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Interseccionalidades da escravidão contemporânea da mulher negra à luz do pensamento decolonial: trabalho, determinantes e desigualdades sociais

Interseccionalidades de la esclavitud contemporánea de las mujeres negras a la luz del pensamiento decolonial: trabajo, determinantes y desigualdades sociales

Resumo

O presente trabalho visa problematizar, como objeto de estudo, a invisibilidade da mulher negra escravizada com base em uma aproximação teorética decolonial de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo, com a adoção de uma abordagem qualitativa e pesquisa de revisão bibliográfica como método, com recorte no pertencimento-reconhecimento social, feminismo negro e equidade. O desenvolvimento do trabalho discute a posição da mulher negra na sociedade patriarcal brasileira, a sua invisibilidade e a metodologia feminista decolonial como estratégia institucional para uma reação política, jurídica e econômica contra a escravização contemporânea, adotando as contribuições de Ibarra-Colado e Maria Lugones como referenciais, em atenção às diretrizes de pesquisa da chamada especial Cadernos EBAPE. Como resultado, constata-se que a mulher negra é duplamente vulnerabilizada em razão de sua cor e gênero, o que torna a sua condição na relação social do trabalho essencialmente baseada numa assimetria de poder entre ela, mulher negra trabalhadora, e os seus empregadores, o que, como consequência, naturaliza as práticas de invisibilidade pelas escolhas das políticas públicas e privadas de combate à exploração. Este estudo conclui que há a necessidade de redesenhar as estratégias organizacionais de combate ao trabalho escravo contemporâneo fundamentado em uma ótica decolonial que valorize as particularidades e diversidades brasileiras, garantindo efetivo reconhecimento e enfrentamento da invisibilidade da mulher negra, para propiciar-lhe uma vida mais digna, menos desigual e menos periférica.

Palavras-chave:
Invisibilidade da mulher negra; Racismo; Trabalho escravo contemporâneo; Teoria decolonial; Violência de gênero.

Resumen

El presente trabajo tiene como objetivo problematizar, como objeto de estudio, la invisibilidad de la mujer negra esclavizada basándose en una aproximación teórica decolonial para confrontar el trabajo esclavo contemporáneo, adoptando metodológicamente un enfoque cualitativo y una investigación de revisión bibliográfica con foco en la pertenencia-reconocimiento social, el feminismo negro y la equidad. El desarrollo del trabajo discute la posición de las mujeres negras en la sociedad patriarcal brasileña, su invisibilidad y la metodología feminista decolonial como estrategia institucional para una reacción política, jurídica y económica contra la esclavitud contemporánea, adoptando las contribuciones de Ibarra-Colado y Maria Lugones como referentes, cumpliendo con los lineamientos de investigación de la convocatoria especial de Cadernos EBAPE. Como resultado, se constata que la mujer negra es doblemente vulnerable por su color y género, haciendo que su condición en las relaciones sociales de trabajo se base esencialmente en una asimetría de poder entre ella, una mujer negra trabajadora, y sus empleadores, lo que, como consecuencia, naturaliza las prácticas de invisibilidad a través de la elección de políticas públicas y privadas para combatir la explotación. Se concluye que existe la necesidad de rediseñar las estrategias organizativas para combatir el trabajo esclavo contemporáneo desde una perspectiva decolonial que valore las particularidades y diversidades brasileñas, asegurando el reconocimiento efectivo y el enfrentamiento de la invisibilidad de las mujeres negras, brindándoles una vida más digna, menos desigual y menos periférica.

Palabras clave:
Invisibilidad de la mujer negra; Racismo; Trabajo esclavo contemporáneo; Teoría decolonial; Violencia de género

Abstract

This article problematizes the invisibility of the enslaved black woman from a decolonial theoretical approach to confronting contemporary slave labor, methodologically adopting a qualitative approach and bibliographic review research focusing on belonging-social recognition and black feminism and equity. We discuss the position of black women in Brazilian patriarchal society, their invisibility, and the decolonial feminist methodology as an institutional strategy for a political, legal, and economic reaction against contemporary enslavement, adopting the contributions of Ibarra-Colado and Maria Lugones as references. We found that the black woman is doubly vulnerable due to her color and gender, making her condition in the social relations of work essentially based on an asymmetry of power between her, a working black woman, and her employers. This consequentially naturalizes the practices of invisibility through the choices of public and private policies to combat exploitation. It is concluded that there is a need to redesign organizational strategies to combat contemporary slave labor from a decolonial perspective that values Brazilian particularities and diversities, ensuring effective recognition and confrontation of the invisibility of black women, providing them with a more dignified, more equal, and less peripheral life.

Keywords:
Invisibility of the black woman; Racism; Contemporary slave labor; Decolonial theory; Gender violence

INTRODUÇÃO

As dificuldades sofridas pela mulher negra inserida na estrutura social brasileira patriarcal, misógina e sexista, considerados os sistemas de poder vigentes, justificam pesquisas e estudos que ponham em evidência as idiossincrasias de uma sociedade racista estrutural que naturaliza o trabalho escravo contemporâneo e ainda abriga relações domésticas que escamoteiam, na infeliz metáfora social de casa grande e senzala, a exploração silenciosa e obsequiosa do trabalho doméstico e a sua domesticada, dócil e familiar invisibilidade. Contudo, essa exploração, afastada de uma mera retórica rasa marxista da mais-valia, embora omitida das estatísticas oficiais, frequenta todos os espaços públicos.

No âmbito do trabalho escravo contemporâneo, notadamente aquele realizado pela mulher negra, também há dificuldade na quantificação em razão da subnotificação dos dados, que não são suficientes para evidenciar onde, de fato, essas mulheres estão inseridas. A invisibilidade desse público, em razão das suas determinantes sociais de cor e gênero, gera grandes entraves, quando, o mais das vezes, a ausência de dados legitima um estado de coisas inconstitucionais, o que acomoda uma organização e gestão públicas das relações de trabalho, emprego e gênero que agravam a violência sofrida pela mulher negra.

Esta pesquisa, qualitativa, com aplicação de revisão documental e bibliográfica, tem como objeto de estudo a problematização da invisibilidade da mulher negra escravizada contemporaneamente, que aparece quase sempre, e apenas socialmente, nas estatísticas da violência contra a vida, nos homicídios, nos feminicídios e nos resgates de trabalhadoras escravizadas, adotando-se como base teorética uma aproximação conceitual decolonial para uma efetiva reação política, jurídica e econômica contra o trabalho escravo, segundo a previsão do ilícito contido no art. 149, do Código Penal brasileiro, e nas normas internacionais de combate ao trabalho escravo contemporâneo. Parte-se da compreensão semântica de raça e racismo nas ideias de Gonzalez (2018Gonzalez, L. (2018). Primavera para as rosas negras. São Paulo, SP: Editora do Brasil., p. 191) como elementos funcionais e conformadores dos desenhos institucionais determinantes, que se traduzem em violência para a mulher negra. Essa análise assume o feminismo na interlocução teórica do pensamento de Lugones (2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, 9, 73-101. Recuperado dehttps://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
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), à luz do decolonialismo da América Latina, com o recorte de gênero, na proposta por um novo caminho para descolonizar o feminismo. Ou seja, um movimento dialético entre o eurocentrismo e a subjetividade plural periférica de emancipação, em uma ruptura do desejo de encobrimento do outro (Dussel, 1993Dussel, E. (1993). O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Necessário, ainda, é consignar que o recorte da investigação sobre trabalho e gênero evidencia que a violência sofrida pela mulher negra está comprimida pela interseccionalidade de suas múltiplas condições de violência, ou seja, ser mulher, ser mulher negra, ser mulher negra empregada ante os distintos papéis sociais da mulher que se confundem fenomenologicamente com as suas identidades sociais, de uma perspectiva adotada por Kimberlé Crenshaw (2020)Crenshaw, K. (1995). Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violance against women of color. Critical Race Theory. New York, NY: The New Press..

Não há contradição na constatação de que, no processo civilizatório feminino, o negro e, ao seu lado, a mulher negra são alvo de segregação econômica, social e política, sendo entregue ao sistema jurídico o papel de legitimar a violência oficial. A mulher negra, premida pela desigualdade remuneratória que naturaliza um acesso discriminatório à capacidade econômica, constata a resistência das instituições em reequilibrar as forças democráticas de participação e igualdade, as quais podem ser qualificadas de postura de políticas públicas administrativas hostis, segundo descrição teórica de Kimberlé Crenshaw (1995Crenshaw, K. (1995). Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violance against women of color. Critical Race Theory. New York, NY: The New Press.).

A hipótese adotada assume a existência do trabalho escravo contemporâneo realizado por mulheres negras e um estado de silêncio político oficial que concorre para a naturalização dessa violência de apagamento e de invisibilidade desse problema, o que dificulta seu enfrentamento e denuncia a necessidade de novos desenhos institucionais político-estratégicos que recondicionem um sentimento de pertencimento e dignidade sociais considerando uma aproximação teórica decolonial nas interseções dos determinantes sociais: educação, trabalho, renda, acesso a equipamentos públicos, saúde, sexualidade e gênero.

A discussão reservada ao objetivo geral é sobre a violência interseccional de gênero sofrida pela mulher negra na sociedade brasileira, cujos desenhos institucionais da administração de políticas públicas, alinhados pelos sistemas econômico, político e jurídico, permitem um estado de naturalização da invisibilidade dessa mulher, perpetuando sua segregação e agravamento de sua exclusão nos níveis de participação sociais da vida pública e da realização de seus projetos pessoais de uma vida digna. E, nos objetivos específicos, a reflexão exige a discussão interseccional da relação trabalho, gênero e poder, no contexto da exploração econômica contemporânea, na forma do trabalho escravo, por uma teoria feminista decolonial.

Diante dos fatos sociais de uma sociedade marcadamente patriarcal, sexista e institucionalmente violenta, esta investigação coloca o objeto e seu problema como pautas acadêmica e política, visando constranger a sociedade a um compromisso inadiável por novos desenhos institucionais, pela implementação de efetivas políticas públicas de inclusão social da mulher negra na estrutura social econômica emancipatória e, como consequência, nos sistemas de poder, para possibilitar a adoção de outras estratégias de fortalecimento dos instrumentos e das políticas de combate à subnotificação, ao controle e à punição do trabalho escravo feminino contemporâneo, desnudando as múltiplas camadas de vulnerabilidade nas quais a mulher negra encontra-se inserida, mesmo cativa de sua história.

A INVISIBILIDADE DA MULHER BRASILEIRA NO CONTEXTO DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

A história da humanidade se confunde com a história da exploração do homem pelo homem, evidenciada, no panorama contemporâneo, pela precarização das relações de trabalho, com a negativa de direitos materializada de forma plural, desde a submissão do trabalhador a postos de trabalho degradante, com redução das garantias trabalhistas, até a forma mais desumana de exploração laboral, qual seja, a submissão do trabalhador a condições análogas às de escravo. Miraglia (2011Miraglia, L. M. M. (2011). Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princípio da pessoa humana. São Paulo: LTr.) ensina que o trabalho escravo contemporâneo é quando o empregado é subjugado, humilhado e submetido a condições degradantes.

Cavalcanti (2021Cavalcanti, T. (2021). Sub-humanos: o capitalismo e a metamorfose da escravidão. São Paulo, SP: Boitempo.) elucida que, com o declínio da sociedade feudal e o surgimento e fortalecimento do capitalismo, não houve uma consagração da humanidade e da liberdade de todas as pessoas, pelo contrário, esses elementos históricos representaram, na verdade, a consolidação da ausência desses aspectos, e as pessoas tiveram os seus anseios ajustados pelo capital.

Considerando o recorte de gênero, que representa constantemente a mulher como alguém dependente e submissa, cabe questionar se houve, para elas, plenas possibilidades de integração social quando enquadrada ao capitalismo. Saffioti (1976Saffioti, H. I. B. (1976). A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis, RJ: Vozes.) sustenta que as mulheres sofrem diversos problemas em razão de seu gênero, no contexto das sociedades competitivas, considerando elementos como a maternidade, o aleitamento e o chamado absenteísmo feminino ao trabalho, entre outros. A autora entende que, diante dessas questões, a criação de condições de pleno emprego para as mulheres depende de uma ação que envolve os dois sexos, a superação desses problemas necessita do desenvolvimento de uma ação efetiva coletiva das duas categorias de sexo.

Há que se observar que a desigualdade de gênero é mais um fator de agravamento do abismo social, em que não há um patamar mínimo de condições de exercício da verdadeira liberdade, como ensina Binenbojm (2020Binenbojm, G. (2020). Liberdade igual: o que é e por que importa. Rio de Janeiro, RJ: História Real.).

Ainda nessa problemática, Saffioti (1976Saffioti, H. I. B. (1976). A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis, RJ: Vozes.) exemplifica a persistência dos sistemas produtivos como um fator de marginalização para as mulheres mais do que para os homens, mencionando o exemplo da indústria de vestimenta da França, que fomentou o trabalho em domicílio, modelo em que a exploração conhece limites mais frouxos.

É importante destacar, portanto, que a escravização do trabalhador contemporâneo reflete um emaranhado de vulnerabilidades multiplicadas pela sujeição da miserabilidade ao poder econômico, que não pode deixar de perceber situações agravantes de tais realidades, entre as quais a questão de gênero e raça.

Ao debruçar-se acerca do início do século XXI, Silva (2013Silva, R. M. C. (2013). História dos trabalhadores negros no Brasil e a desigualdade racial. Universitas JUS, 24(3), 93-107. Recuperado dehttps://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/view/2542
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) defende que, naquele momento, as desigualdades raciais continuavam sendo expressas e tendo particular intensidade, principalmente no âmbito do mercado de trabalho. Ainda que tenhamos em vista os avanços proporcionados pela Constituição brasileira de 1988, até o presente, existem mecanismos de discriminação que permanecem operando, mesmo que de forma sutil, mas com eficiência.

A trabalhadora mulher negra, sujeita às condições de trabalho análogo às de escravo, é produto de uma dinâmica social que, desde os idos do Brasil Colônia, banaliza a utilização da força laboral da mulher, sobretudo da mulher negra, tomando por base um importante elemento necessário para o combate à exploração do labor de tais trabalhadoras, qual seja, a subnotificação. A posição ocupada pela mulher negra representa uma herança da mentalidade colonial na sociedade brasileira, especialmente naquelas pessoas que se fixam em grandes centros urbanos, que têm a ideia de que o trabalho exercido pela mulher negra, especialmente no âmbito doméstico, seria um exercício laboral de menor importância, sem valores reais, baseado na ideia de que essas trabalhadoras já estariam sendo beneficiadas pela oferta de alimentação e moradia (Davis, 2011Davis, A. Y. (2011). Women, race, & class. New York, NY: Vintage Books.).

Inegável, portanto, que a mudança de mentalidade da sociedade quanto à sua percepção de exploração do labor da mulher negra em condições análogas às de escravo planta-se como primeiro obstáculo ao combate a tal prática nefasta, posto que a não percepção de tal prática como ilegal e violadora de direitos humanos é elemento basilar da subnotificação, considerando que aquilo que não se vislumbra como ilegal, desumano ou equivocado dificilmente será objeto de denúncia, investigação e combate por parte de uma comunidade, por conseguinte, dos atores sociais do sistema de justiça.

Como se não bastasse, o Brasil, como um país de dimensões continentais, depara-se com um complexo conjunto de dificuldades no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Desde as inóspitas áreas de ocorrência do crime, que dificultam sobremaneira a denúncia, até o acesso das equipes de fiscalização a tais regiões e o sucateamento dos órgãos de combate a essa prática, com carência de material humano e de recursos, a fim de viabilizar uma efetiva e robusta vigilância e investigação das denúncias. Até no caso do trabalho escravo doméstico, o entrave da inviolabilidade do domicílio, o que embaraça e, por vezes, inviabiliza uma efetiva fiscalização por parte dos agentes do sistema de justiça responsáveis pelo multidisciplinar combate a essa prática criminosa.

Se mentalidade e práticas sociais brasileiras são de menor valia ao trabalhador negro, com péssimas condições de trabalho, a situação das trabalhadoras negras é de severa indignidade, sobretudo quando as tarefas domésticas são percebidas como obrigação exclusiva da mulher, seja ela membro da família, seja ela trabalhadora escravizada.

Nesse sentido, Gato (2021Gato, M. (2021). O massacre dos libertos. Sobre raça e república no Brasil. São Paulo, SP: Perspectiva Ltda., pp. 64-65) esclarece haver uma cultura de estereótipos dos trabalhadores negros que atribui a eles “condições” como vadiagem e improdutividade, esbarrando na resistência dos senhores diante da necessidade inevitável de negociar com os trabalhadores libertos e portadores de direitos. Há que se destacar, ainda, a submissão da mulher negra à exploração do trabalho na escravidão sexual. O complexo sistema que envolve desde o tráfico de pessoas até as mais deploráveis práticas criminosas tem novamente seu combate dificultado tanto pela deficiência da notificação como pela estrutura estatal e pelo não envolvimento da sociedade civil na promoção de políticas públicas destinadas ao combate desse crime.

Surge, então, a soma de duas determinantes sociais que se sobrepõem e vulnerabilizam as vítimas repetidamente: a condição de mulher e de negra. A convergência entre essas duas condições é compreendida à luz das lições de Crenshaw (1995Crenshaw, K. (1995). Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violance against women of color. Critical Race Theory. New York, NY: The New Press.), que explica a interseccionalidade como a junção das consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação dos papéis sociais. Segundo a autora, o racismo, o patriarcalismo e a opressão de classe são sistemas discriminatórios que criam desigualdades básicas que estruturam posições subalternizadas relativas a mulheres, raças, etnias e classes. A interseccionalidade trata, ainda, do modo como políticas e ações geram opressão que perpassa esses eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos de “desempoderamento” e de hostilidade (Crenshaw, 1995Crenshaw, K. (1995). Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violance against women of color. Critical Race Theory. New York, NY: The New Press.).

Adotando-se esse parâmetro de interseccionalidade para entender o objeto de pesquisa, constata-se que a situação da mulher escravizada passa por diversas categorias de discriminação que se entrecruzam e, dessa forma, o problema da exploração de mulheres não pode ser analisado sob marcadores sociais isolados. Entre as diversas categorias possíveis de subinclusão, há pelo menos quatro determinantes sociais indicadas por Crenshaw (1995Crenshaw, K. (1995). Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violance against women of color. Critical Race Theory. New York, NY: The New Press.) identificadas no caso da escravidão contemporânea: mulher, negra, pobre e latino-americana.

O contexto brasileiro da negativa de direitos humanos, que implica a falta de acesso do cidadão à educação, à saúde, à moradia e ao saneamento básico, vulnerabiliza tais trabalhadoras potencialmente, que se veem como presas fáceis de propostas de trabalho, por vezes disfarçadas de promessa de fuga da miséria, de acesso ao estudo e de uma vida melhor que a concedida a uma ascendência de explorados, por vezes por gerações da mesma família.

Assim, no âmbito desta discussão, Cavalcanti (2021Cavalcanti, T. (2021). Sub-humanos: o capitalismo e a metamorfose da escravidão. São Paulo, SP: Boitempo., p. 223) sustenta que “naturaliza-se a desigualdade, sendo internalizada nas consciências coletivas como algo inexorável. E, assim, a exclusão é banalizada, a mendicância é trivializada, a exploração é vulgarizada, a insensibilidade é generalizada”. A continuidade da exploração, ao tornar-se corriqueira, banal, compõe um cenário cíclico da negativa de direitos. A modernidade não implicou a ruptura de contextos de exploração, opressão e discriminação, muito pelo contrário, relações sociais desiguais coexistem, nas quais estão evidentes o racismo, a xenofobia e a hierarquização dos seres humanos (Cavalcanti, 2021, p. 224).

A assimetria social entre os sexos e entre as raças é retratada cruelmente na exploração da trabalhadora mulher negra em condições análogas às de escravo, o que demonstra um universo cíclico de exploração herdado de uma mentalidade colonial. A organização social do trabalho fica comprometida nas dimensões de inclusão e equidade, considerando que a sociedade brasileira traz heranças históricas que invisibilizam duplamente as mulheres negras.

Percebe-se, portanto, que o desafio de combater a submissão ao trabalho em condições análogas às de escravo da mulher negra está para além da questão da miserabilidade e exclusão social. O debate é indissociável de uma cultura colonial de percepção da raça negra e do gênero feminino como não detentores da amplitude de direitos fundamentais garantidos pela Constituinte de 1988, negando-lhe igualdade, liberdade, dignidade naquilo que se tem de mais elementar para a construção de uma sociedade plural desenvolvida: o trabalho digno ao alcance da justiça social. É necessário repensar a organização e gestão públicas das relações de trabalho, emprego e gênero com base nas particularidades histórico-sociais brasileiras e da busca pela equidade dos determinantes sociais abordados nesta análise.

A POSIÇÃO DA MULHER NEGRA BRASILEIRA NA ESTRUTURA SOCIAL DOMINANTE

Na discussão da posição da mulher negra, quando inserida na estrutura da sociedade brasileira, percebe-se um fator predominantemente presente nas inter-relações das quais ela faz parte, desde o período colonial até o tempo contemporâneo, qual seja: o fator da exploração, que a invisibiliza e naturaliza essa posição. Nesse cenário, a mulher negra é constantemente posta em local de desinteresse, invisível aos olhos da maioria, e deixa de ocupar bons postos de emprego, permanecendo às margens da sociedade.

As características raciais e de gênero que envolvem a invisibilidade de certo público podem ser debatidas à luz da teoria dos determinantes sociais, compreendidos como fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam os fatores de risco da população. Os fatores dos determinantes sociais alteram sensivelmente, e negativamente, as possibilidades de equidade e as condições de vida digna das mulheres, que, por seus determinantes inerentes, são vulnerabilizadas e têm obstrução no acesso à justiça e aos direitos sociais (Chai, 2021bChai, C. H. (2021b). Violência de gênero, determinantes sociais e direito. In J. M. P. Caldas, J. B. Topa, & Y. Rodríguez-Castro (Orgs.), Violência de Género e Seus Determinantes Sociais: teorias & prática(pp. 7-11). Lisboa, Portugal: Letras Impares.).

Inicia-se, assim, a presente exposição com fundamento nas ideias de Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.), que, ao debruçar-se sobre a situação da mulher negra na sociedade brasileira, teoriza que, a escravidão - considerando os termos populacionais oitocentistas -, apesar de predominantemente atingir os homens, não excluía as mulheres, inserindo-as em duas categorias: trabalho do leito e mucama.

Assim, percebe-se que coube à mulher negra brasileira escravizada a tarefa de conceber força moral aos homens, filhos e irmãos de cativeiro. Existiam exceções - a autora menciona o exemplo da eclosão da Revolta dos Malês, incitada, principalmente, por uma mulher (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.). As variáveis racismo e sexismo emergem constitutivas da mentalidade patriarcal. De forma geral, portanto, a autora entende que houve um importante papel da mulher negra escrava no apoio moral aos homens no contexto de conflitos libertários, havendo exceções que, no entanto, confirmam a regra.

Na presente pesquisa, utilizam-se os termos “racismo” e “sexismo” com base nas ideias de Gonzalez (2018Gonzalez, L. (2018). Primavera para as rosas negras. São Paulo, SP: Editora do Brasil., p. 191), que afirma que o primeiro “ismo” mencionado - o racismo - é responsável por caracterizar a neurose cultural brasileira, e que a sua articulação com o sexismo gera diversos efeitos violentos, para a mulher negra em especial.

Além disso, para a autora, o racismo consiste em uma construção ideológica e um conjunto de práticas que passou por um processo de perpetuação e reforço precisamente após a abolição da escravatura, visto que beneficiou e beneficia diversos interesses (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras., p. 28).

Sexismo e racismo, portanto, para a autora, são variações de um mesmo tema, sendo mais geral, com foco nas diferenças biológicas, o ponto de partida para se estabelecerem ideologias de dominação (Gonzalez, 2018Gonzalez, L. (2018). Primavera para as rosas negras. São Paulo, SP: Editora do Brasil., p. 144).

No período após a abolição, quando a maioria das pessoas que antes compunham a parte escravizada da sociedade brasileira estava envolvida com as plantações de café, o papel da mulher tinha maior foco no exercício de atividades braçais, já que estava inserida na lavoura e, portanto, na reprodução da economia. Durante o Império, estima-se que dentre cerca de 800 mil trabalhadores, 300 mil eram mulheres, no entanto, a força laboral feminina era vista com desprezo, embora existisse em um número expressivo (Sousa, Tardivo, & Haack, 2021Sousa, C. P., Tardivo, G. P., & Haack, M. C. (2021). Localizando a mulher escravizada nos mundos do trabalho. Revista Cantareira, 34, 54-75. Recuperado de https://periodicos.uff.br/cantareira/article/view/44322
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, pp. 57-58).

No entanto, conforme se verifica, o fator de invisibilidade das mulheres negras é patente, o que leva pesquisadores a se debruçarem sobre as estruturas sociais e os sistemas de poder, trazendo à discussão a questão do gênero como fator determinante para a situação exposta. Fernandes (2008Fernandes, F. (2008). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, SP: Editora Globo., pp. 301-302) analisa certeiramente a degradação ocasionada pela escravidão, perpassando pelas características da anomia social, da pauperização e da integração deficiente que foram os elementos combinados para ocasionar um padrão de isolamento do negro e do mulato na sociedade, tanto no âmbito econômico quanto no sociocultural. O desaparecimento legal da escravidão, portanto, lançou os negros à composição de uma nova plebe, sob os efeitos diretos e indiretos dessa classificação. Nesse cenário, Fernandes (2008)Fernandes, F. (2008). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, SP: Editora Globo. insere a ideia de que a chamada democracia racial não passa de um mito.

É no seio desses acontecimentos que o racismo se consolida, com as ideias de que o negro, embora liberto da escravidão, sempre permanecerá em posição inferior, pertencente à plebe, sem condições efetivas de melhorias reais da qualidade de vida, já que a ideia enraizada de ser inferior impede que oportunidades sejam concretamente destinadas a eles.

Já em relação à mulher negra, Araújo (2003Araújo, A. S(2013). A mulher negra no pós-abolição. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 5(9), 22-36. Recuperado de https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/234
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, p. 25), quando trata da posição da mulher no pós-abolição, elucida a questão de gênero como uma característica física enraizada, tratada como natural e imutável no sentido de manter-se assim, de modo que represente um fator de naturalização da opressão feminina.

Portanto, entende-se que a experiência corporal característica da análise de gênero é fruto de processos sociais e históricos relacionados com a construção de significados, ou seja, não existiriam fora das relações sociais. Estipula-se, portanto, uma comparação entre a mulher branca e a mulher negra, sobre como o patriarcado naturalizou a opressão feminina negra, já que a mulher branca era considerada sacralizada na função de esposa e mãe; de outro lado, para a mulher negra escravizada, sobrava a função sexual, objetificada (Araújo, 2003Araújo, A. S(2013). A mulher negra no pós-abolição. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 5(9), 22-36. Recuperado de https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/234
https://abpnrevista.org.br/index.php/sit...
, p. 25).

A soma das categorias sociais que se cruzam, de mulher, negra e periférica, é comum em toda a América, como no caso da General Motors, analisado por Kimberlé Crenshaw, onde se constatou a potencialização da discriminação no ambiente de trabalho pela soma da vulnerabilidade de determinantes sociais de raça e gênero, em um exemplo claro de interseccionalidade (Crenshaw, 1989Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersecction of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Chicago, IL: University of Chicago Legal Forum.). Contudo, as determinantes sociais não podem ser analisadas isoladamente.

Esta discussão também é travada por Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.), que, ao mencionar a situação da mulher negra no mercado de trabalho, afirma que enquanto houver divisão racial e sexual no âmbito laboral, a mulher negra sofrerá um processo de tríplice discriminação que envolve os seguintes elementos: raça, classe e sexo.

Ainda nesse âmbito da discussão contemporânea a respeito da discriminação laboral da mulher negra, a autora menciona que, com o passar dos anos, novas perspectivas surgiram nos setores burocráticos feminizados. No entanto, essas oportunidades envolvem atividades que exigem um nível de formação educacional mais elevado, bem como cobra do candidato determinada “educação” e “boa aparência” (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.). Tais concepções acabam por representar novas barreiras para as mulheres negras que, embora, atualmente, tenham acesso a níveis mais altos de escolaridade, o que se observa é que a seleção racial ainda está presente, afinal, os casos de rejeição são patentes. É possível verificar que, quando há anúncios de vagas cujas qualificações são “boa aparência” e similares, já se presume que as candidatas negras não serão admitidas. A autora menciona, ainda, sobre esse ponto, a seleção no âmbito de multinacionais, que possuem a sigla CR para qualificar candidatas que são colored, ou seja, pessoas com coloração na pele (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.).

O que se percebe, portanto, é um processo de constante discriminação, que estabelece um comparativo entre a mulher branca e a mulher negra, sendo esta possuidora de inúmeras barreiras a mais. É tão contemporânea essa desigualdade das idiossincrasias da vida brasileira que o recente relatório do Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2021Cerqueira, D., Ferreira, H., Bueno, S., Alves, P. P., Lima, R. S., Marques, D., ... Pimentel, A. (2021). Atlas da violência. São Paulo, SP: FBSP.) traz indicadores ascendentes de agressões contra a mulher, ao mesmo tempo em que a polarização política, capitaneada pelo presidente da República, catalisa discursos de ódio, que proliferam a desinformação e tensionam a credibilidade das instituições democráticas e das liberdades, mesmo de pensamento e da igualdade pelo coeficiente da diferença. As redes de proteção social, tanto no combate ao trabalho escravo contemporâneo quanto no fomento de instrumentos de proteção ambiental e políticas afirmativas, vêm sofrendo sensíveis reduções e mudanças, o que repercute até na coleta de dados que informam o desenho do mapa da violência, fazendo surgir o identificador Morte Violenta por Causa não Identificada.

Os fatores expostos levam as autoras mencionadas a se interligarem quando tratam a questão da sexualização do corpo feminino negro. Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras., p. 51) afirma que quando a mulher negra não está trabalhando como doméstica, ela encontra-se em postos de serviço com remuneração baixa, lotada em escolas, hospitais e supermercados, entre outros. Assim, como uma visão geral, estabelece-se que, na sociedade contemporânea, para a mulher negra, existem dois tipos de qualificação profissional: a empregada doméstica e a função de mulata. Quanto a essa última, a autora justifica esse fato como um reflexo da exploração e sexualização de corpos negros.

A autora pincela a referida exploração sexual de mulheres negras como algo enraizado não só na cabeça dos brasileiros, mas, principalmente, na visão eurocêntrica exposta, que representa mais uma forma de discriminação pela qual a mulher sofre em razão dos determinantes sociais de cor e gênero.

Davis (2011Davis, A. Y. (2011). Women, race, & class. New York, NY: Vintage Books.) também aborda o problema da exploração sexual de mulheres negras, afirmando que essa é uma das maneiras distintas pelas quais a mulher também pode sofrer e ser explorada, vítima de abuso sexual e bárbaros maus-tratos. Nesse cenário, a exploração dessas mulheres acompanha a conveniência do explorador: se é conveniente utilizar sua força braçal, assim é feito; se convém explorá-las sexualmente, assim o fazem.

Ao final, ainda na temática proposta, Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras., p. 52) menciona o que seria um tipo de sensualidade especial da mulher negra, bem como chama atenção para a exclusão da mulher negra de dentro do próprio movimento feminista nacional.

No primeiro aspecto, a autora sugere que a exploração sexual da mulher negra, muitas vezes, é proposto até mesmo pela mulher branca inserida na classe média ou superior. Já a respeito da exclusão das discussões no âmbito do racismo no movimento feminista, a autora utilizou um exemplo fático, de um evento feminista do qual ela participou, em que tentou inserir pautas do feminismo negro, não tendo aceitação.

Diante do exposto, torna-se possível verificar que, do período Colonial até a contemporaneidade, a mulher negra sofre com a constante invisibilidade de seus direitos, anseios e necessidades, entre outros aspectos, permanecendo impossibilitada, por diversos motivos internalizados na cultura geral, de atender às mesmas expectativas que outras pessoas, sejam mulheres brancas, sejam homens de qualquer raça.

O que se percebe, ainda, é que a posição da mulher negra na estrutura social dominante desperta preocupação e deve ser problematizada, por representar uma questão séria e presente na sociedade brasileira.

TEORIA FEMINISTA DECOLONIAL COMO ESTRATÉGIA INSTITUCIONAL PARA ENFRENTAMENTO À SUBALTERNIZAÇÃO DA MULHER NEGRA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Como demonstrado, o trabalho escravo contemporâneo configura uma das formas de violação dos direitos humanos mais cruéis no mundo moderno, que possui raízes históricas e sociais que merecem ser consideradas para sua compreensão e carece de políticas de enfrentamento. Considerando o contexto brasileiro, observa-se que a escravização de mulheres negras merece especial atenção por determinantes sociais que favorecem a invisibilidade de sua ocorrência, como gênero e cor. Em uma sociedade com herança de um período escravocrata recente, faz-se necessário estabelecer considerações para as políticas institucionais de prevenção e combate ao trabalho forçado.

Em que pese ao trabalho escravo contemporâneo não ser uma consequência direta da escravização colonial, são inegáveis as raízes sociológicas que explicam a perpetuação das práticas de subvalorização do outro, agora expressadas de outras formas. A escravidão antiga deixou uma herança de desvalorização do trabalho e negação dos direitos de determinado grupo (negros) em detrimento da manutenção do poderio de outro. “É perceber como ela (a escravidão) cria uma singularidade excludente e perversa. Uma sociabilidade que tendeu a se perpetuar no tempo, precisamente porque nunca foi efetivamente compreendida nem criticada” (Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro, RJ: Leya., p. 9).

Ao reconhecer esse suposto, Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.) propõe o recorte do sexismo na cultura nacional que, somado ao racismo, impõe um lugar de submissão à mulher negra, excluindo-a dos espaços de decisão, do acesso a direitos sociais e políticos e das condições de trabalho adequadas. Qualquer transformação social que se pretenda para enfrentar as heranças escravistas que vitimam e invisibilizam as mulheres negras devem ser concebidas e executadas, indispensavelmente, com a participação delas. O feminismo negro deve ser, portanto, protagonista das mudanças sociais e da luta por direito da categoria representada, e qualquer processo de transformação social demanda a organização e participação ativa das próprias mulheres negras (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.).

Em âmbito internacional, Voss et al. (2019Voss, H., Davis, M., Sumner, M., Waite, L., Ras, I. A., Singhal, D., … Jog, D. (2019). International supply chains: compliance and engagement with the Modern Slavery Act. Journal of the British Academy, 7(s1), 61-76. Recuperado de https://doi.org/10.5871/jba/007s1.061
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) destacam a experiência do Reino Unido na instrumentalização para reduzir as várias formas de exploração laborais e, assim, caminhar para a concretização do ODS 8.7. Para tanto, criou-se a Lei da Escravidão Moderna, que elenca medidas para abordar as vulnerabilidades da exploração e combatê-las no âmbito público e privado. Nesse último caso, a lei dá especial atenção às mulheres escravizadas e impõe medidas restritivas às indústrias da moda e têxtil, onde ocorre boa parte da exploração laboral feminina, como no Brasil. Conforme a legislação, as empresas devem ser obrigadas a apresentar relatórios detalhados sobre as condições de trabalho e as medidas preventivas à exploração laboral, que serão analisados pelo poder público quanto à adaptação aos parâmetros adequados, trabalhistas e da dignidade humana.

A referida legislação britânica, embora apresente lacunas e precise de aperfeiçoamento na sua execução (Voss et al., 2019Voss, H., Davis, M., Sumner, M., Waite, L., Ras, I. A., Singhal, D., … Jog, D. (2019). International supply chains: compliance and engagement with the Modern Slavery Act. Journal of the British Academy, 7(s1), 61-76. Recuperado de https://doi.org/10.5871/jba/007s1.061
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), aponta algumas lições que podem ser incorporados à experiência brasileira: a importância da transparência, da fiscalização e da sanção quanto às práticas de combate à escravidão (ou a ausência delas). Dessa forma, além de considerar a efetiva participação das mulheres negras nas estratégias de combate à exploração, as medidas organizacionais - públicas e privadas - devem ser publicizadas e fiscalizadas para garantir maior eficácia de seus propósitos.

Acerca da necessidade de transparência, Chai (2021aChai, C. G. (2021a). Construindo o desenvolvimento sustentável dos negócios: discutindo propostas sobre o marco estruturante normativo sendai com os princípios de governança corporativa para os padrões de conformidade (Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Vol. 108, pp. 121-146). São Paulo, SP: Academia Brasileira de Direito Internacional.) destaca a sua importância para a organização e gestão institucionais do gerenciamento de riscos, que deve ser um dos pilares fundamentais para o exercício das funções públicas e da atuação do setor privado. Como due diligence de direitos humanos, reforça-se a necessidade de considerar o princípio da máxima transparência pública de riscos na divulgação e no gerenciamento de informações, os impactos reais e potenciais dos direitos humanos e a integração e atuação dos resultados, informando como eventuais impactos serão tratados (Chai, 2021aChai, C. G. (2021a). Construindo o desenvolvimento sustentável dos negócios: discutindo propostas sobre o marco estruturante normativo sendai com os princípios de governança corporativa para os padrões de conformidade (Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Vol. 108, pp. 121-146). São Paulo, SP: Academia Brasileira de Direito Internacional.). No âmbito das políticas antirracistas e preventivas contra a exploração da força de trabalho, esse princípio é essencial para garantir uma estrutura eficaz de governança corporativa e uma abordagem comunicativa da organização e gestão pública das relações de trabalho, emprego e gênero.

Contudo, é necessário reafirmar que, para combater o racismo e o sexismo como prevenção à escravização de mulheres negras, não basta importar experiências estrangeiras. A particularidade nacional das relações sociais distancia as demandas brasileiras das dos Estados Unidos e da Europa, por exemplo. Pensar o preconceito racial e de gênero nas relações sociais e nas instituições públicas e privadas é reconhecer as diferenças estruturais e de expressão dessas formas de exclusão (Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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).

Enquanto se deve desvencilhar a experiência brasileira da dos países anglo-saxões, pode-se aproximar a conjuntura nacional de contexto semelhante, ao seja, alicerçada nos contornos históricos e sociais típicos da América Latina. Conforme contribui Rosa (2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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), a análise das relações sociais-raciais e da estrutura organizacional com base na lógica sul-global permite entender melhor a organização da classe trabalhadora e a reprodução da violência simbólica e de dinâmicas eficazes para o enfrentamento das desigualdades.

Embora algumas experiências possam trazer contribuições para o pensamento nacional, é importante guardar as particularidades históricas e a diversidade local que sustentam a perpetuação da invisibilidade da mulher negra em situação de exploração. Ao enfrentamento da colonialização do sul global dá-se o nome de decolonial, raciocínio pelo qual se pode pensar o Brasil com base nas necessidades locais, especialmente quanto às relações raciais e de gênero (Ibarra-Colado, 2007Ibarra-Colado, E. (2007, Fall). Organization studies and epistemic coloniality in Latin America: thinking otherness from the margins. In W. Mignolo (Coord.), Worlds & Knowledges Otherwise(Vol. 2, Dossier 1: On Decoloniality).; Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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).

As contribuições de Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo, SP: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.) são importantes como ponto de partida para a compreensão das relações de poder que envolvem raça e gênero. Para o aprofundamento epistemológico das categorias levantadas nesta investigação, buscam-se as contribuições de Aníbal Quijano para o estudo da colonialidade e, consequentemente, o pensamento decolonial. O autor leciona que as estruturas coloniais e o processo de colonização da América, fruto da dominação europeia, produziram discriminação social nos âmbitos social, étnico, antropológico e nacional que se perpetuaram historicamente nas relações de poder (Quijano, 1992Quijano, A. (1992). Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, 13(29), 11-20. Recuperado de https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf
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).

A hierarquização das pessoas por suas condições biológicas e geográficas, segundo Quijano, validou a percepção de superioridade e inferioridade entre os seres e garantiu um lugar de subalternização àqueles fora do padrão europeu, em especial quanto à raça (Quijano, 2014Quijano, A. (2014). Colonialidad de poder, eurocentrismo y América Latina. In E. Lander (Org.), Colonialidade del saber, eurocentrismo y ciencias sociales (pp. 201-246). Buenos Aires, Argentina: Clacso-Unesco.). Nesse contexto, a teoria decolonial surge pela importância de subverter as relações de poder e dar espaço ao protagonismo latino-americano, superando a frágil narrativa do “descobrimento” e da superioridade europeia que se transveste no interesse em “encobrir o outro”, colocando o Ocidente em posição de subalternização diante da suposta modernidade europeia (Dussel, 1993Dussel, E. (1993). O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes.).

Nesse tema, Lugones (2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, 9, 73-101. Recuperado dehttps://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
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) analisa o decolonialismo da América Latina com o recorte de gênero, propondo um novo caminho para descolonizar o feminismo. A autora compreende as condições das mulheres com base nas próprias perspectivas, fora do centrismo das discussões de gênero eurocêntricas, por entender que este não abarca as mulheres em situação de pós-colonialidade (ou mesmo colonialidade). Assim, a teoria feminista decolonial de Lugones enfrenta o discurso feminista dominante ao apresentar novos olhares invisibilizados historicamente e encontrando-se profundamente ligado à colonialidade histórica que passa pela teoria da colonialidade do poder (Lugones, 2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, 9, 73-101. Recuperado dehttps://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
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).

O termo “lógica categorial dicotômica e hierárquica” é utilizado por Lugones (2014Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo decolonial. Estudos Feministas, 22(3), 935-952. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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, p. 935) para se referir ao sistema capitalista e colonial a respeito dos recortes de raça, gênero e sexualidade no contexto da colonização da América Latina. A autora demonstra que o processo de colonização representou violências não apenas físicas, sociais e culturais, mas também epistemológicas, que vão se somando à medida que os colonizados acumulam as categorias de vulnerabilidades quanto a raça, gênero e sexualidade.

Nesse contexto, emerge a necessidade de descolonização do gênero, criticando a opressão histórica e sistematicamente exercida sob a perspectiva racializada, colonial, capitalista sobre as mulheres latinas. Lugones (2014Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo decolonial. Estudos Feministas, 22(3), 935-952. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
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) foca nas subjetividades para desagregar as opressões consequentes do colonialismo capitalista e de gênero e visa superar essa opressão sistemática por meio do feminismo decolonial.

Nesse mesmo sentido, Ibarra-Colado (2007Ibarra-Colado, E. (2007, Fall). Organization studies and epistemic coloniality in Latin America: thinking otherness from the margins. In W. Mignolo (Coord.), Worlds & Knowledges Otherwise(Vol. 2, Dossier 1: On Decoloniality).) destaca, no âmbito das organizações e da administração, a importância da alteridade, garantindo que os complexos problemas organizacionais, como no caso do racismo-sexismo na mentalidade coletiva e institucionalizado no Brasil, sejam resolvidos de forma dialógica, inclusiva e participativa. O autor, em análise à significação da “globalização”, faz contundente crítica ao eurocentrismo, indicando a necessidade de fomentar um debate organizacional, com base nas particularidades e na realidade local, no reconhecimento da diversidade e das necessidades existentes e com a garantia da autonomia dos povos locais para a superação do atual posicionamento dos determinantes sociais.

Portanto, ao considerar a necessidade da alteridade, na situação brasileira, abre-se espaço para uma racionalidade institucional inclusiva e participativa dos objetos das políticas locais, no que importa a este trabalho, as mulheres negras. Essa característica deve se repetir tanto no âmbito organizacional privado, especialmente com relação à inclusão para prevenir o trabalho escravo contemporâneo, quanto no setor público, de modo a enfrentá-lo amplamente.

Ibarra-Colado (2007Ibarra-Colado, E. (2007, Fall). Organization studies and epistemic coloniality in Latin America: thinking otherness from the margins. In W. Mignolo (Coord.), Worlds & Knowledges Otherwise(Vol. 2, Dossier 1: On Decoloniality).) conclui pela necessidade de pensar o mundo e buscar a solução de problemas baseado na alteridade e no ponto de vista dialógico, garantindo uma transformação social que respeite os diversos pontos de vista, com consideração pelas diferenças e a igualdade de oportunidades para todos. No campo do enfrentamento à escravização moderna, essa metodologia participativa é indispensável para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 8.7: tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas.

O estudo da decolonialidade visa superar a subalternização dos países latinos como prejuízo da colonização norte-americana e europeia, com a possibilidade de repensar políticas fundamentadas nas necessidades e experiências próprias. No âmbito do enfrentamento ao racismo, ao sexismo e, consequentemente, à escravização da mulher negra, é necessário privilegiar a opção decolonial para garantir a superação dos entraves locais e o alcance efetivo da superação das desigualdades.

Para Abdalla e Faria (2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-29. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1679-395155249
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), a reestruturação administrativa e organizacional do Brasil segundo uma perspectiva decolonial deve perpassar três avanços interconectados: acadêmico, educacional e social. Com o intuito de contextualizar as contribuições dos autores à delimitação desta pesquisa, defendemos, primeiramente, a promoção de uma estratégia acadêmica decolonial, por meio da formação de uma identidade política nacional que reconheça o racismo e o sexismo como pensamentos estruturalmente formados que possibilitam a invisibilidade da mulher negra. Em segundo plano, reivindicamos uma estratégia educacional que construa, legitime e dissemine os princípios de igualdade e inclusão social com base em realidades locais, garantindo a participação da população feminina e negra nos espaços de debate e decisão política. Finalmente, acreditamos que é preciso um significativo avanço social para engajar as instituições e a sociedade contra os problemas da colonialidade, especialmente o racismo e o sexismo.

No mesmo sentido, Moraes e Chai (2020Moraes, V. H. S. & Chai, C. G. (2020). Pandemia e trabalho escravo contemporâneo: repensando a reinserção do trabalhador resgatado a partir de uma política emancipatória. Revista de Direitos Sociais e Políticas Públicas, 6(2), 76-96. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.26668/IndexLawJournals/2525-9881/2020.v6i2.7171
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) defendem que a política emancipatória de trabalhadores escravizados exige esforço amplo, intersetorial e transdisciplinar, a ser executado pela gestão pública e o setor privado, que assegure condições de romper ciclos de escravização e possibilite a inclusão social das pessoas vulnerabilizadas. Superar a invisibilidade da exploração de mulheres negras não consiste apenas em ações punitivas pontuais, mas exige a operacionalização de medidas emancipatórias baseadas nas necessidades brasileiras, no âmbito da teoria decolonial apresentada por Lugones (2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, 9, 73-101. Recuperado dehttps://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
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).

Portanto, diante das condições estruturais brasileiras que silenciam a mulher escravizada e da dupla vulnerabilização pela raça e gênero, deve-se condicionar as estratégias políticas - no âmbito público - e organizacionais - no âmbito privado - para assegurar a emancipação e a garantia da dignidade feminina, conduzidas pelo pensamento decolonial que garante relevo às particularidades e diversidades nacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de mais de um centenário da proibição da escravização no Brasil, percebe-se que a exploração humana de homens e mulheres ainda está presente no campo e na cidade, embora possua características diferentes das do Brasil colonial. No mesmo sentido das preocupações mundiais, a legislação nacional tem tentado enfrentar a escravidão contemporânea por meio de estratégias preventivas e punitivas, embora essas medidas tenham eficácia questionada diante dos aglomerados de pessoas que ainda são resgatadas pela submissão a condições degradantes de trabalho.

Analisar o contexto do trabalho escravo moderno exige um recorte especial: o da escravização feminina. Percebe-se que a exploração da mulher possui estreita relação com a sua submissão em uma sociedade que traz heranças patriarcais e machistas. Dessa forma, a exploração da mulher, que se dá em diversos âmbitos, também é percebida como causa da invisibilidade da exploração laboral.

Somando-se à invisibilidade feminina, a cor reforça as práticas de exploração e vulnerabiliza ainda mais a mulher negra, que assume determinantes sociais repetidamente discriminadores: de gênero e de cor, em um retrato da interseccionalidade das condições de fragilidade. Conforme consolidado debate acadêmico, a sociedade brasileira herdou o pensamento do patriarcalismo racista de sua história, motivado pelo fim mal resolvido das práticas de escravidão, sem garantir a emancipação das populações vulnerabilizadas, o que possibilitou a perpetuação de práticas exploratórias ainda que com nova roupagem. Há, portanto, problemas latentes a serem resolvidos pelas instituições: o reconhecimento e o enfrentamento efetivo da escravização da mulher negra.

Os interesses constitucionais na defesa da dignidade humana e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável demonstram a clara missão de enfrentar as diversas formas de exploração contemporâneas. Com base nesses princípios, pode-se concluir que enfrentar o trabalho escravo é missão conjunta dos poderes públicos e privados, ambos responsáveis por executar medidas eficazes de inclusão e proteção. Apesar disso, não há diretrizes ou políticas claras voltadas para a mitigação da exploração de mulheres, o que resulta na invisibilidade desse público e na subnotificação de casos percebida pela carência de informações e dados oficiais sobre a escravização moderna de mulheres, sobretudo em ambiente doméstico.

Dessa forma, considerando as particularidades que diferenciam as condições brasileiras das experiências norte-americanas e dos países europeus, defende-se a construção de uma agenda positiva, pelos setores público e privado, conduzida pelo pensamento organizacional decolonial, capaz de valorizar as necessidades históricas, a diversidade e as demandas particulares do país. Destacam-se, em especial, as demandas históricas de enfrentamento ao racismo e sexismo socialmente estabelecidos. Nesse contexto, a perspectiva decolonial - especificamente do feminismo decolonial - contribui no sentido de buscar contornos emancipatórios, inclusivos e igualitários para as políticas sociais e de combate à exploração das mulheres negras. É estratégia primordial para superar o encobrimento das mulheres latinas diante das heranças históricas que interseccionam racismo, sexismo e preconceitos diversos.

Possíveis caminhos para superar os complexos e históricos desafios mencionados nesta pesquisa incluem a necessidade de esforços interseccionais e contínuos para repensar as estruturas dominantes e as relações de poder da sociedade brasileira. A OAB, entidade civil comprometida com a proteção dos direitos e a justiça social, por exemplo, pode assumir importante papel em comissões temáticas sobre raça, gênero e escravidão, nos âmbitos federal e estadual. Por outro lado, compete aos conselhos superiores da magistratura do trabalho e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) inserir as reflexões sobre o papel institucional do Poder Judiciário na aplicação do feminismo decolonial no enfrentamento da exploração laboral doméstica. Esse trabalho merece ser exercido tanto como filtro na hora de selecionar os membros de carreira quanto na formação continuada dos magistrados.

Do ponto de vista normativo e organizacional, observam-se diversas possibilidades de aperfeiçoamento legal quanto às regras trabalhistas e ao aumento da fiscalização e transparência das medidas antidiscriminatórias, a exemplo da experiência inglesa no combate à escravização feminina. Ao mesmo tempo, é necessário preservar os avanços legais já conquistados, como a tipificação do crime de submissão ao trabalho escravo, previsto no Código Penal brasileiro, considerada uma norma garantista avançada e modelo para outros países.

Não obstante, é essencial que o debate acerca da subalternização da mulher negra nas relações trabalhistas seja feito no âmbito das comissões nacionais e estaduais de enfrentamento ao trabalho escravo (Conatrae e COETRAEs) e, com base nas realidades locais, as políticas públicas possam ser repensadas para alcançar esse público invisibilizado. Os conselhos de participação e controle social agregam diferentes visões e setores, essenciais para a formulação, a execução e o monitoramento das ações interinstitucionais de prevenção e enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo. Alicerçados nas contribuições da teoria feminista decolonial, grupos de trabalho temáticos podem estudar formas de retificar políticas públicas para garantir maior proteção às mulheres negras, que hoje ficam descobertas de parte das ações de enfrentamento à exploração.

A necessidade de pensamento crítico e feminista decolonial envolve acadêmicos, sociedade, invisibilizados, organismos públicos e setores privados, que devem ter, na concepção de suas políticas e estratégias organizacionais, medidas para prevenir e enfrentar os desafios nacionais. Possibilita-se, assim, a base necessária para enfrentar tanto o trabalho escravo contemporâneo quanto a invisibilidade da mulher negra silenciada repetidamente por suas condições de gênero, raça e subalternização cultural.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos avaliadores pela interlocução, à FGV pela linha editorial temática, bem como à Universidade Federal do Maranhão pelo abrigo institucional do Grupo de Pesquisa Cultura, Direito e Sociedade (DGP/CNPQ/UFMA) e o espaço à realização da pesquisa científica e à construção do saber comprometido com o regime democrático, à proteção aos Direitos Humanos e à dignidade do ser humano na efetiva igualdade de gênero.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    13 Ago 2022
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