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Reflexões sobre a magia, mágica e o encantamento do Natal

Weber (2009Weber, M. (2009). Science as a Vocation, in From Max Weber. London, UK: Routledge .) previu que viveríamos em um mundo totalmente desencantado. Quando revisitamos a história da humanidade podemos até concordar; pois, nossa trajetória terrestre tem sido marcada por guerras, crises econômicas, fome, desastres naturais e pestes. Nos últimos anos não tem sido diferente.

Mas eis que chega aquele momento mágico do fim do ano, quando as cidades, shopping centers e lojas se enfeitam, confraternizações são agendadas, planejam-se viagens e famílias se reúnem. Para muitos indivíduos, nomeadamente os de poder aquisitivo e que moram no Ocidente cristão, que vivem numa economia estetizada (Böhme, 2017Böhme, G. (2017). The Aesthetics of Atmospheres. London, UK: Routledge.), é como se fosse um conto de fadas, um alívio, um ínterim de felicidade. As festas natalinas possibilitam que estes sujeitos reimaginem seus futuros, façam planos, busquem se reaproximar de familiares, amigos e colegas de trabalho. De fato, a reimaginação e encenação de uma série de novos sons, visões e até cheiros seduzem as pessoas a reencantar o mundo (Hancock, 2020Hancock, P. (2020). Organisational magic and the making of Christmas: On glamour, grottos and enchantment. Organization, 27(6), 797-816. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/ 1350508419867205
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). Assim, tomados pelo espírito do ‘faz de conta’ (Schechner, 2006Schechner, R. (2006). Performance Studies, an Introduction. Abingdon, UK: Routledge.), acreditamos que divergências políticas, rancores, mágoas e agendas diferentes possam ser superados e que, no início do ano seguinte, todos terão um começo absolutamente novo. Esta é a mágica do Natal.

Entretanto, o Natal, não raramente, é cinicamente descrito como uma grande festa comercial (Miller, 1993Miller, D. (1993). A Theory of Christmas. In D. Miller (Ed.), Unwrapping Christmas (pp. 3-37). Oxford, UK: Oxford University Press.), associada ao consumo conspícuo (Sheffield, 2016Sheffield, H. (2016, dezembro 22). How to Stop Christmas Waste and the Thousands of Tonnes Thrown Away Each Year. The Independent. Recuperado dehttps://www.independent.co.uk/climate-change/news/how-to-stop-christmas-waste-and-the-thousand-of-tonnes-thrown-away-each-year-a7489766.html
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), à cultura do desperdício (McGuire, 2016McGuire, P. (2016, dezembro 15). The Ghost of Christmas Waste: Consider the Impact of Those Gifts. The Irish Times. Recuperado de https://www.irishtimes.com/news/science/the-ghost-of-christmas-waste-consider-the-environmental-impact-of-those-gifts-1.2896942
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), ao endividamento insustentável de uma parcela da sociedade (Dickler, 2018Dickler, J. (2018, janeiro 02). Holiday Hangover: Americans Racked Up More Than $1,000 Each in Holiday Debt. CNBC - Your Money. Recuperado de https://www.cnbc.com/2018/01/02/americans-racked-up-more-than-1000-in-holiday-debt.html
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; Wood, 2017Wood, Z. (2017, dezembro 17). Britons Borrow an Average £452 each on Credit Cards at Christmas. The Guardian. Recuperado de https://www.theguardian.com/money/2017/dec/27/britons-borrow-an-average-452-each-on-credit-cards-at-christmas
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), à exploração dos trabalhadores (Chamberlain, 2016Chamberlain, G. (2016, dezembro 04) The Grim Truth of Chinese Factories Producing the West’s Christmas Toys. The Observer. Recuperado de https://www.theguardian.com/business/2016/dec/04/the-grim-truth-of-chinese-factories-producing-the-wests-christmas-toys
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), bem como ao aumento de tragédias pessoais, como a intensificação da sensação de exclusão social (Salonen, 2016Salonen, A.S. (2016). The Christmas Celebration of Secondary Consumers: Observations from Food Banks in Finland. Journal of Consumer Culture, 16(3), 870-886. Recuperado de https://doi.org/10.1177/1469540514541881
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) e da violência doméstica (Oppenheim, 2015Oppenheim, M. (2015, dezembro 02). It’s the Hardest Time of Year: Why Domestic Violence Spikes Over Christmas. The New Statesman. Recuperado dehttps://www.newstatesman.com/politics/2015/12/it-s-hardest-time-year-why-domestic-violence-spikes-over-christmas
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).

Mais do que isso, ao associarmos o Natal à “magia”, um toque de mágica que faz tudo de errado se consertar, refletimos sobre estes constructos. Nos Estudos Organizacionais e também nos discursos corporativos, a palavra “mágica” tem sido utilizada de forma instrumental; está associada ao sucesso (Palo, Mason, & Roscoe, 2020Palo, T., Mason, K., & Roscoe, P. (2020). Performing a Myth to Make a Market: The construction of the ‘magical world’ of Santa. Organization Studies, 41(1), 53-75. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0170840618789192
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), ao desempenho financeiro (Waters, 2012Waters, R. (2012, janeiro 18) Learning the Tricks of a Magic Company. Financial Times. Recuperado de https://www.ft.com/content/a60f4534-41bb-11e1-a1bf-00144feab49a
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), ao empreendedorismo (Ganzin, Islam, & Suddaby, 2020Ganzin, M., Islam, G., & Suddaby, R. (2020). Spirituality and Entrepreneurship: The Role of Magical Thinking in Future-Oriented Sensemaking. Organization Studies, 41(1), 77-102. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0170840618819035
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), ou ainda, a um ato performativo das estratégias comerciais e de marketing (Tambiah, 2013Tambiah, S. J. (2013) Form and Meaning of Magical Acts: A Point of View. In B. Otto , & M. Stausberg (Eds.), Defining Magic: A Reader (pp. 178-186). Abingdon, UK: Routledge.) ou de engajamento dos empregados (Sloan & Oliver, 2013Sloan, P., & Oliver, D. (2013). Building Trust in Multi-stakeholder Partnerships: Critical Emotional Incidents and Practices of Engagement. Organization Studies, 34(12), 1835-1868. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0170840613495018
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).

Estas correlações corroboram os argumentos de Styers (2013Styers, R. (2013) Magic and the Play of Power. In B. Otto, & M. Stausberg (Eds.), Defining Magic: A Reader (pp. 255-262). Abingdon, UK: Routledge.) e Malinowski (2011Malinowski, B. (2011) Magic, Science, Religion and Other Essays. London, UK: Souvenir Press.). Styers (2013)Styers, R. (2013) Magic and the Play of Power. In B. Otto, & M. Stausberg (Eds.), Defining Magic: A Reader (pp. 255-262). Abingdon, UK: Routledge.entende que a magia possibilita a criação de um elo entre prática e resultado; enquanto Malinowski (2011)Malinowski, B. (2011) Magic, Science, Religion and Other Essays. London, UK: Souvenir Press. vai além, acredita que ela seja um instrumento utilizado (propositalmente) para alcançar objetivos e metas específicos, dado que reflete as crenças culturais estabelecidas por meio de rituais e expressões compartilhados.

Todavia acredito que o Natal não possa ser visto como uma pantomima, uma mera produção do capitalismo. Esta festividade, como tantas outras, em diferentes culturas, tem funções sociais, como a de lubrificar tensões e relações interpessoais, bem como funções psicológicas, as quais são, na maioria das vezes, fontes geradoras de bem-estar (Cradick, 1961Cradick, R. A. (1961). Size of Santa Claus drawings as a function of time before and after Christmas. Journal of Psychological Studies, 12(3), 121-125.). Esta é a magia do Natal; mas, para que ela funcione, deve haver um consenso compartilhado sobre sua existência e sua capacidade de afetar o mundo (Elliott, 1997Elliott, R. (1997). Existential Consumption and Irrational Desire. European Journal of Marketing, 31(3/4), 285-296. Recuperado dehttps://doi.org/10.1108/03090569710162371
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).

Que afetemos, então, o mundo de forma positiva. Como professores, temos a possibilidade de distribuir afeto; como pesquisadores, podemos produzir pesquisas que deem um retorno social.

Por isso, convido a todos, independentemente de religião, crença ou visão de mundo, que aproveitemos este fim de ano para refazer pontes, curar feridas, resgatar laços de amizade e, juntos, construir uma academia forte e sólida.

Nesta última edição de 2022, convido todos para apreciarem alguns artigos primorosos. Iniciamos com “Feminismo negro comunitario del suroccidente colombiano como forma de autogobierno”, escrito pelas nossas colegas Alexandra Zapata Gonzalez, Maricel Sandoval Solarte e Silvia Caicedo-Muñoz. Este estudo explorou uma possível definição de feminismo da comunidade negra com base na experiência de uma das Mayoras da região da Colômbia do Pacífico, e contribuiu para o reconhecimento do trabalho das mulheres desta região, do seu próprio governo e governação por meio de estudos de organização em perspectivas afrodiaspóricas. As autoras se valeram da autobiografia etnográfica como método. Entre os resultados e conclusões, tem-se que este feminismo poderia ser entendido como práticas e compromissos que algumas mulheres negras da região do Pacífico colombiano estão a assumir e a liderar na comunidade, vindicando a arte como um elemento fundamental neste processo.

O segundo artigo intitula-se “Práxis de consumo: um estudo sobre a busca da libertação da opressão de gênero no contexto dos jogos on-line ” e foi escrito por Kelen Cristina Duarte e Ronan Torres Quintão. Aqui se teoriza sobre como as mulheres enfrentam a opressão de gênero no consumo. Utilizando dados do contexto de jogos on-line no Brasil, coletados por meio de 15 entrevistas em profundidade e netnografia, introduz-se o conceito de “práxis de consumo”, definido como uma ação reflexiva libertadora do oprimido em ambientes de consumo que reforçam a subalternização do outro. Os resultados revelam que as mulheres buscam libertação mediante uma ação dialógica frente à opressão de gênero, com mobilização e ocupação de mercado. A pesquisa avança nos estudos culturais do consumo demonstrando como uma prática de consumo pode auxiliar na busca pela libertação das relações de opressão em nossa sociedade.

Logo a seguir, Priscila Keller Pires e Graziela Dias Alperstedt brindam-nos com “A virada material nos estudos organizacionais: contribuições da Teoria das Justificações”, artigo cujo objetivo foi o de contribuir para o debate sobre a “virada material” nas ciências sociais e, mais especificamente, a respeito da sociomaterialidade nos estudos organizacionais, incluindo a espacialidade. As autoras defendem a proposição da Teoria das Justificações, que preconiza que os momentos de disputa vivenciados nas organizações não se reduzem apenas aos discursos, mas se valem de objetos e espaços para reafirmar sua lógica de ação. Para isso, abordaram a Teoria das Justificações aplicada ao estudo das organizações, com destaque para o engajamento de objetos, coisas e espaços que são acionados nesses momentos de disputa ou de prova, tão presentes nas organizações, contribuindo, desse modo, para os avanços dessa perspectiva de análise.

O quarto trabalho, “Por uma orientação ao impacto societal da pós-graduação em administração no Brasil”, escrito por Francisco José da Costa, Márcio André Veras Machado e Samuel Façanha Câmara, analisa os desafios da pós-graduação stricto sensu em Administração no Brasil, considerando principalmente os desafios do início da década de 2020, marcada por mudanças na avaliação da Coordenação de Avaliação Pessoal de Nível Superior (CAPES) e nas perspectivas de carreira dos egressos. Na construção do texto, foram revistos alguns fatos mais relevantes de 2000 a 2020, configurando a necessidade de alteração de prioridade formativa de um foco baseado em rigor na pesquisa para um foco maior na relevância prática. Com base na situação relatada e no debate intelectual sobre rigor e relevância, foram definidos dois modelos: um orientado à produção científica (MOP) e outro orientado ao impacto societal (Mois). Assumindo a oportunidade de mudança na direção do Mois, são indicadas proposições referentes a mudanças nos projetos formativos, nas práticas de pesquisa, nos canais de difusão de conhecimento e nas políticas de incentivo à pesquisa.

Logo a seguir, no artigo “O teletrabalho e as mulheres: percepções da conciliação da vida profissional e familiar”, Sara Fabiana Bittencourt de Aguiar, Fátima Bayma de Oliveira, Lygia Gonçalves Costa Hryniewicz e Anderson de Souza Sant’Anna apresentam resultados sobre a satisfação e a conciliação da vida profissional e familiar das mulheres em teletrabalho na Gerência Geral de Portos, Aeroportos, Fronteiras e Recintos Alfandegados (GGPAF) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nesta pesquisa, sugere-se que as mulheres estão satisfeitas com o teletrabalho, pois, neste, a maioria considera os benefícios e as melhorias de qualidade de vida, não obstante as desvantagens do isolamento social e o acúmulo de tarefas e responsabilidades domésticas. A contribuição do estudo consiste em ampliar o campo de conhecimento sobre o teletrabalho no período anterior e durante a pandemia, podendo lançar luz sobre o delineamento de políticas de gestão de pessoas que considerem a importância das mulheres no mundo do trabalho e contemplem o equilíbrio entre vida familiar e profissional.

No sexto artigo, “Henri Fayol e o método experimental de Claude Bernard”, Elcemir Paço Cunha analisa a relação entre o fayolismo e o método experimental de Claude Bernard, método em que o próprio Fayol argumentou ter se fundamentado para a elaboração de sua obra magna. A abordagem utilizada foi a história da ciência administrativa metodologicamente baseada na análise interna dos textos dos autores. A pesquisa sugere divergências entre o fayolismo e o método experimental, além de evidências do período do itinerário de Fayol, no qual teria, de fato e tardiamente, tomado contato direto com a obra de Bernard. A conclusão principal é que são fortes as evidências que sugerem que Fayol fez um estudo pouco sistemático de Bernard e só procedeu de fato este estudo após 1916, ano de sua obra principal, de modo que não pôde ter praticado o método ao qual se disse aderente.

Posteriormente, Julieta Kaoru Watanabe-Wilbert, Andrea Valéria Steil e Gertrudes Aparecida Dandolini, em “Aprendizagem da rede e aprendizagem interorganizacional: um framework teórico da relação e interdependência”, diferenciam “aprendizagem interorganizacional” (AIO) e “aprendizagem da rede” (ADR) desenvolvendo cinco proposições e uma estrutura teórica para demonstrar que as AIO e ADR são, de fato, construtos diferentes, e que o primeiro é um antecedente do segundo. Estar ciente das diferenças entre os dois pode facilitar a alocação de recursos e energia, seja para alcançar mudanças organizacionais ou para transformação em toda a rede. Além disso, o documento apresenta a coordenação multinível da rede como a principal dinâmica para que a AIO evolua para ADR.

Em “Percepção de chamado e a intenção de deixar o emprego: papel moderador da mobilidade de emprego”, Marcelo Soares, Bruno Felix e Rozélia Laurett analisam a existência de relações positivas, negativas, diretas e indiretas (via satisfação no trabalho e autoeficácia) entre perceber um chamado e a intenção de deixar um emprego, assim como o papel moderador da percepção de mobilidade de emprego.

Pesquisa em aprendizagem empreendedora: uma tradição positivista?” Esta é a pergunta de pesquisa que pautou o trabalho de Fernanda Paula Arantes e Maria Salete Batista Freitag. Para respondê-la foi conduzida uma revisão sistemática da literatura sobre Aprendizagem Empreendedora, analisando os elementos dos estudos publicados sobre o tema ao longo do tempo, com ênfase especial nas abordagens metodológicas empregadas na pesquisa empírica. O estudo foi motivado pelo fato de ser um campo da literatura ainda fragmentado. Além disso, as revisões anteriores sobre o tema não lançaram luz suficiente sobre os aspectos metodológicos das pesquisas.

Por fim, no décimo artigo, “Condições organizacionais para o policiamento baseado em evidências: uma proposta a partir da literatura internacional”, Gustavo Matarazzo, Rafael Alcadipani, Alan Fernandes e Maurício de Thomazi apresentam um histórico do Policiamento Baseado em Evidências (PBE) e propõem um quadro a respeito das exigências à implementação fundamentado em quatro campos: avaliação, liderança, tecnologia e redes de contatos.

Nesta edição, apresentamos ainda dois estudos de caso. O primeiro, escrito por Mel Girão e Hugo Garbe, “Maybelline: dilemas e desafios do lançamento no Brasil”, discute estratégias de posicionamento e mudança macroeconômica no Brasil. Já “Caso Queremos! Desafios de uma startup na pandemia”, escrito por Eduardo Russo, Diogo Pereira, Thiago Cañellas e Victor Almeida, discute o setor de entretenimento e live-events no Brasil e no mundo.

Boa leitura e Boas Festas! E que, no ano que vem, possamos estar juntos, vivendo em harmonia.

PROF. DR. HÉLIO ARTHUR REIS IRIGARAY

EDITOR-CHEFE

PROF. DR. FABRICIO STOCKER

EDITOR ADJUNTO

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2022
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