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Contradições na prática coletiva da agricultura urbana: uma análise Bourdieusiana

Contradicciones en la práctica colectiva de la agricultura urbana: un análisis bourdieusiano

Resumo

A Agricultura Urbana (AU) tem alcançado bastante visibilidade na contemporaneidade, apesar de não ser uma prática nova, pois a sua origem está associada ao surgimento das cidades. Práticas de agricultura nas cidades têm se mostrado positivas, mas também permeadas por contradições. Este artigo apresenta a análise de uma horta urbana coletiva situada na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A Horta da Formiga (HF) foi observada, como um campo social, em uma investigação participativa ao longo de dois anos. Buscou-se responder à seguinte inquietação: como agentes protagonistas em uma horta urbana coletiva conciliam as contradições inerentes a esse campo social? Com vistas a este objetivo, o aparato de Pierre Bourdieu foi mobilizado como lente teórico-metodológica. O corolário do argumento desenvolvido é que quanto mais os agentes protagonistas da HF se aproximam dos capitais tidos como legítimos ao Estado (metacampo de poder), mais são capazes de conciliar as contradições que se atravessam nesse campo. Identificou-se, pois, que embora haja uma agência desses indivíduos, considerando a análise recorrendo às noções de capital e à categoria habitus de Bourdieu, há condicionantes estruturados no campo que não permitem a conciliação de contradições de formas mais orgânicas e diversas.

Palavras-chave:
Agricultura urbana; Contradições; Pierre Bourdieu

Resumen

La agricultura urbana (UA) ha logrado una notoriedad considerable en la época contemporánea, aunque no es una práctica nueva, ya que su origen remoto está asociado al surgimiento de las ciudades. Las prácticas agrícolas en las ciudades han demostrado ser positivas, pero también impregnadas de contradicciones. Este artículo presenta el análisis de un huerto urbano colectivo ubicado en la ciudad de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. La Horta da Formiga se observó como un campo social en una investigación participativa de más de dos años. Se buscó responder a la siguiente inquietud: ¿Cómo concilian los agentes protagonistas de un huerto urbano colectivo las contradicciones inherentes a este campo social? Con miras a este objetivo, se utilizó/utilizaron la/s teoría/s de Pierre Bourdieu como lente teórico-metodológico. El corolario del argumento desarrollado es que cuanto más se acercan los protagonistas de Horta da Formiga a los capitales considerados legítimos del Estado (metacampo del poder), más capaces son de conciliar las contradicciones que atraviesan este campo. Se identificó, por tanto, que si bien existe una agencia de estos individuos, considerando el análisis utilizando las nociones de capital y la categoría habitus de Bourdieu, existen condicionantes estructurados en el campo que no permiten la conciliación de contradicciones de formas más orgánicas y diversas.

Palabras clave:
Agricultura urbana; Contradicciones; Pierre Bourdieu

Abstract

Urban Agriculture has achieved considerable visibility in contemporary times, although it is not a new practice, as its remote origin is associated with the emergence of cities. These agricultural practices in cities have shown to be positive but permeated by contradictions. This article analyzes an urban collective garden located in the city of Porto Alegre, RS. The Horta da Formiga was observed as a social field through a two-year participatory investigation. The authors sought to answer the research question: How do protagonist agents of a collective urban garden reconcile as inherent contradictions to this social field? Pierre Bourdieu’s apparatus was used as a theoretical-methodological lens. The corollary of the developed argument is that the more the protagonists of Horta da Formiga get closer to the capitals considered legitimate to the state, the more they can reconcile the contradictions in this field. The study identified that, when considering the analysis based on Bourdieu’s notions of capital and habitus category, despite the individuals’ agency, they face structured conditions in the field that do not allow more organic and diverse forms of reconciliation of contradictions.

Keywords:
Urban agriculture; Contradictions; Pierre Bourdieu

INTRODUÇÃO

A Agricultura Urbana (AU) tem se expandido e ganhado bastante visibilidade na contemporaneidade (Brand & Munoz, 2007Brand, P., & Munoz, E. (2007). Cultivando ciudadanos: agricultura urbana desde una perspectiva política. Cadernos IPPUR/UFRJ, 21(1), 47-70.), embora não seja uma prática recente: sua origem está associada ao surgimento das cidades. A prática agrícola nas zonas urbanas e periurbanas engloba desde a composição de jardins individuais em pequenos vasos, às hortas coletivas nas quais comunidades se reúnem; estas últimas, as práticas coletivas da agricultura urbana, expõem uma série de contradições: se, por um lado, a AU tornou-se sinônimo de sistemas alimentares sustentáveis, por outro, passou, também, a preencher o vazio deixado pela regressão da rede de segurança social, garantindo a neoliberalização a partir de redes alimentares alternativas, de acordo com perspectivas sociais críticas, destacadas por McClintock (2014)McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.. É fundamental considerar as contradições mencionadas para pensarmos a agricultura urbana, pois, não basta observar os benefícios das hortas: é preciso analisar, também, como se dão as relações dos participantes entre si e com o entorno dos terrenos ocupados.

Nas últimas décadas, o número de pesquisas sobre AU tem aumentado consideravelmente (McIvor & Hale, 2015McIvor, D. W., & Hale, J. (2015). Urban agriculture and the prospects for deep democracy. Agriculture and Human Values, 32, 727-741.). Em especial, destacam-se as vantagens de desenvolver hortas coletivas e comunitárias para a melhoria de vida nas cidades (Caldas & Jayo, 2019Caldas, E. L., & Jayo, M. (2019). Agriculturas urbanas em São Paulo: histórico e tipologia. Confins, 39. Recuperado dehttps://doi.org/10.4000/confins.18639
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; Prové, Dessein, & Krom, 2016Prové, C., Dessein, J., & Krom, M. (2016). Taking context into account in urban agriculture governance: Casestudies of Warsaw (Poland) and Ghent (Belgium). Land Use Policy, 56, 16-26.; Purcell & Tyman, 2015Purcell, M., & Tyman, S. K. (2015). Cultivating food as a right to the city. Local Environment, 20(10), 1132-1147.; Smit, Nasr, & Ratta, 2001Smit, J., Nasr, J., & Ratta, A. (2001). Urban Agriculture: food, jobs and sustainable cities. Washington, DC: The Urban Agriculture Network.). Todavia, considerando algumas abordagens que buscam ressaltar questões complexas específicas de dinâmicas sociais das cidades (Brites, 2017Brites, W. F. (2017). La ciudad en la encrucijada neoliberal. Urbanismo mercado-céntrico y desigualdad socio-espacial en América Latina. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 9(3), 573-586.; Maricato, 2009Maricato, E. (2009). As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.), entendemos que tais perspectivas críticas podem ser também aplicadas às contradições das relações estabelecidas nas práticas de agricultura urbana coletiva (Jayo & Caldas, 2019Jayo, M., & Caldas, E. L. (2019). Discursos de agricultura urbana em São Paulo: formação, profusão e captura. Kultur, 6(12), 157-176.; McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171., 2018McClintock, N. (2018). Cultivating (a) sustainability capital: Urban agriculture, eco gentrification, and the uneven valorization of social reproduction. Annals of the American Association of Geographers, 10(2), 579-590.; McClintock, Miewald, & McCann, 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; Sbicca, 2014Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.; Tornaghi, 2017Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801.). Além disso, há complexidades para a expansão da própria AU que demandam o desenvolvimento de um sistema alimentar mais justo (McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.). Esta junção de visões críticas permite uma ampliação do olhar sobre a AU coletiva, levando a discussão para além de uma perspectiva estritamente entusiasta, sem, com isso, desconsiderar sua relevância.

A expansão da agricultura urbana tem gerado muitos benefícios às populações das cidades. Há diversos motivadores que levam a prática agrícola às zonas urbanas e periurbanas; os participantes, em geral, buscam esses terrenos para uma conexão com espaços verdes, para resgatar laços comunitários, retomar práticas de cultivo que deixaram em suas cidades do interior, realizar atividades educacionais sobre saúde e alimentação, vivências terapêuticas, reaproximar-se do consumo de alimentos in natura, dentre outros. Ao mesmo tempo, pelo fato de terrenos públicos ou privados nos quais a AU acontece estarem situados nas cidades, a dinâmica de voluntariado é tensionada pelo atravessamento de situações contraditórias, com as quais os coletivos precisam lidar para dar sequência às atividades; como exemplo, podemos citar as tensões da especulação imobiliária, a interação com pessoas em situação de rua que buscam abrigo, a falta do apoio de políticas públicas e os desafios de adesão ao movimento, para citar apenas alguns. Com base em McClintock (2014)McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171., compreendemos que tais contradições passam a ser inerentes à dinâmica de constituição e permanência das hortas. Nesse sentido, uma horta urbana coletiva é um campo social, na perspectiva de Pierre Bourdieu, um espaço no qual é possível observar as relações sociais por meio do poder exercido pelos agentes diretamente envolvidos com o cultivo e por outros que influenciam a lógica das práticas estabelecidas nesses terrenos.

Neste artigo, analisamos uma horta urbana coletiva situada no centro histórico da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A Horta da Formiga (HF) foi observada como um campo social ao longo de dois anos, em uma investigação participativa que buscou responder: “Como agentes protagonistas, em uma horta urbana coletiva, conciliam as contradições inerentes a esse campo social?”. O aparato Bourdieusiano foi mobilizado como lente teórico-metodológica. O corolário do argumento desenvolvido é que quanto mais os agentes protagonistas da HF aproximam-se dos capitais tidos como legítimos ao Estado (metacampo de poder), mais são capazes de conciliar as contradições que atravessam esse campo. Embora haja uma agência desses indivíduos, recorrendo às noções de capital e à categoria habitus de Bourdieu, há condicionantes estruturados no campo que não permitem a conciliação de contradições de forma mais orgânica e diversa. Em termos de contribuição teórica para o campo das organizações, mobilizamos, neste trabalho, uma lente teórico-metodológica estrutural-construcionista para analisar um fenômeno em efervescência, pouco explorado sob a perspectiva Bourdieusiana, que tem se concentrado na análise de outros campos sociais. Compreendemos que as posições dos agentes no campo analisado mudam com mais frequência do que em outros campos em virtude do voluntariado e das mudanças de governo no Brasil a cada quatro anos, visto que as práticas de AU coletiva e comunitária são reguladas pelo poder municipal, especialmente no que diz respeito aos terrenos que podem ser ocupados por movimentos da sociedade civil organizados coletivamente.

Buscamos apresentar discussões relacionadas às cidades e suas configurações pensando, inicialmente, a ocupação dos espaços urbanos, as relações comunitárias e processos de gentrificação, dentre entre outros. Em seguida, trouxemos diferentes perspectivas sobre agricultura urbana coletiva e comunitária, tanto de olhares mais entusiastas (mas não superficiais) quanto de olhares críticos. Na sequência, abordamos o conceito de campos sociais na perspectiva de Pierre Bourdieu e seu aparato teórico-metodológico. Na seção de procedimentos metodológicos, explicamos como a HF, entendida como campo social, foi analisada tendo como base Bourdieu e Wacquant (1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.). Finalmente, apresentamos os resultados da investigação participativa e a discussão dela derivada. Concluímos o artigo reforçando que as contradições estruturais afetam a dinâmica dos agentes em práticas coletivas de agricultura urbana, limitando formas mais orgânicas e diversas de resposta a essas contradições.

REFERENCIAL TEÓRICO

A prática multifacetada da agricultura urbana coletiva

A noção de cidade trazida para esta reflexão é a de Lefebvre (2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo, SP: Centauro.), segundo o qual ela é o próprio indivíduo que nela habita. Assim, a cidade pode ser definida como uma “projeção da sociedade sobre um local”, não apenas o espaço, mas também a esfera do pensamento (urbano). Nesse sentido, por estar alicerçada sobre as complexidades que constituem as cidades, a agricultura urbana coletiva pode ser vista como um movimento que busca atender demandas oriundas dessas contradições urbanas, ao mesmo tempo que pode reforçar outras (McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171., 2018McClintock, N. (2018). Cultivating (a) sustainability capital: Urban agriculture, eco gentrification, and the uneven valorization of social reproduction. Annals of the American Association of Geographers, 10(2), 579-590.; McClintock et al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; Sbicca, 2014Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.). Tais iniciativas operam, como destacam McClintock et al. (2017)McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge., em tensões contraditórias mais amplas do “desenvolvimento desigual” da cidade.

As práticas de agricultura urbana são positivas porque levam as pessoas a unir-se em comunidades de interesse; essa integração por meio de uma tarefa exige um esforço coletivo que engendra relações sociais tais como cooperação, solidariedade e respeito mútuo pelo espaço de outros, embora, naturalmente, também ressalte as diferenças. Além disso, esta prática tem um potencial significativo de atuar contra a alienação do trabalho de outras pessoas, dos alimentos, dos processos ecológicos e do espaço urbano além de, muitas vezes, oferecer às pessoas uma oportunidade de aproximação com ecologias urbanas. Como argumentam Costa e Almeida (2012Costa, H. S. M., & Almeida, D. A. O. (2012). Agricultura Urbana: possibilidades de uma praxis espacial? Caderno de Estudos Culturais, 4(8), 1-21.), baseando-se em questões como produção, acesso ou preparo dos alimentos, as cadeias de relação entre produção, apropriação e consumo do espaço nas cidades podem ser recriadas.

Na perspectiva defendida por Purcell e Tyman (2015Purcell, M., & Tyman, S. K. (2015). Cultivating food as a right to the city. Local Environment, 20(10), 1132-1147.), o cultivo de alimentos na cidade tem o potencial de desafiar regimes dominantes que estruturam a produção e o uso do espaço urbano. Com este mesmo olhar, Prové et al. (2016Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.) defendem que, devido ao crescente interesse pela agricultura urbana, novos propósitos estão lhe sendo atribuídos, uma vez que tem sido vista como caminho possível para concretizar os objetivos sustentáveis nas cidades. Caldas e Jayo (2019)Caldas, E. L., & Jayo, M. (2019). Agriculturas urbanas em São Paulo: histórico e tipologia. Confins, 39. Recuperado dehttps://doi.org/10.4000/confins.18639
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resgatam a relevância da agricultura urbana na cidade de São Paulo, utilizando como marcadores temporais os anos entre 1983 e 2016. Dada a complexidade das relações sociais engendradas em uma megalópole, o crescimento desses espaços de cultivo contribui, também, para uma melhor compreensão de outras questões relacionadas a uma urbanidade intensa. Cumbers, Shaw, Crossan, e McMaster (2018Cumbers, A., Shaw, D., Crossan, J., & McMaster, R. (2018). The work of community gardens: reclaiming place for community in the city. Work, employment and society, 32(1), 133-149.) compreendem que esses jardins comuns não podem ser separados de processos econômicos e sociais subjacentes e mais regressivos que acompanham as políticas de austeridade neoliberais. Tais jardins fornecem espaço para formas importantes de trabalho que contemplam necessidades sociais e promovem o fortalecimento da comunidade. Brand e Munoz (2007)Brand, P., & Munoz, E. (2007). Cultivando ciudadanos: agricultura urbana desde una perspectiva política. Cadernos IPPUR/UFRJ, 21(1), 47-70. defendem que as políticas de agricultura urbana têm grande flexibilidade para expansão, podendo ser ajustadas e aplicadas em espaços diversos, do centro de Nova York às favelas de São Paulo.

Saindo de uma perspectiva unicamente entusiasta, autores apontam contradições nas práticas de agricultura urbana. A reflexão proposta por Jayo e Caldas (2019Jayo, M., & Caldas, E. L. (2019). Discursos de agricultura urbana em São Paulo: formação, profusão e captura. Kultur, 6(12), 157-176.), por exemplo, trata de uma agricultura urbana capturada, caracterizada não por práticas organizacionais comunitárias, mas sim alinhada a interesses de mercado, melhoria de imagem, especulação imobiliária, dentre outros possíveis. Para Rosol (2012)Rosol, M. (2012). Community Volunteering as Neoliberal Strategy? Green Space Production in Berlin. Antipode, 44(1), 239-257., a agricultura urbana apresenta-se como uma estratégia soft de reforço ao neoliberalismo ao envolver a sociedade civil na governança urbana pela terceirização de responsabilidades de serviços públicos e infraestrutura. Na mesma direção, Tornaghi (2017)Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801. entende que, embora a agricultura urbana venha ganhando mais espaço e visibilidade, continua sendo uma prática residual, marginal e intersticial, repleta de contradições e perturbada por restrições. Para Sbicca (2014), as práticas agrícolas urbanas estão sendo retratadas como benevolentes e não problemáticas. Assim, na perspectiva desses autores, há muitas dinâmicas controversas e potencialmente injustas que não são exploradas, mas motivadoras de questionamentos.

Ao mesmo tempo que diversas modalidades de práticas da AU crescem, McClintock et al. (2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.) destacam que ativistas questionam a quem realmente essas práticas estão servindo e por quem estão sendo orquestradas, as preocupações desses grupos são sobre possíveis efeitos gentrificadores dessas intervenções nas cidades. Há defensores da AU que expandem suas práticas para lutas em busca de justiça social e elaboração de políticas e equidade. O objetivo de McClintock et al. (2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.) é problematizar a celebração, muitas vezes acrítica da AU, destacando espaços de conflito nesse movimento crescente e, ao mesmo tempo, enfatizar os benefícios sociais, de saúde e ambientais da produção de alimentos nas cidades e zonas periurbanas. Esse não é um enfretamento simples; Tornaghi (2017Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801.) lembra que até mesmo os projetos que articulam, declaradamente, uma política de justiça alimentar, reconhecem que os limites da neoliberalização são difíceis de superar. Conforme Costa e Almeida (2012Costa, H. S. M., & Almeida, D. A. O. (2012). Agricultura Urbana: possibilidades de uma praxis espacial? Caderno de Estudos Culturais, 4(8), 1-21.), as áreas e práticas de AU enfrentam entraves e resistências associados a uma inserção subalterna e periférica, mesmo à economia urbana.

McClintock (2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.) lembra que as contradições são fundamentais à agricultura urbana de um modo geral e que, ao se concentrar em uma interpretação ou outra, há o risco de enfraquecer-se o potencial transformador desta prática. Conciliar as contradições internas à agricultura urbana pode ajudar a posicioná-la melhor dentro de esforços coordenados para uma mudança estrutural; para tanto, em vez de promover a agricultura nas cidades como um fim em si mesma, devemos pensá-la como um dos muitos meios para uma finalidade maior.

Com base no exposto sobre as amplas esferas que compõem a problemática das cidades e da agricultura urbana coletiva, identificamos a possibilidade de pensar a HF como um campo social. Olhamos para as relações sociais estabelecidas por seus agentes protagonistas e seus esforços para conciliar as contradições que atravessam o movimento.

O aparato teórico-metodológico Bourdieusiano

Os campos sociais podem ser compreendidos como espaços estruturados de postos cujas propriedades dependem da posição nesses espaços, que, no entanto, podem ser analisados de forma independente das características de seus ocupantes. Mesmo em campos consideravelmente diferentes, é possível identificar leis de funcionamento invariáveis e utilizar o que se aprende de cada campo para interrogar e interpretar outros campos (Bourdieu, 1984Bourdieu, P. (1984). Questions de sociologie. Paris, France: Les Éditions de Minuit.). O campo não tem partes nem componentes, pois cada subcampo tem sua própria lógica e regras específicas (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.). A relação estabelecida entre os campos no mundo social denota quão autônomos eles são em virtude da influência de uns sobre os outros e da sua capacidade de refração. Todo campo social é, também, um campo de forças e de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças (Bourdieu, 2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.). As posições tomadas no campo devem ser consideradas relacionalmente, pois, quando são caracterizadas as posições dos agentes, podem ser identificadas propriedades pessoais que os predispõem a ocupar tais posições e a realizar as potencialidades existentes. Os agentes de um campo que têm concepções sociais e tomadas de posição política similares compartilham, também, proximamente de uma trajetória social (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

A mudança permanente do campo relaciona-se às mobilizações de capitais. Capital é trabalho que leva tempo a ser acumulado, seja em sua forma materializada ou incorporada (Bourdieu, 1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.). Conforme Bourdieu (1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.), o capital pode ser: econômico, conversível em dinheiro e propriedades; cultural, que pode ser institucionalizado pelas qualificações educacionais, e, em algumas situações, conversível em capital econômico; social, caracterizado pelas conexões ou obrigações sociais, também passível de conversão em capital econômico e institucionalizado, como ocorre em um título de nobreza, por exemplo. Para além destes três, tem-se o capital simbólico (Bourdieu, 1990Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford, CA: Stanford University Press.), que diz respeito à reputação e ao prestígio, compostos por um conjunto de compromissos, dívidas de honra, direitos e deveres acumulados, que podem ser mobilizados em circunstâncias extraordinárias. A credibilidade dada ao capital simbólico só pode ser concedida pelo grupo. Assim, o campo é temporalizado junto com esses capitais (Hilgers & Mangez, 2011Hilgers, M., & Mangez, E. (2011). Bourdieu’s Theory of Social Fields: concepts and applications. In M. Hilgers, & E. Mangez (Org.), Bourdieu’s Theory of Social Fields. Abingdon, UK: Routledge.).

Para que um campo funcione é preciso que haja algo em jogo e pessoas dispostas a jogar, ou seja, dotadas do habitus que implica o conhecimento e o reconhecimento das leis inerentes ao jogo, do que está em jogo etc. (Bourdieu, 1984Bourdieu, P. (1984). Questions de sociologie. Paris, France: Les Éditions de Minuit.). O habitus, para Bourdieu (2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.), é o princípio básico das práticas e julgamentos adotados pelos agentes, um sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e ideologias características a um grupo de agentes. Além de ser a estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção destas práticas, o habitus é, também, estrutura estruturada, pois é o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social e o produto da incorporação da divisão em classes sociais (Bourdieu, 2007Bourdieu, P. (2007). A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, SP: EDUSP.).

Bourdieu discorre, também, sobre o Estado como metacampo de poder. Um dos princípios que unificam os campos de poder é, justamente, a disputa entre as pessoas pelo poder sobre o Estado, porque, por meio dele, podem conservar e reproduzir as diversas formas de capital. O campo político é, de acordo com Bourdieu (2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), o lugar por excelência do capital simbólico. O Estado pode ser compreendido como um metacapital, um poder acima dos poderes, no sentido de que é ele que legitima, pelos seus mecanismos, os capitais existentes. Desde o sistema formal de ensino já se define a distribuição dos capitais de interesse do Estado. A concentração desses capitais permite a universalização; a cultura legítima é a cultura de Estado, pois o processo de universalidade dá-se também na sua concentração. É necessário analisar o Estado como mecanismo para além das suas funções. Nesse sentido, pode-se pensá-lo como um princípio oculto e invisível da ordem social e da dominação, tanto física quanto simbólica (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

Embora diferentes elementos da discussão sobre campo tenham sido apresentados, deve-se considerar, ainda, que pensar em termos do campo é pensar de forma relacional e que os limites do campo se situam onde os seus efeitos cessam (Bourdieu & Wacquant, 1992). Analisamos a HF, compreendendo-a como um campo social envolvido por outros campos na metamorfose urbana e sofrendo influências do Estado como metacampo de poder.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Definimos como caminho teórico-metodológico para esta pesquisa a perspectiva do estruturalismo-construcionista de Bourdieu (1990Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford, CA: Stanford University Press.). Em razão disso, por meio do método de coleta de dados, foi realizada uma investigação participativa (Pozzebon, 2018Pozzebon, M. (2018). From aseptic distance to passionate engagement: reflections about the place and value of participatory inquiry. RAUSP Management Journal, 53, 280-284.) ao longo de dois anos na HF. O período de participação foi, ininterruptamente, de novembro de 2016 a novembro de 2018.

A HF foi desenvolvida pela Associação das Hortas Coletivas do Centro Histórico (AHCCH) em um terreno privado de 320m² cedido pelos proprietários temporariamente, em regime de comodato. A associação buscou acesso legal a um terreno público do município para a constituição de uma horta coletiva, mas, diante das barreiras para a liberação do terreno desejado, aceitou o convite para ocupar um terreno privado que deu à AHCCH a oportunidade de criar um projeto piloto de horta coletiva. Além dos membros da diretoria e dos membros do Conselho Fiscal da Associação, o grupo ampliou-se, ainda, com seus apoiadores, parceiros e voluntários itinerantes que participam dos mutirões e ações. O grupo busca estabelecer diálogos com o poder público e com outras iniciativas coletivas de agricultura urbana em Porto Alegre e outras regiões do estado do Rio Grande do Sul, para fortalecimento dos movimentos coletivos e comunitários. A justificativa para a centralização da pesquisa em um caso único de horta urbana coletiva é sua utilização enquanto caso instrumental, conforme Stake (1998), que considera a possibilidade de, por meio de um estudo de caso, analisar um fenômeno. Sob esta perspectiva, é possível buscar insights por meio do olhar direcionado pelo caso, diferentemente do que ocorre quando se trabalha com caso intrínseco, no qual a análise centra-se na exploração do caso em si.

Ao longo da investigação participativa, além da vivência cotidiana, foram realizadas 14 entrevistas (com pessoas da horta e representantes do poder público), complementadas por anotações e observações de campo nos mais diversos espaços de discussão do grupo (mutirões, roda de conversa, reuniões da organização, entre outros). Também fizemos registros fotográficos, leitura de documentos - sobre a constituição e os interesses do grupo - e coletânea de matérias em mídia convencional e redes sociais; além disso, participamos de discussões acadêmicas sobre o tema e de fóruns populares sobre agricultura urbana no Rio Grande do Sul.

Ao considerar a horta urbana coletiva um campo social, atentamos para três momentos necessários na análise de um campo social, conforme Bourdieu e Wacquant (1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.): inicialmente, observamos e analisamos a posição do campo em relação ao campo de poder; em seguida, buscamos estabelecer a estrutura objetiva das relações entre os cargos ocupados pelos agentes ou instituições que estão competindo no campo em questão; por fim, analisamos os habitus dos agentes, os diferentes sistemas de disposições que adquiriram via internalização de certas condições sociais e econômicas que se encontram em uma trajetória definitiva dentro do campo. Esta análise, em três momentos, foi realizada seguindo uma postura crítico-interpretativista (Alvesson & Sköldberg, 2000Alvesson, M., & Sköldberg, K. (2000). Reflexive methodology: new vistas for qualitative research. London, UK: Sage.), pois compreendemos que abordagens construtivistas, como a lente Bourdieusiana, têm por objetivo a realização de investigações em profundidade sobre como uma realidade social tem sido construída. O foco crítico concentra-se na dinâmica de poder e na ideologia que cercam as práticas sociais.

RESULTADOS: DISCUSSÃO E ANÁLISE

A posição da Horta da Formiga em relação ao campo de poder

Seguindo a configuração que julgamos mais adequada a esta discussão, e pelo processo de análise de um campo social conforme Bourdieu e Wacquant (1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.), começamos a discorrer sobre a posição da HF em relação ao campo de poder, destacando o Estado enquanto metacampo. Consideramos a necessidade de pensar o Estado para além de suas funções, refletindo sobre sua gênese (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria de práticas. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo, SP: Ática.). Por meio da análise deste caso, identificamos mecanismos universais aos quais a noção genética de Estado está vinculada.

A HF situa-se imbricada no Centro Histórico de Porto Alegre/RS, na lateral da Escadaria da Rua João Manoel, cenário no qual as relações de conflito pelo espaço são uma constante. Entendemos que analisar esse espaço incita a necessidade de pensar a cidade para além da sua fisiografia e atentar para outras dimensões envolvidas na urbanidade, conforme destaca Freire (2010Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria de práticas. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo, SP: Ática.). Primeiro, observamos que um movimento coletivo de agricultura urbana, ao aceitar estabelecer-se em um terreno privado, acaba por se estabelecer em uma contradição com relação ao acesso, pois nem todos poderão usufruir da ocupação do espaço. Isto é comum nas configurações relacionais da cidade contemporânea, como aponta Maricato (2009)Maricato, E. (2009). As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. em suas discussões sobre desafios nas relações da urbanidade. Dessa forma, ao mesmo tempo que uma horta urbana é uma iniciativa benéfica (Prové et al., 2016Prové, C., Dessein, J., & Krom, M. (2016). Taking context into account in urban agriculture governance: Casestudies of Warsaw (Poland) and Ghent (Belgium). Land Use Policy, 56, 16-26.; Purcell & Tyman, 2015Purcell, M., & Tyman, S. K. (2015). Cultivating food as a right to the city. Local Environment, 20(10), 1132-1147.; Smit et al., 2001Smit, J., Nasr, J., & Ratta, A. (2001). Urban Agriculture: food, jobs and sustainable cities. Washington, DC: The Urban Agriculture Network.), passa também a ser questionada pelo possível reforço de uma lógica que pode culminar em padrões de exclusão (McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171., 2018McClintock, N. (2018). Cultivating (a) sustainability capital: Urban agriculture, eco gentrification, and the uneven valorization of social reproduction. Annals of the American Association of Geographers, 10(2), 579-590.; Sbicca, 2014Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.; Tornaghi, 2017Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801.).

O Estado, como um metacampo (Bourdieu, 1984Bourdieu, P. (1984). Questions de sociologie. Paris, France: Les Éditions de Minuit., 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), promove direcionamentos essenciais ao estabelecimento de diálogos dentro da ordem social necessária à manutenção de sua própria lógica. A aceitação do “assim é” pelos diversos agentes inseridos na dinâmica do campo de poder, independentemente de sua posição, é o que assenta o simbolismo do poder exercido sem que seja necessário o emprego da força física no desenrolar cotidiano. Assim, a posição da HF em relação ao campo de poder, na compreensão aqui alcançada é, justamente, de um campo social em construção que se constitui na relação com outros campos e que recebe, constantemente, os efeitos de condicionamentos necessários à manutenção da ordem social. Entendemos que é por essa adequação condicionada à lógica do campo de poder que os agentes protagonistas da HF buscam conciliar aquilo que classificamos como contradições da agricultura urbana, seguindo a perspectiva destacada por McClintock et al. (2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.). Tais contradições estão postas, essencialmente, na dinâmica cotidiana estruturada e na ordem social estabelecida.

O cenário do caso analisado é de um terreno que permaneceu desocupado pelos proprietários ao longo de décadas. Nele, há sempre a circulação de pessoas classificadas como “não confiáveis”, percepção esta condicionada por padrões de normalidade, segundo uma lógica de Estado, que incita um estranhamento diante de tudo que não se “encaixa” na ordem. A presença de pessoas pobres urbanas dentro ou no entorno do terreno da HF é desafio cotidiano para os agentes protagonistas, que recorrem ao diálogo e oferecem suporte a essas pessoas, ainda que com limitações. O grupo da HF busca conciliar formas mais amistosas para a presença dessas pessoas na região e, assim, garantir ao movimento menos efeitos negativos desta convivência sobre o projeto (como entrar no terreno para atender a necessidades fisiológicas). Os voluntários da horta, por sua vez, tentam conter as investidas de moradores do entorno que não veem de forma positiva o acolhimento oferecido por eles às pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade extrema naquele espaço. Na configuração contemporânea da cidade neoliberal, as estruturas são desenhadas em espaços mais privilegiados (como no caso do Centro Histórico de Porto Alegre), de maneira que haja uma “natural” expulsão dos pobres e um alto investimento no capital imobiliário, como destacada por Brites (2017Brites, W. F. (2017). La ciudad en la encrucijada neoliberal. Urbanismo mercado-céntrico y desigualdad socio-espacial en América Latina. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 9(3), 573-586.) ao analisar mais amplamente tal problema. A dinâmica de demarcação sobre quais espaços da cidade os sujeitos devem ocupar manifesta-se de modo consentido por vias institucionais e, devido a isso, as estruturas de privilégio seguem sem questionamentos fundamentais quanto às segregações estabelecidas: estes são os fundamentos do campo de poder, alicerçados em um poder simbólico, segundo o aparato de Bourdieu (1989Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil., 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Pessoas em condição de vulnerabilidade social não têm, a seu favor, meios de mobilização de capitais que possam ser essenciais ao Estado, no sentido de contribuir para a estabilidade deste como metacampo. Desta forma, tais pessoas tornam-se “ruídos” na dinâmica do campo de poder, embora ainda sejam importantes para sua configuração, pois fazem parte do equilíbrio de forças necessário à dominação.

O Estado, enquanto poder simbólico, está sempre presente (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Entretanto não apenas em relação à pauta da agricultura urbana, mas a todas as desigualdades visíveis nas cidades. Observou-se, por meio deste estudo, que a presença do Estado é quase inexistente. A AHCCH participou, na Assembleia Legislativa, com outros movimentos, da construção de uma lei estadual de agricultura urbana, sancionada em 2018, que até 2021 não havia sido executada pelos municípios.

Quanto aos capitais dispostos no campo analisado, percebemos que os agentes protagonistas da AHCCH concentram e mobilizam capitais econômicos, sociais e culturais na HF conforme a conceituação apresentada por Bourdieu (1985), tais capitais mobilizados pelo grupo mostram-se alinhados à lógica do metacampo de poder representado pelo Estado, também segundo Bourdieu (2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Analisando os capitais dos protagonistas na HF, é possível observar que, embora oriundo da classe média, o grupo dispõe de pouco capital econômico para empregar no projeto, lembrando, ainda, que se trata de um trabalho voluntário em um terreno privado. Entretanto, no que diz respeito à mobilização de capital social e capital cultural, o grupo dispõe de boas redes de articulação de ambos, o que contribui para a referida conciliação e para a permanência do movimento ativo, além de dialogar, intimamente, com o poder de tais capitas, segundo a perspectiva conceitual de Bourdieu (1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.). Os agentes protagonistas da HF veem o Estado como algo exterior às suas atividades, o ente institucional que deve “ajudar” na operacionalização do projeto. E, nesse processo de frustração na tentativa de um diálogo “nós - eles”, não percebem que a ausência de suporte institucional é também presença do campo do poder, pois impõe a atribuição de responsabilidades unilaterais e neoliberais civis. A presença do campo de poder mantém-se no discurso de responsabilização dos cidadãos pelo trato dos espaços públicos ociosos e abandonados, mas nem sempre pela sua ocupação democrática.

A estrutura objetiva das relações entre os “cargos” ocupados pelos agentes ou instituições que estão competindo no campo em questão

O segundo foco para a análise da HF como campo diz respeito à estrutura objetiva das relações entre os “cargos” ocupados pelos agentes ou instituições que competem no campo em questão, seguindo Bourdieu e Wacquant (1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.). Consideramos que a estrutura objetiva dessa relação está ligada, diretamente, ao volume e estrutura dos capitais que detêm e são capazes de mobilizar, considerando o que está posto por Bourdieu (1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.) sobre os diferentes tipos de capitais. A estrutura do campo é definida de acordo com o equilíbrio de poder entre os jogadores. Dessa forma, a estrutura objetiva das relações entre cargos sofre um ajustamento contínuo (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.).

Aos agentes protagonistas da HF, ligados ao grupo da AHCCH, foi dada a responsabilidade de atuar como intermediários conciliadores das contradições que atravessam a HF, considerando-a um campo. Foi designada ao grupo da AHCCH a missão de intermediar, a partir dos capitais que pudessem mobilizar, o diálogo com e entre os outros agentes e instituições que estão competindo no campo, buscando conciliar as contradições comuns às práticas de agricultura urbana, conforme a perspectiva de McClintock (2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.) e McClintock et al. (2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.). Entre os agentes considerados no diálogo, tem-se a família proprietária do terreno cedido, a comunidade residente nas casas e prédios do entorno do terreno, as pessoas em situação de rua que circulam ou vivem temporariamente na Escadaria e os órgãos representativos do poder público. Cada agente que compõe o grupo de protagonistas da AHCCH envolvido no campo assume diferentes responsabilidades no sentido de garantir que o movimento possa resistir no terreno e alcançar o propósito fundamental de constituição da horta piloto. Dessa forma, a mobilização das capacidades desses agentes contribui para um equilíbrio relativo de forças e resistência; entretanto, como nem sempre cada membro da AHCCH na HF tem clareza do que está fazendo, acaba movendo-se por um senso prático. Este conceito foi apresentado por Bourdieu (1989Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil., 1980Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Paris, France: Les Éditions de Minuit., 2001Bourdieu, P. (2001). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil., 2007Bourdieu, P. (2007). A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, SP: EDUSP.) e refere-se a formas orgânicas de ação, sem o emprego de processos mais reflexivos. Identificamos que a forte presença desse senso prático é também um sinalizador de que o campo ainda é pouco autônomo, sofrendo mais com os atravessamentos e as influências de campos mais consolidados como o campo de poder, especialmente no que diz respeito ao Estado.

Entre si, os agentes da AHCCH no campo da Horta da Formiga veem-se em disputas sobre como proceder quanto à dinâmica cotidiana do movimento e aos desafios que os orbitam. A disputa interna ao campo da HF dá-se pela primazia de decidir sobre como pode ocorrer a ocupação do espaço: há sempre uma tensão nessa mobilização, pois os agentes envolvidos estão constantemente por definir qual a melhor ocupação do terreno. As disputas internas em um campo são características da sua dinâmica (Bourdieu, 2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.). Entendemos que os agentes da HF têm no capital social seu principal capital mobilizado, pois a AHCCH foi formada por meio de uma articulação de uma rede virtual de vizinhos que configurou o primeiro grupo. Não se considera, aqui, a independência desse tipo de capital em relação aos demais, mas a sua clara preponderância, inclusive em relação ao capital cultural acumulado do grupo. Dessa forma, as redes foram mobilizadas pela conversão destes capitais em outros tipos e, assim, geraram a possibilidade de arregimentar respostas às constrições apresentadas no campo.

Ao tratar da relação com as pessoas em situação de rua que ocupavam o terreno e circulavam pela Escadaria, observamos que elas não exercem nenhum tipo de dominância ou poder sobre o campo em questão, dado que todos os outros agentes envolvidos e já destacados, aqui, encontram-se, pelo alinhamento ao campo de poder e à ordem social, em condição de alguma dominância no campo. As pessoas em situação de rua não apresentam nem o volume nem a estrutura de capitais necessários para que possam exercer algum tipo de influência no campo. A posição de dominadas na qual essas pessoas se encontram é relevante para a configuração do campo, já que é um campo de disputas de poder e a importância dos capitais mobilizados só emerge quando os comparamos com outros capitais ou com sua ausência.

No que diz respeito aos moradores de casas e prédios vizinhos ao terreno, se posicionam de maneiras diversas quanto à existência da HF. Alguns defendem o projeto por acreditarem nos benefícios da prática da AU em si; outros apoiam por conveniência, já que foi ocupado o terreno que antes estava abandonado e acabava sendo utilizado por pessoas em situação de exclusão social para fins que contrariavam a ordem. Há, ainda, vizinhos indiferentes e alguns que se opõem à ocupação do terreno por questões de possível gentrificação e higienização da área da Escadaria. Observa-se um misto de perspectiva entusiasta (McClintock et. al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; McIvor & Hale, 2015McIvor, D. W., & Hale, J. (2015). Urban agriculture and the prospects for deep democracy. Agriculture and Human Values, 32, 727-741.; Purcell & Tyman, 2015Purcell, M., & Tyman, S. K. (2015). Cultivating food as a right to the city. Local Environment, 20(10), 1132-1147.) e perspectiva crítica da agricultura urbana (McClintock et. al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; Rosol, 2012Rosol, M. (2012). Community Volunteering as Neoliberal Strategy? Green Space Production in Berlin. Antipode, 44(1), 239-257.; Sbicca, 2014Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.; Tornaghi, 2017Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801.). Nessa configuração do campo, emergem, constantemente, as contradições a serem conciliadas (McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.; McClintock, et al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.).

Todas essas manifestações e problemáticas têm como fio transversal o campo de poder, quando considerado que os critérios e normativas para a definição de uma propriedade privada, bem como para a cessão desse espaço, estão alicerçados nas definições mais normalizadas e aceitas do metacampo, analisando conforme as reflexões trazidas por Bourdieu (2014Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria de práticas. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo, SP: Ática.). Assim, compreendemos que as posições dos agentes e instituições no campo em questão estão alicerçadas também nas estruturas do campo de poder, dado que é mediante determinação simbólica dos capitais mais legítimos que se estabelecem as concepções de ocupação legítima do espaço, bem como se reforçam à medida que esses capitais seguem sendo mobilizados na direção desse alinhamento. A conciliação das contradições (McClintock, 2014McClintock, N. (2014). Radical, reformist, and garden-variety neoliberal: coming to terms with urban agriculture’s contradictions. Local Environment, 19(2), 147-171.; McClintock et al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.) neste caso de agricultura urbana busca condições para configurar a HF e, de certa forma, provar à comunidade a contribuição social do movimento. Sendo a HF um projeto piloto e laboratório para a AHCCH, há um interesse fundamental de que as dificuldades apresentadas sejam contornadas para que se possa, de maneira mais madura, seguir pleiteando um terreno público para uma horta comunitária. Aproximar-se dos capitais legítimos ao campo de poder, nesse sentido, mostrou-se fundamental, pois é no reconhecimento da legitimidade do trabalho realizado pela AHCCH que as chances de cessão temporária ou definitiva de um terreno público podem materializar-se.

Análise do habitus dos agentes

Conforme destacado, o habitus, como sistema de disposições estruturadas e estruturantes, diz respeito a um patrimônio disposicional adquirido pelo agente ao longo do seu processo de socialização e que irá influenciar, como princípio básico, as práticas e julgamentos por ele adotados. Ademais, constitui o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características a um grupo de agentes (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria de práticas. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo, SP: Ática., 1990Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford, CA: Stanford University Press., 2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.). Nesse sentido, como agentes no campo da HF, destacamos a diretoria e os voluntários da AHCCH (protagonistas), a família cedente do terreno, pessoas da comunidade do entorno do terreno e as pessoas em situação de rua que vivem ou frequentam a Escadaria e costumavam ocupar o terreno cedido. O grupo dos membros das AHCCH compõe-se, em sua maioria, de pessoas com algum grau de formação em nível superior, preponderantemente, de classe média e pele branca, residentes na região do Centro Histórico de Porto Alegre ou em bairros imediatamente vizinhos, o que já sinaliza o volume e as estruturas de capitais mobilizados, se considerarmos a perspectiva de Bourdieu (1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.). Por conta do compartilhamento de um capital cultural institucionalizado (Bourdieu, 1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood.), minimamente similar, bem como de conhecimentos a respeito de meio ambiente, sustentabilidade, hábitos alimentares e outras questões que acabam por envolver a agricultura urbana, entendemos que esses agentes compartilham o que Bourdieu (1985Bourdieu, P. (1985). The forms of capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of theory and research for the sociology of education (pp. 241-258). New York, NY: Greenwood., 1990Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford, CA: Stanford University Press., 2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.) denomina patrimônio disposicional; isso é o que lhes permite estabelecer um diálogo alinhado para configuração de uma horta urbana coletiva e comunitária. Compartilham, também, perspectivas comuns a respeito do uso do espaço urbano e do direito à cidade, percebem a negligência do poder público e estão de acordo com outras questões que orbitam a pauta da agricultura urbana na contemporaneidade (McClintock, 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; McClintock et al., 2017McClintock, N., Miewald, C., & McCann, E. (2017). The politics of urban agriculture: Sustainability, governance, and contestation. In A. Jonas, B. Miller, K. Ward, & D. Wilson (Org.), SAGE Handbook on Spaces of Urban Politics. London, UK: Routledge.; McIvor & Hale, 2015McIvor, D. W., & Hale, J. (2015). Urban agriculture and the prospects for deep democracy. Agriculture and Human Values, 32, 727-741.; Purcell & Tyman, 2015Purcell, M., & Tyman, S. K. (2015). Cultivating food as a right to the city. Local Environment, 20(10), 1132-1147.; Rosol, 2012Rosol, M. (2012). Community Volunteering as Neoliberal Strategy? Green Space Production in Berlin. Antipode, 44(1), 239-257.; Sbicca, 2014Sbicca, J. (2014). The Need to Feed: Urban Metabolic Struggles of Actually Existing Radical Projects. Critical Sociology, 40(6), 817-834.; Tornaghi, 2017Tornaghi, C. (2017). Urban Agriculture in the Food - Disabling City: (Re)defining Urban Food Justice, Reimagining a Politics of Empowerment. Antipode, 49(3), 781-801.).

Pela investigação participativa conduzida, foi possível observar, recorrendo ao aparato Bourdieusiano (1983, 1990, 1999), que o habitus desses agentes os leva a agir em relação às contradições que precisam conciliar de maneira “automática”, pois são produtores e reprodutores de sentido objetivo, sabendo ou não, querendo ou não, já que suas ações são produto de um modus operandi que ultrapassa as intenções conscientes. Dessa forma, por meio de um senso prático e não de um engendramento necessariamente ao nível de uma ação reflexiva, o habitus é posto em prática de forma naturalizada (Bourdieu, 1980Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Paris, France: Les Éditions de Minuit., 2001Bourdieu, P. (2001). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil., 2007Bourdieu, P. (2007). A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, SP: EDUSP.). É nesse âmbito do senso prático que percebemos, dada a construção de disposições pelas quais passaram esses agentes, que eles se mobilizam, sem se dar conta continuamente, alinhando suas práticas ao campo de poder, pois isso se mostra eficiente do ponto de vista da estabilidade do movimento.

Os habitantes da vizinhança, em geral, são também de classe média e detêm disposições que lhes permitem compreender os discursos compartilhados pelo grupo da AHCCH quanto à defesa da relevância da HF, seja para apoiá-la ou questioná-la. Tem-se, assim, um espaço no qual um habitus comum é compartilhado no que diz respeito à compreensão da agricultura urbana. Além disso, na integração interna dos agentes protagonistas da AHCCH, tem-se o compartilhamento de um habitus relativamente comum - nas concepções sociais e tomadas de posição política - e de elementos de trajetória social segundo Bourdieu (1996Bourdieu, P. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, SP: Companhia das Letras., 2004Bourdieu, P. (2004). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP: Perspectiva.).

Essa gama de disposições incorporadas pelos agentes membros da AHCCH (identificada tanto na investigação participante quanto nas entrevistas) permitiu que fosse estabelecido o diálogo com a família cedente do terreno, dada a configuração de um capital simbólico, na noção posta por Bourdieu (1990Bourdieu, P. (1990). The Logic of Practice. Stanford, CA: Stanford University Press.), que possibilita essa interface e identificação mútua. A primeira aproximação deu-se, justamente, na mobilização do capital social do grupo - um dos voluntários conhecia tanto os membros da AHCCH quanto a família herdeira do terreno. Quando houve a aproximação para dialogar sobre a cessão do terreno para fins de configuração da HF, a comunicação foi imediata e acessível por conta de um habitus comum entre os membros da AHCCH e a família cedente. Converteu-se, dessa forma, o capital social e cultural do grupo em um capital econômico por meio do acesso à propriedade privada para a criação da horta: isso se dá em meio ao volume e à estrutura de capitais mobilizados por ambas as partes. A representante da família entrevistada declarou que eles sempre estiveram próximos à natureza e que a possibilidade de transformar o terreno ocioso em uma horta urbana coletiva foi recebida com entusiasmo por todos os membros, sobretudo porque a proposta estava alinhada a discussões referentes a sustentabilidade das cidades, revitalização de espaços verdes e cultivo de alimentos. Fica claro, assim, o diálogo das concepções compartilhadas com os membros da AHCCH.

Devemos, ainda, pensar sobre o habitus das pessoas em situação de rua que ocupam a Escadaria, que seguem disputando o acesso ao terreno. Não consideramos prudente classificá-las todas de um mesmo modo, pois, com algumas, foi possível uma aproximação e, com outras, não. Considerando aquelas das quais conseguimos nos aproximar nesse período de dois anos de pesquisa, podemos destacar alguns padrões: pessoas desabrigadas, algumas delas com alguma formação escolar básica, cursos profissionalizantes e, outras, analfabetas ou semianalfabetas. Em geral, esse foi o perfil de homens e mulheres, jovens e adultos, com os quais pudemos estabelecer diálogo, tentar aproximação. Assim, se analisarmos o encontro entre o habitus dos agentes protagonistas da HF e o habitus das pessoas em situação de rua, constatamos que houve, em alguma medida, dificuldade de ajustamento, mas a relação mostrou-se sempre necessária pelos constrangimentos sociais da ordem, que demandavam conciliação e, inclusive, pelas pressões higienizantes expressas por moradores do entorno da HF. As alternativas sempre estavam alinhadas à ordem possível. Há também frequentadores da Escadaria que não são propriamente desabrigados, mas que ocupam o local para uso de entorpecentes e seu comércio: a Escadaria está em uma localização favorável por proporcionar uma fuga imediata das ruas mais amplas do centro histórico de Porto Alegre.

Compreendendo que o habitus não é um esquema fixo, mas que passa por uma constante atualização quando da interação social e dos processos de incorporação e inculcação, acreditamos que a relação entre os diferentes habitus, possibilitada pela dinâmica de ocupação do terreno da HF, permite que os agentes protagonistas da AHCCH possam incorporar novas concepções de realidade, como das pessoas em situação de rua, distantes de tudo com que estão acostumados. O que também se pode observar é que os agentes mais adequados e adaptados a seus habitus, ao campo de poder e aos capitais a ele legítimos acabam por classificar toda estrutura social baseados nesses esquemas incorporados, que são, também, os mais legítimos para a ordem social vigente e isso gera um choque de habitus quando precisam interagir com habitus “desajustados”.

Assim, compreendemos que é na manifestação prática do habitus pelo senso prático (Bourdieu, 1980, 2001, 2007), nas respostas imediatas dadas a cada necessidade, voluntariamente condicionadas, que se tem dado a conciliação das contradições no movimento da HF. Por meio deste processo, alinham-se os capitais mais legítimos ao campo de poder, que têm garantido uma estabilidade mínima, conquistada no campo da Horta da Formiga.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A agricultura urbana apresenta-se como uma prática multifacetada na contemporaneidade, contribuindo para mudanças positivas na dinâmica das cidades, mas também reforçando práticas excludentes, a depender de como movimentos coletivos de cultivo estabelecem relações sociais. Por conta dessa lógica dupla, que tensiona uma série de questões, entendemos que uma horta urbana coletiva pode ser compreendida como um campo social, considerando a perspectiva de Pierre Bourdieu: foi a ampla possibilidade de reflexão a respeito desse fenômeno que despertou o interesse para se efetuar esta investigação. Considerando as discussões recorrentes sobre sustentabilidade, resiliência, laços comunitários, resgate da relação com a produção e o consumo de alimentos e ocupação de espaços verdes ociosos, bem como aspectos críticos dessas relações, a agricultura urbana tem alcançado relevância, dado o seu caráter múltiplo. Os atores envolvidos com a AU coletiva e comunitária têm a necessidade de conciliar as contradições inerentes a essa prática, desafios sempre presentes na estrutura desigual das cidades.

Diversos são os elementos observáveis nesta investigação. Devido à complexidade, optou-se por tratar uma horta coletiva, a HF, como um campo social na perspectiva de Pierre Bourdieu. Essa escolha analítica permitiu atentar para as amplas relações de poder e dominação, constitutivas da vida social e que se apresentam também nesse campo. Embora a HF tenha sido compreendida como um campo com pouco autonomia, permitiu-nos observar as relações mais amplas a ele atreladas, como as discussões que se apresentam para a observação da cidade neoliberal e, mais estruturalmente, a representatividade do Estado como metacampo de poder. Classificamos como cidade neoliberal aquela na qual há marcações espaciais de privilégios e expulsão de pessoas por meio de processos de gentrificação e alto investimento no capital imobiliário, perspectiva presente nas discussões apresentadas por Brites (2017Brites, W. F. (2017). La ciudad en la encrucijada neoliberal. Urbanismo mercado-céntrico y desigualdad socio-espacial en América Latina. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 9(3), 573-586.), Harvey (2008)Harvey, D. (2008). The right to the city. In D. Harvey. Rebel Cities: from the right to the city to the urban revolution. London, NY: Verso. e Maricato (2009Maricato, E. (2009). As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.).

Dessa forma, a agricultura urbana sai de um foco exclusivo no entusiasmo da sua operacionalização, para ser discutida com base nos fundamentos da sua constituição e levando em conta as contradições que lhe são próprias, quando consideramos toda a estrutura social que não apenas orbita ao seu redor, mas a sustenta.

Com base nessa análise ampla e relacional, esta pesquisa buscou abordar a grande complexidade de conciliações na HF para que o movimento resistisse naquele contexto, seguindo três momentos para análise do campo social, como propõem Bourdieu e Wacquant (1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. J. D. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, IL: Chicago University Press.).

As implicações teóricas e práticas desta pesquisa levam ao debate sobre os descortinamentos necessários à observação de fenômenos que são usualmente abordados com entusiasmo pela descrição superficial das práticas, mas que necessitam de uma maior profundidade de análise para a compreensão de mecanismos subjacentes, velados em motes contemporâneos de resiliência e sustentabilidade. Fundamentalmente, ressaltamos que as contradições destacadas são inerentes ao sistema capitalista, que elas se tornam mais evidentes e mais fortes com o avanço do neoliberalismo e que essa aproximação/alinhamento com o metacampo não constitui uma expectativa de superação dessas contradições, mas uma estratégia de avanço para viabilizar as lutas em torno da AU. Destacamos que, certamente, há sempre um risco de que um forte alinhamento dos capitais com o metacampo possa fortalecer a ordem de dominação vigente e a cooptação dos movimentos coletivos de agricultura urbana.

As reflexões neste artigo pretendem contribuir para o olhar organizacional dos movimentos de agricultura urbana coletiva, mobilizando uma lente teórico-metodológica robusta que permita adensar a discussão de questões essenciais ao fenômeno. Outras investigações com casos instrumentais ou intrínsecos podem ser desenvolvidas recorrendo à mesma lente e engajando-se em pesquisa participativa. Acreditamos que isso contribui para o destaque de complexidades não aparentes nas práticas cotidianas de agricultura urbana.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2021
  • Aceito
    24 Jan 2022
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