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Introdução à edição especial - Trabalho, migrações e mobilidade: um diálogo lusófono

Introducción a la edición especial - Trabajo, migración y movilidad: un diálogo en lengua portuguesa

Resumo

A edição especial objetivou especialmente visibilizar estudos sobre a diáspora de povos lusófonos, dada a escassez de pesquisas sobre migrações que tratam de modo agregado países lusófonos, tanto na área da Demografia quanto em outras áreas, em especial a área para a qual essa edição especial foi pensada: a Administração. Compreendemos que as mobilidades contemporâneas assumem contornos cada vez mais complexos e desafiadores, o que amplia ainda mais a análise do fenômeno migratório. Assim, considerando o cenário contemporâneo, alguns pontos para reflexão nortearam essa chamada de trabalhos, quais sejam: a) os movimentos do projeto migracional em países de língua portuguesa; b) as estratégias para a inserção laboral dos sujeitos que migram para (ou de) países lusófonos; c) as migrações forçadas por guerras civis, ataques armados e/ou terroristas, e a consequente desestruturação das economias; d) as alterações climáticas e sua indução de migrações em busca de trabalho; e) as questões de gênero e suas intersecções com as questões migracionais nesses países.

Palavras-chave:
Migração; Mobilidade; Diáspora; Trabalho

Resumen

La edición especial se propuso visibilizar especialmente los estudios sobre la diáspora de los pueblos lusohablantes, dada la escasez de investigaciones sobre migración que aborden de forma agregada los países lusohablantes, tanto en el área de Demografía como en otras áreas, especialmente la Administración, área para la cual fue pensada esta edición especial. Entendemos que la movilidad contemporánea adquiere contornos cada vez más complejos y desafiantes, lo que amplía aún más el análisis del fenómeno migratorio. Así, considerando el escenario contemporáneo, algunos puntos de reflexión guiaron esta convocatoria de trabajos, a saber: a) los movimientos del proyecto migratorio en los países de habla portuguesa; b) las estrategias para la inserción laboral de personas que migran hacia (o desde) países de habla portuguesa; c) las migraciones forzadas por guerras civiles, ataques armados y/o terroristas, y la consiguiente desestructuración de las economías; d) el cambio climático y su inducción a la migración en busca de trabajo; y e) las cuestiones de género y sus intersecciones con las cuestiones migratorias en esos países.

Palabras clave:
Migración; Movilidad; Diáspora; Trabajo

Abstract

This special issue was organized to highlight research on the diaspora of Lusophone people, addressing a gap in research on migration involving Lusophone countries comprehensively, encompassing aspects such as demography and, notably, administration, which is our primary focus. In the contemporary context, people’s mobility presents increasingly complex and challenging features, further expanding the scope of migratory analysis. Given the current scenario, some points guided the call for papers that led to this issue of Cadernos EBAPE.BR: a) the dynamics of migration in Portuguese-speaking countries; b) strategies for the labor insertion of individuals who migrate to (or from) Portuguese-speaking countries; c) migrations forced by civil wars, armed conflicts, and/or terrorist attacks, leading to economic disruptions; d) the impact of climate change, inducing migration in search of work; e) examining gender issues and their intersections with migration matters in these countries.

Keywords:
Migration; Mobility; Diaspora; Labor

INTRODUÇÃO

Esta edição especial concentra-se em migrações e mobilidades associadas a trabalho, compreendendo a migração como “[...] uma prática social carregada de experiências vividas, negociadas e produzidas no espaço” (Dias, 2019Dias, G. (2019). Mobilidade migratória: uma leitura crítica para além de metáforas hidráulicas. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, 27(57), 61-78. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1980-85852503880005705
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, p. 63) e considerando que as mobilidades contemporâneas assumem contornos cada vez mais complexos. Desafios, mudanças e momentos difíceis são inerentes ao processo de mobilidade, tanto regional quanto internacional. À época da chamada de trabalhos, acreditava-se que, mesmo com a pandemia de COVID-19, os movimentos migratórios associados ao trabalho continuariam e se intensificariam, como já mostravam estudos anteriores (Alon, Doepke, Olmstead-Rumsey, & Tertilt, 2020Alon, T., Doepke, M., Olmstead-Rumsey, J., & Tertilt, M. (2020). The impact of COVID-19 on gender equality (Working Paper, 26947). Cambridge, MA: National Bureau of Economy Research. Recuperado de https://www.nber.org/papers/w26947
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; Baeninger, Vedovato, & Nandy, 2020Baeninger, R., Vedovato, L. R., & Nandy, S. (2020). Migrações internacionais e a pandemia de Covid-19. Campinas, SP: Unicamp. Recuperado de https://www.nepo.unicamp.br/publicacao/migracoes-internacionais-e-a-pandemia-covid-19/
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; Karim, Islam, & Talukder, 2020Karim, M. R., Islam, M. T., & Talukder, B. (2020). COVID-19’s impacts on migrant workers from Bangladesh: in search of policy intervention. World Development, 136, 105123. Recuperado de https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0305750X20302503
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).

Os estudos sobre migrações que tratam de modo agregado países lusófonos são escassos. Um Call For Papers (CFP) sobre o tema foi realizado por Peixoto e Fernandes (2011Peixoto, J., & Fernandes, D. (2011). Nota dos editores. Revista Internacional em Língua Portuguesa, 24, 13-20. Recuperado de http://aulp.org/wp-content/uploads/2019/01/RILP24.pdf). Essa chamada de trabalhos deu origem a artigos que abordavam os mais variados assuntos: migração, refúgio, processos de regulamentação, migração laboral, entre outros. A publicação tinha como justificativa empreender o intercâmbio entre conhecimentos e experiências de países que falam a mesma língua. Conforme mencionavam os editores (Peixoto & Fernandes, 2011, p. 14), “[...] apesar de situados em diferentes regiões de mundo e de conhecerem histórias e problemas migratórios muitas vezes diversos, o facto de pensarem e falarem português pode facilitar o intercâmbio de ideias”. Tal menção leva a constatar que foram seguidos os passos de Maria Ioannis Baganha (2009Baganha, M. L. (2009). The lusophone migratory system: patterns and trends. International Migration, 47(3), 5-20. Recuperado de https://doi.org/10.1111/j.1468-2435.2009.00522.x
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), a primeira a refletir de forma sistemática sobre a migração lusófona. Isso abriu um caminho para uma teorização mais aprofundada do sistema migratório lusófono (Marques & Góis, 2011Marques, J. C., & Góis. P. (2011). A evolução do sistema migratório lusófono: uma análise a partir da imigração e emigração portuguesa. Revista Internacional em Língua Portuguesa, 24, 213-232. Recuperado de http://aulp.org/wp-content/uploads/2019/01/RILP24.pdf
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).

TRABALHO, MIGRAÇÕES E MOBILIDADE: UM DIÁLOGO LUSÓFONO

Uma nova chamada de trabalhos sobre a migração em países de língua portuguesa foi motivada pelas profundas alterações verificadas na última década. Em 2019, por exemplo, havia aproximadamente 272 milhões de migrantes internacionais no mundo, dentre os quais quase dois terços o faziam por motivos de trabalho (McAuliffe & Khadria, 2019McAuliffe, M., & Khadria, B. (2019). World Migration Report 2020. Geneva, Brussels: International Organization for Migration. Recuperado de https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2020
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). O relatório de 2022 da International Organization for Migration (IOM) (McAuliffe & Triandafyllidou, 2021McAuliffe, M., & Triandafyllidou, A. (2021). World Migration Report 2022. Geneva, Brussels: International Organization for Migration. Recuperado de https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2022
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) aponta 281 milhões em 2020 e apresenta o mesmo número em 2022. Antes da pandemia, projetava-se que, até 2050, haveria 405 milhões de pessoas deslocadas do seu país de origem ao redor do mundo (IOM, 2011International Organization for Migration. (2011). World Migration Report 2010.. Recuperado de https://publications.iom.int/system/files/pdf/wmr_2010_english.pdf
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). No âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), as trocas migratórias entre os países da comunidade contabilizaram, em 2019, cerca de 800 mil pessoas. Esse processo deverá ser ampliado em 2023, quando entrará em vigor o Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (United Nations, 2020United Nations. (2020). International Migrant Stock 2020. Recuperado de https://www.un.org/development/desa/pd/content/international-migrant-stock
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).

Podemos assim dizer que as variáveis que influenciam as dinâmicas migratórias são complexas, incluindo desenvolvimento econômico, crescimento demográfico, avanços tecnológicos, crises e conflitos de ordem diversa, além de, recentemente, a pandemia. Há vários tipos de migração: própria, forçada, regular, irregular, laboral e qualificada, entre outras.

Assim, há ainda muitas perspectivas de estudo do fenômeno migratório. Para King e Lulle (2016King, R., & Lulle, A. (2016). Research on migration: facing realities and maximising opportunities. Luxembourg, Luxembourg: Publications Office of the European Union. Recuperado de https://ec.europa.eu/migrant-integration/library-document/reasearch-migration-facing-realities-and-maximising-opportunities-policy-review_en
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), o movimento migratório atual é mais diversificado do que o de épocas anteriores. Segundo os autores, é preciso estudar questões que vão além das tipologias clássicas. Os países em desenvolvimento costumam estudar o movimento migratório tendo como base a pobreza. Castles (2010Castles, S. (2010). Entendendo a migração global: uma perspectiva desde a transformação social. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 18(35), 11-43. Recuperado de https://remhu.csem.org.br/index.php/remhu/article/view/227
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) destacava, há 13 anos, a necessidade de mudar a lupa com que se olha esse movimento e direcioná-la para além do fator econômico. O autor também versa sobre a importância de novas abordagens metodológicas acerca do fenômeno da migração, que é, portanto, uma mudança social, econômica, cultural, política, religiosa e de estilos de vida (Castles, 2010). Há novas geografias e temporalidades em evidência para a reflexão sobre novos estudos em migração, que configuram o que o autor chama de mix de migração.

Vários temas inovadores emergiram nos últimos dez anos. Ainda que os movimentos de refugiados tenham estado continuamente em destaque, sua visibilidade aumentou consideravelmente. Os deslocamentos causados por motivos ambientais entraram na agenda à medida que o impacto das alterações climáticas se intensificou. Locomoções de grupos específicos, como estudantes, investidores e aposentados, foram objeto de atenção. Também se adicionaram a esses novos tópicos a criminalização da migração ou o retorno de muitos migrantes para seus países de origem. Por fim, a pandemia, sem dúvida, impactou a vida dos mais vulneráveis e dos migrantes.

As mobilidades tendem, ainda, a ser afetadas pelo racismo estrutural, que se intensifica pelos métodos cada vez mais sofisticados de tecnologias de controle via: câmeras de vigilância sofisticadas, telefones móveis, placas de carro, sistema de reconhecimento facial e de impressões digitais. Sem dúvida, tais controles recaem sobretudo em migrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade, cuja existência é criminalizada (Handerson & Federico, 2020). Além disso, ocorrem violência, abusos e recusas de entrada no país, com a consequente deportação.

O mercado de trabalho sofreu também múltiplas alterações, as quais foram reforçadas pela lógica de flexibilização e impactadas por novas tecnologias. Pesquisas sobre o tema têm indicado intensa precarização e mais desajustes entre trabalho e níveis de qualificação. Ao mesmo tempo, registra-se um aumento pronunciado de novas formas de trabalho, como a gig economy e o nomadismo digital. A segmentação entre nativos e imigrantes ocorre de forma crescente. Muitos migrantes qualificados ocupam vagas não qualificadas. As mulheres, por exemplo, mesmo altamente qualificadas, geralmente são subordinadas a empregos e trabalhos menos qualificados. Hirata (2009Hirata, H. (2009). A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho. Sociologias, 21, 24-41. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1517-45222009000100003
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) aponta para a relação entre precarização, flexibilização e trabalho de mulheres.

Nesta chamada, foram aceitos trabalhos empíricos, teóricos, ensaios e revisões sistemáticas da literatura, com enfoque na relação entre trabalho, migrações e mobilidade, bem como na situação atual dos países de língua portuguesa. Os temas relacionados ao fenômeno da migração e refúgio que foram incentivados para esse CFP incluem: mercado de trabalho, segmentação e precarização; gig economy e nomadismo digital; gênero e interseccionalidade nos estudos migratórios; migração de retorno; conflitos, guerras civis e desestruturação do mercado de trabalho; alterações climáticas e novos movimentos de trabalho; deslocamentos internos; análise de políticas migratórias nos países da lusofonia e geografia do trabalho.

Algumas perguntas que pautaram nossa chamada e valem a reflexão para futuras convocações de trabalhos semelhantes: como os movimentos migratórios vêm se apresentando entre os países lusófonos? O que tem levado ao projeto migracional em países de língua portuguesa? Como as alterações do mercado de trabalho e as inovações tecnológicas têm alterado as migrações nesse contexto? Quais estratégias de inserção laboral dos sujeitos acompanham a migração para (ou de) países lusófonos? Como têm se apresentado as migrações forçadas por guerras civis, ataques armados e/ou terroristas, e a consequente desestruturação das economias? De que modo as alterações climáticas induzem migrações em busca de trabalho? O que podemos aprender com o que vem se apresentando em termos de migração e pandemia de COVID-19? Como se dá a intersecionalidade de questões de gênero e migracionais nesses países?

DESAFIOS DA CHAMADA DE TRABALHOS

Iniciamos o trabalho em agosto de 2021. Durante a pandemia, realizamos muitas reuniões on-line para dar seguimento ao trabalho. Os desafios foram muitos desde o princípio: encontrar pareceristas que trabalhassem a interdisciplinaridade, já que éramos editores das áres de Geografia, Economia, Demografia e Administração. Ao longo dos meses, tínhamos também a difícil tarefa de lidar com as rejeições. Por fim, percebemos que se trata de um tema de grande abrangência, mas ainda pouco explorado na área de Administração. Importante salientar que, em nossa percepção, a CPLP irá reforçar a mobilidade entre os países de língua portuguesa; desse modo, é necessário abordar também essa questão.

A chamada de trabalhos recebeu 13 artigos no total, dos quais 9 foram rejeitados, 2 foram arquivados e 2 foram aceitos para publicação. Tivemos inicialmente 13 resumos expandidos sobre as mais variadas temáticas: empreendedorismo migrante, nômades digitais, sexualidade e intersecionalidade de migrantes, carreiras e migração Sul-Sul, competências e habilidades interpessoais de migrantes. Todos centravam-se em solidariedade e no reconhecimento dos migrantes e refugiados.

OS ARTIGOS DA EDIÇÃO ESPECIAL

Os artigos aprovados tiveram diferentes enfoques, objetivos e métodos (um predominantemente qualitativo e o outro quantitativo). Salienta-se o rigor com que foram escritos e detalhados os procedimentos metodológicos em ambos os artigos. Gabriel do Carmo Yamamoto e Elisa Yoshie Ichikawa desbravaram o cotidiano dos migrantes brasileiros, delineando-o com maestria: brasileiros contando sua própria história, tendo o cotidiano como movimento e pelas microrresistências enfrentando as microviolências; em especial mostrando que a emigração não é homogênea. A entrada em campo e sua vivência é essencial, e isso se pode sentir no modo terno e ao mesmo tempo firme observado na escrita dos autores.

O artigo de Leandro de Carvalho tem na base da discussão o deslocamento forçado, solicitação de refugiados que precisam de acolhimento e assistência. Cabe registrar o importante cuidado teórico que o autor teve ao escolher o termo “imigrante em busca de refúgio” em substituição a “refugiado”, bem como a propriedade de aludir os favorecimentos históricos no Brasil em relação aos eurodescendentes. Por fim, apresenta e evidencia a dificuldade que eles enfrentam ao ingressar no mercado de trabalho formal, conforme demonstram os estereótipos apresentados na pesquisa. O autor indica que as empresas precisam ajustar continuamente suas práticas de gestão de pessoas e relações de trabalho, caso desejem exercitar a inclusão.

AGRADECIMENTOS

Por fim, gostaríamos de agradecer profundamente o editor da revista, professor Hélio Arthur Reis Irigaray. Sem ele, esta chamada de trabalhos e fomento à discussão não seriam possíveis. Nossos agradecimentos especiais também a Fabiana Braga Leal e Jackelyne de Oliveira da Silva, da equipe editorial, que nunca mediram esforços para desenvolver um trabalho eficaz e de qualidade ímpar.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2023
  • Aceito
    27 Ago 2023
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