Acessibilidade / Reportar erro

Gestão social sob o crivo da linguagem do direito na mediação entre mundo-da-vida e sistema

La gestión social bajo escritunio del lenguaje del derecho en la mediación entre el mundo da vida y el sistema

Resumo

O objetivo deste trabalho é compreender como a linguagem do direito mediatiza as relações entre mundo-da-vida e sistema, fundamentando teoricamente a gestão social ao colocar a sociedade como protagonista das ações públicas. Consideramos, nesse aspecto, a gestão social como manifestação de um interesse público não-estatal no âmbito das relações complexas entre Estado, Mercado e Sociedade, cuja linguagem do direito socializa e integra, faz interagir organizações, instituições e afeta a autonomia pública e privada dos indivíduos. Para solucionar os problemas relativos à tensão entre mundo-da-vida e sistema, Habermas dedicou-se a detalhar sua teoria política juntamente com o direito, articulando republicanismo e liberalismo, autonomia pública e privada, facticidade e validade. O emprego do conceito de gestão social, em sua vertente habermasiana, suscita questões relativas ao direito, as quais receberam pouca atenção dos teóricos, apesar da centralidade que assumiram nas obras do autor. Destacam-se as transformações que a compreensão do direito sofre nas seguintes obras de Habermas: Teoria do agir comunicativo e Direito e democracia. As tensões que ameaçam a solidariedade e o entendimento e que resultam na colonização do mundo-da-vida pelos subsistemas funcionais, o direito transita da condição primeira de juridicialização das relações sociais para a posição mediadora entre o mundo-da-vida e o sistema, de conversão do poder comunicativo em poder administrativo. A gestão social como expressão da tensão e mediação entre mundo-da-vida e sistema é também expressão da tensão entre facticidade e validade do direito, entre autonomia pública e autonomia privada, entre liberalismo e republicanismo.

Palavras-chave:
Gestão social; Mundo-da-vida; Sistema; Autonomia pública; Autonomia privada; Direito

Resumen

El objetivo de este trabajo es comprender como el lenguaje del derecho media las relaciones entre el mundo da vida y el sistema, fundamentando teóricamente la gestión social al situar a la sociedad como protagonista de las acciones públicas. Consideramos la gestión social como manifestación de un interés público no estatal en el contexto de las complejas relaciones entre Estado, Mercado y Sociedad, cuyo lenguaje del derecho socializa e integra, hace interactuar a las organizaciones instituciones y afecta la autonomía pública y privada de los individuos. Para resolver problemas relacionados con la tensión entre el mundo de la vida y el sistema, Habermas dedico a detallar su teoría política junto con el derecho, articulando republicanismo y liberalismo, autonomía pública y privada, facticidad y validez. Se destacan las transformaciones que sufre la comprensión del derecho em las siguientes obras de Habermas: Teoría de la acción comunicativa y Derecho y democracia. En las tensiones que amenazan la solidaridad y o entendimiento y que resultan en la colonización mundo de la vida por subsistemas funcionales, el derecho transita de la condición primera de juridización de las relaciones sociales a la posición mediadora ente el mundo da vida y el sistema, de la conversión del poder comunicativo em poder administrativo. La gestión social como expresión de la tensión entre facticidad y validez del derecho, entre autonomía pública y autonomía privada, entre liberalismo y republicanismo.

Palabras clave:
Gestión social; Mundo de la vida; Sistema; Autonomía pública; Autonomía privada; Derecho

Abstract

This article aims to understand how the language of law mediates the relations between the lifeword and system, theoretically supporting social management by considering society as the leading actor of public actions. Social management is considered a manifestation of a non-state public interest in the complex relationships between state, market and society, whose language of law socializes and integrates, make organizations and institutions Interact and affects individuals’ public and private autonomy. To solve problems related to the tension between the lifeword and the systems, Habermas detailed his political theory along with the law, linking republicanism and liberalism, public and private autonomy, facticity, and validity. The transformations that understanding law undergo in Habermas’ work: Theory of communicative action and Law and democracy stand out. In the tensions that threaten solidarity and understanding and result in the colonization in the lifeworld by functional subsystems, the law moves from the first condition of juridicalization of social relations to the mediating position between the life world and system of converting communicative power into administrative power. Social management is an expression of the tension and mediation between the lifeworld and the system is also expression. of the tension between facticity and validity of the law, between public autonomy, and between liberalism and republicanism.

Keywords:
Social management; Lifeworld; System; Public autonomy; Private autonomy; Law

INTRODUÇÃO

A questão de como se dá o processo de interação entre sistema e mundo-da-vida, sem ameaçar estruturalmente a própria lógica instrumental, tão significativa para a reprodução material da sociedade, fez com que Habermas construísse sua teoria política juntamente com a teoria do direito, que é o tema de Direito e democracia. Segundo Nobre (2008Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros.), Habermas não compreende a política como algo exclusivamente instrumental. Há dois momentos cujos elementos comunicativos emergem no processo político: seja no complexo parlamentar, seja nas redes periféricas da esfera pública política que se constituem em torno do sistema político. Essas redes periféricas acolhem a tensão entre mundo-da-vida e sistema, que são cenários políticos para a manifestação da gestão social. Nessa concepção política, emerge a metáfora das eclusas para designar o movimento dos fluxos comunicativos em direção ao centro e a potencialidade do direito como mecanismo de institucionalização, em traduzir poder comunicativo em poder administrativo. Instaura-se, nesse processo, um trânsito que possibilita uma mediação emancipadora, própria da natureza da gestão social, entendida como uma ação gerencial dialógica voltada para a construção do bem comum e da emancipação social.

Essa perspectiva converge para a abordagem da gestão social presente no estudo O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e Sistema (System) de Alcântara e Pereira (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
), que situa o locus das ações e práticas da gestão social numa zona de tensões entre mundo-da-vida e sistema, substituindo uma abordagem dicotômica por uma abordagem relacional, na qual emergem fronteiras fluidas, relações dialéticas, complementaridades, trocas e conflitos de lógica.

O trabalho abre uma agenda de pesquisa sobre a teoria política de Habermas em sua composição com a teoria do direito na análise da gestão social: “o locus da gestão social diz respeito aos processos deliberativos de caráter público que circulam no âmbito das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida e sistema, que podem ser intermediados pela linguagem do direito” (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 427). O conceito de Sociedade em Habermas envolve as relações complexas entre mundo-da-vida e sistema. Tais relações são permeadas por interações e tensões que caracterizam a especificidade de cada sociedade em um dado horizonte de tempo, tendo como base a ação comunicativa. Tanto o mundo-da-vida quanto o sistema influenciam um ao outro em um movimento de reciprocidade dinâmica.

O mundo-da-vida é formado por três componentes (Habermas, 2012Habermas, J. (2012a). Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo, SP: Editora UNESP.), quais sejam Cultura, Sociedade e Personalidade. Cultura diz respeito ao estoque de conhecimento que as pessoas utilizam para expressar suas interpretações acerca de um dado tema-problema no âmbito de um processo comunicativo em que se busca um entendimento. Sociedade tem relação com as ordens legítimas que asseguram a solidariedade dos grupos sociais e das organizações nas quais se inserem as pessoas. Personalidade refere-se à formação da identidade das pessoas e compreende suas competências de agir e falar na busca de um entendimento. Cada participante da ação comunicativa, no âmbito das interações e tensões entre o mundo-da-vida e sistema, possui um “horizonte móvel”, em que baseia suas interpretações, pois Habermas (2012bHabermas, J. (2012b). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social (Vol. 1). São Paulo, SP: Martins Fontes.) entende o mundo-da-vida de forma articulada e dinâmica. Portanto, o mundo-da-vida, como estoque de saberes e experiências é usado como repositório linguístico de fundo para interpretações que se condensam em tradições culturais.

O vínculo que se estabelece na relação entre o interesse público e a gestão social traz o direito e a política para o centro da análise. Segundo V. A. R. Oliveira (2012Oliveira, V. A. R. (2012). Interesse público, gestão pública e gestão social: significados e conexões (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.), o conceito que distingue gestão pública e gestão social é o de interesse público, que pode ser classificado como público estatal e público não-estatal. A gestão pública poderá unir as formas estatal e não-estatal, mas a gestão social caracteriza-se exclusivamente pela interação produzida em termos não-estatais. Pode-se, contudo, considerar a gestão pública e a gestão social como complementares entre si. Com base na sua constituição como interesse público, que afeta as liberdades públicas e privadas, a gestão social estabelece seu nexo com o direito, que pode ser explorado também em suas interfaces com as práticas de gestão, em processos de transformação do poder comunicativo em poder administrativo (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
).

A interpretação do interesse público assume duas perspectivas: de interesse próprio do Estado e de pertencimento à sociedade civil, pautada na representação do Estado. Entretanto, o Estado sempre polarizou o interesse público e atuou como árbitro em sua identificação nas relações sociais e políticas. Por essa razão, a gestão social não é titular do interesse público, deixando esse posto ao Estado (V. A. R. Oliveira, 2012Oliveira, V. A. R. (2012). Interesse público, gestão pública e gestão social: significados e conexões (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.). Daí reserva-se um trâmite ao direito e a institucionalização.

Em Cançado, Pereira, e Tenório (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.), a natureza do interesse público que caracteriza a gestão social é fundamentada na concepção liberal tocquevilleana de interesse bem compreendido. Tocqueville (1987Tocqueville, A. (1987). A democracia na América. Belo Horizonte, MG: Itatiaia.) escreveu A democracia na América entre 1835 e 1840, em que analisa o tipo singular de liberalismo que se implantou nos Estados Unidos sobre a base da tradição cultural puritana e do republicanismo das comunidades inglesas de inspiração religiosa. Da doutrina liberal, toma fundamentalmente o anseio de limitação do Estado para a preservação das chamadas liberdades individuais. Por interesse bem compreendido, Cançado et al. (2015)Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG. entendem a categoria tocquevilleana que agrega bem-estar privado e bem-estar coletivo, segundo a qual ao defenderem os interesses coletivos os indivíduos satisfazem os interesses privados, preservando a ideia de que a “virtude é útil”. A virtude republicana, baseada no sacrifício em prol do bem comum, dá lugar à doutrina em que a vantagem individual dos cidadãos seria trabalhar para o bem de todos, seu interesse particular é fazer o bem e o esclarecimento do interesse é o ponto de convergência entre o público e privado. Estabelece-se assim um forte vínculo entre o interesse bem compreendido e a sociabilidade.

Segundo Vianna e Carvalho (2000Vianna, L. W., & Carvalho, M. A. R. (2000). República e civilização brasileira. In N. Bignoto (Ed.), Pensar a República. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.), a moderna sociedade americana apesar de se caracterizar por um forte processo de individualização e desagregração das identidades tradicionais, que enfraquece o ethos republicano, prossegue como uma sociedade em que persistem na atualidade práticas de cooperação social e em que, fundamentado na esfera privada, prevalecem iniciativas de alcance público.

O interesse bem compreendido é reportado às raízes da dinâmica do capitalismo moderno e às transformações ocorridas nas estruturas demográfica, ocupacional e do mundo do trabalho que encontram formas de reprodução da própria sociabilidade para as quais os novos direitos , sejam eles ambientais, referentes a mulheres ou às etnias desempenham papel fundamental, reforçando inclusive a preservação e expansão dos direitos civis, políticos, sociais e republicanos(direito ao patrimônio econômico público e ao acervo histórico e cultural).

A concepção de gestão social caracteriza-se por uma contraposição às teorias administrativas dominantes, sustentadas pela razão instrumental e pelas abordagens capitalistas (tayloristas/fordistas, burocráticas e gerencialistas).

Originários das transformações que democratizaram o Brasil nas últimas décadas no século XX, os estudos da gestão social vêm se esforçando para constituir uma articulação epistemológica acerca de seu status paradigmático e da delimitação de seu objeto. No estudo de Peres e Pereira (2014Peres, M. RJr.., & Pereira, J. R. (2014). Abordagens teóricas da gestão Social: uma análise de citações exploratórias. Cadernos EBAPE.BR, 12(2), 221-236. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-39519079
https://doi.org/10.1590/1679-39519079...
), foram identificadas quatro abordagens teóricas da gestão social, quais sejam: habermasiana, baseada no conceito de ação comunicativa, esfera pública e democracia deliberativa (Tenório, 1998Tenório, F. G. (1998). Gestão social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, 32(5), 7-23. Recuperado de https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
, 2008aTenório, F. G. (1998). Gestão social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, 32(5), 7-23. Recuperado de https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
, 2008bTenório, F. G. (2008b). (Re)Visitando o conceito de gestão social. In J. T. Silva Junior, R. T. Mâisih, A. C. Cançado, & P. C. Schommer (Orgs.), Gestão social: práticas em debate, teorias em construção. Fortaleza, CE: Imprensa Universitária.); gestão do desenvolvimento social e interorganizações, fundamentada, principalmente, nos estudos de Tânia Fisher (2002Fisher, T. (2002). Poderes locais, desenvolvimento e gestão. In T. Fisher (Org.), Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliações(pp. 12-32). Salvador, BA: Casa da Qualidade.); a abordagem da administração pública societal, fundamentada no estudo de Paes-de-Paula (2005aPaes-de-Paula, A. P. (2005b). Por uma nova gestão pública. Rio de Janeiro, RJ: FGV.), na qual são enfatizados os movimentos sociais e o Terceiro Setor e seu papel na gestão estatal, com destaque para os aspectos fundamentais dos conselhos gestores, orçamentos participativos, dos fóruns, audiências públicas, dentre outros; a abordagem puquiana , na qual se faz sentir os estudos de origem da Pontifícia Universidade Católica (PUC) como os artigos organizados na obra organizada por Rico e Raichelis (1999Rico, E., & Raichellis, R. (1999). Gestão social uma questão em debate. São Paulo, SP: EDUC.).

Observa-se que são raros os estudos habermasianos sobre gestão social que se dedicam às inter-relações entre direito e autonomia jurídica e estas não foram analisadas com a devida profundidade, apesar da relevância da obra Direito e democracia para a renovação dos conceitos ambivalentes da Teoria do agir comunicativo, inclusive a concepção própria do papel do direito (Alcântara, 2018Alcântara, V. C. (2018). Práticas de gestão das águas minerais e os movimentos deliberativos da gestão social no circuito das águas no Sul de Minas Gerais (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.; Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
; L. C. Oliveira, 2020Oliveira, L. C. (2020). Gestão social e racionalização social: análise da prática cultural de coletar água mineral na fonte (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.). Habermas descreve a decomposição do ethos tradicional que deu origem à modernidade, como um processo que se abre em tensões entre a autonomia pública e privada, entre facticidade e validade, movido pela coerção auto promotora do sistema ou por padrões de legitimidade e reconhecimento (Durão, 2015Durão, A. B. (2015). Direito e democracia e Habermas. Argumentos Revista de Filosofia, 7(14), 22-45. Recuperado de http://periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/19105
http://periodicos.ufc.br/argumentos/arti...
). Esse processo resulta historicamente em duas perspectivas políticas: uma liberal, cuja democracia se caracteriza por um compromisso de interesses e pela defesa dos direitos fundamentais, ante a um Estado limitado; outra republicana, cuja democracia se dá por meio da construção de uma soberania popular, pautada culturalmente em um auto-entendimento ético-político. Seu propósito com a teoria da democracia deliberativa é conciliar ambas as perspectivas, assimilando aspectos dos dois lados. As tensões que ameaçam a socialização e o entendimento esclarecido e que resultam na colonização do mundo-da-vida por subsistemas funcionais, pois na abordagem habermasiana da Teoria do Agir Comunicativo, a concepção do direito varia da condição teórica de juridicialização das relações sociais para a posição mediadora que se estabelece em Direito e Democracia. Em nova compreensão, na teorização de Direito e Democracia, a linguagem do direito surge como intermediária entre mundo-da-vida e sistemas funcionais, representando uma função articuladora entre ambos (Habermas, 2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.).

A premissa defendida no presente trabalho refere-se aos potenciais de institucionalização das demandas e compreensões em que a gestão social se relaciona ao sistema político, com suas projeções nas áreas periféricas do complexo das eclusas, com a manutenção de um fluxo comunicativo entre mundo-da-vida e sistema rumo ao centro político com perspectivas que podem ser emancipadoras e fazer parte de um conjunto de motores sociais que atuam na conversão de poder comunicativo em poder administrativo, mantendo coesa em bases mediadas a relação entre sistema e mundo-da-vida. O modelo de eclusas explica, no âmbito político, o funcionamento dos fluxos comunicacionais e os potenciais emancipatórios que se abrem à gestão social e a compreensão da democracia deliberativa apresenta-se como uma tentativa de lidar com a tensão entre facticidade e validade do direito. Portanto, considerando a gestão social como manifestação de um interesse público não-estatal no âmbito das relações complexas entre Estado, Mercado e Sociedade e que a linguagem do direito socializa e integra os indivíduos da sociedade, faz interagir organizações, instituições e afeta a autonomia pública e privada dos indivíduos, o objetivo deste trabalho é compreender como essa linguagem do direito mediatiza essas relações entre mundo-da-vida e sistema, fundamentando teoricamente a gestão social, ao colocar a sociedade como protagonista das ações públicas.

Para finalizar, este trabalho está organizado na seguinte forma: além desta introdução, apresentamos uma fundamentação teórica sobre gestão social; uma discussão sobre seu locus de vigência e sobre sua relação com o direito e a política em Habermas, acrescida das considerações finais.

A PERSPECTIVA HABERMASIANA DE GESTÃO SOCIAL

Este estudo busca uma compreensão teórica de gestão social, calcada no pensamento de Jürgen Habermas, cuja origem pode ser associada aos trabalhos de Tenório Gestão social uma perspectiva conceitual de 1998Tenório, F. G. (1998). Gestão social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, 32(5), 7-23. Recuperado de https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
e (Re)visitando o conceito de gestão social de 2008. Sob a influência do pensamento de Guerreiro Ramos, Habermas e dos demais frankfurtianos como Marcuse, Horkheimer e Adorno, Tenório (2008aTenório, F. G. (2008b). (Re)Visitando o conceito de gestão social. In J. T. Silva Junior, R. T. Mâisih, A. C. Cançado, & P. C. Schommer (Orgs.), Gestão social: práticas em debate, teorias em construção. Fortaleza, CE: Imprensa Universitária.) constrói uma abordagem emancipatória em que a gestão social emerge como uma gestão dialógica, na qual a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes das ações, que podem ser produtivas ou de formulação de políticas públicas (Cançado, 2011Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.).

Tenório (2013Tenório, F. G. (2013). Tem razão a gestão social? In Anais do 3º Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, Florianópolis, SC.) considera a gestão social como uso livre da razão por meio da dialogicidade e da busca do bem comum, atenta aos anseios republicanos, à cidadania deliberativa e ao controle social. A cidadania deliberativa reaparece na abordagem realizada por Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.), na qual emergem as categorias interesse bem compreendido de Tocqueville, esfera pública de Habermas e emancipação dos frankfurtianos Marcuse, Horkheimer e Adorno.

Em Fundamentos teóricos da gestão social, Cançado (2011Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.) realizou uma aproximação teórica, que liga o pensamento liberal tocquevilleano ao pensamento habermasiano. Habermas articula republicanismo e liberalismo em uma concepção deliberativa de interesse público e a assimilação de uma proposta tocquevilleana requer uma complexa integração com a perspectiva republicana do autor. Por interesse bem compreendido, Cançado et al. (2015)Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.entendem a categoria tocquevilleana que agrega bem-estar privado e bem-estar coletivo, segundo a qual ao defenderem os interesses coletivos os indivíduos satisfazem os interesses privados, preservando a ideia de que a “virtude é útil” e que a vantagem individual dos cidadãos seria trabalhar para o bem de todos e o interesse particular é fazer o bem. Estabelece-se assim um forte vínculo entre o interesse bem compreendido e a solidariedade social.

A abordagem de Cançado (2011Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.) define o interesse público, característico da gestão social, como o interesse bem compreendido tocquevilleano. Em Cançado et al. (2015)Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG., encontramos uma proposta teórica mais detalhada de aproximação entre a gestão social e a teoria habermasiana. A delimitação do campo científico e a construção dos fundamentos teóricos da gestão social passam a ser definidas com base nos seguintes tipos ideais weberianos: interesse bem compreendido; esfera pública; democracia deliberativa; intersubjetividade; racionalidade; dialogicidade; solidariedade; sustentabilidade e emancipação. Essa abordagem passou por um aprimoramento em Cançado (2013Araújo, E. T., & Boullosa, R. F. (2013). Esfera pública, esfera social e gestão social: aproximações epistemológicas e ontológicas. In Anais da 9ºConferência Regional de ISTR para a América Latina Y Caribe, Santiago, Chile.), por uma nova revisão em Cançado et al. (2015Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.) e por um refinamento em Pereira e Cançado (2018Pereira, J. R., & Cançado, A. C. (2018). Gestão social de cooperativas. Curitiba, PR: Apris.), sintetizando a perspectiva nas categorias interesse bem compreendido, esfera pública e emancipação. Na definição de um interesse público não-estatal, cujo protagonismo cabe à sociedade, encontram-se conceitualmente integradas as concepções de cidadania deliberativa, interesse bem compreendido, esfera pública e emancipação, embora estejam ausentes a análise do direito em Habermas e a perspectiva sociológica que avalia a relação tensa entre mundo-da-vida e sistema e seu impacto na gestão social.

Destacamos na abordagem de Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) as concepções de democracia deliberativa, emancipação e esfera pública. É no pensamento marxista e na teoria crítica de caráter frankfurtiano que a categoria emancipação se baseia. As fundamentações frankfurtianas se voltam para os diagnósticos, as condições de possibilidade e os obstáculos à emancipação. Empenha-se em um esforço para integrar teoria e práxis emancipatória, distanciando-se de uma leitura fundamentada exclusivamente no trabalho, como o faz a teoria marxista, quando se volta para a compreensão das questões da política e do direito. O projeto de renovação dos modelos críticos sustenta-se no pensar os movimentos de emancipação com base na pluralidade e na autodeterminação política. Os autores destacam o caráter do pensar com autonomia que fundamenta a emancipação, sob o viés da dialética negativa de Adorno, na qual na presença da tese e da antítese, a síntese não se materializa.

Outro conceito que emerge como uma das categorias fundamentais no modelo proposto por Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) é o de esfera pública. O conceito de Habermas surge em Mudança estrutural da esfera pública (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista (Vol. 2). São Paulo, SP: Martins Fontes.) e depois é revisto em Direito e democracia (2003b). Segundo Habermas, a modelagem social, que resulta na esfera pública, caracteriza-se pela rígida separação entre público e privado, pessoas privadas reunidas em público, que realizam a mediação entre as demandas da sociedade e do Estado.

Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) afirmam que para a construção da gestão Social busca-se uma nova esfera pública que tenha como objeto aproximar a população apartada da política: “Um espaço onde, novamente (mas com diferentes intenções) as pessoas privadas se encontrem em um espaço público a fim de deliberarem sobre suas necessidades e futuro” (Cançado et al., 2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV., p. 145). Afirma-se uma gestão social que desenvolva uma esfera pública distinta da burguesa e que conduza à emancipação do indivíduo.

Em Direito e democracia, Habermas reconstitui o conceito de esfera pública concebendo-a como um “fenômeno social elementar” tal como a ação, o ator, o grupo ou a coletividade. A esfera pública também “não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc.” (Habermas, 2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro., p. 92). Nem mesmo como um sistema, a esfera pública pode ser considerada, mesmo que seja possível definir seus limites:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo-da-vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana (Habermas, 2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro., p. 92, grifos do autor).

Segundo Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.), o conceito de esfera pública entrelaça-se às categorias democracia deliberativa, dialogicidade, intersubjetividade e racionalidade. A esfera pública se transforma mediante o interesse bem compreendido desenvolvido pelos atores e na presença de uma racionalidade que conduza ao esclarecimento e à democracia deliberativa. Para que ocorra uma reconfiguração da esfera pública, se torna necessária a emergência de um esclarecimento que compatibilize a categoria liberal interesse bem compreendido e democracia deliberativa. Segundo Nobre (2008Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros.), Habermas concebe a democracia deliberativa como a expressão da tensão entre facticidade e validade do direito na sua forma mediadora como discutiremos adiante, na qual liberalismo e republicanismo se articulam no modelo procedimental.

UM LOCUS PARA A GESTÃO SOCIAL

Na abordagem de Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) não está presente a análise da concepção habermasiana que articula uma teoria política a uma teoria do direito e também a abordagem sociológica que trate da tensão entre mundo-da-vida e sistema e seu impacto sobre a gestão social. A abordagem sociológica é desenvolvida no trabalho de Alcântara e Pereira (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
), intitulado O Locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenwelt) e sistema (System). Segundo essa perspectiva, as categorias conceituais mundo-da-vida e Sistema constituem “uma chave de leitura sociológica e epistemológica do locus das ações e das práticas de gestão social” (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 412). Essa abordagem permite que sejam trabalhadas “as tensões entre Estado, Mercado e Sociedade Civil, entre agir comunicativo e agir estratégico, público e privado, coerção e espaço livre de fala, conflito e consenso; dominação e emancipação, interesse técnico, prático e emancipatório”. A abordagem é proposta com o intuito de superação das dicotomias construídas com base na compreensão de processos intersubjetivos que interligam mundo-da-vida e sistema, através de tensões que se traduzem em “possibilidades de complementaridade, justaposições, momentos dialéticos, fronteiras fluidas, intercâmbio e conflitos de lógica” (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 412).

Como muitos temas, dada a juventude do campo da gestão social, necessitam de um aprofundamento, as relações entre política e direito no contexto dessas tensões ainda estão por ser profundamente exploradas para realizar o esforço ou a tentativa de sair da incipiência e suprir uma lacuna teórica de trabalhos como Alcântara (2018Alcântara, V. C. (2018). Práticas de gestão das águas minerais e os movimentos deliberativos da gestão social no circuito das águas no Sul de Minas Gerais (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.), Alcântara e Pereira (2017)Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) e L. C. Oliveira (2020Oliveira, L. C. (2020). Gestão social e racionalização social: análise da prática cultural de coletar água mineral na fonte (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.).

A ausência de consenso teórico e conceitual caracteriza também a definição de locus da gestão social entre os pesquisadores do tema: segundo França (2003)França, G. C Filho. (2008). Definindo gestão social. In J. T. SilvaJunior, R. T. Mâisih, A. C. Cançado, & P. C. Schommer (Orgs.), Gestão social: práticas em debate, teorias em construção (pp. 26-36). Fortaleza, CE: Imprensa Universitária. a sociedade civil ocupa esse posto; para Araújo e Boullosa (2013Araújo, E. T., & Boullosa, R. F. (2013). Esfera pública, esfera social e gestão social: aproximações epistemológicas e ontológicas. In Anais da 9ºConferência Regional de ISTR para a América Latina Y Caribe, Santiago, Chile.) é a esfera social; para Tenório (2008aTenório, F. G. (2008a). Tem razão a administração? Ijuí, RS: Unijuí., 2013Habermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.) em seus trabalhos iniciais são os movimentos sociais e terceiro setor; para Cançado et al. (2015Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma. Curitiba, PR: CRV.) é um espaço compartilhado entre Estado, mercado e sociedade civil. Alcântara e Pereira defendem a tese de que o locus da gestão social se situa nas inter-relações entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System).

Em Teoria do agir comunicativo, Habermas estabelece, segundo uma tensão entre a integração social e a integração sistêmica, uma compreensão dual das sociedades na modernidade: entre mundo-da-vida e sistema. O mundo-da-vida é antecedente, é onde o sistema se ancora e é por esse último colonizado em razão da eficiência do mercado e do poder da burocracia; a reprodução material se dá pelo sistema (ação racional teleológica) e a reprodução simbólica pelo mundo-da-vida (ação comunicativa).

Habermas (2012aHabermas, J. (2012a). Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo, SP: Editora UNESP.) subdivide a concepção de mundo-da-vida nos componentes estruturais: cultura (tradições culturais); sociedade (ordens institucionais) e personalidade (identidades oriundas do processo de socialização). O sistema considera a sociedade sob a ótica de seus mecanismos de autorregulação, como o mercado (dinheiro) e o Estado (poder administrativo). Esses dois subsistemas caracterizam-se pelo predomínio das ações estratégicas ou racionais orientadas para o sucesso. Assim, as sociedades são integradas sistemicamente e simbolicamente de modo simultâneo. Habermas destaca uma compreensão de racionalidade que se subdivide entre o mundo-da-vida e o sistema, assumindo características distintas. Somente a racionalidade comunicativa, diferentemente da racionalidade instrumental que subsidia as ações no sistema, pode refletir uma compreensão autocentrada da modernidade que assegura a reprodução cultural, a integração social e a socialização sob parâmetros valorativos abstratos de verdade, sinceridade, correção normativa e inteligibilidade.

Sistema e mundo-da-vida não se antagonizam, ao contrário, se complementam na reprodução simbólica e material da sociedade, o fundamental é que as racionalidades próprias a cada uma dessas instâncias não ultrapassem os próprios limites e resultem no fenômeno característico do capitalismo contemporâneo: que é a colonização do mundo-da-vida pelo sistema, com a penetração da racionalidade econômica e administrativa nos processos culturais, de socialização e formação da personalidade (Habermas, 2012bHabermas, J. (2012b). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social (Vol. 1). São Paulo, SP: Martins Fontes.).

Alcântara e Pereira (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 422) apresentam uma proposta analítica em que a compreensão do locus da gestão social é também uma proposição conceitual e uma diretriz empírica. O trabalho se propõe a pensar a gestão social por meio das inter-relações e tensões que se mostram na “perspectiva do participante e do observador, ação comunicativa e estratégica, reprodução simbólica e material e poder comunicativo, poder administrativo”.

Figura 1
O locus da gestão social e as inter-relações entre mundo-da-vida e sistema

O modelo reproduz a associação entre as concepções de interesse prático (hermenêutica) e ação comunicativa, entre o interesse técnico (empírico-analítico) e ação instrumental. A Figura 1 acima sugere as inter-relações e tensões entre os pares de categorias que constituem mundo-da-vida e sistema; desse modo, não é possível pensar a gestão social como mundo-da-vida ou como sistema de modo excludente. Trata-se da sociedade compreendida de modo complementar. Os pares de categorias interagem de forma relacional para constituir a gestão social, diferentemente das formas gestão pública e gestão privada que estão cravadas no sistema:

[...] a integração depende de ambas as racionalidades (estratégica e comunicativa) e a sua interpretação depende de ambas as visões (mundo-da-vida e sistema). Nossa proposta relacional permite (potencialmente) à gestão social identificar os elementos colonizadores, bem como as forças emancipatórias que emergem dos relacionamentos possíveis entre mundo-da-vida e sistema (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 424).

A gestão social deve buscar “a possibilidade objetiva de democratizar o mundo-da-vida (suas dimensões institucionais e o cotidiano) e o sistema (mercado e Estado)” (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 424). Entretanto, é preciso problematizar o Estado que pode se tornar colonizador e a sociedade civil que pode se tornar anti-democrática:

[...] é preciso romper também com o essencialismo de uma sociedade civil monolítica em prol de concepções mais plurais de Estado de sociedade civil e de mercado (quais conflitos, quais práticas, ações, atores, vivências se relacionam com cada um desses elementos?) Portanto, a tensão é também estabelecer fronteiras e zonas de interação entre essas esferas da sociedade (Alcântara & Pereira, 2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
, p. 424, grifos dos autores).

A tese de que é possível explicar o desempenho da gestão social por meio de um locus de contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida e sistema, abre a prerrogativa para que a gestão social possa também ser compreendida pelas das tensões entre facticidade e validade do direito, entre autonomia pública e privada entre republicanismo e liberalismo. Alcântara e Pereira (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
) destacam ainda que o direito adquire importância empírica e teórica para a análise da gestão social em razão da relação que esta mantém com o interesse público. Acrescemos o subsistema político como receptor dos fluxos comunicativos na análise.

SOB A MEDIAÇÃO DO DIREITO

Para caracterizar a modernidade, Habermas a descreve como um processo que se desenvolve em tensões entre autonomia pública e privada, entre facticidade e validade e que resulta historicamente em duas perspectivas políticas: uma liberal, outra republicana. O propósito do autor com a teoria da democracia deliberativa é conciliar ambas as prerrogativas. A fórmula de Direito e democracia integra ambas as percepções, liberal e republicana, para a compreensão de um bem comum que se sustenta na concepção de liberdade comunicativa. As formas deliberativas necessitam ser institucionalizadas, o que faz com que a forma constitucional seja relevante (Habermas, 2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.).

Como expressão do interesse público não-estatal, a gestão social se relaciona ao sistema político. Com o emprego das categorias teóricas do poder comunicativo e do direito, emerge na análise o sistema político, que segundo Habermas (2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.) não se restringe à condição de sistema. Ele subdivide-se em dois elementos comunicativos: complexo parlamentar e redes periféricas da esfera pública política, constituídas em seu entorno. Essas redes periféricas acolhem a tensão entre mundo-da-vida e sistema e são cenários políticos para a manifestação da gestão social em seu formato emancipatório. Nessa abordagem emerge uma concepção de centro e periferia, ordenada segundo a metáfora das eclusas de um sistema de represamento hidrográfico. Estas designam o movimento dos fluxos comunicativos em direção ao centro e a potencialidade do direito, como mecanismo de institucionalização, em traduzir poder comunicativo em poder administrativo. Habermas utiliza o modelo das eclusas, em que há um represamento dinâmico que pode ser transposto. Sobre as barreiras da relação mundo-da-vida e sistema circulam fluxos comunicacionais que tornam a institucionalização e a emancipação possível. Essa mobilidade comunicacional caracteriza a gestão social e a projeta num curso de possibilidades emancipatórias.

Em Teoria do agir comunicativo, a transposição do mundo-da-vida para o sistema não era possível, porque não só existiam racionalidades diferentes e contrapostas, mas porque a democratização não passava por um processo de institucionalização. Habermas (2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.) percebe que a sociedade civil e os movimentos sociais que a compõem se organizam para transpor essa barreira. O aumento da liberdade social depende da possibilidade de influenciar o sistema econômico e de não manter a lógica sistêmica intacta. O mundo-da-vida pode influenciar com suas demandas a lógica do sistema político e também econômico. O direito é que vai fazer a transposição, a mediação. A ideia de Habermas é que os movimentos sociais não estão lutando contra o sistema, mas lutam para influenciar a lógica do sistema. O enfrentamento não é contra o Estado e a Justiça, mas para influenciar o Estado e ter acesso à justiça. A luta não é contra o Judiciário e contra o direito, mas a favor de uma reforma do judiciário e por uma ampliação do direito, porque quanto maior o acesso ao direito, maior o potencial emancipatório (Habermas, 2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.).

O direito pode ser também explorado no aspecto das práticas da gestão social, uma vez que tal aproximação traz maior elucidação ao seu papel mediador e de institucionalização. O Movimento da Ficha Limpa, que gerou a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. (2010). Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
, conhecida como Lei da Ficha Limpa, nasceu de uma iniciativa popular concebida pela liderança do juiz Márlon Reis e apoiada por outros juristas que colheram 1,6 milhão de assinaturas. Tal lei afeta as condições de inelegibilidade dos candidatos que tiverem mandatos cassados, renunciarem para evitar a cassação ou aqueles condenados por decisão de órgãos colegiados, ainda que com possibilidade de recursos. O projeto oriundo de redes sociais dirige um fluxo comunicacional para o sistema político, conquistando espaços de emancipação. Aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010 e no Senado Federal no dia 19 de maio de 2010 por unanimidade, o projeto foi sancionado pelo presidente da República. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a lei era constitucional e válida para as eleições subsequentes.

Esse caso da Lei da Ficha Limpa foi estudado como exemplo da gestão social na perspectiva habermasiana por Tinôco (2017Tinôco, K. M. F. (2017). A Lei da “ficha limpa” à luz da democracia deliberativa (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.). Outros exemplos são provenientes de movimentos sociais, como o da comunidade LGBTQIA+, que resultou em ações do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo a LGBTIfobia como racismo LGBTIfóbico. São diversos os movimentos sociais que encaminham seus fluxos comunicacionais para o sistema político, alcançando feitos de institucionalização, como o movimento de combate à violência contra a mulher que resultou na Lei Maria da Penha e as lutas por igualdade racial, como as leis antidiscriminação e o Estatuto da Igualdade Racial.

Não é suficiente pensar a emancipação sem que ela sofra um processo de institucionalização, em uma democracia alimentada pelo direito e um direito alimentado pela democracia. A importância de Direito e democracia é que, diferentemente da Teoria do agir comunicativo não é possível separar direito e democracia. Tanto o direito, quanto a democracia continuam tendo aspectos ambíguos, é preciso qualificar qual direito e qual democracia. Em Direito e democracia encontramos uma cooriginalidade, uma relação tensa entre as duas instâncias.

A gestão social, como interesse público não-estatal, está no cerne dessa tensão entre mundo-da-vida e sistema, entre democracia e direito, cotejando o sistema político no contexto das lutas emancipatórias. Composta por movimentos sociais diversos, a gestão social, experimenta a cooriginalidade dos antagonismos que integram a tensão entre facticidade e validade do direito.

A gestão social, na abordagem habermasiana, combina a perspectiva liberal, que impede a assimilação do indivíduo pela coletividade e afirma os direitos constitucionais, com a perspectiva republicana do entendimento ético-político de natureza dialógica. O direito, que atua como medium linguístico para a gestão social na interação entre sistema e mundo-da-vida, pode ser compreendido tanto como lei impositiva, à qual obedecemos por meio da coerção (facticidade), quanto como norma legítima reconhecida e aceita pelos destinatários (validade). A tensão entre facticidade e validade será tomada por Habermas como fio condutor e elemento estrutural da linguagem para a compreensão moderna do direito.

O direito é uma linguagem à qual se atrela uma teoria do discurso. A gestão social se vale do direito como médium e de suas tensões para realizar as transposições entre mundo-da-vida e sistema. Essas transposições envolvem o sistema político e as demandas de institucionalização. Segundo Nobre (2008Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros.), a tensão entre facticidade e validade é a expressão de duas lógicas: de um lado da administração e do sistema, em que norma e sanção são inseparáveis; de outro da formação da opinião e da vontade, ambas articuladas pelo direito. Na ausência de garantias metassociais, essa tensão se desdobra em outra marcada pela oposição entre direitos humanos e soberania popular, entre autonomia pública e privada ou ainda liberalismo e republicanismo.

A tensão entre facticidade e validade, para Habermas, não é uma característica exclusiva da internalidade do direito, uma vez que ultrapassa o âmbito dos contextos sociais, constituindo uma externalidade que se transmuta “entre facticidade do poder e validade pretendida pela autonomia política dos cidadãos” (Nobre, 2008Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros., p. 31). Essa tensão caracteriza-se como uma teoria crítica do direito e da política que se traduz numa perspectiva emancipatória.

Habermas apoiado na unidade entre as dimensões internas e externas do direito, a ideia de procedimento, que é a base de sustentação para que os cidadãos possam realizar suas liberdades comunicativas e atingirem o estado democrático de direito. A lógica procedimental é a garantia de que os processos de constituição da opinião e da vontade possam alcançar a institucionalização das formas de deliberação e a participação de maior contingente de indivíduos.

O procedimento, para Habermas, é “formal”, mas não em oposição a conteúdos determinados, de que ele seria a abstração, ou em relação aos quais ele seria “vazio”, mas o processo capaz de permitir o surgimento do maior número possível de vozes, de alternativas de ação e de formas de vida, garantindo seu direito de expressão e participação. Ele é formal também no sentido de que o processo de deliberação política não pode ser orientado por nenhuma forma de vida determinada, por nenhum modelo concreto do que deva ser a sociedade ou os cidadãos que vivem em um estado democrático de direito (Nobre, 2008Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros., p. 34).

O procedimentalismo da democracia em Habermas resulta de um esforço de exercício dos direitos associados às formas de autonomia pública e privada dos cidadãos e às formas republicana e liberal, por meio da manifestação, marcos institucionais, discursos pragmáticos, morais e ético-políticos (Habermas, 2003bHabermas, J. (2012a). Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo, SP: Editora UNESP.).

Para Habermas, a solidariedade, entendida aqui na concepção que o autor toma de Durkheim (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista (Vol. 2). São Paulo, SP: Martins Fontes.), na perspectiva dos laços que ligam os indivíduos entre si e à sociedade da forma de interdependência ou de similaridade, ou as tensões que se abrem entre a liberdade positiva e negativa apontam para uma reinterpretação da autonomia jurídica pública e privada. O liberalismo, definido por direitos subjetivos, teria estabelecido uma relação de concorrência com o republicanismo, ao situar as liberdades negativas na oposição do Estado. Para o republicanismo a liberdade assenta-se no processo de participação dos cidadãos e na constituição da vontade soberana do povo, baseada na busca do bem-comum e na autocompreensão de uma comunidade política como uma unidade cultural (Habermas, 2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.).

Segundo Habermas, o movimento de tensão entre os aspectos público e privado da autonomia jurídica jamais alcançou uma harmonização, experimentando, ao contrário uma alternância. Habermas empenha-se na superação do conflito entre autonomia pública e privada, eliminando qualquer superioridade que possa emergir entre uma e outra perspectiva. É por essa razão que Habermas ao conceber a teoria do discurso ancora o conceito de autonomia pública na concepção republicana de governo:

A teoria do discurso, que atribui ao processo democrático maiores conotações normativas do que o modelo liberal, as quais, no entanto, são mais fracas do que as do modelo republicano, assume elementos de ambas as partes, compondo-os de modo novo. Na linha do republicanismo, ela coloca no centro o processo político da formação da opinião e da vontade, sem, porém, entender a constituição do Estado de direito como algo secundário [...] ela entende os princípios do Estado de direito como uma resposta coerente à pergunta acerca do modo de institucionalização das formas pretensiosas de comunicação de uma formação democrática da opinião e da vontade. Na teoria do discurso, o desabrochar da política deliberativa não depende de uma cidadania capaz de agir coletivamente e sim, da institucionalização dos correspondentes processos e pressupostos comunicacionais, como também do jogo entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas que se formaram de modo informal (Habermas, 2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro., p. 21).

Segundo Durão (2015Durão, A. B. (2015). Direito e democracia e Habermas. Argumentos Revista de Filosofia, 7(14), 22-45. Recuperado de http://periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/19105
http://periodicos.ufc.br/argumentos/arti...
), Habermas estabelece uma interpretação intersubjetiva da política e do direito, por meio da reconciliação da soberania popular e dos direitos humanos. Emerge a concepção cooriginária, entre a autonomia privada, embasada na liberdade subjetiva e a autonomia pública embasada na liberdade comunicativa.

A concepção de soberania popular de Habermas (2012bHabermas, J. (2012b). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social (Vol. 1). São Paulo, SP: Martins Fontes.) sustenta-se no conceito de liberdade comunicativa de Arendt, conceito já utilizado em Teoria do agir comunicativo. A liberdade comunicativa está referida nas condições que os cidadãos, motivados racionalmente, apresentam-se para entrar livremente em entendimento e por meio do debate formar democraticamente a opinião e a vontade. A liberdade comunicativa apresenta a condição crítica de um indivíduo, que por meio da linguagem se posiciona em relação às pretensões de validade de um interlocutor. Desse modo a força motivadora do emprego público da liberdade comunicativa caracteriza-se por ser geradora de poder. Para Habermas (2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.), a soberania popular comunicativamente constituída surge no poder dos discursos públicos, o que resulta no entrelaçamento de esferas públicas autônomas. O poder comunicativo de Habermas sustenta-se na concepção de poder de Arendt:

Para Hannah Arendt, o poder político não é um potencial para a imposição de interesses próprios ou a realização de fins coletivos, nem um poder administrativo capaz de tomar decisões obrigatórias coletivamente; ele é, ao invés disso, uma força autorizadora que se manifesta na criação do direito legítimo e na fundação de instituições. Ele manifesta-se em ordens que protegem a liberdade política, na oposição às repressões que ameaçam a liberdade política a partir de dentro ou de fora (Habermas, 2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro., p. 187).

Habermas adota a concepção de Arendt, segundo a qual, “tanto a utilização do poder, como sua aquisição e manutenção dependem da formação e renovação comunicativa desse poder” (Habermas, 2003aHabermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro., p. 189). O caráter discursivo de formação da opinião e da vontade expressos na esfera pública política e no contexto parlamentar gera relações de entendimento, intersubjetividade intacta, alheias à violência, que segundo Arendt, faz despontar a força da liberdade comunicativa (Habermas, 2003a, p. 191). O princípio discursivo reproduz uma aceitação racional cujo fundamento é a legitimidade do direito.

O aspecto central conferido à liberdade comunicativa na obra de Habermas para a análise da política reside no fato de que ela não enfoca os aspectos relativos ao exercício dos direitos políticos fundamentais, mas está atenta à autonomia política pública, que emerge no estado democrático de direito. O processo de institucionalização das demandas do mundo-da-vida, que se tornou possível pelo Direito, assegura os fundamentos do processo democrático.

A análise da gestão social, na perspectiva habermasiana, ao envolver o direito como medium, levanta as questões da liberdade e da autonomia jurídica. A liberdade liberal, a proteção contra a assimilação da comunidade, a lei e o voto constitucionalmente assegurados, articulam-se à liberdade na soberania popular, ao comunitarismo, construídos dialogicamente por meio do entendimento, mas é, sobretudo, pela liberdade comunicativa que esses aspectos se unem.

O aspecto do bem-comum produzido por meio da autonomia pública que para Habermas assume o caráter republicano, abre uma abordagem da gestão social que se antagoniza com a concepção liberal do interesse bem compreendido tocquevilleano. Um locus de intermediação entre mundo-da-vida e sistema para o desenvolvimento da gestão social, sustentado pelo papel de um sistema político que não é exclusivamente sistema e abre dois percursos para os fluxos comunicativos vindos da esfera pública e das periferias, caracteriza uma dinâmica marcada pela presença do Direito como medium.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, repensamos o papel do Direito como potencial integrador entre mundo-da-vida e sistema para compreender o modo como eles afetam a gestão social. Consideramos, como Alcântara e Pereira (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
), que o locus da gestão social é um contexto de inter-relações e tensões entre mundo-da-vida e sistema que rompe com dualismos e assume em um aspecto relacional os seguintes pares de categorias: ação comunicativa e ação instrumental; perspectiva do participante e perspectiva do observador; integração social e integração sistêmica; reprodução simbólica e reprodução material; sociedade civil e Estado/mercado; solidariedade/valores, poder/dinheiro; poder comunicativo/ poder administrativo. Essa substituição de uma compreensão dual para uma relacional comporta complementaridades, justaposições, trocas, fluidez de fronteiras, momentos dialéticos e conflitos de lógicas. Entretanto, cada par de categorias se relaciona pela mediação do Direito, que é uma espécie de charneira ou dobradiça, entre sistema e mundo-da-vida, que desempenha funções sistêmicas e sendo portador de lógicas diversas, inclusive convertendo poder comunicativo em poder administrativo.

A preocupação com a questão de como se dá o processo de redirecionamento do sistema pelo mundo-da-vida sem ameaçar estruturalmente a lógica instrumental e reprodutiva da sociedade, levou Habermas a construir uma teoria política associada a uma teoria do Direito, que foi o tema de seu livro Direito e democracia. Enquanto nas sociedades tradicionais, sistema e mundo-da-vida encontram-se imbricados e indissociáveis, nas sociedades modernas eles se desacoplaram e se tornaram autônomos, instaurando um confronto entre a lógica sistêmica e a lógica comunicativa. Esse choque entre lógicas diferentes conduz, pela preponderância da racionalidade instrumental, à colonização do domínio comunicativo pelo sistêmico. A lógica comunicativa opõe resistência à lógica colonizadora. Segundo uma teoria voltada para a emancipação essas iniciativas não são suficientes para resistir às investidas colonizadoras, é preciso expandir os domínios em que predomina o entendimento.

Segundo Habermas, a desintegração do ethos tradicional, que dá origem à modernidade, se desenvolve em tensões entre autonomia pública e privada, entre facticidade e validade, entre liberalismo e republicanismo. Essa dualidade resulta num compromisso de defesa dos direitos fundamentais e de uma restrição dos poderes do Estado de um lado, e de outro na garantia da soberania popular, sustentada num entendimento ético-político. O ponto de integração dessas tensões, para Habermas, é a teoria do discurso, expressa nas formulações da democracia deliberativa.

Segundo Habermas, o sistema político não pode ser compreendido como algo exclusivamente instrumental e sistêmico, pois elementos comunicativos emergem em dois momentos no processo político, seja no complexo parlamentar, seja nas redes periféricas que se constituem no entorno do sistema político. A gestão social como manifestação de um interesse público não-estatal está ligada ao sistema político, que emerge numa concepção de centro e periferia, elaborada na obra Direito e Democracia, em um ordenamento em que aparecem como metáforas de eclusas hidrográficas, designando o movimento de fluxos comunicativos e permitindo o trânsito do mundo-da-vida ao sistema. A gestão social sob o medium do direito sofre processos de institucionalização, de conversão do poder comunicativo em poder administrativo e a transposição de barreiras pode conduzir a processos de emancipação.

A gestão social envolve o conceito de liberdade comunicativa que se opõe às liberdades liberais, liberdades subjetivas de ação, e implica a situação em que cidadãos motivados racionalmente se voltam para alcançar o entendimento livre por meio da formação da opinião e da vontade. Segundo Habermas (2003bHabermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.), a soberania dissolvida comunicativamente surge no poder dos discursos públicos e por outro lado, as liberdades subjetivas que sustentam a autonomia privada não conseguem proteger o indivíduo contra a liberdade comunicativa, pelas seguintes razões: a liberdade comunicativa depende do emprego da linguagem voltada para o entendimento e corresponde à obrigatoriedade ilocucionária, sendo anterior a qualquer institucionalização jurídica que deve proceder de modo simétrico.

A gestão social que se manifesta num locus de tensões entre inter-relações entre mundo-da-vida e sistema, manifesta-se também por meio do medium do direito das tensões entre soberania popular e liberdades fundamentais, entre republicanismo e liberalismo, entre facticidade e validade. As tensões perpassam as transposições entre fluxos comunicacionais que transitam do mundo-da-vida para o sistema, que podem ser produtos institucionais e emancipatórios.

O trabalho apresentado aponta para novas perspectivas de pesquisa em que os processos de lutas sociais mediados pelo Direito, possam ser descritos e analisados, considerada a mediação habermasiana, no sentido do constructo epistemológico da gestão social. Outro aspecto a ser pesquisado é a adequação do conceito de interesse bem compreendido de Tocqueville, de caráter utilitarista, como destacam Vianna e Carvalho (2000Vianna, L. W., & Carvalho, M. A. R. (2000). República e civilização brasileira. In N. Bignoto (Ed.), Pensar a República. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.), presentes nas abordagens habermasianas de gestão social de Cançado (2011Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.) e Cançado et al. (2015)Cançado, A. C. (2013). Gestão social: debate para a construção de um campo. NAU Social, 4(6), 191-209. Recuperado de https://doi.org/10.9771/ns.v4i6.31252
https://doi.org/10.9771/ns.v4i6.31252...
, seguidas por jovens pesquisadores como Alcântara (2017Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
https://doi.org/10.1590/1984-9240823...
) e L. C. Oliveira (2020Oliveira, L. C. (2020). Gestão social e racionalização social: análise da prática cultural de coletar água mineral na fonte (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.). Encontra-se nesse emprego tocquevilleano e liberal uma dificuldade de articulação com o pensamento republicano habermasiano. Este trabalho substitui por bem comum e liberdade comunicativa a concepção tocquevilleana de interesse bem compreendido, propondo, assim, um novo debate.

REFERÊNCIAS

  • Alcântara, V. C. (2018). Práticas de gestão das águas minerais e os movimentos deliberativos da gestão social no circuito das águas no Sul de Minas Gerais (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Alcântara, V. C., & Pereira, J. R. (2017). O locus da gestão social no contexto das inter-relações e tensões entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e sistema (System). Organizações e Sociedade, 24(82), 412-431. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9240823
    » https://doi.org/10.1590/1984-9240823
  • Araújo, E. T., & Boullosa, R. F. (2013). Esfera pública, esfera social e gestão social: aproximações epistemológicas e ontológicas. In Anais daConferência Regional de ISTR para a América Latina Y Caribe, Santiago, Chile.
  • Cançado, A. C. (2011). Fundamentos teóricos da gestão social (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Cançado, A. C. (2013). Gestão social: debate para a construção de um campo. NAU Social, 4(6), 191-209. Recuperado de https://doi.org/10.9771/ns.v4i6.31252
    » https://doi.org/10.9771/ns.v4i6.31252
  • Cançado, A. C., Pereira. J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: epistemologia de um paradigma Curitiba, PR: CRV.
  • Cruz, E. E. T. (2017). Gestão social da água mineral no município de Cambuquira-Minas Gerais (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Dowbor, L. (1999). A gestão social em busca de paradigmas. In E. Rico, & R. Raichellis (Orgs.), Gestão social: uma questão em debate (pp. 31-67). São Paulo, SP: EDUC/IEE.
  • Durão, A. B. (2015). Direito e democracia e Habermas. Argumentos Revista de Filosofia, 7(14), 22-45. Recuperado de http://periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/19105
    » http://periodicos.ufc.br/argumentos/article/view/19105
  • Fisher, T. (2002). Poderes locais, desenvolvimento e gestão. In T. Fisher (Org.), Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliações(pp. 12-32). Salvador, BA: Casa da Qualidade.
  • França, G. C Filho. (2008). Definindo gestão social. In J. T. SilvaJunior, R. T. Mâisih, A. C. Cançado, & P. C. Schommer (Orgs.), Gestão social: práticas em debate, teorias em construção (pp. 26-36). Fortaleza, CE: Imprensa Universitária.
  • Habermas, J. (2003a). Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2003b). Direito e democracia: entre facticidade e validade(Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.
  • Habermas, J. (2012a). Mudança estrutural da esfera pública São Paulo, SP: Editora UNESP.
  • Habermas, J. (2012b). Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social (Vol. 1). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Habermas, J. (2014). Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista (Vol. 2). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Melo, R. (2011). Teoria crítica e os sentidos da emancipação. Cadernos CRH, 24(62), 249-262. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000200002
  • Nobre, M. (2008). Introdução. In M. Nobre, & R. Terra(Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 11-14). São Paulo, SP: Malheiros.
  • Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010 (2010). Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Brasília, DF. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm
  • Oliveira, L. C. (2020). Gestão social e racionalização social: análise da prática cultural de coletar água mineral na fonte (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Oliveira, V. A. R. (2012). Interesse público, gestão pública e gestão social: significados e conexões (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Paes-de-Paula, A. P. (2005a). Administração pública brasileira entre gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas, 45(1), 36-49. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0034-75902005000100005
    » https://doi.org/10.1590/S0034-75902005000100005
  • Paes-de-Paula, A. P. (2005b). Por uma nova gestão pública Rio de Janeiro, RJ: FGV.
  • Pereira, J. R., & Cançado, A. C. (2018). Gestão social de cooperativas Curitiba, PR: Apris.
  • Peres, M. RJr.., & Pereira, J. R. (2014). Abordagens teóricas da gestão Social: uma análise de citações exploratórias. Cadernos EBAPE.BR, 12(2), 221-236. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-39519079
    » https://doi.org/10.1590/1679-39519079
  • Rico, E., & Raichellis, R. (1999). Gestão social uma questão em debate São Paulo, SP: EDUC.
  • Silva, F. (2008). Solidariedade entre público e privado. In M. Nobre , & R. Terra (Org.), Direito e democracia: um guia para leitura de Habermas (pp. 91-116). São Paulo, SP: Malheiros .
  • Tenório, F. G. (1998). Gestão social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, 32(5), 7-23. Recuperado de https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754
    » https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754
  • Tenório, F. G. (2008a). Tem razão a administração? Ijuí, RS: Unijuí.
  • Tenório, F. G. (2008b). (Re)Visitando o conceito de gestão social. In J. T. Silva Junior, R. T. Mâisih, A. C. Cançado, & P. C. Schommer (Orgs.), Gestão social: práticas em debate, teorias em construção Fortaleza, CE: Imprensa Universitária.
  • Tenório, F. G. (2013). Tem razão a gestão social? In Anais do Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, Florianópolis, SC.
  • Tinôco, K. M. F. (2017). A Lei da “ficha limpa” à luz da democracia deliberativa (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
  • Tocqueville, A. (1987). A democracia na América Belo Horizonte, MG: Itatiaia.
  • Vianna, L. W., & Carvalho, M. A. R. (2000). República e civilização brasileira. In N. Bignoto (Ed.), Pensar a República Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br