo VRIO (value, rare, inimitable e organization), com o objetivo de auxiliar na identificação de recursos e capacidades, visando determinar o grau de sucesso na obtenção de vantagem competitiva sustentável. Esse modelo propõe quatro questionamentos que o gestor deve fazer sobre os recursos ou as capacidades da firma para estabelecer seu potencial competitivo:

  1. Valor (Value): O recurso/a capacidade permite a exploração de oportunidades ou a neutralização de ameaças?

  2. Raro (Rare): O recurso/a capacidade é conhecido por firmas concorrentes?

  3. Imitação (Imitate): Os concorrentes têm capacidade de obter ou criar o mesmo recurso (ou similar) a custos competitivos?

  4. Organização (Organization): A estrutura organizacional da firma está preparada para explorar recursos valiosos, raros e difíceis de imitar?

Ao responder a tais questionamentos com “sim” ou “não”, é possível analisar as implicações competitivas e o desempenho econômico da empresa (Barney & Hesterly, 2007Barney, J. B., & Hesterly, W. (2007). Administração estratégica e vantagem competitiva. São Paulo, SP: Prentice Hall.), conforme Quadro 1.

Quadro 1
O modelo VRIO

Assim, é possível aplicar o VRIO ao presente estudo de caso para identificar possíveis fontes de vantagem competitiva sustentável, como apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
VRIO aplicado ao caso Fleury

Conforme a análise apresentada no Quadro 2, é possível perceber que o Grupo Fleury desenvolveu vários recursos/capacidades valiosos, raros e difíceis de imitar, os quais são utilizados pela organização de forma sistemática. Talvez o modelo VRIO seja mais adequado do que as cinco forças de Porter atualmente, já que novas forças poderosas, como tecnologia da informação, globalização e desregulamentação, não foram consideradas por Porter (Isabelle, 2020Isabelle, D. (2020). Is Porter’s five forces framework still relevant? A study of the capital/labour intensity continuum viamining and IT industries. Technology Innovation Management Review, 10(6), 28-41.). No entanto, como em geral o modelo de Porter é uma matéria clássica/obrigatória em estratégia, recomendamos que o docente explore a capacidade analítica de tais modelos com os discentes, após as análises aqui propostas.

Em resumo, pode-se destacar que:

  1. A competição acirrada no mercado privado de medicina diagnóstica no Brasil leva à redução de custos, à competição por custos baixos e à demanda dos pacientes por melhores níveis de serviço, o que pode levar à comoditização.

  2. Para manter a lucratividade nos negócios atuais, é necessária inovação incremental contínua.

  3. Para ter crescimento sustentável, é necessário investir em novos mercados e clientes - não atendidos e insatisfeitos -, isto é, buscar inovação disruptiva para atingir diferenciação e preço superior aos concorrentes e ser reconhecido pelo mercado pela excelência do serviço prestado.

Questão 3: ambidestria organizacional

De acordo com O’Reilly e Tushman (2004O’Reilly, C. A., & Tushman, M. L. (2004). The ambidextrous organization. Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2004/04/the-ambidextrous-organization
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, 2013O’Reilly, C.A., & Tushman, M. L. (2013). Organizational ambidexterity: past, present, and future. Academy of Management Perspectives, 27, 324-338.), para que uma organização seja considerada ambidestra, seus executivos devem explorar novas oportunidades de inovação ao mesmo tempo que dão andamento ao negócio atual, capacidade cada vez mais exigida num mercado que sofre constantes, profundas e aceleradas transformações.

A habilidade da empesa de executar seu modelo de negócio atual (foco no lucro) é denominada exploitation, enquanto a de inovar ou explorar novos modelos de negócios (foco no crescimento) é chamada de exploration. O foco na primeira requer estratégia, estrutura, processo e cultura que diferem daqueles requeridos em exploration. As principais diferenças entre exploitation e exploration são apresentadas no Quadro 3.

Quadro 3
Diferenças entre exploitation e exploration

Não é de admirar que muitas empresas falhem ao tentar ser ambidestras, muitas vezes focando apenas no negócio atual, correndo o risco de se tornarem obsoletas, ou focando somente nas oportunidades para o futuro, as quais têm menor capacidade de geração de caixa em curto prazo. Por esse motivo, uma das necessidades para as organizações ambidestras é ter times (seniores) e gestores capazes de entender e ser sensíveis às necessidades de uma variedade de negócios.

Uma forma poderosa de pensar sobre o crescimento impulsionado pela inovação é justamente pela inovação disruptiva (Christensen et al., 2015Christensen, C. M., Raynor, M. E., & Mcdonald, R. (2015). What is disruptive innovation?Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2015/12/what-is-disruptive-innovation
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). Para os autores, ela está associada à entrega de funcionalidades mais adequadas em produtos ou serviços - muitas vezes, por um preço mais baixo do que os praticados pelas empresas já estabelecidas - em determinado segmento. Isso significa que supera uma tecnologia existente dominante no mercado.

A fim de auxiliar no melhor entendimento sobre o conceito de inovação disruptiva, as seguintes características podem ser úteis: (i) disruptivo, processo pelo qual uma empresa com menos recursos é capaz de desafiar empresas estabelecidas; (ii) as grandes empresas se concentram em melhorar seus produtos e serviços para os clientes mais exigentes (mais rentáveis), excedem as necessidades de alguns segmentos e ignoram as necessidades dos outros; (iii) inovações disruptivas começam pelos segmentos negligenciados, fornecendo uma funcionalidade mais adequada, muitas vezes a um preço mais baixo; (iv) os encarregados de maior rentabilidade em segmentos mais exigentes tendem a não responder vigorosamente; (v) os participantes disruptivos, então, se movem para a alta qualidade, oferecendo o desempenho aos principais clientes dos incumbentes, servindo às vantagens que levaram ao seu sucesso inicial. Quando os clientes do mainstream começam a adotar os produtos dos entrantes, há ruptura.

De acordo com Bower e Christensen (1995Bower, J. L., & Christensen, C. M. (1995). Disruptive technologies: catching the wave. Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/1995/01/disruptive-technologies-catching-the-wave
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), empresas líderes de suas indústrias fracassam em permanecer no topo quando são surpreendidas por mudanças na tecnologia ou no mercado em que atuam. Para os autores, as instituições que conseguem se estabelecer no topo são aquelas que se mantêm à frente das concorrentes no desenvolvimento e na comercialização de novas tecnologias, desde que estas sejam capazes de suprir as necessidades da próxima geração de clientes.

Levando essas considerações para o contexto do Grupo Fleury, o caso apresentou várias inovações disruptivas, como o lançamento da marca a+ Medicina Diagnóstica, que se adequa à definição dada por Christensen et al. (2015Christensen, C. M., Raynor, M. E., & Mcdonald, R. (2015). What is disruptive innovation?Harvard Business Review. Recuperado de https://hbr.org/2015/12/what-is-disruptive-innovation
https://hbr.org/2015/12/what-is-disrupti...
): uma inovação disruptiva começa com a entrada no mercado de menor valor agregado e, num processo evolutivo, permite o acesso a mercados não explorados.

Com base nessas considerações, o Grupo Fleury pode ser caracterizado como uma organização ambidestra, pois suas atividades críticas estão voltadas tanto para a inovação incremental (exploitation) quanto para a disruptiva (exploration) (veja Figura 3). Outros fatores que também o caracterizam como empresa ambidestra são suas competências operacionais, como melhorias/automação no processo produtivo; suas aptidões empreendedoras, como o laboratório de referência, em que outros laboratórios enviam material de clientes para ser analisado no Grupo Fleury; e seu papel da liderança, ao ser visionário e envolvedor, exemplificado pela chamada pública de projetos de inovação na área médica.

Já que a ambidestria organizacional é um estágio a ser percorrido - não uma decisão momentânea - e a competitividade é uma jornada, à medida que as inovações são absorvidas e consolidadas pela organização, é solidificada uma troca de interação interna e externa com os clientes, o que leva a uma maturidade organizacional. Como consequência, o acúmulo de recursos (veja Quadro 2) e das inovações (veja Figura 3), em médio e logo prazos, trouxe a vantagem competitiva sustentável do Grupo Fleury, dando à empresa a possibilidade de sobressair frente aos concorrentes, mesmo em época de crise econômica.

Assim, é possível verificar que o Grupo Fleury, ao longo de mais de 90 anos de história, já desenvolveu a capacidade de trabalhar na eficiência operacional, melhorando os produtos existentes - quanto a custo e qualidade - ao mesmo tempo que busca novos mercados para gerar um crescimento sustentável.

Questão 4: desafios enfrentados por uma organização ambidestria

O principal desafio para o sucesso de uma organização ambidestra é criar e manter um fluxo intenso de informação e conexão entre o mercado principal (mainstream) e o novo mercado (newstream). De acordo com Kanter (1989Kanter, R. M. (1989). Swimming in newstreams: mastering innovation dilemmas. California Management Review, 31(4), 45-69.), as organizações são mais efetivas quando os diferentes recursos necessários no mainstream e no newstream são reconhecidos e a gestão é feita de forma autônoma. Ao administrar as unidades de negócios dessa maneira, é possível balancear as tensões de estabilidade e de mudança, conforme a Figura 5, pois as atividades no mainstream geram recursos para o desenvolvimento dos mercados no newstream, que, por sua vez, são assimilados de volta no mainstream. Esse ciclo é melhorado continuamente, com a constante comunicação entre os dois segmentos.

Figura 5
Modelo de inovação integrado: balanço entre inovação incremental de produtos, processos e sistemas nos negócios existentes e novos modelos de negócio

Retomamos aqui o exemplo da aquisição da SantéCorp, apresentada no caso como a segunda escolha estratégica para o ano de 2018: estender a atuação da empresa no setor de saúde para além do processo diagnóstico. Com o negócio da gestão de saúde, o Grupo Fleury adquiriria/desenvolveria a capacidade de trabalhar com dados populacionais e, a partir deles, identificar padrões e agir sobre essas informações, de forma a prevenir eventos indesejáveis de saúde, desperdício no consumo de serviços de saúde ou mudanças no estilo de vida.

Esse conjunto de ações, que é calcado nos dados obtidos - clínicos, laboratoriais e comportamentais -, demandaria da organização a estruturação de uma área de análise de dados para ser capaz de identificar padrões, tendências, e atuar de forma a modificar a história natural dos eventos mórbidos de saúde na população assistida. Ao aproveitar o conhecimento adquirido no newstream - mercado de medicina assistencial - para alimentar o mainstream - mercado de medicina diagnóstica -, e vice-versa, o Grupo Fleury seria capaz de tornar-se uma empresa mais efetiva.

Em contrapartida, caso a administração das diferentes necessidades do mainstream e do newstream seja feita de forma independente uma da outra, é improvável que haja sucesso, principalmente num ambiente dinâmico e turbulento, como é o caso do mercado privado de medicina diagnóstica no Brasil.

O Grupo Fleury após 2018

A decisão tomada pelo Grupo Fleury em 2018 foi a de conciliar estratégias que beneficiassem, simultaneamente, as operações atuais, com a aquisição do Instituto de Radiologia de Natal em 01 de março de 2018, e a identificação de oportunidades futuras, com a aquisição da SantéCorp, em 4 de dezembro 2018. Tais aquisições permitiram a entrada do grupo num novo mercado, reforçando a oferta de produtos/serviços no Nordeste. Nos anos que se seguiram, ficou demonstrado, pela execução da estratégia de prestação de serviços de saúde ao longo da jornada do paciente, que o movimento de aquisição da SantéCorp foi o embrião de uma nova linha de negócios.

Essa nova frente, que vai muito além do elo de medicina diagnóstica, se tornou progressivamente baseada em tecnologia, envolvendo ciência de dados e inteligência artificial para aprimoramento dos protocolos de individualização da assistência, mesmo em larga escala, constituindo uma nova marca, a Saúde iD. Esse novo empreendimento, pioneiro na saúde, é conhecido como economia de plataforma e atua em diferentes dimensões de mercado, em comparação com o negócio tradicional - os investimentos não são realizados em estrutura física, e sim em tecnologia, e a prestação de serviço não é realizada exclusivamente pelo Grupo Fleury, que conta com parceiros - os quais, inclusive, podem ser os concorrentes -, o que dá uma capacidade de ganho muito maior, atendendo às necessidades de saúde de um mercado crescente e presente mesmo em geografias nas quais a empresa não está presente.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2021
  • Aceito
    27 Ago 2021
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