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Registros contábeis e escravatura no Brasil oitocentista: uma abordagem histórica

Registros contables y la esclavitud en el Brasil del siglo XIX: una aproximación histórica

Resumo

A presente pesquisa tem por propósito analisar o papel da contabilidade no sistema escravagista do Brasil oitocentista, investigando os registros e inventários do tráfico negreiro e também da contabilização dos compradores de escravizados. O estudo teve abordagem qualitativa ao utilizar a pesquisa historiográfica, quantos aos meios, foi bibliográfica e documental com objetivo exploratório. Parte da pesquisa documental foi realizada no banco de dados on-line Slave Voyages e presencialmente no Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP). Com base na análise das fontes documentais do ciclo da escravidão desde o tráfico negreiro até a compra dos escravizados pelos senhores das fazendas, os escravizados eram registrados contabilmente como uma mercadoria e/ou propriedade para gerar riquezas. Considera-se que a contabilidade reproduziu nos seus registros e demonstrações contábeis a naturalização das relações de poder instituídas pelo sistema colonial. Este estudo contribuiu para reflexão acerca da função dos profissionais da contabilidade que, de uma perspectiva mais crítica, poderiam ter compreendido o processo de objetificação ao qual foram submetidos os escravizados, mas também aponta que cooperaram no movimento abolicionista.

Palavras-chave:
Contabilidade; Escravidão; Brasil Oitocentista

Resumen

El objetivo de esta investigación es analizar el papel de la contabilidad en el sistema esclavista del Brasil del siglo XIX, indagando los registros e inventarios de la trata de esclavos y también la contabilidad de los compradores de esclavizados. El estudio tuvo un enfoque cualitativo utilizando la investigación historiográfica, en cuanto a los medios fue bibliográfico y documental con un objetivo exploratorio. Parte de la investigación documental se realizó en el banco de datos en línea Slave Voyages y presencialmente en el Instituto Histórico y Geográfico de Pernambuco (IAHGP). Con base en el análisis de fuentes documentales, desde la trata de esclavos hasta su compra como esclavizados por parte de los señores de las haciendas, los esclavizados eran registrados en la contabilidad como una mercancía o propiedad para generar riqueza. Se considera que la contabilidad ha reproducido en sus registros y estados financieros la naturalización de las relaciones de poder establecidas por el sistema colonial. Este estudio contribuyó a la reflexión sobre el rol de los profesionales de la contabilidad que, desde una perspectiva más crítica, podrían haber entendido el proceso de objetificación al que fueron sometidos los esclavizados, pero también señala que cooperaron en el movimiento abolicionista.

Palabras clave:
Contabilidad; Esclavitud; Brasil del siglo XIX

Abstract

This research analyzes the role of accounting in the slave system of Brazil in the 19th century, looking at the records and inventories of the slave trade and the accounting of the slave buyers. The study had a qualitative approach using historiographical research. In terms of media, it was bibliographic and documentary with an exploratory objective. Part of the documentary research was carried out in the online database Slave Voyages and in person at the Historical and Geographical Institute of Pernambuco (IAHGP). Based on the analysis of the documental sources, from the slave trade to the purchase of the slaves by plantation owners, the slaves were registered in the accounts as merchandise/property to generate wealth. Accounting is considered to have reproduced in its records and financial statements the naturalization of power relations established by the colonial system. This study contributed to the reflection on the role of accounting professionals who, from a more critical perspective, could have understood the process of objectification to which the enslaved were subjected. It also indicates that they cooperated in the abolitionist movement.

Keywords:
Accounting; Slavery; Eighteenth-Century Brazil

INTRODUÇÃO

A sociedade escravagista no Brasil é resultado da implantação do colonialismo, das relações de poder que organizaram a sociedade em uma segregação racial, da forma de organização do trabalho e das relações de produção pautadas pelo eurocentrismo (Quijano, 2000).

A escravidão, uma das maiores tragédias humanitárias, marcou profundamente a sociedade brasileira e serviu aos interesses da economia nacional e internacional. Inicialmente, é importante a definição de termos. Agostinho Malheiros, no seu artigo sobre a escravidão no Brasil, define-a como exclusão política - não se trata de exclusão partidária, mas do relacionamento, participação social e em cargos públicos - dos seres humanos escravizados (Malheiros, 1866Malheiros, A. M. P. (1866). A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social(vol.1). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Recuperado de https://books.scielo.org/id/kbxjh
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).

A relação de comercialização dos africanos feita pelos europeus durante a escravidão moderna era chamada de tráfico negreiro (Gomes, 2019Gomes, L. (2019). Escravidão (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Globo Livros.), constituindo um processo de mercantilização e objetificação de seres humanos, de retirada de uns da participação da sociedade livre. Por definição, o escravo era um ativo semovente, aquele que anda ou se move por si - forma de ativo também relacionado aos animais (A. R. Silva & Rodrigues, 2013Silva, A. R., & Rodrigues, L. L. (2013). Aspetos contabilísticos relacionados ao regime da escravatura brasileira: uma análise na propriedade rural (séc. XIX). In Anais do 14º Congresso Internacional de Contabilidade e Auditoria, Lisboa, Portugal.).

Por mais de trezentos longos anos os africanos foram retirados à força de seu continente e levados a um território desconhecido a fim de serem utilizados em um trabalho compulsório, o que caracterizou, num sentido sociológico, retirada do exercício da humanidade do indivíduo e da sua identidade.

De forma particular na sociedade brasileira, a escravidão perdurou mais extensamente em comparação com todas as outras colônias de escravização dos tempos modernos (Brum, 1998Brum, A. J. (1998). O Desenvolvimento Econômico Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Vozes.). Os impactos desta época, portanto, são de suma importância para que sejam entendidas as desigualdades sociais e econômicas atuais do cenário contemporâneo brasileiro.

Como disse o historiador e jornalista Laurentino Gomes em uma entrevista ao jornal El País, é impossível entender a sociedade brasileira, de forma completa, sem o estudo e entendimento do período da escravidão no Brasil (Gomes, 2019Gomes, L. (2019). Escravidão (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Globo Livros.). Isso também se aplica à história mundial, visto que a Organização das Nações Unidas marcou o dia 23 de agosto como o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição. O objetivo desta data é fazer lembrar o período da escravidão para que os erros passados sejam desconstruídos e não venham a se repetir.

A chefe da UNESCO declarou que a escravidão ainda existe em nossa sociedade, na forma de trabalhos análogos à escravidão, e afeta principalmente mulheres e crianças. Por isso, a observação de forma lúcida dos fatos históricos é imprescindível para detectar e combater as formas análogas à escravidão atuais (ONU News, 2020ONU News. (2020, agosto 23). ONU marca Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição BR. Recuperado dehttps://news.un.org/pt/story/2020/08/1723872
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). Visitar o passado é importante para se entender o presente. Importante também compreender a maneira como a ideologia racista - pretos como inferiores e com serventia apenas para trabalhos forçados - foi construída e sustentada durante a escravidão, permanecendo nos períodos atuais da sociedade brasileira, já que os negros continuam sendo discriminados e sofrendo preconceitos raciais como resultado da construção da ideologia racista dos séculos passados (Monteiro, 2021Monteiro, J. P. V. (2021). O estigma da cor: como o racismo fere os dois grandes mandamentos de Cristo. São Paulo, SP: Editora Quitanda.).

Assim, a contabilização das riquezas da escravidão era importante para o território brasileiro. Esses registros demonstravam o patrimônio, as riquezas da coroa portuguesa. No contexto da sociedade brasileira, a chegada dos portugueses impulsionou o desenvolvimento da contabilidade, ressaltando-se que a necessidade de controle de bens e posses já existia desde os tempos primitivos da história da sociedade humana (Bugarim, Pinho, Rodrigues, & D. Q. Machado, 2013Bugarim, M. C. C., Pinho, J. C. C., Rodrigues, L. L., & Machado, D. Q. (2013). Ações do conselho federal de contabilidade no desenvolvimento da contabilidade brasileira. Revista Contabilidade e Controladoria, Curitiba, 5(2), 134-151. Recuperado dehttps://revistas.ufpr.br/rcc/article/view/31505
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). O processo de origem e de evolução da ciência contábil, portanto, deu-se conforme as necessidades de registros comerciais da sociedade (Medeiros, Hartmann, Druzian, & Dalongaro, 2016Medeiros, K. V., Hartmann, V. K., Druzian, B. S., & Dalongaro, R. C. (2016). A evolução da profissão contábil. In Anais do 2º Encontro Missioneiro de Estudos Interdisciplinares em Cultura, São Luiz Gonzaga, RS.; Santos, Smith, & N. P. Machado, 2005Santos, J. L., Smith, P., & Machado, N. P. (2005). Fundamentos da Teoria da Contabilidade. São Paulo, SP: Editora Atlas.).

A contabilidade foi importante para a relação comercial no período da escravidão por ter sido utilizada como forma de controle da propriedade dos senhores de escravos e dos investidores do tráfico negreiro. Este alimentava as ambições e anseios econômico-financeiros dos seus investidores, sejam eles governos e/ou empresários. As questões éticas e morais, portanto, com relação à atividade de mercantilizar pessoas não eram alvo de reflexão no período da escravidão, já que a rentabilidade era o fim último da atividade. Essas reflexões a respeito da supressão do valor humano têm sido realizadas somente nos tempos atuais.

O escravo era visto como um ativo inventariado, uma propriedade, uma riqueza. A objetificação das pessoas e a dedução dos tempos presentes do tratamento do escravo como mercadoria são percebidas não apenas na relação comercial do tráfico negreiro, mas na própria contabilização dos escravos, tal qual se contabilizavam outras mercadorias compradas do outro lado do Atlântico (A. R. Silva, 2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
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).

Com o auxílio da disciplina da contabilidade crítica, matéria de análise qualitativa da aplicação da contabilidade na sociedade, que se propõe a observar o lado escuro da história contábil, analisa-se como a contabilidade serviu de suporte a regimes autocráticos e/ou ditatoriais, regimes nocivos ao bem-estar social, à moralidade e ética (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
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). Dessa forma, com o uso da história e sociologia se investiga a utilização contábil durante períodos sombrios da história humana.

Este estudo constitui-se do período da escravidão brasileira (1535-1888) e tem como cerne o século XIX (Brasil oitocentista) e a aplicação e utilização da contabilidade neste contexto, pelos senhores das fazendas, para contabilizar os escravizados. O interesse da pesquisa está voltado a uma análise histórico-sociológica do aspecto econômico do período da escravidão e de como a conjuntura e o legado da época da escravatura ainda impactam a atualidade da sociedade brasileira.

Com esses acontecimentos históricos e sociológicos em mente, tem-se a seguinte questão: Qual era o papel da contabilidade no sistema escravagista do Brasil oitocentista? A pesquisa tem, como objetivo geral, analisar o papel da contabilidade no sistema escravagista do Brasil oitocentista.

O método historiográfico, nesta pesquisa, tem como fim observar as relações do passado para entender o presente. Na pesquisa historiográfica, há uma relação permanente entre o passado e o presente (Pieranti, 2008Pieranti, O. P. (2008). A metodologia historiográfica na pesquisa em administração: uma discussão acerca de princípios e de sua aplicabilidade no brasil contemporâneo. Cadernos EBAPE.BR, 6(5), 1-12. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S1679-39512008000100010
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). Pode-se, por exemplo, observar como as relações da escravatura influenciaram na ideologia racista, uma vez que o entendimento era de que a pessoa negra havia sido feita para a servidão e era desprovida de inteligência. Pesquisas específicas sobre a contabilidade no período da escravidão têm sido pouco exploradas (A. R. Silva, 2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
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). Isto posto, esta pesquisa tem um caráter contributivo de propor o debate para o entendimento desta temática. Este artigo está dividido em revisão da literatura, procedimentos metodológicos, resultados e discussão e considerações finais.

REVISÃO DA LITERATURA: COMERCIALIZAÇÃO E CONTABILIZAÇÃO NO TRÁFICO NEGREIRO

A contabilidade é uma ciência que tem o propósito de registrar as riquezas de seus usuários e, de forma mais ampla, o seu patrimônio de forma técnica e programada. É uma ciência social aplicada, pois se metamorfoseia para oferecer informações que se adequem e sejam inteligíveis e funcionais às mudanças econômico-financeiras e culturais que ocorreram na sociedade (Hendriksen & Van Breda, 2018Hendriksen, E. S., & Breda, M. F. V. (2018). Teoria da contabilidade. São Paulo, SP: Atlas.; Iudícibus, 2021Iudícibus, S. (2021). Teoria da contabilidade (12a ed., atual.) São Paulo, SP: Atlas.).

A história contábil é progressiva, visto que a contabilidade se desenvolve de acordo com o progresso e evolução da civilização humana, seus primórdios remontam à Antiguidade. Achados arqueológicos da história contábil datam o surgimento da contabilidade em, aproximadamente, 4.000 a.C. Nas primeiras sociedades, o homem primitivo tinha a necessidade de contabilizar os seus rebanhos, para isso utilizava técnicas rupestres para demarcar sua propriedade. Ao longo do desenvolvimento econômico das sociedades, tanto a profissão como a ciência contábil foram se aprimorando e se moldando para oferecer informações úteis aos seus usuários (Coliath, 2014Coliath, G. C. (2014). A contabilidade como ciência social e sua contribuição para o capitalismo. ENIAC Pesquisa, 3(2), 152-161. Recuperado dehttps://doi.org/10.22567/rep.v3i2.157
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; Medeiros et al., 2016Medeiros, K. V., Hartmann, V. K., Druzian, B. S., & Dalongaro, R. C. (2016). A evolução da profissão contábil. In Anais do 2º Encontro Missioneiro de Estudos Interdisciplinares em Cultura, São Luiz Gonzaga, RS.).

A contabilidade também se aprimorou de modo a servir às necessidades das inovações comerciais. As demandas sociais foram se tornando mais complexas, exigindo maiores informações e detalhamentos e, com isso, maior eficiência da contabilidade para que as informações fossem plenamente úteis aos seus usuários (Iudícibus, 2021Iudícibus, S. (2021). Teoria da contabilidade (12a ed., atual.) São Paulo, SP: Atlas.; Martins, 2001Martins, M. F. O. (2001) Um passeio na contabilidade, da pré-história ao novo milênio. Adcontar, 2(1), 7-10.; A. R. Silva, 2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
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).

Sendo a contabilidade uma ciência que se molda à realidade e necessidade da sociedade, no período da humanidade em que a escravidão era a fonte econômica das riquezas das nações, os escravizados eram considerados mercadoria de seus senhores. A ciência contábil foi utilizada com um papel específico de contabilização destes ativos (bem contábil).

Essa contabilização tornou-se possível com o colonialismo instaurado na América Latina e a imposição de uma das suas bases, a classificação étnica como um padrão de poder eurocêntrico, o conceito de colonialidade do poder (Quijano, 2000). Observa-se que os espanhóis e portugueses, estes últimos no Brasil, foram concebidos como raça dominante e, portanto, tinham acesso ao trabalho e à remuneração, embora à nobreza estivessem reservadas as atividades hierarquicamente superiores.

Já os indivíduos trazidos do continente africano, denominados negros, foram relegados à escravidão. Dessa forma, para Quijano (2000), a colonialidade do poder é o marco inaugural da diferenciação e hierarquização de raças como forma opressora dos povos originários em diferentes contextos, e presente até hoje na sociedade.

Na América do Sul e América Central, o processo escravagista foi estabelecido e organizado para produção e reprodução de mercadorias e envio dos produtos ao mercado europeu, desempenhando, assim, as funções do capitalismo.

O tráfico negreiro constituía um importante e lucrativo comércio marítimo (Thornton, 2004Thornton, J. (2004). A África e os africanos na formação do mundo Atlântico:1400-1800. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier.). Os investidores europeus tinham confiança de que iriam advir lucros daquela migração forçada e explorada. Neste mercado, há construção de materiais para armazenamento e transporte dos prisioneiros comprados na costa africana para serem escravizados, manutenção de estoque e mercadoria, alimentos para os tripulantes, apólices de seguros para as viagens - tudo bem ordenado e complexo (Gomes, 2019Gomes, L. (2019). Escravidão (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Globo Livros.).

Tabela 1
Dados do tráfico dos escravos (1514-1866)

O banco de dados Slave Voyages é um memorial on-line do período da escravidão, com um extenso número de dados que foram anexados em memória da época escravagista (Slave Voyages, s.d.Slave Voyages. (s.d.) Comércio Transatlântico de Escravos - Base de Dados. Recuperado dehttps://slavevoyages.org/voyage/database#statistics
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). Neste banco de dados, estão os registros que ajudam na compreensão de como seres humanos foram trazidos para serem submetidos a trabalhos forçados. A seguir, na Tabela 1 são apresentados, para fins de demonstração, os registros nos inventários de negócios dos investidores em escravos. Esses registros são relevantes para a compreensão do volume do tráfico de escravizados africanos para as economias que, como o Brasil, foram por muito tempo sustentadas pela escravidão.

Observa-se que o número de escravos embarcados às Americas, do total de viagens feitas no período entre 1514 a 1866, foi de 10.666.347. Destes, os escravizados que desembarcaram (não morreram durante o traslado) no destino totalizam 9.203.722.

Com relação à mortalidade dos escravizados, havia uma porcentagem considerável, com média de 12,2%. As mortes decorriam por diversas razões, inclusive pelas condições difíceis da tripulação. Os maus tratos a que os escravizados eram submetidos são evidentes. Como objetos - não tinham, portanto, valor humano - eram “armazenados” nos navios de forma análoga às mercadorias. Cabe ressaltar que, em uma perspectiva de investimento contábil-financeira, essas mortes representavam perda de ativo; ou seja, menos retorno do capital investido.

Os dados da Slave Voyages (s.dOrdem dos Contabilistas Certificados. (s.d.). Aspetos contabilísticos relacionados ao regime da escravatura brasileira: uma análise na propriedade rural (séc. XIX). Recuperado dehttps://www.occ.pt/news/comcontabaudit/pdf/60.pdf
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.) destacam o percentual de crianças escravizadas: 21,5% em média. As crianças escravizadas eram chamadas de “escravinhas” e trabalhavam como adultos na fazenda dos seus senhores e as crianças africanas escravizadas foram levadas ao trabalho duro, da mesma forma como os adultos, em todas as atividades (Peixoto, 2005Peixoto, I. L. M. (2005, julho). Inventários: As famílias de cativos do sertão. Considerações sobre Pernambuco (1850-1879). Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambucano, 61, 131-149.).

Observa-se que, apesar da importancia que a escravidão teve para a economia, sua representação populacional não era tão signficativa de acordo com os dados apresentados no Slave Voyages (s.d.Ordem dos Contabilistas Certificados. (s.d.). Aspetos contabilísticos relacionados ao regime da escravatura brasileira: uma análise na propriedade rural (séc. XIX). Recuperado dehttps://www.occ.pt/news/comcontabaudit/pdf/60.pdf
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), cujos registros são importantes, cujos registros são importantes, dado que, se trata de um memorial cujos registros ajudam na compreensão de como seres humanos foram trazidos para serem submetidos a trabalhos forçados.

Considerando a necessidade de registros contábeis das operações do tráfico negreiro e dos senhores de escravos, a contabilidade crítica propõe-se a analisar e estudar a aplicação das ferramentas contábeis em períodos da história em que houve autoritarismo, opressão, como o período da escravidão (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., Oldroyd, D., & Tyson, T. N. (2004). Monetising human life: slave valuations on US and British West Indian plantations. Accounting History, 9(2), 35-62. Recuperado de https://doi.org/10.1177/103237320400900203
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).

A pesquisa da contabilidade no período escravista é ainda pouco explorada (C. C. S. Araújo & Carneiro, 2020Araújo, C. C. S., & Carneiro, E. S. Jr. (2020). Structure of Studies on Slavery in the 21st Century. International Journal of Professional Business Review (JPBReview), 5(1), 105-127. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.26668/businessreview/2020.v5i1.175
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), mas é importante para se entender a história contábil, especialmente em meio a governos opressores. No entanto, não se tem como julgar moralmente o fato de a contabilidade no passado ter sido utilizada para contabilizar os escravizados, objetificando-os, pois, à época, além de não ser uma prática moralmente errada, tratava-se de uma das maiores atividades comerciais (Oldroyd, Fleischman, & Tyson, 2008Oldroyd, D., Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2008). The culpability of accounting practice in promoting slavery in the british empire and antebellum united states. Critical Perspectives on Accounting, 19(5), 764-784. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.11.005
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).

Nesse período estavam presentes todos os componentes da linguagem contábil: os registros da viagem desde o tráfico dos escravos até o destino para comercialização nas praças públicas. A depreciação do escravo também ocorria (Lemos, Curado, & L. Machado, 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
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), justamente por causa do desgaste dos escravizados. Quando os escravos envelheciam ou adoeciam, muitos eram alforriados em virtude de um grande custo econômico ao senhor dos escravos, evitando, com isso, gastos com “mercadoria” (Lemos et al., 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
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).

Além da depreciação, ocorria também a tributação dos escravos. Logo, havia interesse dos senhores dos escravos quanto à redução da carga tributária de suas mercadorias. Os custos gerais para trazer os escravizados eram bastante altos, 40% da arrecadação bruta de venda - o que atraía a atenção da coroa portuguesa (Lemos et al., 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
https://revistas.fucamp.edu.br/index.php...
; Ribeiro, 2012Ribeiro, A. V. (2012). A contabilidade do tráfico de escravos: o caixa do rei Kosoko de Onim. In Anais do 15º Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, Rio de Janeiro, RJ.).

Foram utilizados métodos contábeis para demonstrar que a depreciação, termo contábil em referência à perda do valor do bem se dava principalmente pelo fato de que não havia um tratamento humanizado. Ou seja, o ciclo de vida dos escravizados era reduzido, dados os maus tratos e a falta de nutrição adequada (A. R. Silva, 2012Silva, A. R. (2012) Prática da Contabilidade na Transição do Trabalho Escravo para o Trabalho Assalariado no Brasil 1850-1888. In Anais do 36º Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, Rio de Janeiro, RJ.). Essa foi uma das justificativas utilizadas para a difusão da ideia de que o trabalho livre e humanizado seria mais vantajoso economicamente.

Importante enfatizar que a contabilidade foi um meio usado pelos abolicionistas para influenciar moralmente os gestores a formas positivas de tratamento de seus commodites, como o açúcar, o tabaco, o café e algodão e os escravos (Oldroyd et al., 2008Oldroyd, D., Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2008). The culpability of accounting practice in promoting slavery in the british empire and antebellum united states. Critical Perspectives on Accounting, 19(5), 764-784. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.11.005
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). Ao mesmo tempo que a ciência da contabilidade teve suas funcionalidades voltadas para a opressão dos escravizados, também foi utilizada como forma de a evitar.

Os registros de inventários do tráfico negreiro no Brasil oitocentista

Na história e evolução da contabilidade relativas à escravidão no solo brasileiro, tem-se registros a respeito de sua formalização no período colonial brasileiro, de 1535 a 1888 (M. Silva & Assis, 2015Silva, M., & Assis, F. A. (2015). A história da contabilidade no Brasil. Periódico Científico Negócios em Projeção, 6(2), 35-44. Recuperado dehttps://revista.faculdadeprojecao.edu.br/index.php/Projecao1/article/view/579
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). O estabelecimento das terras brasileiras como colônia tornou-as um potencial de riquezas a serem exploradas (Medeiros et al., 2016Medeiros, K. V., Hartmann, V. K., Druzian, B. S., & Dalongaro, R. C. (2016). A evolução da profissão contábil. In Anais do 2º Encontro Missioneiro de Estudos Interdisciplinares em Cultura, São Luiz Gonzaga, RS.).

Em 1549 foi nomeado pela Coroa portuguesa o primeiro contador das terras do Brasil, Gaspar Lamego (M. Silva & Assis, 2015Silva, M., & Assis, F. A. (2015). A história da contabilidade no Brasil. Periódico Científico Negócios em Projeção, 6(2), 35-44. Recuperado dehttps://revista.faculdadeprojecao.edu.br/index.php/Projecao1/article/view/579
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). A exploração do tráfico negreiro exigiu que a Coroa portuguesa tivesse um método de controle de suas posses. A Família Real constituiu o “Erário Régio ou Tesouro Nacional” para controle de suas atividades financeiras (Medeiros et al., 2016Medeiros, K. V., Hartmann, V. K., Druzian, B. S., & Dalongaro, R. C. (2016). A evolução da profissão contábil. In Anais do 2º Encontro Missioneiro de Estudos Interdisciplinares em Cultura, São Luiz Gonzaga, RS.)

Durante o período da escravidão brasileira, houve tempos em que a rentabilidade média do tráfico negreiro chegou a 20%, era a mais alta mundialmente (Brum, 1998Brum, A. J. (1998). O Desenvolvimento Econômico Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Vozes.). Neste período, a rentabilidade média do tráfico negreiro era maior, até mesmo, que a comercialização de café, que rendia, no máximo, 15%. Portanto a escravização de pessoas era rentável e a abolição da escravidão impactaria negativamente esse cenário.

O Brasil oitocentista é marcado, inicialmente, pela vinda da Coroa portuguesa ao Brasil em 1808, quando a contabilidade tinha maior relação com aspectos financeiros-fiscais. O aprimoramento gradual da Ciência Contábil ocorreu de acordo com as necessidades da colônia, que incluíam o controle fiscal, controle dos impostos, atividades de tráfico negreiro e também a necessidade de controle, de cunho financeiro, das receitas que a Coroa portuguesa recebia (M. Silva & Assis, 2015Silva, M., & Assis, F. A. (2015). A história da contabilidade no Brasil. Periódico Científico Negócios em Projeção, 6(2), 35-44. Recuperado dehttps://revista.faculdadeprojecao.edu.br/index.php/Projecao1/article/view/579
https://revista.faculdadeprojecao.edu.br...
).

A função da contabilidade na época da escravatura - em “contextos opressores”, termo utilizado por A. R. Silva (2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
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) - era de registro das riquezas dos senhores de escravos. O Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiro, em seu livro de 1866, fez um ensaio histórico-jurídico-social do tratamento dos escravizados na época da escravidão. Segundo Malheiro (1866), o escravo era tratado como mercadoria e não tinha direitos jurídicos e sociais. Era propriedade de seu senhor e devia-lhe total submissão, sem medidas protetivas por força de lei. Esta obra é de suma importância, trata-se de um estudo de primeira mão, haja vista que o autor presenciou a escravidão na época em que ela era vigente.

Por se tratar de grandes investimentos, repletos de detalhes, caso não houvesse uma boa contabilização de despesas, o investidor do tráfico negreiro poderia pôr a perder o seu negócio. A contabilidade, portanto, serviu para facilitar as transações dos escravagistas, sistematizar o tráfico negreiro e colocar valor aos escravizados, bem como monitorar a produtividade dos escravizados (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
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).

“O Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental por quase três séculos e meio. Recebeu, sozinho, quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América” (Gomes, 2019Gomes, L. (2019). Escravidão (Vol. I). Rio de Janeiro, RJ: Globo Livros., p. 24).

O que se tem de registro, seja em imagens e pinturas de época, seja em jornais ou mesmo nos inventários dos traficantes dos escravos e dos senhores de escravos, demonstra que os mercadores de escravos se utilizaram do longo período de escravidão para obter lucros neste mercado. Por mais que os europeus tivessem esperança de retorno financeiro, o tráfico era uma atividade comercial arriscada para os investidores. Como dito anteriormente, as navegações eram feitas em péssimas condições higiênicas dos escravizados, causando, com isso, uma média de 12,2% de mortes (Tabela 1). Alguns escravizados morriam por não terem sido alimentados (Lemos et al., 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
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).

O maior risco da atividade escravagista seria a “mercadoria” vir danificada ou não chegar. Os senhores de escravos inspecionavam os seus produtos, pois era importante que o escravo estivesse em bom estado, caso contrário, seria rejeitado (Ribeiro, 2012Ribeiro, A. V. (2012). A contabilidade do tráfico de escravos: o caixa do rei Kosoko de Onim. In Anais do 15º Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, Rio de Janeiro, RJ.). Apesar de nem sempre haver um cuidado com os escravizados, havia uma exigência autoritária de um bom físico para o trabalho na lavoura ou nas minas.

O valor dos escravizados estava associado com características físicas, tais como: saúde física, jovialidade, questões de gênero. Homens geralmente valiam financeiramente mais que as mulheres - por conta da força braçal (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
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).

Salienta-se que os escravizados possuíam diversas origens - as quais se situam nos atuais territórios de Angola, Congo, Moçambique -, diferentes etnias. Houve um processo de desconstrução de suas identidades, que foi implantado com muito sucesso para que se tornassem somente “negros” e, consequentemente, fosse dificultada a sua articulação visando constituir movimentos de resistência (Alencar, Carpi, & Ribeiro, 1994Alencar, F, Carpi, L., & Ribeiro, M. (1994). História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Ed. ao Livro Técnico.; Quijano, 2000).

Ainda que o tráfico negreiro fosse uma atividade em crescimento tanto em Portugal como no Brasil oitocentista, a Inglaterra passou a realizar iniciativas diplomáticas para encerrar esse comércio. Como essas ações não surtiram efeito, criou-se a Lei Feijó em 1831, no Brasil, que decretava o fim do comércio de escravizados (Alencar et al., 1994Alencar, F, Carpi, L., & Ribeiro, M. (1994). História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Ed. ao Livro Técnico.; C. E. M. Araújo, 2018Araújo, C. E. M. (2018). Fim do tráfico. In L. M. Schwarcz, & F. Gomes (Orgs.), Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Contudo, devido aos elevados lucros que a atividade produzia, os senhores dos escravizados eram contrários à aplicação desta lei, que, de fato, não teve a finalidade desejada.

Outra tentativa na forma de lei foi promulgada pelo Parlamento inglês em 1845, conhecida como Lei Bill Aberdeen, que propunha o fim do tráfico negreiro mediante ações da Marinha Real como fiscalizadora de embarcações que traficassem escravizados africanos, o que provocou muita polêmica quanto à soberania dos mares. O Brasil, então, foi pressionado a emitir a Lei Eusébio de Queiroz em 1850. Esta lei foi efetiva, visto que, nos anos seguintes, houve uma redução significativa do comércio de escravizados, até a sua extinção, embora a finalidade fosse evitar conflitos com a Inglaterra (C. E. M. Araújo, 2018Araújo, C. E. M. (2018). Fim do tráfico. In L. M. Schwarcz, & F. Gomes (Orgs.), Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O objetivo desta pesquisa foi o de analisar o papel da contabilidade no sistema escravagista do Brasil oitocentista. Para atingí-lo, utilizou-se a seguinte metodologia: abordagem qualitativa do problema. Em relação às estratégias, trata-se de uma pesquisa historiográfica, e quanto aos meios, pesquisa bibliográfica e análise documental com objetivo exploratório.

Esta pesquisa apropria-se da nova história, que é a análise crítica dos registros históricos (Curado, 2001Curado, I. (2001). Pesquisa historiográfica em administração: uma proposta metodológica. In Anais do 25º Encontro Nacional da ANPAD, Campinas, SP.). O que remete à interpretação de sentido dado pelos atores da época; neste caso, os profissionais contábeis, que criavam os relatórios e registros da contabilidade na época da escravidão. Por se tratar de uma pesquisa historiográfica do século XIX, foi utilizada análise documental de fontes primárias.

Quanto à classificação dos documentos, foram pesquisados documentos de arquivos públicos digitais, uma vez que, devido à pandemia da COVID-19, houve limitações na coleta presencial das informações. Por isso, a adaptação à maioria das informações obtidas da pesquisa on-line. A coleta das informações foi em sites eletrônicos e a principal fonte de coleta, o memorial digital Slave Voyages.

Também foram pesquisados documentos de arquivos públicos de natureza notarial quando ocorreu a redução do contágio na pandemia da COVID-19. Foi possível, então, realizar visita de forma presencial ao Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPInstituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. (2021). Cartório Dr Paulo Guerra 2º Tabelionato. Livro cartorial escrituras lavradas no período 1878-1884. Recife, PE: Autor.). A escolha deste instituto se deu devido ao fato de manter um acervo com dados e registros dos períodos da escravatura de Pernambuco, um dos principais locais de porto de importação de escravizados, bem como em virtude da proximidade geográfica, dado que o IHGP ainda se encontrava fechado em outubro de 2021, época da pesquisa.

Destaca-se que, durante o período de planejamento da pesquisa, houve cuidados com a confiabilidade das fontes por meio do estabelecimento de critérios descritos a seguir.

Quadro 1
Critérios utilizados para estabelecer confiabilidade das fontes

Na primeira etapa da coleta de dados, realizou-se um primeiro checklist, adaptado de Cellard (2008Cellard, A. (2008).Análise documental. InJ.Poupart, J. P.Deslauriers, L. H.Groulx , A. Laperrière, R. Mayer , & A. Pires (Eds.), A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos (Coleção Sociologia). Petrópolis, RJ: Vozes.), buscando atender aos critérios de confiabilidade apresentados no Quadro 2.

Quadro 2
Atendimento aos critérios de confiabilidade

Para a autoridade e autenticidade do Slave Voyage, Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico, foi considerada a informação que envolve pesquisa de vários anos com uma equipe multidisciplinar de especialistas dos continentes envolvidos e participação de renomadas universidades, como a de Harvard, entre outras organizações (Plataforma 9, 2021Plataforma 9. (2021). Slave Voyages 2.0 - The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Recuperado dehttps://plataforma9.com/investigacao/slave-voyages-2-0-the-trans-atlantic-slave-trade-database.htm
https://plataforma9.com/investigacao/sla...
).

Para manuseio dos registros de época no IAHGP, as pesquisadoras, tiveram de usar luvas e ter mais cuidado com as páginas dos documentos históricos datando de 1699-1884. Foram procurados os livros cartoriais, no qual eram registradas as transações comerciais da época. Como compra, venda e/ou doação de escravizados eram uma atividade mercantil bastante representativa, esses registros foram encontrados junto com outras operações de propriedades e bens, todas manuscritas.

Houve dificuldade de interpretação dos documentos, pois a forma de escrita e de linguagem daquela época difere da atual. Dificuldade sanada com a ajuda do profissional do museu do IAHGP na interpretação dos documentos coletados e na linguagem da época, por exemplo: “preto” como sinônimo de escravo.

A seguir, fez-se uma lista dos documentos que seriam coletados retratando as etapas do ciclo da escravidão, o que exigiu o segundo checklist (Quadro 3).

Obteve-se relativo sucesso na coleta de materiais, a escritura de doação de escravizados foi difícil de encontrar porque, conforme comentado anteriormente, não havia no IAHGP um livro específico de escrituração para as relações comerciais dos escravizados e muito menos para doações. A maior parte do tempo da pesquisa foi dedicada à análise e interpretação dos livros cartoriais. Quando se tentou os jornais, encontravam-se selecionados por data, logo, configurou-se uma pesquisa aleatória, em que não se obteve o sucesso desejado. Decidiu-se, então, dar por concluído o campo e deixar essa parte para uma pesquisa futura.

Quadro 3
Tipos de documentos coletados

As análises oriundas deste corpus da pesquisa foram realizadas com base nas narrativas encontradas no material coletado em registros cartoriais, registros contábeis, demonstrações contábeis, jornais, imagens e banco de dados.

Todo esse material foi organizado, interpretado (principalmente os manuscritos) e depois classificado conforme as etapas da pesquisa que se desejava atingir. Observou-se que esse ciclo da escravidão constituiria as unidades de análise: registros contábeis da captura e do transporte dos escravizados, registro de compra e venda em terras brasileiras (como mercadorias e formando parte dos inventários), papel da contabilidade também no processo abolicionista.

À luz da revisão de literatura, foi possível refletir sobre os registros contábeis do tráfico negreiro, bem como examinar a contabilidade dos compradores de escravos por intermédio da observação dos registros dos senhores de fazenda, enfatizando como a contabilidade os classificava nas demonstrações contábeis ao longo do processo de objetificação a que os escravizados foram submetidos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO: ENTRE CORRENTES E INVENTÁRIOS

A criação da América do Sul e América Central remonta ao eurocentrismo e ao colonialismo implantados, cujo modelo de poder está pautado na elaboração da hierarquia da raça (dominação da constituição biológica naturalizada dos superiores e inferiores, dos colonizados e colonizadores) e nas formas históricas de controle do trabalho, dos recursos e dos produtos no sistema mercantilista de caráter internacional (Quijano, 2000).

A contabilidade enquanto ciência social aplicada remete à análise e interpretação dos fenômenos sociais que ocorrem nas organizações refletindo as características da informação contábil tanto no seu aspecto quantitativo (valor monetário) como qualitativo (natureza das contas) (Coliath, 2014Coliath, G. C. (2014). A contabilidade como ciência social e sua contribuição para o capitalismo. ENIAC Pesquisa, 3(2), 152-161. Recuperado dehttps://doi.org/10.22567/rep.v3i2.157
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; Iudícibus, 2021Iudícibus, S. (2021). Teoria da contabilidade (12a ed., atual.) São Paulo, SP: Atlas.). A sociedade escravagista no Brasil utiliza a contabilidade para seus registros de transações, da produtividade e, de forma geral, do patrimônio dos senhores de escravos (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
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).

No exame dos registros de época de transação escravagista, percebeu-se a objetificação dos escravos e que eram tratados como mercadoria. O processo escravocrata teve seu início na África com a captura dos escravizados. Os traficantes adquiriam prisioneiros de guerra ou sequestravam os nativos, os quais eram acorrentados, de modo a serem subjugados (Figura 1).

Figura 1
Tratamento dos escravizados na captura

A condição de humanidade desses cativos era esvaziada quando passavam à qualidade de mercadoria, etapa em que já se realizavam os primeiros registros contábeis dos escravizados que seriam embarcados para seu destino final nas Américas (A. R. Silva, 2012Silva, A. R. (2012) Prática da Contabilidade na Transição do Trabalho Escravo para o Trabalho Assalariado no Brasil 1850-1888. In Anais do 36º Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, Rio de Janeiro, RJ.).

A próxima etapa refere-se à longa viagem que eles empreendiam. Para se ter melhor dimensão de como se davam as navegações dos navios negreiros, seguem algumas imagens coletadas do Slave Voyages.

Figura 2
Ilustração dos navios de navegação

A Figura 2 demonstra como eram os navios de navegação em que os escravizados eram embarcados. Estas canoas podiam transportar 200 escravos, eram originárias de Serra Leoa (Slave Voyages, 1849Slave Voyages. (1849). Section of Canoe for Transporting Slaves, Sierra Leone, 1840’s. Recuperado dehttps://www.slavevoyages.org/resources/images/category/Vessels/2
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, p. 237). O que se focaliza nesta imagem é o local onde os escravizados eram postos: no fundo da embarcação, sem muito espaço e com pouca higienização, pouca luz e acorrentados.

Figura 3
Escravizados encaixotados junto com outras mercadorias

Percebe-se na Figura 3 que, na embarcação na qual os escravizados eram transportados, também eram colocadas outras mercadorias. Assim, fica explícita a visão da época de que os escravizados eram “mercadoria” pelo modo de organização dos navios, qual seja, o de posicionar os escravizados de forma encaixotada e subumanizada. Lemos et al. (2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
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) e Ribeiro (2012Ribeiro, A. V. (2012). A contabilidade do tráfico de escravos: o caixa do rei Kosoko de Onim. In Anais do 15º Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, Rio de Janeiro, RJ.) apontaram em seus estudos a objetificação desses escravizados.

Tal como apontou Quijano (2000), escravizados das mais diversas origens eram considerados mercadoria pelo fato de serem negros, sendo a raça fator de hierarquização na sociedade, o que se alinhava ao modo de produção escravagista estabelecido, à época, nas colônias.

Figura 4
Pintura “negros no fundo do porão”

Essa foto clássica (Figura 4) expõe a forma como viviam, nos porões dos navios, os africanos escravizados. À base de supervisão, eram distribuídos de forma aleatória e sem muito espaço, mães amamentavam, boa parte dos escravizados encontrava-se despida, havia desespero, semblantes tristes. Estes africanos foram forçados a ser tripulantes em longos percursos, que tinham como destino, muitas vezes, o Brasil.

Essa é uma das faces tenebrosas e violentas da escravidão e das relações de poder por trás da colonialidade imposta pelo eurocentrismo para propiciar mão de obra e lucratividade. Os registros contábeis estavam presentes em todo o processo: captura, transporte, venda ou doação. A função da contabilidade nessa época estava vinculada à alienação dos direitos dos escravizados, uma vez que fazia a sua mensuração econômica como mercadorias (Lemos et al., 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
https://revistas.fucamp.edu.br/index.php...
; Oldroyd et al., 2008Oldroyd, D., Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2008). The culpability of accounting practice in promoting slavery in the british empire and antebellum united states. Critical Perspectives on Accounting, 19(5), 764-784. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.11.005
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).

Devido a essa concepção dos colonizadores, os escravizados eram equiparados aos ativos e bens dos seus senhores, comercializados livremente como propriedade que formava parte do patrimônio. Por tal motivo, fazia-se necessário o seu registro em uma certidão lavrada em cartório.

A seguir, expõem-se alguns dos elementos de pesquisa encontrados no IAHGP da época da escravatura no Brasil oitocentista, que auxiliarão no entendimento de como ocorria a contabilização neste período.

Figura 5
Livro de cartorial/escrituração contábil (IAHGP-1878-1884)

Na Figura 5, tem-se um livro de escrituração registrado no cartório “Dr. Paulo Guerra”, do 2º tabelionato, Pernambuco, no qual os escravizados eram registrados como bens e contados nos seus registros, servindo como base para a comercialização e escrituração contábil entre os anos de 1878-1884.

“Visto como uma mercadoria, o escravo foi tratado na documentação contabilística”. (Ordem dos Contabilistas Certificados [OCC], s.d.). Para os registros dos escravizados, os investidores do tráfico negreiro tinham de fazer suas escriturações nos cartórios de suas cidades. Os escravizados eram um meio para o fim de obter riquezas sem a contrapartida de pagamento do trabalho.

A seguir, uma folha de registros do livro de escrituração na Figura 6 para exemplificação de como se dava o processo de um registro contábil de um comprador de escravos.

Figura 6
Registro de compra de escravos em 1872

Neste registro (Figura 6), temos a escritura de uma escravizada. Nele constam “Vende-se uma preta [...]”, bem como as características físicas e os valores de compra. Em todo registro de escrituração de escravizados, era feita a descrição: homem ou mulher ou criança, cada um tinha um valor. Se houvesse alguma deficiência física, possivelmente o valor era menor. Neste registro da Figura 6, o valor da escravizada era de mil oitocentos e setenta e um reis (moeda da época), cuja data de transação foi realizada em 3 de julho de 1872.

Como afirma Ívina Peixoto (2005Peixoto, I. L. M. (2005, julho). Inventários: As famílias de cativos do sertão. Considerações sobre Pernambuco (1850-1879). Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambucano, 61, 131-149., p. 146), “[...] os envolvidos nos processos de inventários preocupavam-se mais com o preenchimento de outros requisitos importantes para a atribuição do preço dos cativos: nome, sexo, idade, procedência, condição física apresentada pelos descritos [...]”; ou seja, esses aspectos eram importantes para a realização dos registros contábeis (inventário). Na contabilidade contemporânea, data, descrição detalhada e valor de transação continuam como elementos constitutivos dos lançamentos contábeis. Contudo, à época da escravatura, a contabilidade reflete o processo de alienação, objetificação dos escravizados, determinado pelos colonizadores e naturalizado pelos colonizados.

A seguir e ainda demonstrando o processo de objetificação, na Figura 7 tem-se a transcrição de uma certidão de matrícula de escravos da Paraíba, que, na época, formava parte da Capitania de Pernambuco. Todos os escravos deveriam ser registrados com a descrição de suas respectivas características.

Figura 7
Certidão de matrícula de escravos (1877)

Na transcrição dos registros dos escravizados (Figura 7), percebe-se um detalhamento das “mercadorias” e também um registro de entradas e saídas. Todos esses detalhes das entradas dos escravizados eram necessários ao levantamento das demonstrações financeiras que eram feitas para controlar as despesas dos escravos. Como Ribeiro (2012Ribeiro, A. V. (2012). A contabilidade do tráfico de escravos: o caixa do rei Kosoko de Onim. In Anais do 15º Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, Rio de Janeiro, RJ., p. 6) menciona, “O gasto com as despesas era elevado [...]”, portanto, o controle das despesas dos escravizados era tarefa importante para que comerciantes assegurassem a rentabilidade desejada.

Desse modo, havia escrituração de compra, de venda, de doação, de empréstimo, entre outras que fossem necessárias. Para melhor visualização, segue um exemplo de escrituração de doação de uma escrava por um senhor de escravos, em 1832.

Figura 8
Doação de escravos (1832)

O Figura 8 retrata um processo burocrático de doação de objetos e bens que foi transcrito pelo autor de um livro de registro cartorial. O senhor, o dono do escravo, tem de se identificar e demonstrar que a doação do seu bem, o escravizado, é de livre escolha. Além disso, era necessário que houvesse testemunhas da doação. Assim, ficam evidenciados os aspectos legais no ato de doação de uma escravizada e seu filho para seu afilhado, que, em virtude da menor idade, ficará com os bens doados sob administração da comadre do doador - semelhantemente à doação de bens no tempo contemporâneo.

Figura 9
Anúncio de venda de escrava

No anúncio correspondente à Figura 9, A. R. Silva (2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
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) apontou como a contabilidade estava presente na determinação do preço de venda da escravizada, por considerar como fator influenciador um futuro “escravinho” e as habilidades desenvolvidas. Pelo relato das características e aptidões da escravizada, parece possuir utilidade doméstica ligada à esfera da reprodução. No caso dos homens, este fator estava mais vinculado às atividades produtivas, como o trabalho nas lavouras de café, açúcar, dentre outros. Denota, desse modo, uma organização das atividades que remete à divisão sexual do trabalho.

Os registros contábeis foram mais desenvolvidos com a chegada da Coroa portuguesa ao Brasil, pela necessidade de controle e tributação (Lemos et al., 2020Lemos, M., Curado, B., & Machado, L. (2020). Tributação de Escravos (Peças) na Capitania e Província de Goyaz (1727-1888). Revista de Auditoria Governança e Contabilidade, 8(37), 54 -78. Recuperado dehttps://revistas.fucamp.edu.br/index.php/ragc/article/view/2180
https://revistas.fucamp.edu.br/index.php...
; Ribeiro, 2012Ribeiro, A. V. (2012). A contabilidade do tráfico de escravos: o caixa do rei Kosoko de Onim. In Anais do 15º Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, Rio de Janeiro, RJ.). Nesta pesquisa, obteve-se o equivalente a um livro diário de escrituração contábil de um importante general, Bento da Gama, que foi também um senhor de escravos.

Nesse registro de entrada, constam o nome, os valores e a datação. As escriturações seguem sempre a mesma lógica de registro de características, valores e datação dos ocorridos (Figura 10), conforme demonstrado na pesquisa de Peixoto (2005Peixoto, I. L. M. (2005, julho). Inventários: As famílias de cativos do sertão. Considerações sobre Pernambuco (1850-1879). Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambucano, 61, 131-149.), que indica o lançamento contábil da época como equivalente ao livro diário contemporâneo.

Salienta-se que este livro, por apresentar páginas danificadas em razão do tempo, não era emprestado com facilidade.

Figura 10
Livro de registro de entrada dos escravos de Bento da Gama

Na Figura 11, tem-se, de forma mais completa, uma demonstração contábil do senhor de escravos e general Bento da Gama: identificação dos escravizados da mesma forma que nas dívidas contraídas por outros nobres da época; discriminação das despesas decorrentes (à esquerda, as despesas; à direita, os valores do que era devido).

Figura 11
Demonstração contábil de Bento da Gama

Como bem disse A. R. Silva (2014Silva, A. R. (2014). Prática da Contabilidade ao Serviço da Escravatura no Brasil: Uma Análise Bibliográfica e Documental. Revista Contabilidade e Finanças, 25(Especial), 346-354. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.1590/1808-057x201411060
https://doi.org/10.1590/1808-057x2014110...
, p. 7): “A redução do ser humano à condição de objeto ou animal era evidente nas avaliações e inventários”. A composição e distribuição das necessidades humanas dos escravizados eram tratadas como meras despesas de mercadoria. Esse fato, observado nos inventários dos compradores, caracteriza tal desumanização.

O tráfico de escravizados perdurou, ainda, na época da abolição do tráfico de escravos (1831-1888). Após a Lei Bill Aberdeen, a Marinha Real Britânica fiscalizava os contrabandos dos escravizados (C. E. M. Araújo, 2018Araújo, C. E. M. (2018). Fim do tráfico. In L. M. Schwarcz, & F. Gomes (Orgs.), Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) e fazia o controle dos escravizados libertos por meio de registros contábeis. Na Figura 12, a escolta da Marinha Real Britânica (à esquerda) dirige-se ao navio “Martha”. Assim, no período da abolição, tanto temos os navios dos traficantes, quanto navios supervisionando o mar e repelindo e denunciando a escravidão.

No Brasil, a escravidão perdurou porque a transformação da escravidão em capital industrial (exportação de commodities, como o açúcar, para o Velho Mundo) implicava transferência dos lucros pela colonialidade aos países europeus. O fim da mão de obra escrava significava enfraquecer economicamente os senhores dos territórios colonizados como sócios minoritários da burguesia europeia, uma vez que seria necessário contratar mão de obra assalariada - que passou a ser constituída por trabalhadores imigrantes europeus, como italianos e alemães, nas regiões Sul e Sudeste (Quijano, 2000).

Figura 12
Navios negreiros (1850Slave Voyages. (1850). U.S. Naval Brig “Perry” Approaching Slaver “Martha”, June 6th. Recuperado dehttps://slavevoyages.org/resources/images/category/Vessels/5
https://slavevoyages.org/resources/image...
)

Quando os escravos adentravam os navios, para serem escravizados pelos investidores do tráfico do escravo, eram feitos registros como forma de controle bem como quando eram libertos pela Marinha inglesa. De forma geral, a contabilidade era usada para converter as qualidades de seres humanos em valor monetário; por isso, os registros contábeis são feitos em formato descritivo, apresentando algumas categorias como idade, sexo, peso, entre outras (Fleischman & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00...
).

A importância dos registros contábeis, dos registros documentais, nessa época, era notável para fins de controle dos usuários dessas informações. Por isso, o serviço era minucioso e indispensável e foi usado para “mapear” os escravizados libertos ou presos.

Figura 13
Registros descritivos dos escravizados

Na Figura 13, o registro visual das informações contábeis, em formato de inventário de escravizados libertos, para controle das operações. Nos registros descritivos dos escravizados, eram colocadas as seguintes informações: sexo, idade, estatura e descrição física. Trata-se de um registro de africanos libertos da embarcação “NS de Caridad”, da British National Archives, o qual era mantido como uma prova formal de emancipação para ajudar a proteger o indivíduo de subsequente reescravidão (Slave Voyages, 2021, p. 144).

É lamentável observar que a forma descritiva de registro dos escravizados era idêntica à de registro de informações de outros animais e objetos da fazenda desses investidores (Fleischman, Oldroyd, & Tyson, 2004Fleischman, R. K., & Tyson, T. N. (2004). Accounting in service to racism: monetizing slave property in the antebellum South. Critical Perspectives on Accounting, 15(3), 376-399. Recuperado de https://doi.org/10.1016/S1045-2354(03)00102-3
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). Esses inventários demonstram a necessidade e importância da contabilidade crítica para que os profissionais contábeis percebam, à luz da sociologia, o uso da contabilidade em estruturas de opressão e, durante o sistema escravagista, a reprodução das transações comerciais naturalizadas pela sociedade com a finalidade de manter o poder do colonialismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tenebroso e uma ferida na história da humanidade: assim foi o período escravocrata. De forma compulsória, nativos das diferentes etnias da África foram levados contra a sua vontade a outro continente para serem maltratados, violentados e realizar trabalhos forçados sem nenhuma remuneração e nem respeito como seres humanos.

O tráfico negreiro era um comércio organizado, no qual atuavam: os traficantes que aprisionavam os indivíduos originários de diversas regiões da África; os compradores; os senhores de escravos; vendedores; e fornecedores. Os escravizados, reduzidos a “negros”, esvaziados de suas raízes, suas identidades e objetificados pelo sistema colonial, eram retratados como ativos, “investimento” de seus senhores, peças de estoque.

A colonialidade, enquanto sistema aplicado em terras brasileiras assim como em outros territórios vizinhos, mostra o controle exercido - em nosso caso, por Portugal - bem como suas nefastas facetas, quais sejam: os alicerces de uma complexa estrutura racial segregada, a construção social da biologia como fator excludente para dominação, os colonizadores brancos com direitos e os colonizados e seus territórios explorados como um meio (um objeto) para um fim (produção de riquezas) direcionado à Coroa portuguesa.

Aprofundar-se no entendimento sobre o período da escravidão é imprescindível para compreender as relações presentes no funcionamento da estrutura da sociedade brasileira. A sua composição atual tem relação direta com a forma como os fatos históricos ocorreram no Brasil e as suas heranças, como a disparidade econômica e social que ainda acomete o país.

A contabilidade como ciência social aprimorou-se e se metamorfoseou para acompanhar as mudanças na sociedade desde a Antiguidade até os dias atuais, a fim de fornecer registros mais confiáveis e úteis para o processo decisório.

Esta pesquisa teve por objetivo analisar o papel da contabilidade no sistema escravagista do Brasil oitocentista. Para tal fim, foi analisada de forma documental a escrituração contábil ou seu correspondente, como livros cartoriais desse período, livros e artigos que abordassem a temática. Nesta análise, observam-se os registros de viagem, a escrituração descritiva dos escravizados, os controles de venda, dos custos e compra dos escravizados.

Diante da semelhança com os registros contábeis atuais, com dados como data, valor e descrição detalhada, conclui-se que, de fato, os escravizados eram tratados como mercadoria, sendo desumanizados, e que a contabilidade retratou a concepção ideológica do regime escravagista, servindo aos interesses do colonialismo ao participar com os cálculos e registros contábeis para a precificação, depreciação e baixa dos escravizados como se mercadorias fossem.

Percebe-se que a contabilidade como ciência social aplicada poderia ter uma postura mais crítica e compreender que a escrituração contábil era realizada de forma alienada, naturalizando, assim, a visão determinada pelos colonizadores. Embora a contabilidade também tenha sido utilizada com fins abolicionistas, evidenciando contabilmente essas mudanças e contribuindo para a desconstrução desse regime de trabalho escravo, os profissionais da contabilidade poderiam ter compreendido o processo de objetificação e questionado as suas funções e responsabilidades.

A presente pesquisa não esgota o assunto da contabilidade no período da escravidão. Visto que ainda há poucos estudos sobre o assunto, há o incentivo para novas produções. Este é um tema amplo que precisa de mais contributos. Uma sugestão para futuras pesquisas seria uma análise dos fundos de emancipação como parte do movimento abolicionista que possibilitaram a libertação dos escravizados.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Deus por nos capacitado em todo o trabalho. Nosso agradecimento ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHG) pelo acolhimento da pesquisa, a professora Dra. Valdineide dos Santos Araújo pelas contribuições no desenvolvimento do estudo e a todos que participaram, direta ou indiretamente do desenvolvimento deste trabalho, enriquecendo o processo de aprendizado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    16 Ago 2022
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