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Capitalismo de vigilância, poder da digitalização e as crianças: uma análise do discurso de pais e tutores

Capitalismo de vigilancia, poder de la digitalización y los niños: un análisis del discurso de padres y tutores

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar as percepções de pais e tutores sobre o uso de dados das crianças pelas organizações que compõem o chamado capitalismo de vigilância. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa quali-quanti, que contou com a participação de 565 respondentes na parte quantitativa, sendo que 107 deles preencheram uma pergunta aberta optativa, correspondente à etapa qualitativa, comentando sobre suas percepções ou preocupações acerca da utilização de dados por empresas com foco no público infantil. Os resultados quantitativos apontaram que, mesmo percebendo um aumento no volume de uso de mídias e dispositivos digitais pelas crianças, pais e tutores raramente (ou nunca) leem os termos de consentimento. Além disso, a análise de discurso das respostas à pergunta aberta, na parte qualitativa do estudo, mostrou que os respondentes se silenciam a respeito da responsabilidade das organizações que compõem o capitalismo de vigilância. Dessa forma, atribuem a si mesmos, a terceiros ou a situações contextuais as eventuais distorções no uso de dispositivos e mídias digitais pelas crianças, bem como na expropriação e na exploração dos dados pelas organizações. Para o campo da administração, os achados representam um avanço nas discussões sobre o lado obscuro (darkside) da digitalização, especialmente no Brasil, onde o tema permanece inédito.

Palavras-chave:
Capitalismo de vigilância; Poder; Digitalização; Crianças; Análise crítica de discurso

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo analizar las percepciones de padres y tutores sobre el uso de datos sobre los niños por parte de las organizaciones que conforman el llamado capitalismo de vigilancia. Para ello, se desarrolló una encuesta cuali-cuanti, que contó con la participación de 565 encuestados en la parte cuantitativa, de los cuales 107 respondieron una pregunta abierta opcional, correspondiente a la etapa cualitativa, comentando sus percepciones o inquietudes sobre el uso de datos por empresas que se enfocan en la audiencia infantil. Los resultados cuantitativos mostraron que, aun notando un aumento en el volumen de uso de medios y dispositivos digitales por parte de los niños, sus padres y tutores nunca o casi nunca leen los términos de consentimiento. Además, el análisis del discurso de las respuestas a la pregunta abierta, en la parte cualitativa de la investigación, mostró que los participantes guardan silencio sobre la responsabilidad de las organizaciones que conforman el capitalismo de vigilancia. Así, atribuyen a sí mismos, a terceros o a situaciones contextuales las distorsiones en el uso de dispositivos y medios digitales por parte de los niños, así como en la expropiación y explotación de datos por parte de las organizaciones. Para el campo de la administración, los hallazgos representan un avance en las discusiones sobre el lado oscuro de la digitalización, especialmente en Brasil, donde el tema permanece inédito.

Palabras clave:
Capitalismo de vigilancia; Poder; Digitalización; Niños; Análisis crítico del discurso

Abstract

This study analyzes the perceptions of parents and guardians about the use of children’s data by organizations that make up the so-called surveillance capitalism. We developed a quali-quanti survey, which counted 565 respondents in the quantitative part, 107 of whom filled in an open-ended questionnaire corresponding to the qualitative stage of the research, commenting on their perceptions or concerns about the use of data by companies whose audience is children. The quantitative results showed that even noticing an increase in the volume of use of digital media and devices by children, parents, and guardians never or almost never read the consent form. Furthermore, the discourse analysis of the answers to the open questionnaire in the qualitative part of the research showed that the participants are silent about the responsibility of organizations that make up surveillance capitalism. Thus, parents and guardians attribute to themselves, third parties, or contextual situations any distortions in the use of digital devices and media by children and in the expropriation and exploitation of data by organizations. For the field of business, the findings represent an advance in discussions on the dark side of digitization, especially in Brazil, where the topic is still unpublished.

Keywords:
Surveillance capitalism; Power; Scanning; Kids; Critical discourse analysis.

INTRODUÇÃO

O advento dos dispositivos digitais e da conectividade (Leonardi & Treen, 2020Leonardi, P. M., & Treem, J. W. (2020). Behavioral visibility: a new paradigm for organization studies in the age of digitization, digitalization, and datafication. Organization Studies, 41(12), 1601-1625.) viabilizou a adoção de recursos como big data (Davenport, 2014Davenport, T. (2014). Big data at work: dispelling the myths, uncovering the opportunities. Boston, MA: Harvard Business Review Press.) e internet das coisas, para o desempenho de atividades pessoais e laborais, estruturando novas formas de viver, suscitando desafios e oportunidades (Davenport, 2014Davenport, T. (2014). Big data at work: dispelling the myths, uncovering the opportunities. Boston, MA: Harvard Business Review Press.). Entre as características dessa sociedade digitalizada, está a importância atribuída aos dados dos usuários como forma de recursos (Couldry & Mejías, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Vianna & Meneghetti, 2020Vianna, F. R. P. M., & Meneghetti, F. K. (2020). Is it crowdsourcing or crowdsensing? An analysis of human participation in digital platforms in the age of surveillance capitalism. Revista Eletrônica de Administração, 26(1), 176-209.), levando as organizações a buscarem sua acumulação num modelo de capitalismo, denominado capitalismo de vigilância (Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.). Nele, os dados pessoais acumulados, oriundos de relações e interações entre indivíduos e por meio das plataformas digitais, são processados em sistemas algorítmicos (Kellogg, Valentine, & Christin, 2020Kellogg, K. C., Valentine, M. A., & Christin, A. (2020). Algorithms at work: The new contested terrain of control. Academy of Management Annals, 14(1), 366-410.; Srnicek, 2017Srnicek, N. (2017). Platform capitalism. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons.). O resultado desse processamento é conhecido por dataficação (Couldry & Mejias, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Leonardi & Treen, 2020Leonardi, P. M., & Treem, J. W. (2020). Behavioral visibility: a new paradigm for organization studies in the age of digitization, digitalization, and datafication. Organization Studies, 41(12), 1601-1625.), que permite às organizações mercantilizarem as informações de seus usuários com o objetivo de influenciar seus comportamentos (O’Neil, 2016O’Neil, C. (2016). Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy. New York, NY: Broadway Books.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.). A dataficação provocou mudanças nas relações sociais dentro e ao redor das organizações, ensejando novas relações de poder, que devem ser mediadas por termos de consentimentos (Belli & Venturini, 2016Belli, L., & Venturini, J. (2016). Private ordering and the rise of terms of service as cyber-regulation. Internet Policy Review, 5(4), 1-17.) e governança digital (Chandler & Fuchs, 2019Chandler, D., & Fuchs, C. (2019). Digital objects, digital subjects: interdisciplinary perspectives on capitalism, labour and politics in the age of big data. London, UK: University of Westminster Press.).

No caso das organizações que compõem o capitalismo de vigilância, seus resultados financeiros vêm crescendo, em especial durante a pandemia da COVID-19 (Collins, Ocampo, & Paslaski, 2020Collins, C., Ocampo, O., & Paslaski, S. (2020). Billionaire bonanza 2020: wealth windfalls, tumbling taxes, and pandemic profiteers. Washington, DC: Institute for Policy Studies. Recuperado de https://ips-dc.org/billionaire-bonanza-2020/
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), evidenciando uma lacuna de pesquisa no que tange aos limites éticos e às consequências desse novo modelo de sociedade. O momento de pandemia evidenciou as desigualdades relacionadas com o acesso à digitalização e seus recursos (Beaunoyer, Dupéré, & Guitton, 2020Beaunoyer, E., Dupéré, S., & Guitton, M. J. (2020, outubro). Covid-19 and digital inequalities: reciprocal impacts and mitigation strategies. Computers in Human Behavior, 111, 106424.), a flexibilização formal da privacidade (Fahey & Hino, 2020Fahey, R. A., & Hino, A. (2020, dezembro). Covid-19, digital privacy, and the social limits on data-focused public health responses. International Journal of Information Management, 55, 102181.) e a adoção de novas ferramentas digitais (Gasser, Ienca, Scheibner, Sleigh, & Vayena, 2020Gasser, U., Ienca, M., Scheibner, J., Sleigh, J., & Vayena, E.(2020). Digital tools against covid-19: taxonomy, ethical challenges, and navigation aid. The Lancet Digital Health, 2(8), 425-434.), demandando pesquisas e investigações sobre os novos contornos da vida social e organizacional que envolvem a digitalização da sociedade.

Na área de estudos organizacionais, pesquisas recentes exploraram esse fenômeno ou temas correlatos sobre as relações entre os indivíduos e as organizações digitalizadas (Bucher, Schou, & Waldkirch, 2021Bucher, E. L., Schou, P. K., & Waldkirch, M. (2021). Pacifying the algorithm-Anticipatory compliance in the face of algorithmic management in the gig economy. Organization, 28(1), 44-67.; K. T. Elmholdt, C. Elmholdt, & Haahr, 2021Elmholdt, K. T., Elmholdt, C., & Haahr, L. (2021). Counting sleep: ambiguity, aspirational control and the politics of digital self-tracking at work. Organization, 28(1), 164-185.; Walker, Fleming, & Berti, 2021Walker, M., Fleming, P., & Berti, M. (2021). ‘You can’t pick up a phone and talk to someone’: How algorithms function as biopower in the gig economy. Organization, 28(1), 26-43.), inclusive por meio de chamadas especiais (Blevins & Ragozzino, 2019Blevins, D. P., & Ragozzino, R. (2019). On social media and the formation of organizational reputation: How social media are increasing cohesion between organizational reputation and traditional media for stakeholders. Academy of Management Review, 44(1), 219-222.; Etter, Ravasi, & Colleoni, 2019Etter, M., Ravasi, D., & Colleoni, E. (2019). Social media and the formation of organizational reputation. Academy of Management Review, 44(1), 28-52.; Trittin-Ulbrich, Scherer, Munro, & Whelan, 2021Trittin-Ulbrich, H., Scherer, A. G., Munro, I., & Whelan, G. (2021). Exploring the dark and unexpected sides of digitalization: toward a critical agenda. Organization, 28(1), 8-25.). No entanto, apesar da atenção recente atribuída ao tema, a relação entre as organizações e uma possível vigilância e dataficação das crianças (Mascheroni, 2018Mascheroni, G. (2018). Researching datafied children as data citizens. Journal of Children and Media, 12(4), 517-523.) ainda não foi abordada. A importância desses estudos repousa, em especial, sobre um possível tensionamento que envolve a importância das novas tecnologias na vida das crianças e a presença assídua de mídias digitais e redes sociais, bem como seus derivados - por exemplo, jogos e canais -, no desenvolvimento social e educacional das crianças (Marsh et al., 2017Marsh, J., Mascheroni, G., Carrington, V., Árnadóttir, H., Brito, R., Dias, P., ... Trueltzsch-Wijnen, C. (2017). The online and offline digital literacy practices of young children: a review of the literature. Brussels, Belgium: COST Action; Rideout, 2017Rideout, V.(2017). The common sense census: media use by kids age zero to eight. San Francisco, CA: Common Sense Media.; Scantlin, 2008Scantlin, R. (2008). Media use across childhood: access, time, and content. In S. L. Calvert, & B. J. Wilson (Eds.), The Handbook of Children, Media, and Development (pp. 51-73). West Sussex, UK: Blackwell Pub.). De igual modo, o potencial de vigilância e expropriação de dados dessas ferramentas também desperta interesse e preocupação de parte da comunidade acadêmica (Holloway, Green, & Livingstone, 2013Holloway, D., Green, L., & Livingstone, S. (2013). Zero to eight: young children and their internet use. London, UK: EU Kids Online.; Lupton & Williamson, 2017Lupton, D., & Williamson, B. (2017). The datafied child: the dataveillance of children and implications for their rights. New Media & Society, 19(5), 780-794.; Marsh et al., 2017; Rideout, 2017). Assim, aspectos historicamente constitutivos da área de estudos organizacionais, como a crítica ao mainstream, ao instrumentalismo (Adler, Forbes, & Willmott, 2007Adler, P. S., Forbes, L. C., & Willmott, H. (2007). 3 Critical management studies. Academy of management annals, 1(1), 119-179.) e ao desempenho de poder (Fleming & Spicer, 2014), podem apresentar novos contornos nesse cenário.

Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar a percepção de pais e tutores a respeito do uso dos dados expropriados de crianças por organizações que atuam por meio de mídias, dispositivos e plataformas digitais. Nesse caso, as crianças foram caracterizadas como indivíduos de até 12 anos incompletos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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). Para tanto, foi desenvolvida uma survey de 24 afirmativas, com respostas em escala Likert, adicionada de 1 questão aberta discursiva e de resposta opcional ao final. A pesquisa obteve 565 respondentes, sendo que 107 responderam à questão aberta final.

O artigo apresenta 2 principais contribuições, sendo a primeira prática, de acordo com a realidade brasileira e apoiada nos dados de sua etapa quantitativa - mostrando, por exemplo, que mais da metade dos participantes afirma que as crianças sob sua responsabilidade têm um dispositivo digital próprio e que 66% dizem que raramente ou nunca leem os termos de consentimento que regulam a relação entre as crianças e dispositivos, plataformas e mídias digitais. Com isso, oferecemos aos atores da sociedade interessados na temática uma ideia de um cenário em que diferentes stakeholders podem ser responsabilizados e controlados pelas ações das organizações digitalizadas, com exceção delas próprias.

A segunda principal contribuição do artigo é teórica e concentrada nos estudos sobre capitalismo de vigilância e lado obscuro da digitalização. Desse modo, as respostas à questão discursiva evidenciaram um fenômeno de não responsabilização das organizações plataformizadas pela coleta e pelo uso dos dados das crianças, o que foi observado no silenciamento de pais e tutores a respeito do uso dos dados das crianças e sua aplicação na definição de conteúdos publicados, anúncios e controle do público infantil de usuários. Essa contribuição teórica combina aspectos que vêm sendo discutidos nos estudos organizacionais e sugere a necessidade de diálogos com diferentes áreas, como direito, psicologia e pedagogia nas discussões a respeito de organizações digitais. Por fim, a contribuição metodológica adotada está ligada ao desenvolvimento de uma pesquisa de métodos mistos, com o objetivo de melhor explicar um fenômeno recente.

O trabalho está organizado da seguinte forma: após esta introdução, é apresentado o referencial teórico, abordando o poder de plataformas e aplicativos digitais, assim como o poder do modelo de capitalismo de vigilância. Em seguida, é apresentada a relação entre a digitalização e as crianças, para, então, se apresentar o método de pesquisa. Em seguida, são expostos os resultados da pesquisa e as categorias que emergiram das análises. Por fim, são feitas as considerações finais.

PODER DAS PLATAFORMAS E DOS APLICATIVOS DIGITAIS

Estudos sobre poder analisam tanto os pequenos grupos e os ambientes internos das organizações e suas ligações quanto as relações entre organizações (Perrow, 1991Perrow, C. (1991). A society of organizations. Theory and Society, 20(6), 725-762.; Thompson, 1956Thompson, J. D. (1956). Authority and power in” identical” organizations. American Journal of Sociology, 62(3), 290-301.). Dessa forma, diferentes conceitos e lentes emergiram dos estudos sobre poder, observando-o como um fenômeno positivo ou negativo, legítimo ou ilegítimo, entre outras variações de formas e aplicações (Weber, 1999Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB.; Clegg, Courpasson, & Phillips, 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.; Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .).

Apesar de alterações e adaptações nos conceitos, o poder está na base das relações das organizações sociais, manifestando-se de maneira política e podendo representar uma forma de dominação (Weber, 1999Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB.; Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .). Esse imbricamento entre a dimensão política e o conceito de poder é observado na imposição e na manutenção de sistemas organizacionais racionais (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.). Tais sistemas visam solucionar tensionamentos entre os objetivos dos indivíduos e das organizações em suas relações (Clegg et al., 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.; Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.).

Com as organizações priorizando a incessante busca por eficiência em seus processos (Bunderson & Reagans, 2011Bunderson, J. S., & Reagans, R. E. (2011). Power, status, and learning in organizations. Organization Science, 22(5), 1182-1194.), observa-se um exercício de dominação dentro e no entorno delas, relacionado com fatores econômicos e sobrepondo-se, inclusive, a questões éticas (Barley, 2010). A manifestação desse poder ocorre de diferentes formas sobre os vínculos sociais no âmbito das instituições. Internamente, pode se dar quando um processo é ineficiente e demanda uma correção (Clegg et al., 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.). Assim, o poder é referente à atividade gerencial para o devido direcionamento de condutas dos indivíduos e do próprio gestor, num modo de autodominação (Clegg et al., 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.; Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .).

Além disso, o poder pode se manifestar como um poder sobre e um poder para (Pansardi, 2012Pansardi, P. (2012). Power to and power over: two distinct concepts of power? Journal of Political Power, 5(1), 73-89.), em que determinada relação social é afetada por uma parte que tem prioridade sobre outra e para alcançar certo objetivo. Por fim, o poder organizacional pode estar ligado ao alcance de determinados objetivos por meio de terceiros, mesmo que tais objetivos não sejam comungados por todos os envolvidos (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.). Na era da digitalização, pesquisadores críticos vêm atentando para a assimetria de poder que permeia as relações entre as organizações que desenvolvem e gerenciam as plataformas digitais e os usuários finais (Fuchs, 2021Fuchs, C. (2021). Social media: a critical introduction. London, UK: Sage .; Poell, Nieborg, & Van Dijck, 2019Poell, T., Nieborg, D., & Van Dijck, J. (2019). Platformisation. Internet Policy Review, 8(4), 1-13.). Esse poder envolve a concentração nas mãos de poucas organizações e a opacidade da relação entre as organizações e seus usuários (Gillespie, 2018Gillespie, T. (2018). Custodians of the internet: platforms, content moderation, and the hidden decisions that shape social media. New Haven, CT: Yale University Press.), já que eles desconhecem o sistema com o qual se relacionam e encontram dificuldades para deixá-lo (Barwise & Watkins, 2018Barwise, P., & Watkins, L. (2018). The evolution of digital dominance. In M. Moore, & D. Tambini (Eds.), Digital dominance: the power of Google, Amazon, Facebook, and Apple (pp. 21-49). Oxford, UK: Oxford University Press.; Poell et al., 2019Poell, T., Nieborg, D., & Van Dijck, J. (2019). Platformisation. Internet Policy Review, 8(4), 1-13.).

O PODER DAS ORGANIZAÇÕES NO CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA

As tecnologias digitais impactaram no desenvolvimento de uma nova forma de viver (Van Dijck, 2013Van Dijck, J. (2013). The culture of connectivity: a critical history of social media. London, UK: Oxford University Press.), influenciando o cotidiano das organizações (Davenport, 2014Davenport, T. (2014). Big data at work: dispelling the myths, uncovering the opportunities. Boston, MA: Harvard Business Review Press.) e da vida privada (Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.). Com isso, observam-se novas formas de manifestações de poder nas relações sociais (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.; Pansardi, 2012Pansardi, P. (2012). Power to and power over: two distinct concepts of power? Journal of Political Power, 5(1), 73-89.), mediadas pelas tecnologias da informação, sobretudo por plataformas e algoritmos (Beer, 2009Beer, D. (2009). Power through the algorithm? Participatory web cultures and the technological unconscious. New media & society, 11(6), 985-1002.; K. T. Elmholdt et al., 2021Elmholdt, K. T., Elmholdt, C., & Haahr, L. (2021). Counting sleep: ambiguity, aspirational control and the politics of digital self-tracking at work. Organization, 28(1), 164-185.). Essa nova realidade social, que conta com interações por meio de mídias e dispositivos digitais conectados, é nomeada de diferentes formas, da qual o termo “capitalismo de vigilância”, cunhado por Zuboff (2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.), é um dos que se consolidaram na atualidade.

O capitalismo de vigilância representa um sistema composto por organizações que, diferentemente das analógicas, primeiro contam com os indivíduos, suas relações sociais e seus comportamentos como principais recursos (Couldry & Mejias, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Leonardi & Treen, 2020Leonardi, P. M., & Treem, J. W. (2020). Behavioral visibility: a new paradigm for organization studies in the age of digitization, digitalization, and datafication. Organization Studies, 41(12), 1601-1625.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.); depois, atuam por meio de plataformas digitais (Poell et al., 2019Poell, T., Nieborg, D., & Van Dijck, J. (2019). Platformisation. Internet Policy Review, 8(4), 1-13.; Srnicek, 2017Srnicek, N. (2017). Platform capitalism. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons.); por fim, têm sua gestão mediada por algoritmos (Kellogg et al., 2020Kellogg, K. C., Valentine, M. A., & Christin, A. (2020). Algorithms at work: The new contested terrain of control. Academy of Management Annals, 14(1), 366-410.). Essas organizações são representadas em suas esferas mais altas por Facebook, Amazon, Google, Microsoft e Apple (Couldry & Mejías, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Foer, 2017Foer, F. (2017). World without mind. New York, NY: Penguin Press.). Faz-se necessário mencionar que essas empresas, com o advento da pandemia da COVID-19, vêm combinando números cada vez mais elevados de usuários e usos de suas ferramentas, alcançando resultados financeiros elevados (Collins et al., 2020Collins, C., Ocampo, O., & Paslaski, S. (2020). Billionaire bonanza 2020: wealth windfalls, tumbling taxes, and pandemic profiteers. Washington, DC: Institute for Policy Studies. Recuperado de https://ips-dc.org/billionaire-bonanza-2020/
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).

A manifestação de poder dessas instituições ocorre pelas novas formas com que fazem sua gestão e se relacionam com os indivíduos, com outras organizações e com o Estado, podendo ser observadas por 4 características. Em primeiro lugar, elas coletam dados não estruturados ou semiestruturados (Kitchin, 2014Kitchin, R. (2014). The data revolution: Big data, open data, data infrastructures and their consequences. London, UK: Sage .), oriundos de comportamentos e interações sociais fragmentadas (Lindgren, 2017Lindgren, S. (2017). Digital media and society. London, UK: Sage .) e que demandam complexas estruturas e conhecimento para serem ordenados e quantificados, num processo de dataficação (Couldry & Mejias, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Leonardi & Treen, 2020Leonardi, P. M., & Treem, J. W. (2020). Behavioral visibility: a new paradigm for organization studies in the age of digitization, digitalization, and datafication. Organization Studies, 41(12), 1601-1625.). Dessa forma, as organizações do capitalismo de vigilância detêm exclusividade em relação à forma e ao conteúdo das informações divididas com usuários e parceiros (Constantiou & Kallinikos, 2015Constantiou, I. D., & Kallinikos, J. (2015). New games, new rules: big data and the changing context of strategy. Journal of Information Technology, 30(1), 44-57.).

Em segundo lugar, a ubiquidade da digitalização em nossas vidas, por meio de dispositivos conectados (Mosco, 2017Mosco, V. (2017). Becoming digital: toward a post-internet society. Bingley, UK: Emerald Group Publishing.) e inúmeras plataformas, cada qual com regras próprias de funcionamento, dificulta o controle sobre suas atuações (Gillespie, 2018Gillespie, T. (2018). Custodians of the internet: platforms, content moderation, and the hidden decisions that shape social media. New Haven, CT: Yale University Press.).

Em terceiro lugar, as características neoliberais que permeiam a era da digitalização (Fuchs, 2014) deslocaram a responsabilidade de controle sobre algoritmos e plataformas digitais para as próprias organizações proprietárias, num fenômeno de autorregulação privada nomeada de “governança digital” (Chandler & Fuchs, 2019Chandler, D., & Fuchs, C. (2019). Digital objects, digital subjects: interdisciplinary perspectives on capitalism, labour and politics in the age of big data. London, UK: University of Westminster Press.). Nesse caso, as relações passaram a ser mediadas pelos termos de consentimento, desenvolvidos unilateralmente pelas organizações proprietárias de plataformas, mídias, dispositivos, e impostas como condição inegociável para o uso delas (Venturini et al., 2016Venturini, J., Louzada, L., Maciel, M. F., Zingales, N., Stylianou, K., & Belli, L. (2016). Terms of service and human rights: an analysis of online platform contracts. Rio de Janeiro, RJ: Revan.).

Por fim, tecnologias como big data são capazes de capturar e processar grandes volumes de dados para apresentarem novas oportunidades às organizações (Davenport, 2014Davenport, T. (2014). Big data at work: dispelling the myths, uncovering the opportunities. Boston, MA: Harvard Business Review Press.), como os serviços de anúncios customizados (Ruckenstein & Granroth, 2020Ruckenstein, M., & Granroth, J. (2020). Algorithms, advertising and the intimacy of surveillance. Journal of Cultural Economy, 13(1), 12-24.) oferecidos pelo Google e pelo Facebook. Assim, os dados de seus usuários são processados por algoritmos (O’Neil, 2016O’Neil, C. (2016). Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy. New York, NY: Broadway Books.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.) para atender, exclusivamente, aos objetivos dessas organizações e das pessoas que as gerem (Fleming, 2019Fleming, P. (2019). Robots and organization studies: why robots might not want to steal your job. Organization Studies, 40(1), 23-38.; Morozov, 2018Morozov, E. (2018). Big tech. São Paulo, SP: Ubu Editora.).

O PODER DA DIGITALIZAÇÃO E AS CRIANÇAS

As pesquisas sobre digitalização na área de estudos organizacionais contam com importantes chamadas e trabalhos publicados em periódicos nos últimos anos (Alaimo, 2021Alaimo, C. (2021, julho). From people to objects: the digital transformation of fields. Organization Studies. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/01708406211030654
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; K. T. Elmholdt et al., 2021Elmholdt, K. T., Elmholdt, C., & Haahr, L. (2021). Counting sleep: ambiguity, aspirational control and the politics of digital self-tracking at work. Organization, 28(1), 164-185.; Leonardi & Treem, 2020Leonardi, P. M., & Treem, J. W. (2020). Behavioral visibility: a new paradigm for organization studies in the age of digitization, digitalization, and datafication. Organization Studies, 41(12), 1601-1625.; Schwarzkopf, 2020Schwarzkopf, S. (2020). Sacred excess: organizational ignorance in an age of toxic data. Organization Studies, 41(2), 197-217.) e que envolvem, sobretudo, mídias sociais, dataficação e trabalho plataformizado. No Brasil, foram desenvolvidos estudos com foco na dimensão do trabalho plataformizado (Franco & Ferraz, 2019Franco, D. S., & Ferraz, D. L. D. S. (2019). Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE.BR, 17(Especial), 844-856.) e plataformas de capitalismo de vigilância (Vianna & Meneghetti, 2020Vianna, F. R. P. M., & Meneghetti, F. K. (2020). Is it crowdsourcing or crowdsensing? An analysis of human participation in digital platforms in the age of surveillance capitalism. Revista Eletrônica de Administração, 26(1), 176-209.). Dessa forma, observou-se uma lacuna sobre estudos que abordem o uso dessas tecnologias pelas crianças.

Tendo em vista a indissociabilidade de mídias e plataformas digitais da vida das pessoas, o fenômeno da digitalização e do capitalismo de vigilância alcança também os ambientes de aprendizagens e lazer das crianças, incluindo casas e escolas (Morgade, Aliagas, & Poveda, 2019Morgade, M., Aliagas, C., & Poveda, D. (2019). Reconceptualizing the home of digital childhood. In M. Morgade, C. Aliagas, & D. Poveda (Eds.), The routledge handbook of digital literacies in early childhood. London, UK: Routledge.). Desse modo, o desenvolvimento de conteúdos de mídia para crianças, antes focado no cinema e na televisão, hoje observa a intensificação da criação de conteúdos digitais desde a primeira infância (Wartella & Robb, 2008Wartella, E., & Robb, M. (2008). Historical and recurring concerns about children’s use of the mass media. In S. L. Calvert , & B. J. Wilson (Eds.), The Handbook of Children, Media, and Development (pp. 7-26). West Sussex, UK: Blackwell Pub .).

Autores que pesquisam a área de desenvolvimento infantil e tecnologias, assim como pesquisas que buscaram entender a importância das novas tecnologias na vida das crianças, atentam para o papel de mídias digitais e redes sociais no desenvolvimento social e educacional das crianças (Marsh et al., 2017Marsh, J., Mascheroni, G., Carrington, V., Árnadóttir, H., Brito, R., Dias, P., ... Trueltzsch-Wijnen, C. (2017). The online and offline digital literacy practices of young children: a review of the literature. Brussels, Belgium: COST Action; Rideout, 2017Rideout, V.(2017). The common sense census: media use by kids age zero to eight. San Francisco, CA: Common Sense Media.; Scantlin, 2008Scantlin, R. (2008). Media use across childhood: access, time, and content. In S. L. Calvert, & B. J. Wilson (Eds.), The Handbook of Children, Media, and Development (pp. 51-73). West Sussex, UK: Blackwell Pub.). Contudo, o potencial de vigilância e expropriação de dados dessas ferramentas também desperta interesse e preocupação de parte da comunidade acadêmica (Holloway et al., 2013Holloway, D., Green, L., & Livingstone, S. (2013). Zero to eight: young children and their internet use. London, UK: EU Kids Online.; Marsh et al., 2017Marsh, J., Mascheroni, G., Carrington, V., Árnadóttir, H., Brito, R., Dias, P., ... Trueltzsch-Wijnen, C. (2017). The online and offline digital literacy practices of young children: a review of the literature. Brussels, Belgium: COST Action; Lupton & Williamson, 2017Lupton, D., & Williamson, B. (2017). The datafied child: the dataveillance of children and implications for their rights. New Media & Society, 19(5), 780-794.; Rideout, 2017Rideout, V.(2017). The common sense census: media use by kids age zero to eight. San Francisco, CA: Common Sense Media.).

Interfaces lúdicas (Shah, 2019Shah, N. (2019). Interface. In T. Beyes, R. Holt, & C. Pias (Eds.), The Oxford handbook of media, technology, and organization studies. Oxford, UK: Oxford University Press .; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.), somadas às incertezas que permeiam os termos de consentimento e as legislações (Belli & Venturini, 2016Belli, L., & Venturini, J. (2016). Private ordering and the rise of terms of service as cyber-regulation. Internet Policy Review, 5(4), 1-17.; Obar & Oeldorf-Hirsch, 2018Obar, J. A., & Oeldorf-Hirsch, A. (2018, julho). The clickwrap: a political economic mechanism for manufacturing consent on social media. Social Media + Society. Recuperado de https://doi.org/10.1177/2056305118784770
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) que regulam a captação de dados de usuários, podem resultar num ambiente de relações assimétricas. Com isso, é possível observar a prosperidade de ambientes digitais que colocam crianças, pais e tutores na condição de dominados, ao passo que insere as organizações do capitalismo de vigilância na condição de dominadoras (Brito, Dias, & Oliveira, 2018Brito, R., Dias, P., & Oliveira, G. (2018). Young children, digital media and smart toys: How perceptions shape adoption and domestication. British Journal of Educational Technology, 49(5), 807-820.; Nyst, 2018Nyst, C. (2018). Children and digital marketing: rights risks and responsibilities (Discussion Paper). Geneva, Switzerland: Unicef. Recuperado dehttps://sites.unicef.org/csr/css/Children_and_Digital_Marketing_-_Rights_Risks_and_Responsibilities.pdf
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; Vianna & Meneghetti, 2020Vianna, F. R. P. M., & Meneghetti, F. K. (2020). Is it crowdsourcing or crowdsensing? An analysis of human participation in digital platforms in the age of surveillance capitalism. Revista Eletrônica de Administração, 26(1), 176-209.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.).

Esse capitalismo de vigilância relacionado com os dados de crianças se manifesta em brinquedos e dispositivos que nem sempre são desenvolvidos para coletar seus dados, como eletrodomésticos e smartphones, mas que acabam por fazê-lo (Harris, 2017Harris, M. (2017, dezembro 27). 72M data points collected on children in spite of COPPA. App Developer Magazine. Recuperado dehttps://appdevelopermagazine.com/72m-data- points-collected -on-children-in-spite-of-coppa/
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; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.), chegando a coletar até 72 milhões de dados de crianças antes dos 13 anos (Baraniuk, 2016Baraniuk, C (2016). Call for privacy probes over cayla doll and I-Que Toys. London, UK: British Broadcasting Corporation.). Na chamada internet of toys (Holloway, 2019Holloway D, . (2019). Surveillance capitalism and children’s data: the internet of toys and things for children. Media International Australia, 170(1), 27-36.; Mascheroni & Holloway, 2019Mascheroni, G., & Holloway, D. (2019). The internet of toys: practices, affordances and the political economy of children’s smart play. London, UK: Palgrave Macmillan .), a aquisição de jogos, brinquedos, canais de televisão, mídias e redes sociais, pagas ou não, por uma criança ou seu tutor, garante a troca de dados entre esse sistema e a criança por longos períodos, desde que não haja discordância sobre os termos de consentimento (Holloway, 2019; Lupton & Williamson, 2017Lupton, D., & Williamson, B. (2017). The datafied child: the dataveillance of children and implications for their rights. New Media & Society, 19(5), 780-794.).

Apesar das semelhanças com o processo de dataficação de usuários adultos, o capitalismo de vigilância atinge as crianças também de outras formas. Jogos, desenhos, canções e expressões aprendidas por meio de dispositivos e mídias digitais são capazes de influenciar e manipular o comportamento infantil de forma mais eficiente que as propagandas da televisão tradicional (Martinez-Pastor & Núñez, 2019Martinez-Pastor, E., & Núñez, P. (2019). Covert Advertising on IoToys. In G. Mascheroni, & D. Holloway (Eds.), The Internet of toys: Practices, affordances and the political economy of children’s smart play (pp. 307-337). London, UK: Palgrave Macmillan.). Prova disso pôde ser observada em pesquisa conduzida numa escola primária do Reino Unido, em que se constatou que as linguagens desenvolvidas pelas crianças em seus jogos e brincadeiras está sendo substituída por linguagens, canções e regras oriundas das mídias sociais (Burn, 2014Burn, A. (2014). Children’s playground games in the new media age. In A. Burn, C. Richards(Eds.), Children’s games in the new media age: childlore, media and the playground (pp. 1-30). New York, NY: Routledge.).

MÉTODO DE PESQUISA

Com o objetivo de analisar a percepção de pais e tutores sobre o uso de dados por empresas que atuam por meio de mídias, dispositivos e plataformas digitais, adotou-se uma abordagem metodológica caracterizada como método misto (mixed method) ou pragmático (Tashakkori, Johnson, & Teddlie, 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications ., Tashakkori & Teddlie, 1998Tashakkori, A., & Teddlie, C. (1998). Mixed methodology: combining qualitative and quantitative approaches. New York, NY: Sage Publications.), de vertente única (monostrand), em que os dados são coletados e as inferências são desenvolvidas numa única fase (Tashakkori et al., 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications .). O método misto busca capitalizar as forças do método qualitativo e quantitativo (Elliott, 2005Elliott, J. (2005). Telling better stories? Combining qualitative and quantitative research. In J. Eliott (Ed.). Using Narrative in Social Research-Qualitative and Quantitative Approaches (pp. 171-188). London, UK: Sage .), integrando-os, com o objetivo de alcançar compreensões mais completas sobre o fenômeno estudado (Creswell & Tashakkori, 2007Creswell, J. W., & Tashakkori, A. (2007). Developing publishable mixed methods Mmnuscripts. Journal of Mixed Methods Research, 1(2), 107-111.). Assim, os dados quantitativos coletados são descritivos e focam na observação de padrões e características (Duncan & Edwards, 1997Duncan, S., & Edwards, R. (1997). Lone mothers and paid work-Rational economic man or gendered moral rationalities?Feminist economics, 3(2), 29-61.) relacionadas. Esses dados são, então, processados e convertidos, a fim de permitir a análise qualitativa de dados quantitativos (Tashakkori & Teddlie, 1998Tashakkori, A., & Teddlie, C. (1998). Mixed methodology: combining qualitative and quantitative approaches. New York, NY: Sage Publications.; Tashakkori et al., 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications .).

Coleta de dados

Para a coleta de dados, foi adotada a within strategy (estratégia única), em que os dados quantitativos e qualitativos são coletados no mesmo instrumento, algo considerado eficiente (Tashakkori et al., 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications .). Essa escolha consiste na combinação de questões fechadas e em escala, como a Likert, com questões abertas, num mesmo instrumento, objetivando explorar de forma mais completa as percepções dos respondentes sobre determinado comportamento (Huston, 2001Huston, A. C. (2001). Mixed methods in studies of social experiments for parents in poverty: commentary. In Proceedings of the Conference on Discovering Successful Pathways in Children’s Development, Santa Monica, CA.; Tashakkori et al., 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications .).

A operacionalização da coleta de dados ocorreu por meio da aplicação do questionário composto por 24 afirmações referentes ao consumo de mídias e dispositivos digitais por crianças e ao comportamento de pais e tutores frente aos termos de consentimento, os quais contavam com opções de resposta em escala Likert de 5 pontos. Ao final do questionário, os pesquisadores disponibilizaram um espaço para que os respondentes pudessem comentar livremente sobre os dados das crianças por plataformas ou organizações que fazem sua gestão. Para reduzir a possibilidade da participação de respondentes que não se adequassem à população alvo da pesquisa, explicitou-se, no início do instrumento de coleta de dados, que deveriam participar pais e tutores de indivíduos com até 12 anos incompletos, caracterizados como crianças, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Além disso, trata-se de uma amostra simples de métodos mistos (Tashakkori et al., 2009Tashakkori, A., Johnson, R. B., & Teddlie, C. (2009). Foundations of mixed methods research: integrating quantitative and qualitative approaches in the social and behavioral sciences. New York, NY: Sage Publications .) e não probabilística (Bickman & Rog, 2008Bickman, L., & Rog, D. J. (2008). The Sage handbook of applied social research methods. London, UK: Sage Publications.), considerada eficiente para a investigação de grupos esparsos.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro e outubro de 2020, durante a pandemia da COVID-19, sendo usada a plataforma GoogleForms. O link foi compartilhado nas redes sociais dos pesquisadores e, por terceiros, em grupos de familiares, amigos, redes sociais e grupos de e-mail. Nos 10 primeiros dias de compartilhamento, a pesquisa foi impulsionada por novas divulgações em 2 oportunidades, alcançando 565 respondentes, e não havendo mais repostas nos 4 últimos dias. Desses 565 respondentes, 107 também optaram por responder à questão discursiva, opcional.

Análise dos dados

A análise dos dados segue a orientação de Creswell e Tashakkori (2007Creswell, J. W., & Tashakkori, A. (2007). Developing publishable mixed methods Mmnuscripts. Journal of Mixed Methods Research, 1(2), 107-111.), em que os procedimentos de análise de dados qualitativos e quantitativos são efetuados de maneira separada, sendo integrados posteriormente, com o objetivo de atribuir maior robustez às inferências sobre dado fenômeno (Bryman, 2007Bryman, A. (2007). Barriers to integrating quantitative and qualitative research. Journal of Mixed Methods Research, 1(1), 8-22.). Assim, os dados quantitativos foram analisados por meio de estatísticas descritivas, visando descrever o perfil dos participantes em relação ao objetivo da pesquisa (Pallant, 2013Pallant, J. (2013). SPSS survival manual: a step by step guide to data analysis using IBM SPSS (4a ed.). Crows Nest, IN: Allen & Unwin.) e, dessa forma, apoiar a análise das respostas oriundas da questão discursiva, para a qual se optou pela análise crítica de discurso (ACD), por ser considerada uma abordagem adequada para estudar “a forma como o abuso de poder social e a desigualdade são decretados, reproduzidos, legitimados e resistidos no contexto social e político” (Van Dijk, 2015Van Dijk, T. A. (2015). Critical discourse analysis. In D. Tannen, H. E. Hamilton, & D. Sciffrin(Eds.), The handbook of discourse analysis (2a ed., pp. 466-485). West Sussex, UK: Wiley Blackwell., p. 466).

Para isso, utilizou-se como base a ACD, pelas lentes de Van Dijk (2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto., 2015Van Dijk, T. A. (2015). Critical discourse analysis. In D. Tannen, H. E. Hamilton, & D. Sciffrin(Eds.), The handbook of discourse analysis (2a ed., pp. 466-485). West Sussex, UK: Wiley Blackwell.), Van Dijk e Coelho (2005)Van Dijk, T. A., & Coelho, M. Z. P. (2005). Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso. Braga, Portugal: Edições Humus Ltda. e Iñiguez (2004Iñiguez, L. (2004). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.). Também foram observados os estudos de Orlandi (2007aOrlandi, E. P. (2007a). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp., 2007bOrlandi, E. P. (2007b). Análise de discurso: princípios e procedimentos(9a ed.). Campinas, SP: Pontes.), com o intento de analisar os silêncios que permearam os discursos analisados. A ACD faz parte de análise social crítica (Fairclough, 2012Fairclough, N. (2012). Critical discourse analysis. In J. P. Gee, & M. Handford(Eds.), The Routledge Handbook of Discourse Analysis. New York, NY: Routledge .), que examina as ações sociais presentes no objeto de investigação, o discurso (Iñiguez, 2004Iñiguez, L. (2004). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.). O propósito da ACD é investigar, compreender e expor a forma como é constituído o abuso do poder social, a dominação e a desigualdade, por meio da prática social de discurso (Iñiguez, 2004Iñiguez, L. (2004). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Petrópolis, RJ: Vozes.; Van Dijk, 2005Van Dijk, T. A., & Coelho, M. Z. P. (2005). Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso. Braga, Portugal: Edições Humus Ltda.).

Para o desenvolvimento da ACD na presente investigação, a operacionalização foi composta de 2 momentos complementares. Primeiro, usaram-se as orientações de Van Dijk (2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto., 2005Van Dijk, T. A., & Coelho, M. Z. P. (2005). Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso. Braga, Portugal: Edições Humus Ltda.) na análise semântica dos discursos e suas interpretações; em seguida, as orientações de Orlandi (2007aOrlandi, E. P. (2007a). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp., 2007bOrlandi, E. P. (2007b). Análise de discurso: princípios e procedimentos(9a ed.). Campinas, SP: Pontes.), buscando explorar o silêncio (ou silenciamento) presente nas respostas.

Optou-se pela análise semântica de discurso por se tratar de uma “teoria semiótica mais ampla sobre o comportamento significativo e simbólico de determinado discurso” (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto., p. 36), ou, num conceito mais geral, uma interpretação do discurso, composta tanto por uma representação objetiva e por uma subjetiva, que depende de fatores contextuais determinantes dos significados aos quais o pesquisador dispensará maior atenção (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto.). Dessa forma, o presente trabalho se apoia na análise semântica dos atos de linguagem presentes nas respostas subjetivas dos participantes da pesquisa, processando as interpretações e atribuindo significado às expressões do discurso, utilizando interpretações de diferentes elementos.

A fim de entender os elementos do discurso e as interpretações dos usuários da linguagem, foram usadas interpretações abstratas e concretas, conforme as orientações de Van Dijk. Assim, o autor explica que “as primeiras (interpretação abstrata) são interpretações dos discursos e dos elementos dos discursos, por meio de sistemas e de regras desses sistemas, enquanto as últimas (interpretação concreta) são interpretações dos usuários da linguagem” (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto., p. 37). Desse modo, essas interpretações estão relacionadas, haja vista que “uma semântica linguística abstrata (gramatical) tem, usualmente, afirmações empíricas de que pretende exemplificar alguns aspectos das interpretações concretas dos usuários da linguagem, quando elas são explicadas em modelos psicológicos” (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto.).

Com isso, chega-se àquilo que Van Dijk (2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto.) denomina microestrutura e macroestrutura, ou coerência local e coerência global do discurso. Enquanto a microestrutura representa as relações entre sentenças ou proposições, além das conexões entre elementos do discurso, a macroestrutura representa o conjunto global do discurso, o tema ou o assunto a que se refere. Pelo princípio da fundamentalidade, “a macroestrutura de um discurso deve ser a função dos respectivos significados de suas sentenças” (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto., p. 40).

Dessa forma, são apresentados, na análise dos resultados da pesquisa, os elementos que constituíram esses níveis de estrutura e que permitiram definir as categorias analíticas da pesquisa. A etapa de apresentação de resultados é estruturada, inicialmente, com a apresentação das estatísticas descritivas dos dados quantitativos. Em seguida, é apresentada a análise crítica de discurso, com base em dados qualitativos da pergunta discursiva.

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Estatísticas descritivas

Quanto ao perfil dos respondentes, 80% tinham idades entre 26 e 45 anos; 84%, ensino superior completo; e mais de 80% eram pais ou mães das crianças. No que diz respeito aos hábitos das crianças, mais de 50% quase sempre usam smartphone para assistir a vídeos ou jogos on-line; 56% têm o próprio celular; 22% pedem para comprar jogos, canais infantis ou similares pelo aparelho; 37,5% já usaram termos aprendidos em canais como Discovery Kids, YouTube, Netflix, Disney Channel, entre outros; e mais de 20% já mencionaram desejo de se tornar um youtuber ou influenciador digital. A média diária de uso de smartphones pelas crianças é superior a 4 horas para 19,6%; entre 3 e 4, para 15,9%; e menos de 1 hora, para 21,3%. Além disso, após o início pandemia, para 75,5% dos respondentes, o uso de jogos e aplicativos pelas crianças aumentou, enquanto 79,8% relataram aumento na atividade de assistir a canais infantis.

No que concerne aos termos de conhecimento, 42,9% dos respondentes afirmaram nunca ler completamente os termos de consentimento de jogos e aplicativos utilizados pelas crianças, ao passo que 23,1% raramente o fazem. Apenas 10,3% disseram ler. Um total de 45,5% afirmou não saber onde encontrar os termos de consentimento de jogos e aplicativos, enquanto 25,5% disseram que acreditam que os dados coletados por jogos e aplicativos não são usados de forma legal e ética.

Entre os dados apresentados nessa etapa quantitativa, é importante observar 2 principais fatores que podem ser vistos de forma qualitativa. Primeiro, houve um aumento expressivo do uso de jogos, aplicativos e canais infantis pelas crianças durante a pandemia. Segundo, um número significativo delas dispõe de um dispositivo digital próprio, ao passo que pais ou tutores, em sua maioria, nunca ou raramente leem os termos de consentimento de mídias e dispositivos utilizados pelos menores. Quase metade dos respondentes não sabe onde encontrar esses documentos que medeiam a relação entre organizações e crianças. Assim, observa-se certa autonomia das crianças, aliada a um aumento na frequência de uso de jogos, aplicativos e canais infantis, ao passo que os termos que medeiam essa relação entre organizações e crianças são pouco verificados por pais ou tutores.

Respostas discursivas

Na análise das respostas discursivas, observaram-se 2 aspectos principais relativos aos estudos sobre capitalismo de vigilância. O primeiro foi a responsabilização atribuída a outros atores e fatores, que não as próprias organizações que compõem o capitalismo de vigilância, pelo que é apresentado em suas plataformas, canais e mídias digitais. O segundo foi a ausência de respostas que focassem na proposta da questão discursiva, ou seja, os respondentes não mencionaram os dados das empresas, e sim outros assuntos. Essas duas características orientam a apresentação e a análise crítica do discurso das respostas.

Análise das respostas

Essa primeira análise se deu com base nas orientações de Van Dijk (2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto.), em que foram selecionadas respostas e analisadas micro e macroestruturas. As primeiras são examinadas com o objetivo de compreender as relações entre sentenças e proposições, assim como as conexões entre os elementos do discurso. As segundas, por sua vez, estão ligadas ao conjunto global do discurso e dos significados de suas sentenças (Van Dijk, 2004Van Dijk, T. A. (2004). Cognição, discurso e interação. São Paulo, SP: Contexto.). Para melhor evidenciar a avaliação ao leitor, primeiro são apresentadas as respostas escolhidas da pesquisa e, em seguida, as relações entre micro e macroestrutura.

Já não consigo mais ver luz no fim do túnel para essa pandemia. Oriento meus filhos a não enviarem dados pessoais. Entretanto, é muito difícil controlar o uso do celular e computadores durante a pandemia, visto que as crianças têm aulas on-line e jogam até durante a aula, porque as acham tediosas. Além disso, não há nada para distraí-las, pois não podem fazer nada, nem sair de casa nem ir ao mercado. Já contratei professoras particulares para ajudar nesse aspecto, mas, mesmo assim, está muito difícil competir com jogos e aplicativos - TikTok, Pokémon e outros. As crianças estão sendo imbecilizadas pelo uso constante do celular e desenvolvendo um vício muito prejudicial. Ficam nervosas se perdem o jogo on-line. Acho isso uma aberração, mas não posso tirar o celular quando precisam participar da aula. E não há muita coisa a oferecer, já que os passeios estão limitados. Não vejo nenhuma ação do governo nem entidades educativas que se preocupem com essa situação, de modo a ministrar aulas em lugares alternativos. Estão perdendo a infância (Respondente 16).

Estava pensando nisso hoje é, às vezes, me sinto um monstro por permitir tal interação. Minha filha adota comportamentos dos personagens de seus programas de TV, e isso é altamente prejudicial. Contudo, moro num apartamento minúsculo e já não consigo mais ver uma luz no fim do túnel para essa pandemia. Acabo cedendo para distrair a criança, mas estou ciente dos prejuízos dessa prática para a formação dela (Respondente 133).

Microestrutura

  1. A responsabilização do pai, da mãe ou dos tutores - O primeiro aspecto a ser analisado é que, nas duas respostas acima, são usados termos que pessoalizam aquilo que acontece no ambiente digital. Esse fenômeno pode ser observado quando o respondente 16 afirma, já no início da resposta: “Oriento meus filhos a não enviarem dados pessoais.” Outro momento em que o fenômeno de pessoalização ocorre é observado no relato do respondente 133, ao afirmar: “Estava pensando nisso hoje é, às vezes, me sinto um monstro por permitir tal interação (entre a filha e as mídias digitais).” Em seguida, ele atribui ao fato de morar “num apartamento minúsculo” a interação entre a filha e programas de televisão.

  2. Dependência de dispositivos e mídias digitais - Os respondentes também relatam que tanto as crianças quanto os próprios adultos dependem dos dispositivos digitais. Para o entretenimento delas ou para o aprendizado, esses dispositivos são necessários, como afirma o respondente 16, ao relatar: “Não posso tirar o celular quando precisam participar da aula.” Por sua vez, o respondente 133 relaciona a dependência do consumo de programas de televisão pela filha com a necessidade de “distrair a criança”, tendo em vista o cenário de pandemia e o tamanho do apartamento em que vivem.

  3. Pandemia - Ambos os respondentes atribuem ao momento de pandemia da COVID-19 o consumo elevado de seus filhos de mídias digitais e programas de televisão. O respondente 16 afirma que “é muito difícil controlar o uso de celular e computadores durante a pandemia”, relatando que as crianças consomem jogos digitais inclusive durante as aulas on-line. De maneira semelhante, o respondente 133 afirma não ver “mais luz no fim do túnel para essa pandemia”, indicando que o momento o faz ceder ao consumo de mídias digitais e programas de televisão pela filha, com o objetivo de mantê-la distraída.

Macroestrutura

A análise objetiva de sentenças, termos e proposições utilizados pelos respondentes permite observar que os pais de fato percebem maior dependência e influência dos dispositivos digitais e de seus conteúdos sobre seus filhos, corroborando estudos que já observaram o uso de mídias digitais e tecnologias no desenvolvimento de crianças (Marsh et al., 2017Marsh, J., Mascheroni, G., Carrington, V., Árnadóttir, H., Brito, R., Dias, P., ... Trueltzsch-Wijnen, C. (2017). The online and offline digital literacy practices of young children: a review of the literature. Brussels, Belgium: COST Action; Rideout, 2017Rideout, V.(2017). The common sense census: media use by kids age zero to eight. San Francisco, CA: Common Sense Media.; Scantlin, 2008Scantlin, R. (2008). Media use across childhood: access, time, and content. In S. L. Calvert, & B. J. Wilson (Eds.), The Handbook of Children, Media, and Development (pp. 51-73). West Sussex, UK: Blackwell Pub.). Esse uso é tamanho que pais e tutores também perceberam a influência dessas mídias em seus comportamentos, numa substituição de relações analógicas por digitais (Burn, 2014Burn, A. (2014). Children’s playground games in the new media age. In A. Burn, C. Richards(Eds.), Children’s games in the new media age: childlore, media and the playground (pp. 1-30). New York, NY: Routledge.). Contudo, uma eventual dependência de tecnologia vivenciada pelos filhos é atribuída à própria conduta de pais e tutores, à estrutura que oferecem às crianças e à pandemia. Isso pode estar relacionado com a legitimidade da qual novas tecnologias como o big data dispõem, tendo em vista as inúmeras oportunidades para as organizações (Davenport, 2014Davenport, T. (2014). Big data at work: dispelling the myths, uncovering the opportunities. Boston, MA: Harvard Business Review Press.) e sua direta relação com a ideia de eficiência (Clegg et al., 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.).

Em resumo, foi possível observar que uma possível legitimação do poder e do controle exercidos pelas organizações do capitalismo de vigilância está vinculada a uma ideologia da tecnologia como solução para os problemas em geral. Ao mesmo tempo, nota-se uma preocupação latente com o volume de uso das mídias, mas que é reservada à responsabilidade dos pais. Os próprios termos que pais atribuem a si mesmos, como “monstros”, indicam que o foco da preocupação está longe de ser o uso dos dados, e sim o hábito das crianças e as ações dos pais. Esse argumento é corroborado por uma percepção de disputa entre os dispositivos digitais e a vontade dos pais, em que os primeiros “ganham” frente à impotência dos segundos no atual momento de pandemia.

Minhas 2 filhas têm um iPad para o qual estipulamos 1h30 de uso por dia, em método de revezamento: 10 minutos para cada uma. Nesse período, elas podem usar aplicativos de jogos ou ver Netflix. Normalmente, o iPad é utilizado das 20h até 21h15, 21h30. Após isso, vamos fazer alguma atividade para desacelerar: jogar jogo da memória, dominó, fazer os preparativos para dormir... Lemos 2 ou 3 livrinhos e encerrou o dia. Elas não pedem o iPad durante o dia, pois combinamos há muito tempo que seria só um pouco por dia. Elas entendem que há outras formas divertidas de brincar. Nunca utilizamos na hora das refeições, e elas também não pedem. O que ocorre vez ou outra é pedirem nosso celular para tirar fotos dos brinquedos delas. Acho que a forma como conduzimos é adequada e está em equilíbrio com o desenvolvimento psicossocial delas (Respondente 115).

Aqui em casa há horário para TV e para tablet. A criança tem 4 anos e já se acostumou com a rotina. Não pede fora desse horário (Respondente 62).

Em casa, prefiro usar Netflix ou Amazon Prime, por serem canais nos quais se consegue controlar o impacto das propagandas. Canais como Discovery Kids passam mais propagandas do que o desenho em si. Parece absurdo não termos leis regulatórias para tantas inserções, assim como no YouTube e nos jogos de celular. Mas sempre explico ao meu filho que estão tentando vender e “pegar o dinheiro dele”; falo para ele evitar assistir e ter essa visão. Ele parece consciente, apesar de ter 6 anos. Sabe que poderíamos comprar, mas que não precisamos. Em casa, tentamos fazer brinquedos com material reciclado, e ele acaba se divertindo mais do que com os de última geração, que ele também tem e ficam mais encostados (Respondente 39).

Microestrutura

  1. Ubiquidade do dispositivo digital - Nas respostas apresentadas, é possível observar que os 3 respondentes, com filhos de 4 e 6 anos, tratam com naturalidade os dispositivos como smartphones, tablets e iPad ou plataformas como Netflix e Amazon Prime na vida das crianças. Essa naturalidade é percebida quando o respondente 62 afirma que o filho “já se acostumou com a rotina” de usar televisão e tablet em horários específicos. Da mesma forma, o respondente 115 relata a rotina de revezamento entre as filhas por determinado período, afirmando, ao final, que a condução - da relação entre crianças e dispositivos e mídias - digitais) “é adequada e está em equilíbrio com o desenvolvimento psicossocial delas”.

  2. Controle sobre o uso - Os respondentes também afirmam que há um controle sobre o uso de dispositivos digitais e consumo de canais de televisão, usualmente definido por um tempo máximo de uso. Esse controle não atinge apenas o uso em si, mas também canais e plataformas acessados. O respondente 39 afirma que prefere “usar Netflix ou Amazon Prime por serem canais nos quais se consegue controlar o impacto das propagandas”. A afirmação em primeira pessoa indica que o uso, apesar de ser do filho, funciona como ferramenta de entretenimento da criança e que o controle de canais é uma forma de protegê-la do consumo exacerbado, já que o respondente afirma explicar ao filho que as organizações plataformizadas “estão tentando vender e pegar o dinheiro dele”.

Macroestrutura

Com base nas respostas, é possível observar que a presença da tecnologia por meio de dispositivos e mídias ditais está naturalizada como um elemento indissociável da vida moderna, inclusive das crianças (Morgade et al., 2019Morgade, M., Aliagas, C., & Poveda, D. (2019). Reconceptualizing the home of digital childhood. In M. Morgade, C. Aliagas, & D. Poveda (Eds.), The routledge handbook of digital literacies in early childhood. London, UK: Routledge.; Mosco, 2017Mosco, V. (2017). Becoming digital: toward a post-internet society. Bingley, UK: Emerald Group Publishing.). Evidencia-se, então, um tensionamento entre a busca de pais e tutores, por controlar eventuais repercussões do uso exacerbado de mídias e dispositivos digitais, e sua presença ubíqua na vida das crianças. No entanto, esse controle não ocorre por meio da leitura de termos de consentimento ou possíveis restrições relacionadas com a captura de dados de crianças, e sim pela definição de horários e plataformas permitidas ou não. Com isso, mesmo havendo um elemento restritivo no uso, não é evitada nem questionada a quantificação do comportamento (Couldry & Mejías, 2019Couldry, N., & Mejias, U. A. (2019). The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford, CA: Stanford University Press.; Holloway, 2019Holloway D, . (2019). Surveillance capitalism and children’s data: the internet of toys and things for children. Media International Australia, 170(1), 27-36.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.) das crianças, assim como não o são os termos de consentimento que medeiam as relações (Belli & Venturini, 2016Belli, L., & Venturini, J. (2016). Private ordering and the rise of terms of service as cyber-regulation. Internet Policy Review, 5(4), 1-17.; Obar & Oeldorf-Hirsch, 2018Obar, J. A., & Oeldorf-Hirsch, A. (2018, julho). The clickwrap: a political economic mechanism for manufacturing consent on social media. Social Media + Society. Recuperado de https://doi.org/10.1177/2056305118784770
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).

Em resumo, nota-se que as respostas dos participantes, mais uma vez, não se aproximam da questão apresentada, expressando formas paliativas que pais e tutores encontram para controlar aquilo que consideram mais adequado frente à ubiquidade dos dispositivos digitais. Desse modo, é possível interpretar as respostas como uma programação de expropriação consentida, ou seja, pais e tutores não questionam as formas de expropriação dos dados de crianças por plataformas e organizações que as gerem; somente controlam os momentos em que isso ocorre.

É proibido por nós (pais) que as crianças assistam youtubers, sejam eles quais forem (Respondente 14).

Não compramos nada que diga respeito a jogos ou similares. Não estimulamos a aquisição de produtos relativos a jogos ou personagens, exceto quando achamos que estimula a criatividade. Damos preferência a comprar peças de montar, como Lego e blocos de madeira; procuramos conhecer desenhos e jogos. Não permitimos que baixe jogos sem a nossa presença. Restringimos o acesso a vídeos do YouTube. Achamos difícil controlar o que eles acessam, por isso limitamos. Preferimos a televisão, canais infantis. Não permitimos que assistam a youtubers. Conversamos criticamente sobre o assunto e não estimulamos que façam vídeos (Respondente 80).

Microestrutura

  1. YouTube e youtubers - A resposta do participante 14 é taxativa quanto a ser “proibido por nós (pais) que as crianças assistam youtubers, sejam eles quais forem”. Os youtubers mencionados são indivíduos que produzem conteúdo e os transmitem por meio do YouTube. A orientação do participante 14 é corroborada pelo participante 80, que, além de não permitir que as crianças assistam a youtubers, acha “difícil de controlar o que elas acessam (na plataforma)”.

  2. Controle por proibição - A forma que pais e tutores encontram para garantir que as crianças não sejam influenciadas e não exacerbem no consumo se dá pela proibição, e não pela permissão, como evidenciado nas respostas.

Macroestrutura

As respostas mostram que há uma percepção negativa sobre os conteúdos produzidos e divulgados no YouTube. Essa noção ocorre pela influência que as mídias têm sobre o desenvolvimento e o comportamento das crianças (Borzekowski & Robinson, 2001Borzekowski, D. L., & Robinson, T. N. (2001). The 30-second effect: an experiment revealing the impact of television commercials on food preferences of preschoolers. Journal of the American Dietetic Association, 101(1), 42-46.; Martinez-Pastor & Núñez, 2019Martinez-Pastor, E., & Núñez, P. (2019). Covert Advertising on IoToys. In G. Mascheroni, & D. Holloway (Eds.), The Internet of toys: Practices, affordances and the political economy of children’s smart play (pp. 307-337). London, UK: Palgrave Macmillan.). Contudo, a plataforma digital pertence ao grupo proprietário do Google e faz parte do capitalismo de vigilância, contando com interface agradável e termos de consentimento nem sempre claros quanto aos seus objetivos (Venturini et al., 2016Venturini, J., Louzada, L., Maciel, M. F., Zingales, N., Stylianou, K., & Belli, L. (2016). Terms of service and human rights: an analysis of online platform contracts. Rio de Janeiro, RJ: Revan.; Vianna & Meneghetti, 2020Vianna, F. R. P. M., & Meneghetti, F. K. (2020). Is it crowdsourcing or crowdsensing? An analysis of human participation in digital platforms in the age of surveillance capitalism. Revista Eletrônica de Administração, 26(1), 176-209.). Dessa forma, quando pais e tutores dirigem as atenções de controle para o YouTube, as demais plataformas digitais geridas por organizações do capitalismo de vigilância deparam com um ambiente mais favorável para governar os dados oriundos dos comportamentos das crianças (Holloway, 2019Holloway D, . (2019). Surveillance capitalism and children’s data: the internet of toys and things for children. Media International Australia, 170(1), 27-36.; Lupton & Williamson, 2017Lupton, D., & Williamson, B. (2017). The datafied child: the dataveillance of children and implications for their rights. New Media & Society, 19(5), 780-794.).

Em resumo, pais e tutores direcionam suas preocupações para o comportamento de determinados indivíduos que, em última análise, são produtores de conteúdo de certa plataforma. Dessa forma, observa-se que não se questiona a dominação de um sistema caracterizado como capitalismo de vigilância, e sim a ação de indivíduos que nem sequer fazem parte das organizações.

Por fim, o conjunto das análises aqui apresentado indica que a estrutura social em que atuam as organizações do capitalismo de vigilância legitima as ações delas ao contar com as tecnologias para o desenvolvimento de suas atividades e das próprias crianças. Dessa forma, a preocupação de pais e tutores está focada em problemas como o volume de uso dos dispositivos digitais, em especial durante a pandemia, e a influência de um ou de outro personagem - nesse caso, produtores de conteúdo -, mas sem que a atuação das organizações do capitalismo de vigilância seja questionada. Prova disso é observada no conjunto de 2 fatores. Primeiro, o fenômeno de expropriação controlada por pais e tutores, ao estabelecerem horários e condições de uso para as crianças. Em segundo lugar, a baixa frequência de consulta aos termos de consentimento que medeiam as relações entre as organizações e as crianças.

A política do silêncio, ou a não responsabilização das organizações do capitalismo de vigilância

As macroestruturas que emergiram das respostas apontam para diferentes direções quando se analisam possíveis críticas de pais e tutores ao consumo de mídias e dispositivos digitais pelas crianças. Contudo, aquilo que chamou a atenção foi justamente o que não foi escrito. A questão discursiva indicava de forma cristalina que o espaço poderia ser usado para comentários sobre a utilização dos dados das crianças por plataformas ou organizações que fazem sua gestão. No entanto, observou-se a responsabilização sendo atribuída aos próprios pais, às estruturas que oferecem às crianças, à pandemia ou aos youtubers. Esse fenômeno é corroborado pela conversão dos dados quantitativos em qualitativos, evidenciando que pais e tutores perceberam o aumento expressivo do uso de jogos, aplicativos e canais infantis pelas crianças, durante a pandemia, mas não desenvolveram o hábito de ler os termos de consentimento ou não sabem onde os encontrar. Essa situação pode não indicar uma plena confiança dos respondentes nas plataformas, mas também não atribui às organizações que as geram a responsabilidade sobre a utilização dos dados das crianças.

Assim, ao mencionarem formas de controle relacionadas com o tema, os respondentes centralizam a responsabilidade em crianças, pais e tutores, sem mencionar as práticas das organizações em relação aos dados e seu processo de dataficação. Apenas a respondente 39 versa sobre a ausência de leis específicas relativas à divulgação de propagandas em plataformas e jogos que alcançam o público infantil. A ausência das próprias organizações que compõem o capitalismo de vigilância e suas práticas das respostas evidencia a importância de trazer esse não dito para a análise conduzida neste artigo, tendo em vista que “o silêncio não fala, ele significa” (Orlandi, 2007aOrlandi, E. P. (2007a). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp., p. 30). Mas o que significa esse silêncio (ou silenciamento)? A própria autora afirma que “há, pois, uma declinação política da significação que resulta no silenciamento como forma de não calar, mas de fazer dizer uma coisa, para não deixar dizer outras. Ou seja, o silêncio recorta o dizer” (Orlandi, 2007aOrlandi, E. P. (2007a). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp., p. 32).

O silêncio dos respondentes em relação à utilização de dados pelas organizações que compõem o capitalismo de vigilância, encontrado nas respostas à pergunta discursiva, pode ser observado com o apoio dos dados quantitativos da pesquisa. A survey mostrou que, apesar de mais da metade das crianças mencionadas na pesquisa ter um dispositivo para uso próprio, 66% dos respondentes afirmaram que nunca ou raramente leem completamente os termos de consentimento de mídias e dispositivos usados pelas crianças, ao passo que mais de 45% disseram não saber onde encontrar os documentos que medeiam a relação entre organizações e crianças.

Tais dados corroboram a ideia de uma tecnologia que operacionaliza um sistema de organização racional (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.), muito valorizado numa sociedade preconizada pela busca da eficiência (Bunderson & Reagans, 2011Bunderson, J. S., & Reagans, R. E. (2011). Power, status, and learning in organizations. Organization Science, 22(5), 1182-1194.), naturalizando a ampla presença dessas mídias e de dispositivos nas residências e entre crianças (Morgade et al., 2019Morgade, M., Aliagas, C., & Poveda, D. (2019). Reconceptualizing the home of digital childhood. In M. Morgade, C. Aliagas, & D. Poveda (Eds.), The routledge handbook of digital literacies in early childhood. London, UK: Routledge.; Mosco, 2017Mosco, V. (2017). Becoming digital: toward a post-internet society. Bingley, UK: Emerald Group Publishing.). Essa posição de não confrontamento é evidenciada na aceitação implícita da governança digital de tais empresas, que autorregulam a relação entre usuário e plataformas, mídias e dispositivos (Chandler & Fuchs, 2019Chandler, D., & Fuchs, C. (2019). Digital objects, digital subjects: interdisciplinary perspectives on capitalism, labour and politics in the age of big data. London, UK: University of Westminster Press.). Isso ocorre tanto pela não leitura de termos de consentimento (Obar & Oeldorf-Hirsch, 2018Obar, J. A., & Oeldorf-Hirsch, A. (2018, julho). The clickwrap: a political economic mechanism for manufacturing consent on social media. Social Media + Society. Recuperado de https://doi.org/10.1177/2056305118784770
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) quanto pelo desenvolvimento unilateral desses documentos por parte das instituições (Venturini et al., 2016Venturini, J., Louzada, L., Maciel, M. F., Zingales, N., Stylianou, K., & Belli, L. (2016). Terms of service and human rights: an analysis of online platform contracts. Rio de Janeiro, RJ: Revan.). Em resumo, o silêncio quanto à utilização dos dados significa o poder do dominante sobre o dominado (Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .; Pansardi, 2012Pansardi, P. (2012). Power to and power over: two distinct concepts of power? Journal of Political Power, 5(1), 73-89.) por meio da subjetivação desse poder (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.) como algo naturalizado, positivo e inquestionável.

Quanto àquilo que é dito pelos respondentes, observa-se que o foco da resposta, que deveria ser a utilização dos dados das crianças pelas organizações do capitalismo de vigilância, é desviado para outros fatores. Os respondentes avaliam que há problemas no uso de mídias e dispositivos digitais a respeito da influência exercida sobre as crianças. Contudo, tais problemas são atribuídos não às plataformas ou às organizações que as gerenciam e seus algoritmos, e sim aos próprios pais e tutores, à pandemia e aos youtubers. Dessa forma, faz-se presente a dimensão política do poder dessas organizações (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.), ao ser deslocada sua dominação sobre as crianças, por meio de suas plataformas e mídias, para esses outros atores. Além disso, é possível estabelecer um paralelo entre a autodominação da administração científica (Clegg et al., 2006Clegg, S. R., Courpasson, D., & Phillips, N. (2006). Power and organizations. London, UK: Sage.; Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .) e uma espécie de autoflagelo dos respondentes em relação ao consumo de mídias e dispositivos por seus filhos, especialmente durante a pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi analisar a percepção de pais e tutores sobre o uso de dados por organizações que atuam por meio de mídias, dispositivos e plataformas digitais. Os achados são relevantes para a área de estudos organizacionais e temas relacionados com tecnologia e sociedade, tangenciando, principalmente, os aspectos de poder presente nos estudos das organizações. Os desdobramentos da pesquisa mostram que, ao mesmo tempo que as crianças usam muito os dispositivos digitais, acessam-nos e são influenciadas por canais e mídias digitais, pais, mães e tutores pouco leem os dispositivos que medeiam essa utilização. Por esses dados, observa-se uma forma de controle das organizações em relação aos dados dos indivíduos, já que o volume de utilização de mídias e dispositivos digitais por crianças é alto, enquanto o controle sobre a captação e o processamento dos dados das crianças é baixo.

Quanto aos resultados das respostas discursivas, elas evidenciam a dominação dos usuários pelas organizações, que são a parte mais poderosa nessa relação, em especial quando representada por seu poder econômico (Haugaard & Clegg, 2009Haugaard, M., & Clegg, S. R. (2009). Introduction: why power is the central concept of the social sciences. In S. Clegg, & M. Haugaard (Eds.), The SAGE Handbook of Power. London, UK: Sage .; Weber, 1999Weber, M. (1999). Economia e sociedade. Brasília, DF: Editora UnB.). Além disso, o poder dessas empresas é permeado por um poder político (Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., & Spicer, A. (2014). Power in management and organization science. Academy of Management Annals, 8(1), 237-298.), pois às plataformas são atribuídos os papéis de principal fonte de fluxos de informações para seus usuários e parceiros, levando maior eficiência, ao passo que controlam seus conhecimentos (O’Neil, 2016O’Neil, C. (2016). Weapons of math destruction: how big data increases inequality and threatens democracy. New York, NY: Broadway Books.; Zuboff, 2019Zuboff, S. (2019). The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power: Barack Obama’s books of 2019. London, UK: Profile Books.) e moldam suas subjetivações (Fleming & Spicer, 2014). Dessa forma, os participantes da pesquisa acabaram por atribuir responsabilidades pela dependência e pelo uso exacerbado de dispositivos e mídias digitais pelas crianças a diferentes atores, num processo de não responsabilização das organizações que compõem o capitalismo de vigilância.

A contribuição teórica da pesquisa repousa sobre a ampliação das discussões nos estudos organizacionais em 2 sentidos. Primeiro, no avanço da teoria do capitalismo de vigilância sobre um fenômeno de não responsabilização das organizações que dominam essa área, alcançado pela inclusão das crianças no rol de indivíduos afetados pelo chamado lado negativo da digitalização. Segundo, por combinar aspectos de diferentes áreas, como direito, psicologia e pedagogia, nas discussões sobre organizações digitais. A contribuição prática da pesquisa está relacionada com as informações que o estudo oferece aos atores interessados na temática, quando apresentamos dados referentes ao comportamento desses indivíduos em relação ao consumo e ao controle do uso de dispositivos digitais. Assim, cria-se um cenário em que todos podem ser responsáveis e controlados, menos aqueles que desenvolvem e gerem as tecnologias. Por fim, o texto apresenta uma contribuição metodológica, ao desenvolver uma pesquisa de métodos mistos, com o objetivo de melhor explicar um fenômeno recente.

Entre as limitações do trabalho, atenta-se para o número de respondentes, que, mesmo sendo considerado suficiente para uma pesquisa com as características aqui apresentadas, representa apenas uma parcela da sociedade. Como possibilidades de estudos futuros, sugere-se que sejam realizadas outras pesquisas, de caráter exploratório, que tangenciem as temáticas do poder das organizações digitais e o comportamento das crianças, tendo em vista que a sociedade depara com um desenho social em que a presença dessas empresas ocorre cada vez mais cedo e com maior intensidade na vida das pessoas. Dessa forma, são oportunas as pesquisas que analisem o papel das organizações do capitalismo de vigilância no consumo efetivo das crianças.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    17 Nov 2021
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